Estâncias De Criação De Gado E Cativos Em Rio Pardo No Final Do Século XIX

Estâncias De Criação De Gado E Cativos Em Rio Pardo No Final Do Século XIX

Estâncias de criação de gado e cativos em Rio Pardo no final do Século XIX Livestock ranches and slave labor in Rio Pardo in the late 19th century Estancias ganado y cautivos en Rio Pardo a finales del siglo XIX Olgário Vogt * Bruna Vieira Spenner** Introdução Resumo No Rio Grande do Sul (RS), prevalece, O objetivo do artigo é analisar a compo- no senso comum, a tese de que a escravidão sição do patrimônio de estâncias de cria- teria sido pouco expressiva e branda na Pro- ção de gado em Rio Pardo, RS, no final do Século XIX e detectar em que medida víncia. A historiografia tradicional em mui- a força de trabalho escravo esteve presen- to contribui na construção desse pensamen- te nas atividades pastoris. Como foco de to equivocado. Apenas para exemplificar, análise foram selecionadas as estâncias Souza Docca (1954, p. 81) escreveu que foi Nossa Senhora da Vitória e das Pedernei- insignificante a contribuição do sangue afri- ras, dois dos principais empreendimen- cano na formação do tipo sul-rio-grandense. tos criatórios do município. A principal Arthur Ferreira Filho (1974, p. 140) defendeu fonte empírica de pesquisa utilizada é que o RS, quando comparado com as demais constituída de fontes primárias manus- províncias brasileiras, apresentava reduzido critas. Trata-se dos inventários post mor- tem de Mathias José Velho, proprietário * Olgário Vogt, professor do Curso de História e da Santa Vitória, e do vereador José Fer- do Programa de Pós-graduação em Desenvolvi- reira Porto, dono das Pederneiras. mento Regional da UNISC. ** Bruna Vieira Spenner, mestre em desenvolvi- mento regional; arquiteta e urbanista. Palavras-chave: Estâncias de gado. Escravidão. Inventários post mortem. Recebido em 01/04/2014 - Aprovado em 25/06/2014 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.14n.2.4581 410 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 410-431 número de cativos, não encontrando a escra- O emprego da força de trabalho es- vidão “ponto de apoio do temperamento li- crava nas lides campeiras já foi tema de beral dos gaúchos.” Na mesma toada, Amyr acalorados debates. Mesmo autores de fun- Borges Fortes registrou que o RS damentação teórica marxista negaram, ou [...] foi, das províncias brasileiras, uma ao menos minimizaram o envolvimento de das que recebeu menor número de escra- cativos nesse tipo de atividade. Nesse sen- vos, pois, desde logo, ficou evidenciado tido, Paulo Xavier (1969, p. 78) dividiu os que os negros africanos não se ambienta- trabalhadores das estâncias entre os realiza- vam ao clima do sul do pais e, ainda, que os misteres da criação não eram bem de- dos por homens livres e os realizados por sempenhados por esses indivíduos. Uti- homens escravizados. De forma idêntica, lizados apenas nos labores domésticos e classificou os ramos da economia estanciei- nas charqueadas, em nenhuma província ra em dois grupos: a mercantil e a natural. como na nossa, encontraram, os escravos, Os cativos estariam ligados ao ramo da eco- tratamento mais clemente e humano. Rara- mente eram submetidos a espancamentos nomia natural. Parcela deles se dedicaria à e castigos corporais, e frequentes eram as lavoura, plantando e elaborando a riqueza alforrias concedidas por ocasião de festas, indispensável para o consumo da unidade aniversários etc. (FORTES, 1962, p. 93-94). produtiva. Outra parte desenvolveria um O escravo, mesmo quando admitida artesanato doméstico produzindo sabão, sua incorporação nas estâncias, teve ofusca- queijos, linguiças, conservas, tecidos, ren- da sua marcante presença pela ideologia da das e outros mais. Já os trabalhadores livres democracia pastoril. Assim, em 1927, Jorge - agregados e peões – estrariam ligados ao Salis Goulart (1978, p. 11) defendeu que na ramo da economia mercantil. Seriam super- estância duas forças combinadas, o meio fí- visionados diretamente pelo estancieiro ou sico e o trabalho pastoril imposto pela natu- o seu preposto, o capataz, se constituindo reza do solo, atuaram para irmanar patrões em uma espécie de trabalhadores servis. e empregados, sendo o gaúcho muito mais O campeiro, com sua família, ocupa tre- um amigo do que um subordinado de seu chos da terra; neles constrói o seu rancho, patrão. Laços de intimidade democrática e planta e colhe produtos para seu próprio de unidade afetiva uniam, em um latifúndio, consumo. O gozo desses benefícios será jungido à sua fidelidade ao dono da terra. donos de estâncias, seus parentes e peões Alguns capatazes ou agregados mais ca- (GOULART, 1978, p. 28-29). Trabalhando pazes e úteis recebem animais – terneiros ombro a ombro com seu senhor, o cativo te- – por ocasião das marcações, como prêmio ria recebido um tratamento mais humanitá- aos seus préstimos e interesse demonstra- do pelo trabalho. Seus filhos são “afilha- rio e digno que em outras atividades. Como dos” do patrão. Sua fidelidade torna-se pontua, com propriedade, Mário Maestri cada vez mais de natureza servil. O estan- (2008, p. 184), a ideologia da democracia pas- cieiro é o protetor de todos os dependentes toril procurou escamotear “contradições so- de sua área e sobre todos exerce autorida- de indiscutível (XAVIER, 1969, p. 78). ciais essenciais no seio das unidades pastoris e, assim, na antiga formação social sulina”. 