A Fúria Negra Ressuscita: As Raízes Subjetivas Do Hip-Hop Brasileiro

A Fúria Negra Ressuscita: As Raízes Subjetivas Do Hip-Hop Brasileiro

Luiz Geremias A Fúria Negra Ressuscita: as raízes subjetivas do hip-hop brasileiro 2006 Índice Introdução 7 1 O gueto forja sua cultura 17 1.1 As origens – MCs e DJs .............. 18 1.2 B-boys e grafiteiros ................ 25 2 Próxima parada: Estação São Bento 35 2.1 O funk carioca ................... 38 2.2 O hip-hop brasileiro ................ 41 3 As raízes subjetivas do hip-hop 55 3.1 Jazz e hip-hop: não tão distantes quanto se pode pensar ............... 57 3.2 A ira negra .................... 63 3.2.1 Malcolm X ................. 69 3.3 A herança da ira negra no hip-hop ........ 72 3.4 A Geração H ................... 84 4 A identidade do hip-hop brasileiro 91 4.1 As referências imediatas e mediatas ....... 97 4.2 O gangsta e o lugar do crime ........... 106 4.3 A relação com a mídia .............. 114 Considerações finais 123 Bibliografia 133 A todos os “manos e minas de atitude” Resumo Partindo da constatação do parco reconhecimento acadêmico do fenômeno cultural representado pelo hip-hop no Brasil, o autor expõe a história do movimento hip-hopper nos Estados Unidos – local onde surgiu – e no Brasil. Identifica as raízes subjetivas do fenômeno na influência negra na música norte-americana no sé- culo XX e no movimento pelos Direitos Civis empreendido pelos afro-descendentes desde a Guerra de Secessão, notadamente no pensamento de Malcolm X. A partir dessa fundamentação, expõe e discute uma proposta de abordagem das propostas subjetivas do hip-hop brasileiro, apontando como principal fator a ser conside- rado o fato desse movimento cultural viabilizar, para os jovens negros das periferias e favelas, a passagem de objetos do discurso jurídico-policial para o de sujeitos de seu próprio devir. 6 Luiz Geremias www.bocc.ubi.pt Introdução O hip-hop vem crescendo nos grandes centros urbanos ociden- tais entre os jovens dos subúrbios, periferias e das favelas. Mas, não apenas: alguns “playboys” já descobriram o rap, e desfilam em carros com os “hits” do Racionais MCs em alto e bom som; muitos roqueiros ou sambistas já reservam bons momentos de sua vida sonora para conhecer e curtir o ritmo criado pelos DJs no sampleamento de recortes musicais, e as competições entre estes são empolgantes e concorridas; jovens de todas as cores e pro- cedências vão até os eventos de break – ou páram nas ruas para assistir aos grupos de “street dance” – e vibram com as alegorias dos b-boys; não há quem não passe em um ônibus e não fique em- bevecido com alguns grafites espalhados pelos muros, em cores e formas inusitadas, num estilo absolutamente singular que, como não poderia de ser em se falando do hip-hop, sempre contém uma mensagem embutida implicita ou explicitamente. Assim, paulatinamente, a gente urbana vai descobrindo uma nova forma de expressividade bastante consistente que, muitos não sabem ainda, traz consigo um discurso coerente a ponto de reunir milhares de jovens em eventos onde se irmanam1 e se en- gajam num projeto que os intelectuais preferem chamar “manifes- tação cultural”, mas que seus adeptos tratam como uma cultura: “a cultura hip-hop”, norteadora de grande parte de seus sentimen- tos, pensamentos e atos. 1 Formando uma grande “fratria” nos termos de KEHL, Maria Rita. As fratrias órfãs, disponível em www.estadosgerais.org/historia/57- fratrias_orfãs.shtml 7 8 Luiz Geremias Se pudermos tentar uma contextualização instantânea desse movimento cultural, localizá-lo num mapa imaginário do territó- rio microfísico do poder social, imaginemos que afigura-se como uma “mancha”, uma “mancha negra”2 que surgiu pontilhada nos “guetos”, e se espraia a ponto de cobrir áreas geográficas jamais representadas nos mapas oficiais3. Cartograficamente, então, situa- se no vazio deixado pela expansão da burguesia nos grandes cen- tros urbanos. Em São Paulo, por exemplo, onde aportou vinda dos subúrbios novaiorquinos, delineia contornos nas periferias habita- das predominantemente pelos afrodescendentes e demais deserda- dos pela hegemonia do capital. Regiões que só constam nos ma- pas por um nome genérico e um vazio, um nada. Como se “nada” fosse o que a burguesia tivesse a dizer àqueles que lhe sustentam os luxos durante algumas centenas de anos4 . Ou, ainda, como se “nada” fosse o que a burguesia devesse dar aos descendentes dos escravos que ganharam como presente áureo a miséria, a exclu- são e a marginalização social. A mancha é negra e vem trazer um 2 Mesmo que se saiba que a maioria dos praticantes do hip-hop seja da etnia afrodescendente, podemos entender, como faz Joel Rufino dos Santos (1995), que o negro não é, nesse caso, restrito à cor da pele, mas a um lugar social, ou como sugere Stuart Hall (1998 e 2003), a um discurso. 