legião estrangeira algumas cenas de outros nós Projeto de pós-doutorado em Artes Cênicas ECA-USP Celso Alves Cruz Supervisão: Maria Lucia de Souza Barros Pupo São Paulo, junho de 2011 1 legião estrangeira Índice: 1. Está lá/p.3 2. Nós e os Outros/p.5 3. Legião Estrangeira/p.7 4. Depois da tese/p.10 5. Recorte na cara/p.12 6. Primeiras sementes/p.17 7. Traços de Desassossego/p.18 8. Cartas da névoa/p.21 9. Coração de Basalto/p.26 10. Propostas cruzadas/p.29 11. Olho de furacão/p.31 12. Planos de trabalho/p.33 Bibliografia/p.34 Anexos: Textos das peças Currículo Lattes + Curriculum Vitae 2 1. Está lá: O encontro. A hora estranha em que uns e outros se cruzam. Infinitas são as versões desse momento. Em algumas, por exemplo, navegantes desembarcam em praias distantes, encontram seres semelhantes a si mesmos, mas cuja linguagem e costumes não entendem. Em parte delas, os nativos são tratados como porcos ou demônios. Em outras, são os nativos que devoram os navegantes, como porcos. Há, por exemplo, uma narrativa em que o profeta chega numa praia e, dizem, encontra um homem atormentado pelos demônios, que há muito não se veste, não vai para casa, foge das cadeias, mora em cemitérios e vaga por todo tipo de deserto. O profeta pergunta: qual o seu nome? Vem uma voz lá de dentro do possesso: meu nome é legião. Então, o profeta vê uma vara de porcos próxima a um penhasco de rochas e ordena que as entidades abandonem o sujeito e entrem nos bichos. A vara se precipita no abismo... Pode, também, existir outra variante desse conto, perpetuada em um documento apócrifo perdido numa caverna dos desertos ou numa biblioteca tropical... 3 Em tal relato, que provavelmente será disseminado pela internet num futuro próximo, conta-se que, um dia, um grupo brincava e cantava numa praia quando um viajante estropiado ali desembarca de uma nave. Um dos brincantes se aproxima e, com arremedos de uma língua comercial moderna, pergunta: - Qual é o seu nome? Mal o navegante responde, o outro emenda: - Você não quer entrar na roda e fazer parte da nossa legião? O relato conclui com um abismo de alegria engolindo a madrugada. Tal liame de narrativas talvez comprove que existem tantos exorcismos quanto os tipos de possessos; ou que para certas possessões, não há exorcismo que dê conta; ou, ainda, que cada um tem o outro que merece. 4 2. Nós e os outros. “Quando o desejo se inscreve num outro desejo surge então o Acontecimento.” 1 O outro, os outros, as legiões estrangeiras que nos habitam, assim como os outros que encontramos pelos caminhos, podem dar medo, mas também nos atraem. Entre o temor e o tremor, uns buscam a esconjuração, a pureza, a destruição ou a salvação. Uns, a beleza da entrega, a reinvenção ou o fim das múltiplas identidades, o enrosco dos corpos, dos afetos, das línguas, em praias de muitos países. Para esses, eu pode ser o outro. Uma descoberta abissal, como tão bem articulou Todorov, no começo de seu clássico A Conquista da América – a questão do outro. “Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente difernte de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os ricos para os pobres, os loucos para os “normais”. Pou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do 1 Jose Gil, Portugal, Hoje – O Medo de Existir. , Relógio D’água, Lisboa, 2007, p. 43. 5 caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie.”2 Quem se devota ao Teatro sente na carne o que Todorov narra, pois o teatro não acontece sempre em territórios do outro? Cada gesto e cada palavras lançados na cena ecoarão, gerando ressonâncias, entendimentos, mal-entendidos, hibridizações, mutações, novidades, mortos e feridos, eventuais vencedores, acordos, convivência ou destruição. Entre uns e outros. Cada nova peça, cada novo espetáculo, cada ensaio, oficina, aula ou workshop reinventa tais momentos. A chegada. O olho no olho. O desconhecimento. O reconhecimento. Lutas. Partidas. E também explora todas as conseqüências implicadas. Assim como acontece nesse duplo do teatro, a vida. Este projeto pretende pesquisar a natureza dessas relações de alteridade, focando num tipo específico de encontro e experimentando modos de produção cênica e reflexão humanista. Queremos propor cenas sobre (e, principalmente, com) uma determinada legião estrangeira. 