Quilombos: Repertório Bibliográfico de uma Questão Redefinida (1995-1997) Alfredo Wagner Berno de Almeida A realização deste levantamento biblio­ medidas de mercado aberto, ao contrário, di­ gráfico, enfocando os títulos publicados no minuiria esta importância, bem como aquela decorrer do período de 1995 a 1997, direta ou da identidade nacional, ao favorecer a forma­ indiretamente referidos aos quilombos, tal ção de blocos econômicos e estabelecer medi­ como designados hoje, teve como finalidade das com pretensão homogeneizadora, que precípua atualizar referências bibliográficas de idealmente diluiriam as diferenças regionais trabalhos que produzi anteriormente, em 1988 através do princípio do “consumidor pleno”. A e 1994. Não foi pensado como um “balanço”, aceitação da assertiva inicial recoloca este le­ uma resenha ou uma revisão crítica da litera­ vantamento sobre os quilombos num campo tura concernente ao tema. Seus propósitos cir- temático polêmico e bastante redefinido.1 cunscreveram-se mais à enumeração de títulos, Em consonância com a premissa e a partir à distinção dos diferentes gêneros de produção também de realidades empiricamente observá­ intelectual e científica, às propriedades de po­ veis, pode-se adiantar que, mais do que antes, sição dos autores — e das agências a que estão o dado étnico conjuga-se e, por vezes, se so­ referidos — e às suas relações com o campo brepõe à condição camponesa nos pleitos e político. Aliás, o período selecionado é arbitrá­ reivindicações; constituindo-se, a nosso ver, rio, não obstante o destaque que os órgãos juntamente com os critérios relativos à cons­ públicos têm conferido ao tema, e se atém a ciência ecológica e aos vínculos locais profun­ necessidades próprias ao desdobramento de dos, numa das características elementares do projetos de pesquisa em curso. que tem sido designado, por Hobsbawm e Tal iniciativa ocorre num momento em Blackburn (1995), como “novos movimentos que se consolidam vastos planos de relações sociais”. Emana destas práticas um elenco de que têm, na construção do dado étnico, um questões essenciais à reprodução de diferentes elemento central para a interlocução dos mo­ segmentos camponeses, recolocando em pau­ vimentos sociais com instâncias de poder e ta, como tema obrigatório da agenda do campo com diferentes circuitos de mercado. Embora de poder, não apenas a garantia de livre acesso tal consolidação se constitua numa premissa, aos recursos naturais básicos mas, sobretudo, que orienta o presente levantamento, não há o reconhecimento formal de suas identidades consenso quanto a ela. Para alguns sociólogos coletivas, de seus territórios efetivamente ocu­ e economistas, estaria crescendo a importância pados e das normas consuetudinárias e atos da identidade étnica, como fonte de ação polí­ cotidianos que disciplinam o uso comum da tica e de decisões econômicas, acentuando ele­ terra e o manejo dos recursos hídricos e flores­ mentos contrastantes e conflitivos face às me­ tais. Sob este aspecto, os quilombos , tomados didas de inspiração neo-liberal. Para outros, como objeto de reflexão, tendem a constituir entretanto, o advento da globalização e das hoje uma temática específica com um corpo de BIB, Rio de Janeiro, n. 45, 1.° semestre de 1998, pp. 51-70 51 conceitos, de noções operacionais e de aplica­ dado étnico aparece atrelada à consolidação de ções próprias, configurando um campo de pes­ uma identidade coletiva fundada tanto numa quisas relativamente autônomo, que não se autodefinição consensual, quanto em práticas subordina exatamente aos contornos da ques­ político-organizativas, em sistemas produtivos tão racial, tal como constituída desde as inter­ intrínsecos (unidade de trabalho familiar, cri­ pretações de Nina Rodrigues e de Arthur Ra­ térios ecológicos) e em símbolos próprios que mos. O processo de autonomização deste podem inclusive evocar uma ancestralidade campo de conhecimentos implica simultanea­ legítima, mas que marcam, sobretudo, uma mente um reforço da pesquisa etnográfica e política de diferenças face a outros grupos e uma ruptura com modalidades de apreensão do uma relação conflitiva com as estruturas de objeto até então circunscritas à história, à ar­ poder do Estado. queologia, à antropologia física e às escolas de Se a referência a quilombos denota, por pensamento que atrelaram o tema às noções de um lado, uma certa particularidade de catego­ raça e de monumentalidade. Para além de um ria datada, referida a uma situação histórica tema histórico,quilombo consiste num instru­ específica, ou seja, retomada no caso brasileiro mento através do qual se organiza a expressão desde a Constituição de 5 de outubro de 1988, político-representativa necessária à constitui­ por outro, a abrangência da identidade étnica é ção, ao reconhecimento e à fixação de diferen­ mais genérica e transnacional