411 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. p. 410-431 Dessa forma, Xavier caracteriza a es- nômico importar negros da África e subme- tância como uma combinação de uma econo- tê-los a um longo aprendizado. Mais lógico mia natural com a mercantil, respectivamen- seria recrutar “uma massa de trabalhadores te sob o regime escravista e servil, e exclui livres dotada de experiência e tradição pas- o escravo no envolvimento direto dos traba- toris: os gaúchos ou gaudérios, índios e mes- lhos com o gado. Francisco Riopardense de tiços” (FREITAS, 1983, p. 28). Macedo (1969, p. 115) defendeu tese análoga A obra pioneira de Fernando Henri- a de Xavier ao afirmar que as estâncias eram que Cardoso, de 1962, contestou a tese da centros comunais onde escravos e um pu- escravidão branda, evidenciou a importân- nhado de homens livres aplicavam-se a dois cia dos trabalhadores cativos nas charquea- tipos de economia: a natural e a mercantil. das e apontou para a utilização da mão de Décio Freitas (1983) sustentou que, obra escrava nas estâncias do RS. Trabalhos desde o início, na estância gaúcha prepon- investigativos recentes confirmaram que a deraram relações capitalistas de produção. escravidão permeou, de alto a baixo, a socie- A massa de trabalhadores rurais das estân- dade sul-rio-grandense e destacaram que a cias teria sido composta de homens juridica- força de trabalho escrava foi empregada em mente livres que, não possuindo a nenhum diferentes regiões da Província, inclusive na título os meios de produção, vendiam sua criação e na lida do gado. força de trabalho para prover a subsistência. Paulo Zarth (1997, 2002), ao pesqui- O emprego do escravo na atividade pastoril sar a história agrária na região do planalto, não era recomendado por dois motivos. Um no norte do Estado, na segunda metade do deles está relacionado à supervisão e à vigi- Século XIX, fundamentado em uma amos- lância do cativo. tragem de inventários, demonstrou a forte No pastoreio, haveria que colocar um fei- presença da escravidão naquela região. Des- tor ao lado de cada escravo pastor, já que tacou que nas estâncias rio-grandenses foi sem a vigilância e a supervisão este último significativa a escravidão, sendo ela “bem obviamente trabalharia pouco e mal, usan- mais importante do que a historiografia tem do com toda a probabilidade o cavalo para fugir através das distâncias, indivisas e divulgado” (ZARTH, 2002, p. 149). Ali, os despovoadas campanhas, cruzando a raia grandes estancieiros recorreriam com regu- em busca de uma liberdade assegurada laridade ao trabalho cativo. legalmente nas terras platinas. Semelhante Fábio Kühn, em tese de doutorado de- vigilância e supervisão seria logicamente fendida em 2006, deixou consignado que os antieconômica (FREITAS, 1983, p. 28). primeiros lagunenses que se instalaram nos O outro motivo pelo qual não se reco- Campos de Viamão depois do primeiro ter- mendava a utilização do escravo na ativida- ço do Século XVIII se valiam do trabalho es- de pastoril é o fato de que os africanos não cravo africano e também indígena. A partir dominavam a técnica do trabalho. Teriam, do rol dos confessados de 1751, constatou portanto, que ser adestrados para a execu- que “mais de 45% da população era cativa, ção das tarefas. Nesse sentido, seria antieco- um percentual muito elevado, semelhante 412 História: Debates e Tendências – v. 14, n. 2, jul./dez. 2014, p. 410-431 ao encontrado nas zonas mineradoras ou de e Paulo Roberto Staudt Moreira. Ambos, plantation e não muito adequado a uma re- embora se valendo de enfoques teórico- gião voltada ao mercado interno” (KÜHN, -metodológicos distintos, por meio dos seus 2006, p. 110). Apurou, ainda, que pelo censo incontáveis escritos e pelos pós-graduandos paroquial de 1778, dois terços dos fogos de por eles orientados, têm contribuído signi- Viamão apresentavam a existência de escra- ficativamente para o avanço de pesquisas vos (KÜHN, 2006, p. 130). sobre a temática. Helen Osório, investigando o final do Contudo, apesar desses significativos período colonial do RS, a partir de inven- avanços historiográficos e apesar de sua im- tários post mortem, constatou que 97% dos portância na formação social e econômica estancieiros da sua amostragem eram pro- do Brasil meridional, não se encontra ainda prietários de cativos. Averiguou que nas es- uma história geral sobre a estância pastoril tâncias que possuíam de 101 a 1.000 cabeças sulina (MAESTRI, 2008, p. 176). Ao mesmo de gado, a escravaria compunha 29,9% do pa- tempo, são ainda parcos os estudos mono- trimônio produtivo; já naquelas de mais de gráficos sobre as características da popula- 1.000 cabeças de gado, integralizavam 17,3% ção escrava nas áreas de pecuária extensiva do montante (OSÓRIO, 2007, p.

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