“COISAS DO MUNDO MINHA NÊGA”: COTIDIANO E TEMPORALIDADES EM PAULINHO DA VIOLA. Kênia Gusmão Medeiros1 RESUMO A obra do compositor Paulinho da Viola é o tema deste breve resumo. De modo mais específico, busco atribuir sentidos às reflexões do compositor sobre o tempo expressas em versos e notas musicais. Nos desdobramentos dessa questão, buscarei demonstrar dentro dessa temática freqüente no repertório de Paulinho, relações com a cotidianidade do Rio de Janeiro de meados do século XX. Marcadas pelo uso copioso de metáforas, suas letras nos levam por percursos que falam sobre o tempo e a vida cotidiana; o tempo de longa duração e o tempo do instante. A vida que corre, as desilusões amorosas também entram num jogo de metáforas que tem como representações principais o próprio samba, o tempo e a água. Entendendo as canções enquanto relatos que atravessam e organizam espaços sociais, busco uma leitura das fontes que contemple as possíveis intenções do autor e também as ressignificações que ocorrem na recepção. PALAVRAS-CHAVE: Paulinho da Viola. Cotidiano. Tempo. Água. Recepção. Este trabalho tem como tema o repertório do compositor Paulinho da Viola. Nesses discursos musicados a configuração de sentidos e experiências ligadas a temporalidades distintas são freqüentes. Suas metáforas, notas e arranjos são utilizados na confecção de uma obra que se espraia por sensibilidades e experiências de memória, espera, narração e renovação. Para entendermos nessa obra as ideias e sentidos de tempo empenhadas pelo autor faz-se necessária a aproximação com suas construções metafóricas relacionadas a água e movimento. Jörn Rüsen reflete que a consciência histórica é uma das formas da consciência humana e que mantém relações com a vida prática. É a partir dessa consciência que os homens interpretam sua própria existência na dimensão temporal e podem orientar sua vida cotidiana de modo temporal.2 São vestígios e impressões dessa consciência histórica, que é cotidiana e cidadã e que é que é matriz tanto do pensamento histórico ordinário quanto do científico que aparecem nas letras de Paulinho da Viola. É dessa matéria, dessa relação e interpretação de si no tempo e do tempo em suas práticas cotidianas que se serve esta breve pesquisa. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB). Professora na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Contato: [email protected] 2 Cf. RÜSEN, Jörn. Razão histórica:teoria da história:fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001. p.57. Em muitos de seus relatos musicais o compositor nos traz em seus versos o tempo desacelerado de uma experiência de narração, reflexão e partilha. A experiência da vida moderna em espaços urbanos já foi por meio de fontes e métodos diversos, desconstruída e representada. Walter Benjamin, Giorgio Agamben e outros autores dedicaram textos a reflexões sobre o viver moderno. A agitação e os acontecimentos em ritmo acelerado, estimulação visual e paisagens sonoras intensas preenchem as cidades. De acordo com Agamben, no entanto, o sujeito que sai de casa e encontra nas ruas todas essas ocorrências cotidianas “não as converte em experiência” 3, menos ainda em partilha. O sujeito moderno não tem em si a capacidade de narrar nem de ouvir. “É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção.” 4O já citado Benjamin afirma que a narrativa tem possui algo de utilitário,5 o compositor traz essa dimensão utilitária associada a uma experiência de aprendizado vivida pelo próprio narrador personagem. Todos estes aspectos na narrativa estão presentes em “Coisas dom Mundo Minha Nêga; a canção é constituída por uma narração calma e reflexiva que é assim encenada na dimensão discursiva e sonora. Coisas do Mundo Minha Nêga (Paulinho da Viola, 1968) Hoje eu vim minha nega Como venho quando posso Na boca as mesmas palavras No peito o mesmo remorso Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome Venho do samba há tempo, nega Venho parando por ai Primeiro achei Zé Fuleiro que me falou de doença Que a sorte nunca lhe chega Que está sem amor e sem dinheiro Perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar Puxei então da viola Cantei um samba pra ele Foi um samba sincopado Que zombou de seu azar Hoje eu vim, minha nega Andar contigo no espaço Tentar fazer em teus braços um samba puro de amor Sem melodia ou palavra pra não perder o valor Depois encontrei seu bento, nega Que bebeu a noite inteira Estirou-se na calçada Sem ter vontade qualquer Esqueceu do compromisso que assumiu com a mulher Não chegar de madrugada 3 AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2007. p.8. 4 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura história da cultura. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v.1). p. 197. 