3 Olhe-se um mapa dos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, e se vai perceber que nas áreas de favelas nada há além de um nome, o nome oficial do local – que nem sempre coincide com o nome dado pela comunidade a esse mesmo local, como é o caso do morro, situado em Botafogo (zona sul da cidade) que oficialmente é chamado de “Dona Marta”, mas que seus moradores chamam de “Santa Marta”. 4 Sendo a ideologia, sob o ponto de vista marxista, uma visão de mundo que, sob a lente da lógica do capital, inverte as relações causais e de sentido, é justo afirmar que não são os trabalhadores que necessitam do burguês (patrão) para sua sobrevivência, mas sim são as elites que dependem do trabalho dessa outra classe. A relação de dependência dos numerosos membros desta para os poucos privilegiados daquela decorre exatamente dessa “inversão” que poten- cializa o poder da burguesia dando-lhe acesso ao poder econômico, político e, acima de tudo, policial. Seguindo nessa mesma trilha, talvez seja justo especu- lar que boa parte das ações criminosas assumem, em nossos meios urbanos, o discurso de contestação dessa lógica invertida, buscando recuperar o prejuízo causado por esse inversão de sentido. www.bocc.ubi.pt As raízes subjetivas do hip-hop brasileiro 9 prenúncio de guerra, aliás, já está trazendo a guerra, utilizando a mais efetiva e ofensiva estratégia de guerra presente no contexto societário midiático contemporâneo, a guerra que se dá ao nível da subjetividade, a “guerrilha cultural urbana”, onde as armas são as mensagens enunciadoras de identidades – ou seja, o que define e sustenta o amor de um soldado ou guerrilheiro por uma causa. Como poderia ser diferente? Um sistema que, para Gilles De- leuze e Felix Guattari, é uma forma muito especial de delírio – “Everything is rational in capitalism, except capital or capitalism itself”5 , um dia teria que se deparar com a sua lógica delirante perversa “frente-a- frente”. Como afirma MV Bill no rap “Só mais um maluco”, “o pesadelo que a elite não quer ter/ (é) bater de frente com alguém da CDD”6. CDD, como sabemos, é a Cidade de Deus, que ficou famosa pelo filme7, criticado pelo próprio Bill8 . A referência feita por este no rap citado é clara: o bairro carioca figura como mais um dos lugares pobres e violentos do mundo “globalizado” pelo capital. Bater “de frente” com alguém de lá, ou de qualquer outro gueto, é realmente o pesadelo que mais assola as elites cari- ocas. Encarar a fúria do povo das periferias e favelas “de frente” é o que as elites não desejam de forma alguma, simplesmente por- que assim terão que vivenciar amargamente toda a violência que vitima os moradores de recantos como o citado – causada estru- turalmente pelas próprias elites, que concentram de forma egoísta a circulação monetária, dos bens de consumo e, principalmente, das oportunidades. Não podemos esquecer que os deserdados da lógica delirante capitalista também têm seus delírios, ou compar- tilham dos mesmos delírios dos executivos e “playboys”, e bus- 5 “A Very Special Delirium”, an interview with Gilles Deleuze and Felix Guattari in:"Chaosophy", ed. Sylvere Lothringer, Autonomedia/ Semiotexte 1995 with permission by the publishers. 6 Trecho do rap “Só + um Maluko, disco KL Jay na Batida volume III – Equilíbrio, São Paulo, 4P Discos, 2001. 7 Filme de Fernando Meirelles, lançado em 2002, baseado no romance “Ci- dade de Deus”, de Paulo Lins. 8 Em texto publicado no site Viva Favela: www.vivafavela.org.br. www.bocc.ubi.pt 10 Luiz Geremias cam fórmulas agressivamente concretas9 de alcançar o dinheiro, a fama e e poder que a mídia diz ser possível a todos no ambiente “livre e democrático” de uma sociedade capitalista, gerando um ciclo de violência que se espraia como a mancha negra no nosso mapa imaginário. Ou seja, na ausência de outras oportunidades para o gozo da qualidade de vida capitalista, resta a investida con- tra o patrimônio e, muito freqüentemente, contra a cidadania que lhes é negada. Em vez da vida, a sobrevida. Como os mapas estão vazios exatamente nos pontos onde ha- bita essa gente “perigosa”, talvez a burguesia tenha tentado fingir que o problema criado pela lógica da exclusão social não existia realmente. Talvez tenha sonhado que o confronto jamais se da- ria, e se isso acontecesse estaria segura pelo aparato policial. Na verdade, está relativamente segura, e as investidas dos “coman- dos” e “quadrilhas” são contidos a bala. Por mais que a guerra urbana faça vítimas do lado das elites, as baixas não se comparam com as do outro lado. O poder está permanentemente mantido, e as reclamações públicas da burguesia ultrajada deixam claro que a situação deve se manter como está, com o recrudescimento do discurso e das práticas repressoras. No entanto, como dissemos, a relatividade do controle conseguida pelos Secretários de Segu- rança – com seus canis de “meganhas” e arsenais bélicos – é abso- lutamente relativa, e não contém o confronto entre ricos e pobres.

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