17 TRÂNSITO DE FORMAS E TRANSCULTURAÇÃO NA LINGUAGEM POP João Luiz Teixeira de Brito* RESUMO O presente trabalho analisa uma série de obras pertencentes ao que chamamos de linguagem pop, nos âmbitos das artes plásticas, literatura e música. Mais especificamente, os trabalhos plásticos de Andy Warhol, a escrita literária de William Burroughs e as canções de Kurt Cobain. Todos são autores de língua inglesa, embora este não seja necessariamente o seu meio expressivo. Buscamos aqui delinear traços de fluxo e/ou resistividade entre essas obras, num processo intersemiótico e transcultural que parece nos demonstrar uma forma de tradução considerada aqui sob um viés mais amplo, excedente do binômio tradicional original-tradução do exercício tradutório texto- a-texto. Nomeamos esse fenômeno, por hora, trânsito de formas. Contamos, ao longo dessa produção com o auxílio de outros teóricos da tradução, nomeadamente,Alice Maria Araújo Ferreira (2013), Paul Ricœur (2011), Walter Benjamin (2012) e Roland Walter (2010)– bem como nos apropriaremos de um texto não relativo à tradução, escrito por Georges Didi-Huberman (2011) –, sempre com a consciência de dilatarmos os conceitos de tradução para horizontes mais amplos, tanto políticos quanto estéticos. PALAVRAS-CHAVE:Tradução; Intersemiótica; Transculturação; Pop. ABSTRACT This article analyzes a series of works belonging to what we call pop language, in the fields of the visual arts, literature and music. More specifically: the plastic arts of Andy Warhol, the writings of William Burroughs and the songs of Kurt Cobain. All authors of the English language, though that is not necessarily their medium of expression. We aim at sketching out some traces of flux and resistance between those works, in anintersemiotic and transcultural process which seems to demonstrate a form of translation – considered here in a broader spectrum, that supersedes the traditional dichotomy original/translation of the translator text-to-text craft. We name this phenomenon, for the present time, transit of forms. As the text was produced, we counted on the aid of other translation theorists such as Alice Maria Araújo Ferreira (2013), Paul Ricœur (2011), Walter Benjamin (2012) e Roland Walter (2010) – while also appropriating a particular text with little initial link to translation theory, by George Didi-Huberman (2011) –, always conscious of dilating the concepts of translation into broader horizons, both political and aesthetical. KEY-WORDS: Translation; Intersemiotics; Transculturation; Pop. * Universidade Federal da Bahia – UFBA. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 17-29, 2016. 18 O presente trabalho é uma primeira tentativa de pensar a tradução numa abordagem mais ampla e levar a análise algumas obras da linguagem pop contemporânea. Extrapolaremos a ideia tradicional de tradução texto a texto paraentender os deslocamentos culturais e semióticos a partir da noção de tradução. Esse estudo se dará através de dois eixos, os quais estão refletidos em seu título. Primeiramente, pensaremos a tradução intersemiótica, ocorrida entre elementos da linguagem pop norte-americana, através do espectro intersígnico que engloba a arte plástica de Andy Warhol, a escrita de William Burroughs e a música de Kurt Cobain, em obras específicas delineadas abaixo. Para longe das noções de intenção tradutória ou da percepção de determinados elementos culturais seja como tradução, adaptação ou influência, gostaríamos de relevar esse processo como trânsito de formas, numa concepção mais livre e ampla do ato tradutório. Tentaremos demonstrar através de exemplos concretos como certos procedimentos utilizados no corpo de obras mencionado acima se dão e se refletem mutuamente nos textos, de início, díspares, dos autores citados. Embora este primeiro eixo metodológico se dê no âmbito de uma mesma cultura, eclipsando assim, à primeira vista, o fenômeno talvez intrínseco à tradução, o contato entre culturas, entre textos – o, enfim, desejo de amar e matar ou, igualmente, penetrar o outro, a alteridade própria do ato tradutório – parece-nos que o exame mais detalhado não demonstrará tal efeito. Muito pelo contrário, essa alteridade já está presente se considerarmos o diálogo histórico que compõe o trânsito de formas a que nos referimos. Afinal, a obra do autor literário beat William Burroughs, embora se estenda até o final do século XX, nas linhas deste trabalho terá como limite metodológico apenas uma obra escrita durante os anos 1950 e publicada em 1959, Naked Lunch. O trabalho de Warhol, igualmente, se estendeu por décadas, mas, aqui, nos limitaremos a analisar alguns de seus quadros e vídeos da década de 1960. E, por fim, a obra de Kurt Cobain à frente do grupo musical Nirvana veio a público nos anos 1990; desta, analisaremos canções de dois álbuns, Nevermind, lançado em 1991, e In Utero, lançado em 1993. É importante ressaltar que não vemos no proposto trânsito de formas uma linha histórica necessária de influências e empréstimos1. Queremos ver aí muito mais 1À luz das propostas de Michel Foucault (2000) em seu método arqueológico, gostaríamos de negar tal enfoque, optando por uma visão menos determinista e evolucionista. É verdade que Foucault também renega a análise dos grandes nomes e das grandes obras na proposta de seu método. Conscientes desse Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 17-29, 2016. 