5Ibidem,p. 200. E não beber mais cachaça Ela fez até promessa Pagou e se arrependeu Cantei um samba pra ele que sorriu e adormeceu Hoje eu vim, minha nega Querendo aquele sorriso Que tu entregas pro céu Quando eu te aperto em meus braços Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço Por fim achei um corpo, nega Iluminado ao redor Disseram que foi bobagem Um queria ser melhor Não foi amor nem dinheiro a causa da discussão Foi apenas um pandeiro Que depois ficou no chão Não tirei minha viola Parei, olhei, fui-me embora Ninguém compreenderia um samba naquela hora Hoje eu vim, minha nega Sem saber nada da vida Querendo aprender contigo a forma de se viver As coisas estão no mundo só que eu preciso aprender Em “Argumento” há outra temática recorrente em Paulinho, as transformações dentro do próprio gênero musical no qual o compositor se insere. Arriscando-nos na tarefa de situar uma origem da música popular brasileira urbana, podemos pensá-la no início do século XX com a urbanização de espaços citadinos, especialmente do Rio de Janeiro.6Muitos conflitos e transformações ocorreram desde então. Paulinho reconhece em “Argumento” mudanças no estilo e é em tom conciliador que começa a canção. A representação temporal aparece nessa canção também. Ao defender o uso de instrumentos tradicionais do samba, o narrador se defende de ter “preconceito” ou “mania de passado”. No repertório do compositor as reverências ao passado são freqüentemente explicadas para que não pareça saudosismo. A água metáfora com presença marcante no repertório do sambista aparece na letra como o elemento que indica movimento e transformação. Argumento (Paulinho da Viola, 1975) Tá legal Tá legal, eu aceito o argumento Mas não me altere o samba tanto assim Olha que a rapaziada está sentindo a falta De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim 6Cf. NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Sem preconceito ou mania de passado Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar Faça como um velho marinheiro Que durante o nevoeiro Leva o barco devagar Dança da Solidão (Paulinho da Viola,) Solidão é lava Que cobre tudo Amargura em minha boca Sorri seus dentes de chumbo Solidão, palavra Cavada no coração Resignado e mudo No compasso da desilusão Viu! Desilusão, desilusão Danço eu, dança você Na dança da solidão Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou, Maria tentou a morte, Por causa do seu amor... Meu pai sempre me dizia: Meu filho tome cuidado, Quando eu penso no futuro, Não esqueço o meu passado Oh! Desilusão, desilusão Danço eu, dança você Na dança da solidão Viu! Desilusão, desilusão Danço eu, dança você Na dança da solidão Quando vem a madrugada Meu pensamento vagueia Corro os dedos na viola Contemplando a lua cheia Apesar de tudo existe Uma fonte de água pura Quem beber daquela água Não terá mais amargura Oh! Desilusão, desilusão Danço eu, dança você Na dança da solidão Viu! Desilusão, desilusão Danço eu, dança você Na dança da solidão Danço eu, dança você Na dança da solidão Desilusão! Oh! Oh! Oh! Em Dança da Solidão na alusão ao do conselho do pai, a ideia de temporalidade aparece. As sensações e impressões sobre o tempo em Paulinho costumam ter esse olhar que se volta para o passado, mas que também se lança ao futuro. Há em suas palavras cantadas alguma tensão insinuada entre essas duas noções de tempo, essa tensão de desdobra em espera, memória e mudança. A história da canção “Comprimido” se desenrola numa “noite comum de novela”, nessa expressão já percebemos uma grande dose de cotidiano. O compositor fala da opressão cotidiana em uma história com um desenlace funesto. A fala da esposa a um samba que fala das coisas do dia-a-dia é uma alusão a “Cotidiano” de Chico Buarque do álbum “Construção” de 1971. Paulinho lança mão de grande dose de sensibilidade e o próprio título da canção oferece uma dupla matriz de sentido; fazendo alusão ao comprimido que causa o envenenamento e a condição de compressão, opressão sofrida pelo personagem da música. Eliete Eça Negreiros analisando a letra da música diz que a não resolução do mistério juntamente com alguma medida de indefinição sobre quem são aqueles personagens e de localização temporal, ampliam o caráter ficcional da canção e nos intriga ainda mais.7 Comprimido (Paulinho da Viola, 1973) Deixou a marca dos dentes Dela no braço Pra depois mostrar pro delegado Se acaso ela for se queixar Da surra que levou Por causa de um ciúme incontrolado Ele andava tristonho Guardando um segredo Chegava e saía Comer não comia E só bebia Cadê a paz Tanto que deu pra pensar Que poderia haver outro amor Na vida do nego Pra desassossego E nada mais Seu delegado ouviu e dispensou Ninguém pode julgar coisas de amor O povo ficou intrigado com o acontecido Cada um dando a sua opinião Ela acendeu muita vela Pediu proteção O tempo passou E ninguém descobriu 7 NEGREIROS, Eliete Eça.
Details
-
File Typepdf
-
Upload Time-
-
Content LanguagesEnglish
-
Upload UserAnonymous/Not logged-in
-
File Pages9 Page
-
File Size-