O ASSASSINATO DE TIM LOPES: A CONSTITUIÇÃO DE UMA CRISE SOCIAL E O REPENSAR DE UMA PROFISSÃO 1 Robson de Paula Doutorando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ) e professor do Curso de História da Universidade Iguaçu (UNIG). RESUMO : A literatura que trabalha com o tema mídia e violência tende a reconhecer o veículo midiático como um multiplicador e ratificador da percepção de medo no público receptor. Neste artigo, através da análise da divulgação do assassinato do jornalista Tim Lopes, procurarei mostrar a complexidade desta equação, descrevendo como a mídia encaminhou, simultaneamente, duas interpretações dos fatos: uma, para o público externo; e a outra para o público interno. PALAVRAS-CHAVE : Jornalismo investigativo. Ética no jornalismo. Drama social . Começar a minha experiência profunda de jornalista. A reportagem policial vai transforma-se para sempre num dos elementos básicos de minha visão de vida. Através dela tive intimidade com a morte (que sempre me apavorou) e nela vi um cadáver pela primeira vez. O jornalismo, daí em diante, passou a ser vital para mim (...) Nelson Rodrigues ( apud ALVES, 2003, p.1). Introdução O material produzido a respeito da morte do jornalista Tim Lopes, ocorrida em 2002, poderia ser fonte de inspiração para Nelson Rodrigues, sobretudo por ter um aspecto trágico e instigante. Possivelmente a partir daí, poderia ser produzida uma crônica ou uma peça de teatro, com um teor crítico e revelador da sociedade brasileira. Com uma linguagem sensacionalista e direta, Nelson Rodrigues foi consagrado por produzir mais textos ficcionais. Porém, existe um aspecto de sua trajetória profissional que muitos desconhecem. Nelson Rodrigues também foi um exímio repórter (Alves, 2003). Como está dito na epígrafe, tinha uma grande paixão pela 1 O presente artigo é uma versão modificada do terceiro capítulo da dissertação “‘Tragédia’ e ‘Acomodação’: uma análise antropológica do assassinato do jornalista Tim Lopes”, apresentada ao PPCIS/UERJ, em 2004. Para a realização do estudo, utilizei 524 reportagens jornalísticas sobre o “caso”. Além disso, realizarei entrevistas com o policial Daniel Gomes e com o presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, Nacif Elias. A eles, dedico o artigo. Também, devo expressar os meus agradecimentos aos professores Otávio Velho (MN/UFRJ) e Rosane Prado (PPCIS/UERJ), os quais fizeram sugestões, muito apropriadas, à ocasião da defesa. Algumas delas, eu incorporei neste escrito. Também não posso deixar de agradecer à professora Clara Mafra (PPCIS/UERJ), por dar grande contribuição à minha formação acadêmica. 2 reportagem policial, sobretudo porque seria um estilo jornalístico que poderia colocá-lo bem perto da morte. Tim Lopes, jornalista da Rede Globo de Televisão, 51 anos de idade, 30 de profissão, décadas depois da publicação desse fragmento de Nelson Rodrigues, também possuía um sentimento semelhante pelo jornalismo investigativo. Salvaguardando as singularidades, ambos desenvolveram uma relação muito intensa com a morte na constituição de suas trajetórias profissionais. E nesta “entrega total” à profissão, Tim foi mais longe ao morrer quando a exercia. Mesmo tendo esse caráter trágico, o assassinato deve ser lembrado e problematizado não só por revelar a dominação violenta de narcotraficantes nas favelas cariocas, mas também por indicar “fissuras” no interior do jornalismo brasileiro. Justamente pelo fato de ter sido um evento marcante, uma “crise”, em que não só as mazelas presentes na sociedade vieram à tona, mas também por ter criado, entre os jornalistas, um debate sobre os rumos da profissão no país, na minha concepção, o crime pode ser analisado a partir da perspectiva do “drama social”. Victor Turner (1964) criou a noção de “drama social” para entender as crises e distúrbios presentes nas sociedades Ndembu, na África. Segundo o autor, Pode-se algumas vezes ir além da superfície das regularidades sociais e perceber as contradições e conflitos ocultos no sistema social. Os tipos de mecanismos coercitivos empregados para lidar com o conflito, o padrão de luta faccionista e as fontes de iniciativa para acabar com a crise, todos claramente manifestados no ‘drama social’, fornecem pistas valiosas sobre o caráter do sistema social (TURNER, 1964, p. 26). Algumas ressalvas precisam ser feitas antes de iniciar a descrição e análise da divulgação do crime a partir desse referencial teórico. Ao elaborar a noção de “drama social”, Victor Turner pretendia estudar, sobretudo, os conflitos ocorridos no interior das tribos Ndembu. Tais sociedades eram pequenas e tinham seus segmentos sociais muito bem demarcados. Diferente delas, a nossa sociedade apresenta-se com um alto nível de fragmentação e de descontinuidade nas fronteiras sociais. Além disso, também há, entre nós, uma coexistência de diferentes estilos de vida e visões de mundo (VELHO, 1994). Porém, será que isto invalidaria o uso da noção de “drama social” para a compreensão dos períodos de “crises” em nossa sociedade? Minha visão sobre o fato é 3 que nas “sociedades complexas”, além ser aplicável a pequenos