Os Rumos Da Utopia Brasiliense: Observações Sobre a Representação Da Capital Federal No Conto "Brasília" De Clarice Lispector Sociedade E Cultura, Vol

Os Rumos Da Utopia Brasiliense: Observações Sobre a Representação Da Capital Federal No Conto "Brasília" De Clarice Lispector Sociedade E Cultura, Vol

Sociedade e Cultura ISSN: 1415-8566 [email protected] Universidade Federal de Goiás Brasil Oliveira, Dijaci David de Os rumos da utopia brasiliense: observações sobre a representação da capital federal no conto "Brasília" de Clarice Lispector Sociedade e Cultura, vol. 11, núm. 1, janeiro-junho, 2008, pp. 80-90 Universidade Federal de Goiás Goiania, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70311110 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto 80 Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008 Os rumos da utopia brasiliense: observações sobre a representação da capital federal no conto "Brasília" de Clarice Lispector Dijaci David de Oliveira Doutor em Sociologia. Consultor MEC [email protected] Resumo O presente trabalho analisa o conto Brasília da escritora Clarice Lispector, composto em dois momentos: nos tensos anos de 1962 e no auge do “milagre econômico”. Publicado postumamente, o conto é emblemático e permite- nos acompanhar parte das expectativas da sociedade em relação ao futuro da capital. Realizamos uma decomposição do texto e, simultaneamente, um cotejamento com algumas obras historiográficas e sociológicas para compre- ender o discurso presente no conto. Assim, percebemos no discurso da autora o pressuposto de que a ausência de “povo” acabou por “facilitar” a tomada do poder pelos militares uma vez que sem povo não haveria reação. Palavras-chave: Brasília; cidade; Clarice Lispector. Nunca te vi de perto; agora vejo e sinto e apalpo todo o meu desejo é que sejas em tudo uma cidade completa, firme, aberta à humanidade, e tão naturalmente capital como o Rio é uma coisa sem igual. C. D. Andrade, Versiprosa, 1967. A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia contemplam-se. Qual delas falará primeiro? Que têm a dizer ou a esconder uma em face da outra? Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar da goela coletiva e não se exprimem? Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea capital? Por que Brasília resplandece ante a pobreza exposta dos barracos de Ceilândia, filhos de majestade de Brasília? E pensam-se, reuniram-se em silêncio as gêmeas criações do bom brasileiro. C. D. Andrade. Favelário Nacional In: Corpo, 1984. Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008. pg 80 a 90 Os rumos da utopia brasiliense: observações sobre a representação da capital federal no conto “Brasília” de Clarice Lispector 81 Dijaci David de Oliveira (UFG) larice Lispector é identificada nacionalmen- (Lopes, 1996; Duarte da Silva, 1997). Porém sua con- Cte como uma das mais expressivas vozes da lite- cepção tem chamado atenção para além da arquitetura ratura brasileira. Nasceu na Ucrânia em dezembro de e do urbanismo. Sobre ela se deitam os olhos de inú- 1925, porém, dois meses depois sua família se mudou meros outros intelectuais tais como filósofos, soció- para o Brasil. Ela publicou seu primeiro romance em logos, escritores, músicos entre outros (Lopes, 1996). 1944 (Perto do coração selvagem). Ao longo de sua Algumas indagações que poderíamos levantar seriam: carreira se destacou com diversos outros trabalhos. qual a razão de Brasília ser objeto de tantos exercícios Clarice Lispector faleceu em 1977, um dia antes de intelectuais? Ou ainda: por que tais exercícios são em completar 52 anos. Realizando uma leitura crítica so- geral realizados de forma veementes, ou seja, carre- bre a obra de Clarice Lispector, Campedelli e Abdala gados ou de paixões ou de ódio? Apesar do esforço Jr. (1981, p. 104). afirmam que: intelectual, praticamente inexiste consensos sobre a cidade. Metaforicamente, partimos do pressuposto de As produções de Clarice Lispector não deixam de se que a marca da cidade, contrastando com suas linhas referir à realidade concreta. É admirável sua consciên- retas, está nas curvas da incerteza de seus traços cul- cia técnica, adequando forma e conteúdo. Por exem- turais (que sujeito e que práticas urbanas emergirão plo, dissocia as unidades narrativas para mostrar a falta deste modelo urbanístico?). de ligações mais profundas na sociedade. Organiza a Outro aspecto importante que tem sido desta- narrativa em ritmo lento, para contrastar com o mo- cado nas leituras sobre a cidade está nos contrastes vimento da vida nas grandes cidades. Filtra todos os sociais (Gouvêa, 1995; Paviani, 1996; Bursztyn e fatos através de uma consciência que se isola do con- Araújo, 1997; Bursztyn, 2000). Assim, uma das mar- junto – eis aí a solidão do homem moderno. cas apontadas da cidade é que ela tem assinalado bem uma distinção entre “dois brasis” – a dos incluídos e o Nesse trecho os autores sintetizam alguns elemen- dos excluídos, ou mais apropriadamente, os dos ricos tos que buscamos nas leituras sobre o espaço urbano. e os dos pobres (Demo, 1998). Esta mesma