19 inconsciência do que desígnio, muito mais fluidez do que estrutura, muito mais forma (conceito visto aqui como impulso criador e imagem) do que planificação. Não houve, entre esses três artistas, intenção tradutória, empréstimos ou influências no senso mais comum das palavras. Ainda assim, de algum modo, uma série de procedimentos e formas se apresentam, consistentes e fugazes, uma vez que nos propomos a analisar seu corpo de obras. Essa recorrência, ou trânsito, se dá, talvez, a partir do desejo sumo do outro. Pretendemos, pois, exacerbar esse efeito no segundo eixo de análise ao qual nos dedicaremos. Este será o vislumbre dos deslocamentos dessa linguagem pop norte- americana, em chegadas e partidas, para além das fronteiras americanas, no que possivelmente caracterize um fenômeno transcultural2. Então, ambos os deslocamentos propostos para análise aqui dão conta de movimentos incertos através de um dado espectro cultural/intersemiótico, com a produção de uma série de efeitos, e levados a cabo, talvez, pelo processo tradutório da experiência do outro. Para essa análise, nos apoiaremos em conceitos de teóricos da tradução tais como Alice Maria Araújo Ferreira (2010), Paul Ricœur, Walter Benjamin (2012) e Roland Walter (2010), sempre com a consciência de dilatarmos os conceitos de tradução para horizontes mais amplos, tanto políticos quanto estéticos. Obviamente, alguns conceitos serão problemáticos nesse sentido, tal como o conceito de cultura, mencionado acima. Ora, o que é a cultura brasileira? O que é a americana? Há uma? Somente uma? Qual é? Quais são? Não tentaremos aqui definir ou delinear a cultura brasileira (nem, por sinal, a americana, sequer as obras completas de quaisquer dos artistas mencionados); intentaremos apenas traçar breves rastros dos deslocamentos que parecem se apresentar, segundo minha ótica, sem intenção de explicar absolutamente a questão. Ressalvas feitas, vamos à obra. Com frequência a tradução é pensada em termos dicotômicos: língua, texto, cultura de partida / língua, texto, cultura de chegada; identidade / alteridade; fonte / alvo; original / tradução, letra / espírito, o outro / o mesmo, etc... Esse paradoxo metodológico, seguiremos, sem desejo de seguir à risca o método arqueológico, mas observantes das possibilidades criativas que ele enseja. 2Utilizo o termo transculturação aqui de modo bastante livre em relação à concepção contemporânea da palavra no âmbito acadêmico. O termo, conquanto evoque inevitavelmente suas raízes no discurso antropológico de Fernando Ortiz, ou mesmo seus desdobramentos na transculturação narrativa de Ángel Rama (1982), não nos é ditador aqui de um corpo teórico que o defina. Tais conceitos descrevem processos ainda por demais estruturais e conscientemente levados a cabo para que sirvam integralmente nesta análise. Pelo contrário, tomo de assalto o termo, de modo a instrumentalizar o argumento acerca de certo fenômeno estético-político que busco propor, embora ainda não o formule completamente. Transversal – Revista em Tradução, Fortaleza, v.2, n.2, p. 17-29, 2016. 20 pensamento dicotômico sugere dois territórios distintos de linguagem, texto e cultura em que um está sempre em posição de superioridade em relação ao outro, criando um processo de tradução baseado no critério do apagamento do “Outro”. Pensar a tradução como processo antropofágico, objeto deste artigo, é ver a tradução como subversão e assim subverter esse pensamento dicotômico, e com isso desloca noções como “apropriação”, “valores culturais” e “identidade”, repensando-as em termos de movimento e não mais estaticamente como origem. (FERREIRA, 2013, p. 42) No texto de Alice Ferreira, a teórica da tradução reflete sobre o “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade (1928). Sua proposta é também, como a nossa, de ultrapassar os limites dicotômicos das noções tradicionais de tradução e buscar um fazer tradutório mais livre e criativo, baseado em e criador de diferença; proposta de movimento ou, em meus dizeres, trânsito, impulsionado “não, por recusa identitária, mas por gosto, quase por „glutonaria do outro‟, por apropriação, e por expropriação e desierarquização dos valores
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