2 Tzvetan Todorov, A conquista da América, Martins Fontes, São Paulo, 1988, p.3 6 3. Legião estrangeira: Uma legião pode ser muitas coisas. O corpo ou a divisão de um exército. Um batalhão de anjos ou demônios. Um grande número de seres vivos ou coisas. Uma falange de entidades espirituais ou conjunto de entidades muito desenvolvidas espiritualmente. Uma corporação. Divisões da feitiçaria. Ou, no caso da Legião Estrangeira, um destacamento militar especial, organizado com voluntários estrangeiros, permanentemente em vigília, criado pela França. Muitos filmes e livros mostram o heroísmo e a canalhice dos integrantes desse tipo de grupo. A nossa legião estrangeira, aquela que inspira nosso projeto, é a tropa dos migrantes, esse imenso grupo que navega mundo afora em busca de sonhos, desejos, aventura ou esquecimento. Gente muitas vezes tratada como um exército de desvalidos, porcos, demônios ou, eventualmente, até mesmo como anjos. Passada uma década do terceiro milênio, os migrantes são protagonistas de radicais tragicomédias contemporâneas. Seja por desejo ou por necessidade, uma legião de possessos, homens, mulheres e crianças se lança em arriscados périplos em busca de outros mundos. E aí encontram todo tipo de conflito, do preconceito mais dissimulado 7 à dura mão dos agentes das fronteiras, das manifestações diretas nas praças ou na internet ao gargalo estreitíssimo para legalizar papéis. Sem falar, claro, das paixões e amores fulminantes. O fenômeno do preconceito e da xenofobia está por todo lado. Os ingleses dificultam a entrada de estrangeiros. Os espanhóis também. E os portugueses. Sem falar que lá na Europa ninguém gosta dos ciganos. E que os EUA tem lá seus motivos pra desconfiar de todo mundo. E aqui no Brasil surgem estranhas mensagens no Twitter pedindo a morte de nordestinos ou notícias alarmantes sobre novos escravos latinos no Bom Retiro. Liberdade de movimentos? Que o capital circule. Os seres?Talvez. Se os documentos estiverem todos em perfeita ordem... Se a empresa ou a instituição contratante garantirem as credenciais... Mas não será a liberdade um dos traços distintivos da humanidade? Tais embates, a guerra mais ou menos surda contra tais pessoas, sugerem que a metáfora da Legião Estrangeira é pertinente. E que o encontro entre tantos estranhos propõe mesmo muitas questões. Quem sou eu? Como sou visto? Quem é esse outro? O que eu quero dele e o que ele quer de mim? Como atingiremos nossos objetivos? Haverá entre nós objetivos comuns? Se existem pontos, coincidências, pontes, origens, afetos em comum, como entabular nosso diálogo presente? Há propostas para o futuro? Será o outro álibi para que eu não me mova de mim, do mesmo? Como superaremos nacionalismos, xenofobias, intolerâncias e medos, para que, nos imiscuindo nos sonhos e pesadelos recíprocos, possamos criar e conviver? 8 O grande artista André Abujamra equacionou muito bem o problema do convívio em escala global numa canção: O Mundo O mundo é pequeno pra caramba Tem alemão, italiano, italiana O mundo, filé à milanesa tem coreano, japonês, japonesa O mundo é uma salada russa tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia O mundo é uma esfiha de carne tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire O mundo é azul lá de cima O mundo é vermelho na China O mundo tá muito gripado Açúcar é doce, o sal é salgado O mundo - caquinho de vidro - tá cego do olho, tá surdo do ouvido O mundo tá muito doente O homem que mata, o homem que mente Por que você me trata mal se eu te trato bem? Por que você me faz o mal se eu só te faço bem? Todos somos filhos de Deus Só não falamos as mesmas línguas Todos somos filhos de God Só não falamos as mesmas línguas Todos somos filhos de Gandhi Só não falamos as mesmas línguas Pra que tanto medo? Como conceituar e enfrentar “o mal”? O que pode estabelecer irmandades, fraternidades, parcerias a partir das alteridades? Todorov, em O Medo dos Bárbaros (2008), divide o mundo atual em grupos de países. Uns, tem apetite. Caso do Brasil, que vai conquistando espaços e 9 relevância. Outros, tem ressentimento, como, segundo Todorov, alguns países do Oriente Médio, que se ressentem de tanto tempo de exploração. Outros tem medo, caso dos Estados Unidos e da Europa, que estreitam suas fronteiras e invadem as alheias.
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