Questões De Legitimidade Envolvendo a Guarda Indígena Pataxó Da Aldeia Coroa Vermelha André Gondim Do Rego (Doutorando Em Antropologia, Unb)

Questões De Legitimidade Envolvendo a Guarda Indígena Pataxó Da Aldeia Coroa Vermelha André Gondim Do Rego (Doutorando Em Antropologia, Unb)

34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS ST32- Sociologia e Antropologia da Moral Coordenadores: Luis Roberto Cardoso de Oliveira (UnB), Alexandre Vieira Werneck (UFRJ) Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha André Gondim do Rego (Doutorando em Antropologia, UnB) Outubro, 2010. André G. do Rego 2 Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha Introdução O objetivo geral deste paper é discutir as significações que os membros da aldeia pataxó Coroa Vermelha, Terra Indígena situada no extremo sul da Bahia, conferem à experiência de uma “Guarda Indígena” aí constituída com o fim de combater o que é percebido pelo grupo como um “aumento da criminalidade” local, particularmente, na última década. A idéia é compreender os sentidos da legitimidade conferidos à instituição tendo em vista às controvérsias geradas em torno de seu propósito, das conseqüências de sua atuação, mas também de seu caráter “indígena”. Para tanto, inicio com um breve relato sobre o histórico e o quadro atual da aldeia. Num segundo momento, descrevo resumidamente o processo de formação de sua Guarda Indígena. Em seguida, discuto questões relacionadas ao policiamento indígena no Brasil, complementando-as com a invocação de autores que lidaram com experiências semelhantes fora do país, além de outros relacionados à temática da antropologia do direito. Com base nisso, retorno meu olhar sobre as dinâmicas que envolvem as avaliações nativas referentes à própria Guarda para, enfim, tecer alguns comentários sobre o tema. O trabalho tem como base pesquisa de doutorado que vem sendo desenvolvida por mim, desde 2007, como aluno do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília. A tese, que se encontra em fase de produção, reflete sobre a administração de conflitos na referida aldeia e tem na Guarda Indígena um de seus principais eixos de discussão. O texto que segue apresenta alguns aspectos deste eixo. Coroa Vermelha, uma “aldeia urbana” Atualmente, existem dois grupos étnicos que se reconhecem como Pataxó: um às vezes qualificado de meridional por alguns pesquisadores; e outro de cognome Hã-hã-hãe1. Esta distinção, marcada, sobretudo, por histórias 1 Segundo dados da Rede Nacional de Estudos e Pesquisas em Saúde dos Povos Indígenas, os Pataxó somam atualmente uma população de 11.347 indivíduos, e os Hã-hã-hãe, de 2.367, o que representa metade da população indígena da Bahia, que hoje conta com 26.768 indivíduos. 34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – Caxambu, Outubro de 2010. André G. do Rego 3 Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha particulares de contato, reflete ainda uma distribuição espacial diferenciada pelo estado da Bahia2. Coroa Vermelha integra o primeiro destes grupos3. A qualificação de meridional está ligada ao fato dos povoadores das comunidades pertencentes a tal segmento, ou seus ascendentes, provirem de um antigo aldeamento situado no extremo sul do estado. Refiro-me a Barra Velha, símbolo maior da unidade étnica e persistência histórica de tal povo4. Dentre todas as aldeias pataxós, apenas Coroa Vermelha – arriscaria dizer – tem importância equivalente a atribuída a Barra Velha, embora isto ocorra por razões bastante diversas. Enquanto esta é substancial à memória do grupo e está diretamente associada a um ideal de “aldeia”; Coroa Vermelha, especialmente na última década, vem sendo percebida como uma verdadeira “cidade”. São os dilemas resultantes desta sobreposição entre “terra indígena” e “cidade” que lhe conferem a qualificação emblemática de “aldeia urbana”. A história desta comunidade tem a marca de sua relação com o turismo regional5. Seu povoamento se deu na década de 1970 por famílias pataxós que buscavam novas áreas para habitação e venda de artesanato. A comunidade em formação logo receberia o apoio da prefeitura de Santa Cruz Cabrália, 2 Os Pataxó Hã-hã-hãe estão presentes nos municípios baianos de Camaçari, Itaju do Colônia, Pau Brasil e Camamu. O etnônimo envolve hoje não apenas os descendentes dos últimos bandos pataxós e baenãs atraídos, em 1934, pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mas também os de outras etnias anteriormente aldeadas na região sul da Bahia, e que, ainda nessa década, foram reunidos àqueles no então Posto Indígena Caramuru-Paraguaçu. A população meridional, por sua vez, está concentrada no extremo sul da Bahia, havendo, no entanto, algumas aldeias também no estado de Minas Gerais. 3 Na Bahia, além de Coroa Vermelha e Barra Velha, também pertencem a este grupo as comunidades de Mata Medonha, Aldeia Velha, Imbiriba, Meio da Mata, Boca da Mata, Trevo do Parque, Corumbauzinho, Águas Belas (todas estas já reconhecidas como terra indígena), Pé do Monte, Cassiana, Alegria Nova, Guaxuma, Jitaí, Craveiro, Tibá, Monte Dourado, Pequi, Cahy, Tauá e Aldeia Nova (estas, consideradas áreas de “retomada”, isto é, ocupadas e reivindicadas pelos Pataxó como territórios outrora ocupados por indígenas). Em Minas Gerais, além da Fazenda Guarani (já regularizada), que se divide em sede, Retirinho e Imbiruçú; existem as comunidades de Araçuaí e Divinópolis (as quais desconheço a situação). 