leitura é Certamente nos interessa a compreensão da realidade a que transparece nos poemas de um dos maiores po- concreta assim como as relações profundas construí- etas brasileiros – Carlos Drummond de Andrade. Se das na sociedade, em especial, nas grandes metrópoles em um primeiro momento ele demonstrava seu de- modernas. No entanto, o que leva o homem moderno sejo de que Brasília se tornasse uma cidade “comple- a se tornar um sujeito solitário? ta” (Andrade, 1967), em um segundo momento – 17 Algumas das obras de Clarice Lispector foram anos depois –, o vemos descrever uma contundente publicadas postumamente, entre elas temos o livro de ruptura social que tomou conta do cenário brasilei- crônicas Para não esquecer onde podemos ler a crônica ro. Ele relata esta condição ao percorrer os contrastes intitulada Brasília. Logo no início do texto podemos da pobreza das favelas com a suntuosidade da capi- ler as seguintes palavras da autora: “Brasília é artificial. tal brasileira (Andrade, 1984). Diante de todas estas Tão artificial como deveria ter sido o mundo quando percepções, faremos aqui, o exercício de pensarmos foi criado” (Lispector, 1999, p. 40). Para os detratores Brasília a partir de três matrizes analíticas: a primeira da capital brasileira o trecho acima soa um prato cheio. será por meio da idéia do significado da cidade, mais Entretanto devemos compreender a riqueza do jogo especificamente aquele apontado por Aristóteles em de linguagem da autora. A idéia de artificial soa como A política; a segunda abordagem será feita por meio algo dissimulado, falso ou fictício. É assim que muitos do paradigma nacional-desenvolvimentista; por fim, gostariam de ver Brasília. No entanto a autora destaca refletiremos sobre Brasília tendo por base os discursos que Brasília é tão artificial quanto à própria criação do sobre sua dinâmica sociocultural. mundo (na hipotética teoria do criacionismo). Assim, podemos afirmar que Brasília é uma criação, um fruto das mãos meticulosas de um artista, ou criador. Desde antes de sua construção Brasília tem sido Uma leitura singular sobre Brasília objeto de várias discussões. Ao longo dos seus anos de existência o debate tem ganhado vários contornos indo desde concepções geopolíticas a concepções esté- Na mesma linha de Carlos Drummond de Andra- ticas. Uma pequena revisão na literatura a respeito da de (1967 e 1984), Clarice Lispector (1999) tomou dois cidade mostra o quanto Brasília tem se mostrado ca- momentos específicos em que debruçou seu olhar sobre paz de exercer paixões, admirações e ódios homéricos. a capital para refletir suas considerações. Diferente de Brasília se mostra de todas as maneiras para variados Andrade que escreveu dois poemas distintos, Lispector interlocutores e, contrariamente, para outros, Brasília compôs uma crônica, Brasília, porém também ressal- não passa de uma ilusão. tando visivelmente dois momentos: “Estive em Brasília Brasília despertou a atenção do mundo ao tra- em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido. zer na sua concepção a marca da arquitetura moderna E agora voltei doze anos depois por dois dias. E escrevi 82 Sociedade e Cultura, v.11, n.1, jan/jun. 2008 também. Aí vai tudo o que vomitei” (Lispector, 1999, A breve exposição de Aristóteles (1985) em epí- p. 44). Em 1962 temos o contexto que antecede o Gol- grafe nos permite imaginar o quanto a idéia de uma pe Militar de 1964, o conturbado período da renúncia grande aglomeração de pessoas vivendo em um mes- do presidente Jânio Quadros e a posse de João Goulart e mo ambiente possui um forte significado. Para o autor que foi marcado por tentativas golpistas (Dreifuss, 1981; “o mais importante de todos os bens” é a cidade porque Aquino et al., 2000; Fausto, 2001). Doze anos depois ela é a mais elevada forma de comunidade. A idéia de experiênciamos outro contexto, uma forte repressão cidade em Aristóteles, no entanto, é a idéia a cidade- do Regime Militar e o efeito dos reflexos do milagre estado, um equivalente possível hoje seria a idéia de econômico que se esgotara no ano anterior (Gorender, Estado-nação, ou seja, uma instituição autônoma, que 1987; Miranda, 1999; Fausto, 2001). representa os interesses dos seus cidadãos e que é res- A crônica assim constituída acaba por produzir ponsável por promover o bem geral. O que interessa duas visões de Clarice Lispector sobre o ser e o vir- ao refletir sobre estas palavras de Aristóteles é que para a-ser de Brasília. Nele são retratados diversos cená- ele existe uma estreita interdependência entre os su- rios fruto da percepção da autora. Pretendemos aqui, jeitos que fazem parte da cidade. Esta aproximação portanto, refletir sobre alguns deles. Assim, aborda- ocorre, em especial, por meio da participação nos remos as imagens da arquitetura, das pessoas, dos es- rumos da cidade, e que é responsável pela inaugura- paços de sociabilidade e as imagens do poder. Nossa ção do espaço de interação político – a polis (Morrall, tese é de que as unidades de significados presentes 1981).

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