Dona Ivone Lara: Voz E Corpo Da Síncopa Do Samba

Dona Ivone Lara: Voz E Corpo Da Síncopa Do Samba

DONA IVONE LARA: VOZ E CORPO DA SÍNCOPA DO SAMBA by KATIA REGINA DA COSTA SANTOS (Under the Direction of Susan Canty Quinlan) ABSTRACTS By starting off with redefinitions of the musical term, syncope, this study centers on the importance of the historical and social contribution of samba to Afro-Brazilian cultural history of Rio de Janeiro and by extension, to Brazil by examining the work of contemporary composer, singer and lyricist, Dona Ivone Lara, an octogenarian dedicated to composing and performing Samba. Lara’s work is chosen for its quality to illustrate the trajectory and representativeness of historical and theoretical contributions to a formation of Black Brazilian culture. Samba is an under theorized art form or cultural manifestation in the country. As Samba is one of the strongest manifestations of popular cultural Brazil, it is critical to examine Lara’s work in light of keeping tradition alive. Samba’s history is often taken for granted or is characterized as an innate component of Black Brazilian culture. This genre of Brazilian music becomes the national emblem, which is used by official and political Brazilian institutions and non-Brazilians to identify Afro-Brazilian contributions to nationalism and negritude. However, this study shows that these concepts are not that easily accepted in the country, and it explains also the origins of the blackness attached to the history of Samba and their supporters and contributors. Este trabalho de pesquisa tem como objetivo examinar a concepção histórica e social do samba, uma das mais importantes formas de manifestação cultural no Brasil. A obra e carreira da cantora e compositora Dona Ivone Lara serão aqui examinadas como uma forma de ilustrar a trajetória e representatividade dos fundadores do samba carioca e daqueles que ainda hoje fazem do samba uma cultura em constante movimento. A obra de Lara servirá também de ilustração para a discussão acerca do mito da não- intelectualidade das produções culturais negras, aquelas que se apresentam em forma de texto, principalmente. Esta será também uma forma de colocar em debate a representatividade, ou não, dos afro-brasileiros no panorama cultural brasileiro, com ênfase na cidade do Rio de Janeiro, cidade de origem de Lara e do que hoje conhecemos como samba brasileiro. A nacionalidade e “negritude” desse gênero musical será um outro aspecto a ser examinado. Neste sentido, a produção artística de Lara e de alguns outros sambistas serão examinadas como textos artísticos, informativos e representativos do lugar social e da etnicidade de seus criadores, tendo alguns fatos históricos brasileiros como pano de fundo das diferentes épocas à que nos referiremos. INDEX WORDS: Cultura Popular, Relações Raciais, Negros, Samba,Música Brasileira, Música Popular DONA IVONE LARA: VOZ E CORPO DA SÍNCOPA DO SAMBA by KATIA REGINA DA COSTA SANTOS B.A., Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brazil, 1996. M.A., Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Brazil, 2000. A Dissertation Submitted to the Graduate Faculty of the University of Georgia in Partial Fulfillment of the Requirements of the Degree DOCTOR OF PHILOSOPHY ATHENS, GEORGIA 2005 © 2005 Katia Regina da Costa Santos All Rights Reserved DONA IVONE LARA: VOZ E CORPO DA SÍNCOPA DO SAMBA by KATIA REGINA DA COSTA SANTOS Major Professor: Susan Canty Quinlan Committee: Lesley Feracho Betina Kaplan Luiz Correa-Diaz Robert H. Moser Electronic Version Approved: Maureen Grasso Dean of the Graduate School The University of Georgia May 2005 SUMÁRIO Página CAPÍTULOS I. Introdução ..............................................................................................................1 II. Música Popular e Relações Raciais no Brasil: Dona Ivone Lara, Uma Ilustração Mais-Que-Perfeita. ................................................................................................ 9 III. A música popular no cotidiano brasileiro........................................................... 77 IV. Dona Ivone Lara, a Griot de Narrativa Sincopada.............................................. 94 V. Conclusões......................................................................................................... 