Ca Rn Aval Tem Seu

Ca Rn Aval Tem Seu

Todo c a r n a v a l tem seu f i m Os parceiros Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito fazem da morte a matéria-prima de seus sambas JULIANO GOMES, JULIO LOBATO, MARIA LUISA PORTO E VERÔNICA HERINGER Foto extraída do filme Nelson Cavaquinho estiço, negro e índio, cara re d o n- da, olhos negros e pele marrom. O rosto oleoso sob o calor de Jardim América. Cigarro aceso na mão esquerda. Na dire i- ta, o copo contendo seu ouro bri- lhante, apoiado sobre o balcão. Olhar fixo, quase vago, entre a embriaguez e a aguda concen- tração. Ao seu re d o r, seus com- p a n h e i ros de botequim pedem agitados que cantem algo. Nel- son, igualmente embriagado pa- rece um lorde ao lado deles. Ca- belos brancos e penteados. Impas- sível. Esnobe nunca. Exaltado, Nelson Cavaquinho e seu principal instrumento, o violão muito menos. Nelson, em mais uma de suas intermináveis pere- um copo de cerveja, um bote- Silva, na Lapa, e até hoje não me grinações nos botequins do Rio, quim. Os olhos e ouvidos atentos esqueço daqueles caminhões chei- pega seu violão, toca levemente ao estalar das cordas que prece- os de cadáveres passando – afir- no braço de quem o rodeia, e, dem e acompanham o seu canto. mou o músico. num passe de mágica tudo pára: Sua poesia evoca as desventuras “Sei que é doloroso um palhaço / do cotidiano, e, principalmente, Calça-balão Se afastar do palco por alguém / a maior delas: o fim da vida. Parceiro maior de Nelson Ca- C o rra que a platéia te reclama / Talvez a primeira grande imagem vaquinho, Guilherme de Brito Sei que choras palhaço / Por al- que Nelson teve da morte e que Bollhorst, nascido e criado em guém que não lhe ama”. ficaria sempre registrada em sua Vila Isabel, foi obrigado a largar Nelson Antônio da Silva, filho vida tenha sido a da gripe espanho- os estudos e começar a trabalhar de militar e sobrinho de um pro- la. A epidemia chegou a matar com 12 anos de idade. O motivo: fessor de violino, nasceu na Rua quase 300 mil em 1918. Outubro a morte de seu pai, Alfredo Ni- Mariz e Barros, na Tijuca. Co- desse ano, mês do aniversário de colau Bollhorst. Apesar de ainda nhecido simplesmente como Nelson, foi o mais tenebroso, quan- ser criança, começou a bater pon- Nelson Cavaquinho, ele foi talvez do a espanhola chegou a matar 8 to na Casa Edison como office boy a maior personificação do artista mil pessoas em quatro dias. para ajudar sua mãe no sustento popular. Seu reino: um violão, – Eu morava na Rua Joaquim da casa. A indesejada das gentes 37 Paulo Eduardo Neves/2001 rante, pegando carona no porta- malas de Noel Rosa e freqüentan- do estações de rádio à procura de alguém que gravasse uma de suas composições que Guilherme foi se aproximando cada vez mais dos sambistas e composi- tores, sem saber ainda que mais tarde encontraria em uma mesa de bar seu maior parceiro, Nelson Cavaquinho. Assim como conheceu Noel Rosa na Vila, foi também peregri- nando que Guilherme encontrou Nelson. Sempre fora um sonho seu apresentar uma composição àquele que já começava a ga- Guilherme de Brito, remanescente da geração de ouro do samba nhar notoriedade nas rodas de samba e na gravação de alguns Ainda muitos anos antes de Ao chegar ao trabalho, Gui- discos de artistas famosos. conhecer o parceiro que o torna- l h e rme foi então o pro t a g o n i s t a A amizade entre os dois já ria ilustre, Guilherme tinha uma de uma situação humilhante: nasceu da parceria. Um dia ao história de proximidade com o seus colegas o chamaram de “cal- ver a roda de pessoas se forman- meio musical. Apesar de não pos- ça-balão” pelo formato e tama- do ao redor de Nelson, Guilherme suir um piano em casa, sua mãe nho da calça, que não havia sido se aproximou e cantou a pri- sabia tocar o instrumento e o pai, feita ou comprada para ele. Este meira parte de um samba, Gar- que tocava violão, promovia se- passou a ser o título de sua pri- ça. Nelson aceitou e topou a céle- restas, sempre convidando músi- meira composição, da qual ele bre parceria, no ato. cos e compositores para noites de nem se re c o rda mais. Lembra-se – Nelson já era conhecido, ti- animadas reuniões. apenas da humilhação e diz que nha Degraus da vida. Ofereci a No trabalho, Guilherme era o esse foi um grande estímulo para ele, humildemente. Daí, foi dan- encarregado de espanar a poeira continuar compondo. do certo, eu fazia as primeiras das vitrolas da Casa Edison, onde Filho de pais pobres, Guilherm e partes