Cintia Lima Crescêncio

Cintia Lima Crescêncio

Dizer-se feminista no Brasil entre os anos 1970 e 1980 Cíntia Lima Crescêncio * “Ela era muito feia e agressiva, e daí em diante passou a fazer parte do inconsciente coletivo brasileiro como o modelo de mulher que as outras, as que quisessem continuar femininas, não deveriam imitar” (MURARO, 2001: 17), afirmava Rose Marie Muraro em publicação de 2001 sobre Betty Friedan. A brasileira que 30 anos depois da passagem da autora de Mística Feminina pelo Brasil a aponta como feia e agressiva, é também uma feminista engajada e empenhada na defesa dos direitos das mulheres. De acordo com Rose Marie Muraro: “É com o feminismo que a mulher aprende a adquirir uma identidade autônoma, isto é, deixa de ver-se com os olhos do homem e passa a ver-se com seus próprios olhos [...]” (MURARO, 2001: 105). A mesma feminista que apontou a feiúra e a agressividade de um dos nomes mais importantes dos feminismos de segunda onda 1 ressaltou também que o feminismo, como ideologia e acontecimento, permitiu à mulher a construção de uma identidade autônoma. É baseada nessas contradições que apresento a proposta do presente artigo: refletir a respeito das estratégias discursivas adotadas por feministas brasileiras na época de emergência dos movimentos feministas no Brasil em um veículo da grande imprensa – revista Veja 2 – , notadamente nas décadas de 1970 e 1980, articulando-as a entrevistas com feministas militantes realizadas pela equipe do Laboratório de Estudos de Gênero e História - LEGH da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC a partir do projeto “Conesul: ditaduras, gênero e feminismo (1960-1990)”. Destaco que as entrevistadas pela revista não são as mesmas mulheres que concederam entrevista ao projeto que visa reconstruir memórias feministas na esquerda, com exceção de Eva Alterman Blay que * Doutoranda em História – UFSC. Bolsista CNPq. 1 Didaticamente o feminismo é dividido em duas ondas: a primeira onda refere-se às manifestações que reivindicavam a ampliação dos direitos civis de mulheres em que se incluía o direito de votar e ser votada no final do século XIX e início do século XX; a segunda onda faz referência as manifestações iniciadas na década de 1960 em que as bandeiras de luta estavam articuladas a questões de sexualidade e de subjetividade, lutava-se pelo usufruto do corpo e combatia-se o patriarcado. Apesar dessa estrutura de ondas ser funcional, é importante pensarmos o feminismo como um acontecimento que se desenvolve de diferentes maneiras em variados espaços. 2 Veja foi lançada em 11 de setembro de 1968, sendo a primeira semanal a trazer o modelo Time ao Brasil, estilo caracterizado pelo caráter noticioso e informacional. Seu nome, Veja , reflete o objetivo da revista de ser vista, com uso de muitas imagens. (ALMEIDA, 2009: 23). Foi fundada pelo grupo Abril, editora comandada por Victor Civita e seu filho, Roberto Civita, em um contexto capitalista e liberal, afirmando-se, portanto, como uma empresa. Ver, a esse respeito, SILVA, Carla Luciana da. Veja : o indispensável partido neoliberal (1989 a 2002). Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense: Rio de Janeiro, 2005. 2 em 1975 figurou nas páginas de Veja e em 2005 narrou parte de sua trajetória em depoimento à professora Joana Maria Pedro. No entanto, saliento que, embora não seja possível construir um paralelo entre as falas das mesmas feministas em diferentes instâncias e em distintos tempos, me aproprio dos dois eixos de depoimentos como sinalizadores de uma época que, em última análise, foi vivenciada por essas mulheres. Busco, a partir dessa articulação, portanto, perceber os modos de identificação com os feminismos que se deram por meio de entrevistas para o grande público e, ainda, através dos depoimentos colhidos posteriormente, com intuito acadêmico. Para isso me aproprio de ferramentas metodológicas da disciplina análise do discurso e da história oral. A primeira colabora na escrita desse artigo, que se pauta nas narrativas de feministas, a partir do momento em que: [...] não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2009: 15). Essa metodologia, portanto, compreende o discurso como a relação entre a língua e a história, mostrando-se interessante para se pensar não só os textos escritos, nesse caso da imprensa, como também os depoimentos que proponho trazer para a análise. Já a história oral permite que as narrativas selecionadas sejam levadas em consideração pela historiografia pouco atenta à história dos feminismos, especificamente no caso brasileiro. Pautada em Alejandra Oberti proponho atenção aos testemunhos orais, na medida em que eles são “[...] uma situación comunicativa excepcional, por lo tanto genera también um relato singular y a la vez irregular” (OBERTI, 2006: 47). Portanto, percebo a utilização das entrevistas como um processo de intercâmbio discursivo (OBERTI, 2006: 48). Nesse sentido no presente texto pretendo partir de 2 eixos: o primeiro elabora uma reflexão sobre a postura das feministas nas páginas da revista Veja , mais especificamente na seção páginas amarelas, seção de entrevistas 3; e o segundo recai sobre os depoimentos de feministas e suas impressões em relação aos desdobramentos da auto-identificação com os feminismos. O critério de seleção tanto dos excertos de Veja quanto dos trechos dos depoimentos, bem como das entrevistadas, se deu com 3 Nesse trecho utilizo parte das fontes exploradas em minha dissertação de mestrado intitulada Veja os feminismos em páginas (re)viradas (1968-1989), defendida em fevereiro de 2012 sob a orientação da Profª. Drª. Cristina Scheibe Wolff no Programa de Pós Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 3 base na visibilidade e notoriedade que essas mulheres obtêm ainda hoje, seja no meio acadêmico, militante ou em relação ao grande público. Foram destacadas 4 entrevistas das páginas amarelas e 4 entrevistas feitas pela equipe do LEGH. Em comum entre essas mulheres: uma parte significativa militou em organizações de esquerda e, portanto, de oposição ao regime, durante a ditadura brasileira, além de identificarem-se com o feminismo, em menor ou maior grau. Saliento que o objetivo não é de comparação desses testemunhos, visto que as pretensões são distintas para cada tipo de fonte especificada. É relevante salientar que no Brasil o feminismo de segunda onda emergiu em um cenário de ditadura e repressão (décadas de 1960 e 1970), muito diferente do contexto transformador que assolava a Europa, e o pós-guerra pelo qual passava os Estados Unidos. De acordo com Céli Regina Jardim Pinto, o desenvolvimento de um feminismo em terras tupiniquins estava profundamente marcado por esse cenário de censura e ditadura em que as lutas se polarizaram entre o combate à ditadura e à defesa do proletariado. Em função disso, a autora aponta que o feminismo brasileiro, mesmo que não obedecesse à tradicional noção de onda, teria sido motivado por esse cenário externo, visto que exiladas, estudantes e viajantes entraram em contato com o pensamento feminista durante sua estadia em países como França e Estados Unidos. O encontro do feminismo à moda do Primeiro Mundo com a realidade brasileira daquela época promoveu situações tão complicadas quanto criativas: as mulheres de classe média, intelectualizadas, que estiveram nos Estados Unidos ou na Europa como exiladas, estudantes ou simples viajantes em busca de novas experiências, voltavam para o Brasil trazendo uma nova forma de pensar sua condição de mulher, em que o antigo papel de mãe, companheira, esposa, não mais servia (PINTO, 2003: 65). O feminismo que marcaria a história brasileira ao longo da década de 1970, portanto, conforme a autora, teria sido gestado através de experiências de mulheres nesses países em que as lutas feministas avançavam. Entretanto, destaco que não se trata de uma simples onda na qual mergulhou o Brasil, mas um processo de troca de idéias e experiências. Ao retornarem ao país o contexto mostrou-se totalmente outro, o que faz do movimento brasileiro um tipo específico, fato demonstrado com a tentativa de infiltração em sindicatos e organizações de mulheres trabalhadoras. Saliento ainda pesquisa desenvolvida por Cristina Scheibe Wollf (2009) que identifica esse mesmo discurso sobre o “desenvolvimento externo” do feminismo em outros países do Cone Sul que viveram ditaduras. Talvez seja interessante, inclusive, pensarmos esse feminismo brasileiro articulado ao desenvolvimento do feminismo em países vizinhos, 4 como sugere Sônia Alvarez (1998) que, apesar de identificar feminismos latino- americanos, aponta-os como híbridos, heterogêneos e multifacetados. Apesar de reconhecer a importância da atuação dessas mulheres exiladas quando de seu retorno ao Brasil, a historiadora Joana Maria Pedro aponta a necessidade de se relativizar a gestação do movimento brasileiro para além de suas fronteiras políticas. Conforme a pesquisadora: [...] embora, no Brasil, ainda não existisse movimento feminista organizado no início dos anos 60, o País, junto com a ditadura militar que começara em 1964, vivia, também, um “clima” de discussão e reflexão sobre aquilo que se chamava de “condição da mulher” (PEDRO, 2008: 62). Assim, o não reconhecimento do feminismo como prática semanticamente

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