Povo Mbya Guarani vive novas ameaças ao seu território Direitos indígenas | Insegurança jurídica abre espaço para tentativas de invasão e risco de remoção de comunidades no Rio Grande do Sul *Foto de capa: Flávio Dutra/Arquivo JU 21 jul. 2020 Quando cheguei à aldeia Pindó Poty, na zona sul de Porto Alegre, bem próximo ao centrinho do Lami, no meio da tarde do dia 5 de maio, a comunidade estava reunida em uma roda, logo à entrada, todos de pé e só quem se movimentava no interior do círculo era o cacique Roberto – mantive minha distância, respeitando o momento. As palavras dele chegavam ao meu ouvido e iam retumbando as acentuadas nasalizações e a vogal central alta, um som entre o “ê” e o “ô” – representado na escrita com o “y” – ausente no português. Ao conteúdo do discurso não tive acesso, já que não sou falante de Mbya Guarani, mas logo se iniciou uma movimentação e um pequeno grupo de menos de 10 pessoas, a maioria bem jovem, passou a percorrer toda a roda, despedindo-se dos demais. Por fim, mais um aceno geral e já passavam ao meu lado, em direção a uma van parada do lado de fora da aldeia. No dia 15 de abril, a comunidade da Pindó Poty havia flagrado invasores derrubando o mato e construindo cercas e barracos dentro da área em que habita, terra indígena de ocupação tradicional com processo de demarcação iniciado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2012. No dia 6 de maio, depois que o Ministério Público Federal (MPF) passou a atuar, a Justiça Federal deferiu liminar de reintegração de posse e interdito proibitório, que criminaliza novos invasores. As invasões já haviam sido percebidas antes, mas uma ação tão acintosa, feita à luz do dia, elevou a preocupação da comunidade e desencadeou uma forte mobilização coordenada pela Comissão Guarani Yvyrupá, organização que representa o povo Guarani no Sul e Sudeste do Brasil na luta pelo território. Até o dia 5 de maio se encontravam na Pindó Poty, ou já haviam passado por lá, delegações de pelo menos 12 aldeias diferentes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Assim me explicou, como um diplomata que se dispõe a falar na língua do estrangeiro, o cacique Roberto. O grupo que estava de partida voltava para sua comunidade em Santa Maria, região central do estado. Naquele momento já chovia e paramos debaixo de uma cobertura, onde chegava o cheiro defumado do fogo que queimava de quatro longas toras, no encontro das quais estava um panelão. Ao redor, as mulheres preparavam a comida. Roberto me dizia que a defesa da área era essencial porque ali podiam conservar seu modo de vida, tinham um rio para pescar e no mato tinham as fibras necessárias para fazer o artesanato. Guilherme Dal Sasso, representante da organização não governamental Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários, que acompanha a mobilização dos guarani, considera que a ação surtiu efeito para pressionar as instituições a tomarem posição ativa. Desde a liminar, os invasores não voltaram nem realizaram novas tentativas de esbulho. O cientista social relata que o MPF também solicitou a reintegração de posse contra duas invasões mais antigas, realizadas há cerca de dois anos. A justiça acatou o pedido na liminar, mas neste caso os invasores recorreram. Mestre em Desenvolvimento Rural e integrante do grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (Temas/UFRGS), Guilherme explica que há relatos de famílias guarani ocupando a área da Pindó Poty pelo menos desde a década de 1940. “Toda a zona sul de Porto Alegre, de Viamão e, de modo geral, as duas margens do Guaíba são territórios intensa e historicamente habitados pelos povos indígenas”, especifica. “Dezenas de sítios arqueológicos e dezenas de aldeias, bem como áreas de passagem e uso sazonal, mostram isso: uma relação profunda e imemorial com o território. Todas essas aldeias e locais de uso formam uma verdadeira rede social e territorial, sendo a Pindó Poty um ‘nó’ dessa grande rede. Mesmo que tenha poucas famílias, a aldeia está muito próxima de outras maiores, como a Jatay’ti (Cantagalo), a Anhetengua (Lomba do Pinheiro) e a Pindó Mirim (Itapuã), bem como de outras comunidades em situação de acampamento (Ponta do Arado)” Guilherme Dal Sasso Além disso, há uma rica biodiversidade na área aos fundos da aldeia, que compõe um corredor ecológico que vai até a Reserva Biológica do Lami. “Essas áreas de mata nativa têm uma importância fundamental pro modo de ser guarani: é onde encontram as plantas para sua medicina tradicional, lenha para o fogo que esquenta e com que se cozinha, matéria-prima para o artesanato (principal fonte de renda das comunidades guarani), áreas pra roça, coleta e pesca, atividades ligadas à segurança alimentar indígena”, esclarece. Mas ressalva que a relevância não é apenas material: estende-se para a dimensão espiritual, pois os guarani se relacionam de forma intensa com inúmeras espécies animais e vegetais e entidades que habitam as matas. Ameaças de invasão ao território da aldeia Mbya Guarani Pindó Poty, na zona sul de Porto Alegre, revela a situação de insegurança jurídica em que vivem