CORTEJANDO PELA RUA, CORTEJADO PELO PALCO: “LLAMADAS” DA DANÇA NO CANDOMBE URUGUAIO1 Marcela Monteiro Rabelo/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco - Brasil). O candombe é uma manifestação da cultura popular que ocorre no Uruguai, principalmente entre os festejos natalinos e o período carnavalesco, e possui sua maior expressão na cidade de Montevidéu. Caracterizado como cortejo, o candombe é composto de música e dança, sendo esta última o centro das discussões aqui apresentadas. Além do espaço festivo da rua, novas situações de competição, implementadas no decorrer do século XX, levaram o candombe a se estabelecer enquanto concurso que ocorre na rua e no palco. Acompanhando este processo de expansão, a prática do candombe, historicamente vinculada à comunidade afro-uruguaia, toma hoje proporções maiores, atingindo novos atores e configurações sociais, sendo elevada a símbolo da identidade nacional. Entretanto, esta nova posição do candombe para o país é carregada de contradições, na medida em que conflitos e diálogos entre rua e palco, celebração e competição, negros e brancos, os “de dentro” e “os de fora” se estabelecem na busca por espaço e por legitimidade na manifestação. Este panorama revela-se nas diferentes propostas estéticas da dança/baile do candombe e suas formas de avaliação perante distintas situações de apresentação. Entre cortejar bailando pela rua, e ser cortejado bailando no palco, diversos sentidos são acionados (“Llamados”) pelos praticantes dessa dança diante de um trânsito de lugares e pessoas. Palavras-chave: Dança. Cultura Popular. Candombe Uruguaio. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. 1 A trajetória da constituição da América Latina resulta da convergência de culturas e sociedades que se forjaram historicamente separadas, aqui reunidas por força e iniciativa de povos europeus. Mais que uma denominação determinada por um tronco lingüístico, a expressão América Latina traz consigo um discurso constituído por fatores culturais, étnicos, políticos, econômicos e sociais (GALEANO, 2002). É na confluência de tais fatores que se encontra o folguedo ao qual me reportei durante este artigo2: o candombe3, festejado em Montevidéu – Uruguai. A escolha do candombe como foco do estudo não se concretizou de forma aleatória. Para explicá-la é preciso recorrer brevemente a uma narrativa que abarque como cheguei a debruçar minhas inquietações sobre este folguedo. Tenho trabalhado como dançarina e experienciado como brincante manifestações populares em Pernambuco desde 20044. Dentre os folguedos que pude experimentar em minha trajetória na dança, o maracatu-nação5 (ou de baque virado) sempre me chamou atenção, seja por sua história multifacetada, pelas cores, pelo batuque e pela própria dança que ele evoca. Em 2008, tive a oportunidade de perceber este folguedo de uma forma diferente da que estava habituada. Neste ano, pude ver pela primeira vez um desfile de candombe uruguaio em Buenos Aires6. A partir deste momento tive a impressão de estar olhando para algo familiar e ao mesmo tempo bastante diferente do que via e sentia no maracatu-nação. 2 O presente artigo é fruto de algumas das reflexões de minha dissertação de mestrado realizada através do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, defendida em junho de 2014. Orientadora: Profa. Lady Selma Albernaz. 3 O candombe ao qual me refiro trata-se da manifestação existente na Região do Rio da Prata, mais precisamente o candombe uruguaio. Essa ressalva torna-se importante no sentido de existirem manifestações homônimas como o candombe em Buenos Aires - Argentina, o exemplo do candombe do açude em Minas Gerais – Brasil, e o candombe que é parte das Congadas neste mesmo estado. 4 Como dançarina/brincante participei dos seguintes grupos: Brasílica Música e Dança, do Balé Popular do Recife (2004); Criart Cia. de Dança (2006); Cia. de Dança Artefolia (desde 2008); Maracatu Nação Pernambuco (desde 2012). Tais grupos têm como referência para sua criação os folguedos populares de Pernambuco como Maracatu-nação, caboclinhos e frevo, por exemplo. Em todos há a preocupação com a criação de espetáculos para o espaço do teatro/palco, sendo a Cia. de Dança Artefolia e o Maracatu Nação Pernambuco espaços em que tais folguedos podem ser vivenciados também como brincadeira, quando desfilam no Carnaval e em prévias carnavalescas. 5 Refiro-me ao Maracatu-Nação que ocorre no estado de Pernambuco, apesar da existência do mesmo em outros estados brasileiros (LIMA, 2005). Além do Maracatu-nação, é importante salientar a sua variante relacionada com a Zona da Mata Pernambucana, o Maracatu Rural ou de Baque Solto (VICENTE, 2005). 6 O desfile em Buenos Aires que presenciei foi realizado no bairro de San Telmo desta cidade. Para adentrar nas questões que dizem respeito à presença do candombe na Argentina ver Frigerio y Lamborghini, (2012). 