4 Fontes históricas indicam que o aldeamento que dera origem a Barra Velha fora criado em 1861, reunindo bandos pataxó hostis e pacificados, e parcelas de outras etnias que, no período, vagavam pela região da antiga vila do Prado. Deixado a sorte dos próprios índios, ele só se tornaria conhecido em 1951, quando do evento que ficou conhecido pelos Pataxó como “Fogo de 51”, uma ação policial que teve como saldo mortes, prisões, humilhações e a dispersão do grupo por todo o extremo sul baiano (Carvalho, 1977). Anos depois, no retorno de algumas famílias a área, as coerções ficariam por conta do recém instalado Parque Nacional do Monte Pascoal, situação esta que incentivara a migração para a Coroa Vermelha (Sampaio, 2000a). 5 A importância do turismo na formação de Coroa Vermelha é indicada tanto por Sampaio (1996), como por Grünewald (2001). O relato que se segue sobre a história da aldeia está baseado principalmente nestas fontes, mas também em meus próprios dados de campo. 34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – Caxambu, Outubro de 2010. André G. do Rego 4 Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha interessada que estava em promover a região a partir da presença de “índios” no lugar da “Primeira Missa do Brasil” 6. Com este objetivo, já em 1974, ao tempo da inauguração da BR-367, foi erguida no pontal da praia uma grande cruz simbolizando o referido evento histórico e construído, em seu entorno, estereótipos de “casas indígenas” destinadas à moradia e comércio pataxós. Além dessas habitações, o domínio sobre a área foi sendo estabelecido através de criações e cultivos variados, bem como pela instalação de espaços e equipamentos comunitários. Por outro lado, o turismo e a possibilidade de obter matéria-prima na mata próxima tornavam a venda de artesanato cada vez mais lucrativa, atraindo um crescente número de famílias de outras aldeias, especialmente no verão, promovendo um intenso intercâmbio de pessoas, coisas e informações. Foi através deste processo que Coroa Vermelha veio a se tornar outro grande centro de referência pataxó. O arranjo das novas famílias em torno dos que controlavam o comércio local organizou a comunidade em dois grupos políticos, divisão esta amenizada em meados da década de 1980, quando um representante formal foi finalmente constituído. A intensa valorização do lugar, porém, fez com que a prefeitura aforasse as áreas ocupadas pelas famílias que, ameaçadas, passaram a lutar por seu reconhecimento como terra indígena. Mas, até que a demarcação fosse aprovada uma década depois, a comunidade teve que lidar com a rejeição dos estudos demarcatórios; a participação de lideranças em acordos contrários ao reconhecimento; o afloramento das divergências internas; mais a intrusão, degradação e ocupação desordenada do território por não-indígenas. Já nos anos 1990, a eleição de um novo cacique e a criação de uma associação comunitária suspenderam as novas divergências e encaminharam os estudos que possibilitaram a demarcação7. O interesse do governo federal e 6 Em 1898, um estudo solicitado pelo governo do estado da Bahia para averiguar fatos relativos à chegada dos portugueses no país, apontou, entre outras coisas, ser Coroa Vermelha o local de realização da Primeira Missa no Brasil. Tal conclusão seria posteriormente confirmada por uma Comissão de Estudo e Pesquisa, criada em 1939 pelo Presidente Getúlio Vargas, com o mesmo objetivo (Grünewald, 2001). 7 Dois Grupos de trabalho já haviam sido constituídos para tanto. O primeiro, em 1985, teve as conclusões rechaçadas pelo Grupo Interministerial do governo federal, então responsável pela homologação das terras indígenas. O segundo, em 1992, não teve continuidade devido às divergências internas sobre o reconhecimento da área. O derradeiro estudo de demarcação foi iniciado em 1995 e concluído no ano seguinte (Sampaio, 1996). 34º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – Caxambu, Outubro de 2010. André G. do Rego 5 Questões de legitimidade envolvendo a Guarda Indígena Pataxó da aldeia Coroa Vermelha estadual em realizar aí obras destinadas às comemorações do quinto centenário do país, porém, adiaram em dois anos sua homologação8. O impasse teria sido resolvido através de negociatas entre lideranças indígenas de então e os prepostos do governo. O resultado foi a remoção dos não-indígenas da terra demarcada para áreas adjacentes; a garantia de usufruto dos equipamentos a serem instalados aos indígenas; mas também o adiamento indefinido de obras relativas à infra-estrutura e de projetos alternativos de subsistência local que, naquele momento, já se faziam urgentes. Em abril de 2000, as comemorações oficiais do quinto centenário levaram a novos conflitos entre os integrantes da aldeia, divididos agora entre os que se juntaram aos movimentos sociais que protestavam contra o caráter festivo do evento, e aqueles que ficaram a serviço das ações policiais de repressão ao protesto9. Passado os “500 anos”, os problemas de saneamento, moradia e emprego, sempre associado ao crescimento populacional, continuavam a assolar a comunidade.

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