grupos religiosos (MAGGIE, 2001), o paradigma do “drama social” pode também ser utilizado para o entendimento de conflitos mais amplos. Alguns embates, ao serem noticiados nos meios de comunicação de massa, extrapolam as dimensões do lugar/território onde ocorreram e acabam sendo experimentados por outros atores sociais. Sendo assim, neste artigo, a partir da perspectiva do “drama social”, indico a forma pela qual a morte de Tim Lopes deixou de ser um evento particular e se transformou em um caso público, ao ser veiculada nos meios de comunicação. Durante três meses, ininterruptamente, todas as informações sobre o “caso” Tim Lopes foram divulgadas nos telejornais e em jornais impressos brasileiros. Como veremos nas próximas linhas, a morte do jornalista instaurou um debate público a respeito da violência crescente, principalmente nas favelas cariocas. No artigo, discutirei as seguintes questões: como os jornalistas apresentaram o crime à população abrangente? Quais foram os aspectos priorizados e dramatizados na divulgação? Será que podemos indicar uma tendência no formato da veiculação? Ao responder essas indagações, mostrarei como o “drama social” foi sendo constituído pelos jornalistas e, decorrente disso, experimentado por vários segmentos da população. Porém, antes de qualquer reflexão, é fundamental apresentar ao leitor o crime propriamente dito. 1. O assassinato A morte do jornalista Tim Lopes foi amplamente noticiada entre os meses de junho e setembro de 2002. Como veremos nas próximas páginas, os jornalistas focalizaram somente alguns aspectos do crime, produzindo uma reconstituição não inverídica, mas fragmentada e reduzida. Neste sentido, a meu ver, a reconstituição feita pelos policiais da 42ª Delegacia de Polícia pode nos indicar outros dados não priorizados. Portanto, eu a utilizarei neste escrito. 4 A noite era do dia 2 de junho de 2002. Um carro cruza a cidade em direção ao subúrbio carioca. O destino era o Complexo do Alemão 2. No veículo, estavam o motorista Rudmamn Guilherme e Tim Lopes. Naquela noite de inverno, o jornalista investigativo pretendia realizar uma série de reportagens sobre o tráfico de drogas. Se tudo corresse bem, seria mais um “furo jornalístico”. A conhecida reportagem “Feira das Drogas”, feita anteriormente, dera ao profissional da imprensa, visibilidade, reconhecimento e prêmios. Por esta razão, naquela noite, Tim Lopes utilizou um disfarce para não ser reconhecido pelos traficantes locais. Uma bermuda jeans, uma camisa de malha clara e um boné compuseram o traje do jornalista. No Complexo do Alemão, em uma das entradas da Vila Cruzeiro, ao sair do carro, Tim Lopes pediu ao motorista que retornasse duas horas depois. Naquele momento, o relógio marcava 20:00 horas. Feita a negociação, o funcionário da Rede Globo foi embora, enquanto o jornalista entrava na favela. Próximo à Rua João Alegrete, Tim, como era carinhosamente chamado por amigos e parentes, começou a filmar o “movimento” do tráfico de drogas. Porém, o disfarce não protegeu a identidade do jornalista. Em um dado momento, em meio às pessoas que se encontravam no local, a figura de Tim Lopes foi-se destacando e sua descoberta foi inevitável. Um dos integrantes da quadrilha de Elias Pereira da Silva 3, “Elias Maluco”, suspeitou que aquele homem, que estava atento às “negociações”, fosse um repórter. Sem rodeios, prenderam o jornalista e comunicaram, através de um sistema de rádio, o ocorrido ao “chefe”. Do outro lado da linha, na Favela da Grota, também no Complexo do Alemão, “Elias Maluco” pediu a Ângelo da Silva, o “Primo”, para prender o jornalista. “Primo” foi buscar o “réu” em um Fiat Uno roubado. Em alguns minutos, o “bonde do terror” chegou ao local onde Tim Lopes se encontrava. Já naquele momento, o jornalista foi submetido a uma série de agressões. Porém, o pior ainda estava por vir. Quando o carro chegou ao Alto da Grota, “Elias Maluco” e alguns outros traficantes foram ao encontro do repórter investigativo. Ao avistar o jornalista amarrado e baleado, um dos criminosos, Cláudio Orlando do Nascimento, “Ratinho”, o 2O Complexo do Alemão é formado pelas seguintes favelas: Morro do Alemão, Nova Brasília, Favela da Grota, Pedra do Sapo, Fazendinha, Inferno Verde, Morro dos Mineiros, Canitá/Relicário, Pedreira, Morro da Baiana e Alvorada. 3 Em 2002, antes de ser preso,“Elias Maluco” controlava o tráfico de drogas em sete favelas do Complexo do Alemão: Vila Cruzeiro, Caixa D’Água, Sereno, Fé, Grotão, Chatuba e Fazendinha. 5 reconheceu. A partir deste momento, Tim sofreu todo tipo de atrocidade, que provocou a sua morte. Por se tratar de um evento hediondo, não me detive na descrição da seqüência dos atos bárbaros praticados pelos narcotraficantes 4 contra o jornalista. Não é minha intenção chocar o leitor, somente quis apresentar o crime, para, na próxima seção, começar a análise. 2. A morte do jornalista: Um drama de todos Já no dia três de junho de 2002, um dia depois do desaparecimento do jornalista investigativo, vários jornais impressos e televisivos noticiaram o ocorrido.
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