2 Personagens, sons, cores, cortejo, rua, platéia brincante, e eu, num outro lugar que o carnaval não me colocara antes: o de observadora. Desde então, comecei a ler publicações variadas que me trouxessem alguma explicação de tais semelhanças e diferenças, entre o que eu vivia no maracatu-nação, enquanto brincante e bailarina, e do que eu via agora no candombe uruguaio. Tais leituras resultaram, num primeiro momento, na busca por entender as origens, e num segundo, na procura por uma formação acadêmica em dança que me permitisse escrever com mais propriedade sobre a questão. Foi aí que em 2011 pude especializar-me em Dança pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade Angel Vianna. Assim, nesta ocasião, dentro de uma perspectiva do estudo e análise estética da dança, tive a oportunidade de refletir um pouco sobre diversos aspectos em que o candombe uruguaio e o maracatu-nação se aproximavam e distanciavam-se um do outro (Rabelo, 2011). História, religiosidade, formação do cortejo e música destas manifestações foram alguns dos caminhos em que me detive para pensar sobre os movimentos corporais da dança encontrados em algumas das figuras dramáticas do maracatu-nação e do candombe. Entretanto, por estar mais atenta à configuração das movimentações e da estética da dança destes folguedos, dentro de um aspecto sincrônico, este trabalho acabou por não considerar as transformações ocorridas nestas danças ao longo do tempo, negligenciou quem eram as pessoas que faziam parte dos folguedos, e tampouco aprofundou nas indagações que concernem às mudanças da representatividade da dança e do corpo (quando no espaço da rua e no espaço do palco). Tais questões foram inquietações que se fizeram presentes para o desenvolvimento do processo de escrita do mestrado, da qual o presente artigo se coloca como um recorte das reflexões promovidas pela dissertação. 3 De uma maneira geral, a dança nos grupos de candombe atuais, mais comumente chamados de comparsas7, é representada pelos seguintes personagens: o portaestandarte, os portabanderas, os portatrofeos (que carregam os símbolos da media-luna e da estrella), as bailarinas (ou negras jóvenes), a mama vieja e o gramillero, o escobero, o(s) bailaríne(s) (ou negros jovénes), a(s) vedette(s) e os tamborileros. A música do cortejo é feita pelos tamoborileros, que em seu conjunto compõem uma cuerda de tambores (corda de tambores). Os tambores utilizados no candombe são piano, repique e chico, que na ordem mencionada estão dispostos do maior para o menor, correspondendo esta seqüência, em termos de sonoridade, a uma relação que vai do tambor mais grave ao mais agudo (FERREIRA, 1997). A prática da dança e da música do candombe é recorrente durante todo o ano no território uruguaio, embora possua sua maior expressão no período que vai desde as festividades natalinas ao período carnavalesco, principalmente em Montevidéu. As diferentes apresentações neste intervalo de tempo são chamadas de salidas de tambores e llamadas8, que em sua maioria ocorrem nas ruas dos bairros Sur e Palermo desta cidade. Além da rua, as novas situações de competição (reguladas pelo Estado) implementadas no decorrer do século XX, trouxeram o candombe para outros espaços como os tablados (espécie de palcos montados em diversos bairros da cidade no período carnavalesco) e o palco do Teatro de Verano (por meio de concurso realizado por diretores de espetáculos e das comparsas) (FERREIRA, 2001). Acompanhando este contexto de difusão, o candombe, historicamente identificado como uma manifestação afro-uruguaia passa também, no momento presente, a ser cada vez mais visualizado como símbolo de uma identidade nacional. Considerado em 2009 como 7 O termo comparsa, de acordo com Ricardo Soca (2006), surge no Norte da Itália, em meados do século XVI, relacionado com a comedia dell’arte. Chegando ao Espanhol, o vocábulo passa a designar qualquer grupo de pessoas que aparecem fantasiadas, de Cádiz a Montevidéu. No caso uruguaio as comparsas se referem às sociedades/grupos de negros e lubolos que tocam e bailam candombe. Daqui em diante farei referência aos grupos de candombe através desta denominação. 8 Termos que designam as celebrações e desfiles de candombe no espaço da rua. De acordo com Montaño (2007), as primeiras llamadas tinham por finalidade “citar” os tamborileros que não haviam comparecido com pontualidade às antigas salas de naciones (da época do Uruguai colônia) para a visita das autoridades das nações (os reis coroados). Segundo seus estudos, desde 1760, e, de domingo a domingo, os senhores permitiam a seus escravos que fossem até suas canchitas (campos abertos) que contornavam a muralha que fechava a cidade de Montevidéu. Nestes pequenos espaços, se reuniam todos os africanos de acordo com a sua nação. Cada grupo ia “llamando” (“chamando”) seus companheiros, que saíam das casas de seus amos, e se reuniam com quem os chamava da rua ou da canchita. 4 Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, o candombe é colocado pela UNESCO como um saber transmitido no seio das famílias de ascendência africana, que possui seu caráter de resistência, mas também de uma festividade musical uruguaia9. Esse movimento de percepções a respeito do candombe também pode ser encontrado na literatura que versa sobre esta manifestação.
Details
-
File Typepdf
-
Upload Time-
-
Content LanguagesEnglish
-
Upload UserAnonymous/Not logged-in
-
File Pages20 Page
-
File Size-