e ele continuava, então Sinhô e Donga, pioneiros do sam- gastava seus momentos de lazer combinamos de sermos parceiros ba, gravavam seus discos. Foi p e regrinando pelas ruas de Vi l a exclusivos, mas volta e meia ele também no trabalho que sua Isabel com um cavaquinho na pulava a cerca. primeira composição foi feita. mão. Autodidata na música e na E do encontro nasceu uma Como na época era necessário pintura (sua outra paixão), o jovem espécie de paixão em que os fru- estar vestido de paletó, calça e rapaz tocava trechos de músicas tos eram quase sempre ilumina- gravata para ir trabalhar e para quem solicitasse e conta que, dos pela “luz negra” da morte. G u i l h e rme e sua mãe não ti- assim, foi ganhando seus primeiro s Fascinado pelo novo parceiro que nham condições de comprar as cachês, como as frutas que o dono conheceu em mesas de bar, Gui- peças, ele recebeu doações de dois de uma quitanda lhe dava após a lherme começou a compor versos amigos: um lhe emprestou as execução de alguma música. em que a tristeza era o sentimen- calças e outro o paletó, enquanto to predominante. sua mãe criou uma gravata Solidão peregrina – Sempre achei que a tristeza recortando um pedaço de pano. E foi assim, nessa trajetória er- toca mais fundo às pessoas do Julho/Dezembro 2004 38 Guilhreme de Brito que a alegria – confessou em j o rnal e da literatura da alta entrevista ao site Samba-Choro. classe. Além de compartilhar dessa Um episódio que ilustra de visão de que “sem um bocado de forma lírica a convivência pacífi- tristeza não se faz um samba ca entre a morte e a alegria car- não”, Guilherme passou a co- navalesca ocorreu em 1902, du- nhecer e respeitar seu novo rante o enterro de dois foliões amigo. A melancolia que Nelson mortos em confronto com um sentia, sua solidão de peregrino, bloco adversário. Argelino Gon- a ausência de um encargo que çalves, o Boi, e Jorge dos Santos, lhe ocupasse os dias, a fissura integrantes do cordão Filhos da pela mesa de bar, pela cerveja Estrela de Dois Diamantes eram escura e gelada, pelo samba de c o r tejados por integrantes de improvisação. diversos blocos, no caminho en- E foi compreendendo um pouco tre o necrotério e o cemitério. Os da dor de Nelson que Guilherme caixões, negros e pobres, pas- Auto-retrato de Gulherme de Brito compôs os versos que, mais tarde, savam em meio à massa de ficaram conhecidos como uns dos foliões fantasiados em profusão (1933), o poeta exalta seu senti- mais bonitos da música popular de cores e temas diferentes, rode- mento fúnebre incorporando uma brasileira “tire seu sorriso do ados por flores, instrumentos e os mulata sambando à imagem de caminho, que eu quero passar rufos dos tambores. seu próprio caixão: “Quando eu com a minha dor / hoje pra você m o rrer / não quero choro nem eu sou um espinho, espinho não vela (...) se existe alma / se há machuca a flor”. Segundo ele, foi “Música minha e do outra encarnação / eu queria que exatamente numa mesa de bar, Nelson, quem tiver a mulata / sapateasse no meu observando uma linda e sorri- assinando junto caixão (...) só quero choro de flau- dente mulher e incorporando o ta / com violão e cavaquinho...”. espírito melancólico de Nelson, pagou para entrar” Nestes versos, Noel mostra-se que nasceram esses versos, que Guilherme de Brito tranqüilo ao encarar a mort e , depois Cavaquinho viria a com- talvez com um sentimento próxi- pletar com: “é no espelho que eu mo ao expressado por Nelson e vejo minhas mágoas / E minha “Só o povo diverte-se não G u i l h e rme de Brito em Pranto de dor e os meus olhos rasos d’água esquecendo as sua chagas, só a um poeta. Nesta composição, a / eu na sua vida já fui uma flor / populaça desta terra de sol c e rteza de que um pranto alegre e hoje sou espinho em seu amor” encara sem pavor a morte nos sem lenço soasse através do pan- sambas macabros do carnaval” d e i ro e do tamborim após a mort e Samba macabro sintetizou João do Rio. Essa era a do poeta evoca a resignação do A morte sempre foi tema de expressão fiel do sentimento po- rei vadio e de seu fiel compa- sambas e esteve presente nas pular de que o fúnebre e o lúdico n h e i ro. Os versos “vivo tranqüilo composições que embalavam têm pontos de encontro. em Mangueira / porque sei que cordões de carnaval desde o iní- Também Noel Rosa, grande alguém há de chorar / quando eu cio do século XX.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    5 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us