132 Referências..................................................................................................................137 Apêndix .......................................................................................................................147 iv CAPÍTULO I Introdução O corpo exigido pela síncopa do samba é aquele mesmo que a escravatura procurava violentar e reprimir culturalmente na História brasileira: o corpo do Negro. (11) A síncopa [. .] é uma alteração rítmica que consiste no prolongamento do som de um tempo fraco num tempo forte. […] A síncopa brasileira é rítmico- melódica. Através dela o escravo – não podendo manter integralmente a música africana – infiltrou a sua concepção temporal-cósmico-rítmica nas formas musicais brancas. (Sodré, Samba, o dono do corpo 25-6) O título deste trabalho, “Dona Ivone Lara: voz e corpo da síncopa do samba”, deve ser considerado como uma chamada para a tentativa de uma nova perspectiva de leitura do samba como movimento cultural, e da artista Ivone Lara como um de seus intelectuais mais importantes. Há muitos estudos dedicados à importância da síncopa para o samba brasileiro – tanto para o samba como canção, quanto para o samba enquanto dança – e sua possível influência na canção brasileira de um modo geral. Não sabemos ainda se a designação técnica da síncopa pode ser pensada como uma metáfora para a história do samba e do negro brasileiro. Sabemos, entretanto, que no momento em que surge o gramofone no Brasil, o “uso sistemático das síncopas na linha melódica do canto revelava, nesse momento, uma conquista técnica imprescindível para atender às constantes solicitações do novo mercado musical” (Tatit, O século da canção 169). Este fato fez com que os estudiosos da cultura brasileira tivessem suas certezas e teses 1 embaralhadas pelo fenômeno avassalador da expansão da canção popular no país. Esta reviravolta seria parte de um processo que teria sido acelerado pelo aparecimento do gramofone, que deu aos sambista ainda mais elementos para exercerem suas criatividades sem abrirem mão do improviso, marca registrada dos compositores de samba, como afirma Luiz Tatit: O salto dos improvisos espontâneos para o registro em disco fez com que os sambistas brasileiros rapidamente se imbuíssem, ainda que de modo inconsciente, da nova técnica de fixação sonora que, paradoxalmente, previa a convivência de formas estáveis e instáveis de canto. (O século da canção 41) O intelectual Muniz Sodré, por exemplo, no prefácio da segunda edição de seu livro Samba o dono do corpo, diz ter achado necessária a reedição do mesmo livro porque, segundo ele, “nada foi publicado [desde então] que desse continuidade ou mesmo refutasse a sua linha argumentativa.” E Sodré finaliza seu prefácio com um mote do qual nos valeremos aqui: “na verdade, havíamos partido de um ponto considerado obscuro por Mário de Andrade – a questão da síncopa interativa nas músicas da diáspora negra – e que nos pareceu, este sim, o verdadeiro ‘mistério do samba’ (7),”,diz o autor fazendo uma clara alusão ao Livro de Hermano Vianna, O mistério do samba. Pois para Vianna o samba seria um tipo de resistência cultural permitida, cooptada pelo poder e pela industria cultural, o que faz com que o autor fique intrigado com a aceitação do samba por parte da população brasileira como “produto nacional”. Não trataremos aqui de resolver tal mistério, mas nada impede que nosso estudo seja um caminho revelador para Vianna. 2 Nós nos ocuparemos aqui da interatividade que cerca a síncopa, mas a síncopa como conceito e não como característica técnica de um estilo musical, no sentido do qual se ocupam os musicólogos. A definição da síncopa apresentada por Muniz Sodré em um estudo que se propõe a analisar o samba como sujeito e não como objeto de pesquisa, assumindo também, segundo o autor, todos os riscos do “envolvimento da paixão”(Sodré, 10), pode vir a estabelecer uma interessante parceria com este trabalho. A diferença está no fato de que não é nossa intenção ativar paixões, mas sim desafiar antigas e modernas visões limitadas do samba, que acreditamos ser um movimento que pode ser lido também – assim como é feito com a Bossa Nova e a Tropicália – como movimento cultural e intelectual que foi se transformando ao longo dos anos e que estará sempre em transformação. Denominar os acontecimentos relacionados ao universo do samba como “movimento” é uma leitura por si só diferenciada das formas como o samba e seus atores têm sido estudados desde sempre. O fato de este movimento ter como protagonistas os negros brasileiros faz com que as tentativas de legitimação deste fenômeno cultural ativem conceitos abstratos como paixão e mistério, o que revela uma flagrante conseqüência das idéias miscigenadas acerca da realidade do negro brasileiro dentro desta falida concepção da nação como “berço de misturas.” Tudo isso faz com que os teóricos do samba ainda pisem em campo minado. A consciência que têm das minas que surgirão no caminho de suas teses quando estas chegam aos meios intelectuais, não deixa que o samba saia do espaço do folclore, dos espaços das discussões apaixonas, ou mesmo do espaço da alegoria da resistência permitida. Nenhuma dessas abordagens nos servem. Este seria o motivo pelo qual o citado livro de Muniz Sodré não estabelece com este trabalho uma perfeita parceria,

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