ESPECIAL UM ANO DE RECONSTRUÇÃO CICATRIZES DE UM PESADELO ÚLTIMO DOS RESGATADOS NO DESASTRE COM O AVIÃO QUE LEVAVA A CHAPECOENSE À COLÔMBIA HÁ UM ANO, NETO TEM NA PELE AS MARCAS DA DOR DO PASSADO E DA LUTA PARA RETOMAR A VIDA APÓS UMA TRAGÉDIA SEM PRECEDENTES JOÃO LUCAS CARDOSO entre metais. A aeronave que levava Neto e tinha acontecido. Não na partida contra [email protected] outros 21 atletas da Chapecoense, 13 mem- o Atlético Nacional, mas apenas com ele. bros da comissão técnica, 10 dirigentes, dois Demorou para que soubesse que jamais udo era escuridão. A noite, den- convidados, 21 jornalistas e nove tripulantes encontraria quase todos os companheiros sa. O céu encoberto pelas nuvens parou na mata de Cerro Gordo, a montanha como no domingo anterior, em São Paulo. que desaguavam em chuva. Do no município de La Unión. Não pousou em Havia chegado ao aeroporto daquela cidade lado de dentro, o breu também Medellín. Quem dera fosse outro susto em feliz entre os colegas de profissão para dois T predominava. Estava tudo apa- meio ao sono, em casa. compromissos profissionais importantes. gado. Luzes e motores desligados. O avião A final da Copa Sul-Americana de 2016 A delegação viajara de Chapecó para o jo- não fazia qualquer ruído a não ser o do não seria mais disputada. Não teve futebol go contra o Palmeiras, pela Série A do Bra- provocado pelo ar em contato com a fu- nem time. Alan Ruschel foi o primeiro a ser sileirão, último desafio antes do primeiro selagem. Não era pouso, estava em que- tirado dos destroços. As equipes de resgate duelo pela Copa Sul-Americana. O retorno da. Parou quando encontrou a montanha. também removeram a auxiliar de voo Xi- ao Serafin Bertaso ocorreu 19 dias depois, Despedaçou-se na colisão. Em meio aos mena Suárez, o técnico da aeronave Erwin duas semanas a mais do que o previsto, dei- destroços da aeronave, Hélio Hermito Turimi, o narrador Rafael Henzel e os go- tado na maca, 15 quilos mais magro, fraco. Zampier Neto aparece. O jogador de fute- leiros Jakson Follmann e Danilo, que não Sussurrava em vez de falar. Não era mais o bol profissional se levanta e caminha por resistiu ao chegar ao hospital. Neto ainda mesmo. Tampouco a Chape e Chapecó. entre as peças sem saber onde estava, la- estava longe. Gemia sob o que restou do im- Neto carrega marcas da tragédia na pele. deado pelo rastro de destruição. Pesadelo pacto do avião despedaçado pelo caminho Um corte no nariz, outros tantos pelo rosto que ocupou parte da madrugada de sexta- aberto na mata em declive. Foi soterrado e cabeça, um risco na orelha direita, outro feira que iria raiar no dia 25 de novembro. por galhos de árvores e ferragens, sem a mí- mais grosso na perna esquerda, uma espé- A angústia diminuiu ao perceber que, ao nima condição de se desvencilhar dos des- cie de mancha nas costas da mão direita e acordar, esteve o tempo todo próximo da troços. Diferença entre o pesadelo de Cha- outra menor no peito, no lado esquerdo, esposa, mãe dos gêmeos Helan e Helen. Era pecó e o da Colômbia. arranhões pelos braços. Cicatrizes comun- a penúltima noite de sono em Chapecó. Imóvel, emitia sopros do fio de vida que gadas pelo clube e pela cidade. Assim como Quatro dias depois, o Avro RJ85 da o fazia resistir ao frio e às dores. Tão baixos o zagueiro, Chapecoense e chapecoenses se LaMia, que havia decolado de Santa Cruz que apenas o policial Marlon Lengua con- recuperam das marcas indeléveis. O clube de La Sierra, na Bolívia, passa pelas mesmas seguiu perceber na última vez que passava voltou ao futebol, remontado sob a inspi- condições do pesadelo cerca de 30 quilôme- pelo local, oito horas após a queda. Os cole- ração dos que vestiram as camisas verdes. tros antes do destino traçado, o Aeroporto gas de resgate iam em direção aos veículos Chapecó sente falta daqueles homens que a Internacional José Maria Córdova, em Me- para deixar a montanha. As buscas tinham faziam ser reconhecida no país não apenas dellín, na Colômbia. Neto revive tudo igual- sido suspensas quando Marlon sentiu que pela força da agropecuária. Seguem a vida. mente de olhos fechados. Mas agora ele não ainda havia vida em meio aos mortos. En- Tanto quanto Neto na retomada da rotina dormia. Estava acordado. Ao lado do com- controu Neto cheio de cortes e fraturas na de atleta para voltar a jogar. panheiro Bruno Rangel, rezava em voz alta. cabeça e no tórax. Os pulmões fraquejavam, – As cicatrizes não incomodam. O joe- Cristão convicto e batizado na Igreja Batis- os arranhões e machucados tomavam gran- lho direito ainda dói um pouco, a coluna ta, pedia pelo milagre que não aconteceu. O de parte de seu corpo. Mexeu apenas os também – confessa, quase um ano depois avião caiu, bateu na montanha. olhos do momento do impacto até chegar do acidente. Desta vez, Simone não estava ao seu lado o socorro. Foi levado ao hospital em estado Coexistem com a dor. A mesma que toma na cama, mas a 4,2 mil quilômetros. Tam- crítico, quase quatro horas depois do pri- o peito quando faz noite fria, cerrada e chu- pouco ele pôde andar pelos escombros. Tu- meiro sobrevivente. vosa no Oeste de Santa Catarina, como na de do era escuridão. Estava entre o que sobrou Entre cirurgias corretivas e sedativos, 29 de novembro em Cerro Gordo: a monta- do voo LMI 2933, com o corpo machucado passou pelas próprias ideias que algo ruim nha em que um pedaço verde morreu. SÁBADO E DOMINGO, 25 E 26 DE NOVEMBRO DE 2017 2 e 3.
Details
-
File Typepdf
-
Upload Time-
-
Content LanguagesEnglish
-
Upload UserAnonymous/Not logged-in
-
File Pages1 Page
-
File Size-