comunidades indígenas no estado (Fotos: Flávio Dutra/JU) Comunidades vivem sob risco de despejo Até o dia 21 de maio, todas as delegações que vieram apoiar a mobilização em defesa da área da Pindó Poty já haviam retornado, restando apenas as oito famílias que efetivamente habitam a aldeia. Antes disso, porém, o povo Mbya Guarani realizou, entre os dias 13 e 15, um encontro de caciques e lideranças de mais de 30 aldeias do Rio Grande do Sul para discutir as ameaças ao seu território. A reunião foi articulada a partir da chamada feita pelo representante guarani no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Cepi), Cláudio Acosta. No documento final divulgado no encerramento, as lideranças destacam que grande parte das 56 aldeias existentes no estado está em situação de insegurança jurídica, o que gera ameaças de invasão ao território e de reintegração de posse contra as comunidades. “Nós somos vistos muitas vezes pelo juruá (não indígenas) como invasores na própria terra, esta terra que nos foi deixada pelos ancestrais” Caciques e lideranças Mbya Guarani O risco de remoção ocorre principalmente em relação às cerca de 25 comunidades constituídas em áreas públicas estaduais, que, em geral, foram assentadas nesses locais pelo próprio poder público estadual. Trata-se das aldeias Karandy (Camaquã) e Guabiju (Cachoeira do Sul), que ocupam terras em hortos florestais de propriedade da Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa), cujo patrimônio está sendo leiloado em decorrência de dívidas trabalhistas pendentes, e Ka’aguy Poty (Estrela Velha) e Guajayvi (Charqueadas) – esta última também ameaçada por uma obra de mineração –, que estão assentadas em área de patrimônio da CEEE, em processo de privatização. As comunidades pedem a retirada dessas terras dos processos de negociação e venda do patrimônio do estado a empresas privadas. A requisição, no entanto, ainda não obteve retorno por parte dos órgãos governamentais. Em ofícios direcionados a Claudio Gastal, secretário de Planejamento, Governança e Gestão do Rio Grande do Sul, e à Procuradoria Geral do Estado, que integra comissão permanente para análise e acompanhamento das medidas administrativas e judiciais envolvendo as demarcações indígenas, no dia 1.º de junho, o Cepi manifesta profunda preocupação em relação às tramitações administrativas e judiciais referentes aos hortos florestais da Cesa, onde habitam famílias das etnias Kaingang e Mbya Guarani, que não estão sendo consultadas. “Afirmamos que, assim ocorrendo, implicará grave desrespeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a mais importante legislação indigenista internacional, a qual garante aos povos indígenas o direito à consulta livre, prévia e informada antes de serem tomadas decisões administrativas que os afetem diretamente” Conselho Estadual dos Povos Indígenas O Cepi acrescenta que vem enfrentando dificuldade para obter informações concretas quanto à situação em que se encontram as áreas públicas onde vivem as comunidades – dentre as quais estão também as da extinta Fepagro, retomadas pelo povo Guarani em Maquiné, Rio Grande e Terra de Areia –, e aos encaminhamentos governamentais referentes a elas. Além disso, o conselho não vem sendo convocado para participar das discussões feitas pelo estado. Por meio de sua assessoria, a Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão informa que, “no momento, em razão de decisão judicial, as áreas [da Cesa] estão indisponíveis para qualquer movimentação”. Não esclarece, contudo, se existe possibilidade de ceder outra área equivalente para assentar as comunidades. No caso das famílias que ocupam áreas da CEEE, o órgão afirma que tratará do tema apenas quando realizar a venda da empresa. “Qualquer tema que envolva o patrimônio da companhia também depende do diálogo com o consórcio vencedor do certame”, afirma. Finalmente, sobre a Fepagro, esclarece que “não há nenhum processo de transferência, venda ou cedência das áreas”. Pressão do mercado imobiliário No caso da aldeia do Lami, não há o risco de despejo, mas as lideranças citam a pressão do avanço da especulação imobiliária. Guilherme menciona que a estratégia dos invasores dava fortes indícios de que se tratava de tentativa de conquista da posse através de loteamento com fins mercadológicos. ”O fato de não haver famílias no local invadido aponta que não se tratava de uma ocupação de luta por moradia, mas de uma estratégia de invasão para conquista ilegal da posse da área”, argumenta. “É bem claro o papel da especulação imobiliária no avanço sobre territórios indígenas na zona sul de Porto Alegre. Na Ponta do Arado, temos o interesse manifesto de uma empresa em construir megacondomínios e centros comerciais em uma área preservada de Mata Atlântica e ocupação imemorial do povo guarani” Guilherme Dal Sasso Ele menciona o projeto de Lei Complementar n.o 16 de 2020, aprovado pela Câmara de Vereadores, que altera o Plano Diretor do município, convertendo a área de rural para urbana para permitir a construção do empreendimento.
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