e se confronta ças intrínsecas a uma etnia. com o próprio advento de uma globalização Por intermédio da categoria quilombo, com pretensões homogeneizadoras. ressemantizada tanto política, quanto juridica­ No que concerne ao dispositivo constitu­ mente, tem-se, pois, um novo capítulo de afirma­ cional, mais exatamente o Art. 68 das Dispo­ ção étnica e de mobilização políticade segmentos sições Constitucionais Transitórias, o pano de camponeses, que se refere particularmente às fundo da referência implicaria o como resolver chamadas terras de preto ou às situações de­ juridicamente os problemas, dentre eles, o signadas pelo movimento negro como “comu­ agrário, dos segmentos sociais que estiveram nidades negras rurais”. O conceito de etnia submetidos à escravidão formal em passado aqui enfocado não é definido por critérios “na­ recente. Em outras palavras, como assegurar turais” de nascimento, tribo e religião, antes é aos descendentes de escravos a condição de construído a partir de conflitos sociais. A afir­ cidadãos com plenos direitos, iguais aos de­ mação étnica em jogo não se atém necessaria­ mais. A engenharia jurídica de institucionali­ mente a critérios mais óbvios ditados por ri­ zar a expressão “remanescentes das comunida­ tuais religiosos, por elementos linguísticos, por des de quilombos” evidencia a tentativa de características raciais (estatura, formas corpó­ reconhecimento formal de uma transformação reas, “cor da pele”, cor dos olhos, cor dos social considerada como incompleta. A insti­ mamilos, espessura dos fios de cabelo) ou ain­ tucionalização incide sobre “resíduos” e “so- da por itens de cultura material (arquitetura das brevivências”, revelando as distorções sociais casas, planta física do povoado, formato dos de um processo de Abolição da escravatura instrumentos de trabalho, tipos de peças de limitado, parcial. vestuário, de estamparias de tecidos, de orna­ Historicamente, no que se convencionou mentos — brincos, colares, corte de cabelo — designar como Américas, com o processo de e de cerâmicas). Tais procedimentos classifi- abolição da escravatura constituiram-se dife­ catórios, que durante longo período na história rentes situações de campesinato. No Haiti e das ciências foram tidos como objetivos, são outras regiões do Caribe, o declínio da planta- interpretados agora como modalidades de tion canavieira propiciou, num primeiro mo­ representação eivadas de noções estigmatizan- mento, a formação de um proto-campesinato tes, cuja eficácia enquanto instrumento expli­ escravo, consoante os estudos de Mintz e cativo mostra-se limitada. A emergência do Wolf,2 e posteriormente uma autonomia eco- 52 nômica e política. A guerra de libertação dos riamente contempladas nos dispositivos le­ escravos no Haiti mescla-se com o advento de gais. De certo modo, perdura uma dupla mar­ uma identidade nacional. Nos Estados Unidos, ginalidade jurídica, que abrange o acesso à por sua vez, houve sobretudo a consolidação terra e as formas de uso, aparentemente inde- dos chamados blackfarmers e de um campe­ sejada no ideal dos constituintes legisladores. sinato parcelar, após cerca de 180 a 200 mil Não obstante, verifica-se que as práticas con- escravos terem participado como combatentes servacionistas e a relação relativamente equi­ nas forças militares durante a Guerra de Seces­ librada com a natureza, antes de serem elemen­ são. No Suriname, a partir de fugas massivas tos do passado, que dissolvem estas situações de escravos, constituiram-se territórios de de­ sociais denominadas quilombos no arbitrário finição étnica reconhecidos inclusive pelas au­ de classificações como “primitivo” e “econo­ toridades colonialistas, através de pactos, tra­ mia natural”, projetam-nas, em verdade, como tados de paz e acordos de não-beligerância. uma expressão do futuro, compreendendo, Tais documentos eram firmados nos moldes de juntamente com as demais terras de uso co­ acordos estabelecidos com nações indígenas, mum, reservas essenciais para o desenvolvi­ reconhecendo formalmente a territorialidade. mento das pesquisas voltadas para o estudo de Seus resultados se mantêm hoje pelo controle bancos genéticos. Na mencionada marginali­ efetivo dos territórios. No Brasil, entretanto, dade jurídica, talvez possam ser encontrados não houve qualquer reconhecimento formal de os elementos que atualizam os novos objetos terras de ex-escravos que sucedesse imediata­ da própria ciência do Direito. mente à Abolição datada de 1888. Nas fazen­ O uso difuso da categoria quilombo, res- das abandonadas e desativadas mesmo antes semantizada e tornada fator de mobilização da Abolição, com a queda abrupta dos preços política, reveste-se hoje de um significado de do algodão e da
Details
-
File Typepdf
-
Upload Time-
-
Content LanguagesEnglish
-
Upload UserAnonymous/Not logged-in
-
File Pages20 Page
-
File Size-