1 1. INTRODUÇÃO 1.1 Breve contextualização Este estudo tem como intento analisar a relação entre a sociodiversidade e biodiversidade no âmbito dos saberes e práticas tradicionais dos espaços e dos recursos que estão associados à cultura Bijagós no atual contexto de globalização. Procura-se caracterizar a maneira como os guineenses se estabeleceram como povo e os primeiros contatos interétnicos entre os nativos da Guiné-Bissau e os portugueses “invasores” que desembarcaram na costa ocidental da África, com finalidade de conquistar novas terras para a coroa portuguesa. Antes da chegada dos Europeus, a região da atual Guiné-Bissau constituía-se em uma parte do Reino de Gabu, tributário do Império Mali, ao qual esteve vinculado até o século XVIII. Segundo os escritos e as crônicas da época (Província da Guiné, 1972), os primeiros contatos travados entre os habitantes originais da Guiné e os europeus foram no século XV. O primeiro navegador e explorador europeu a chegar à costa da atual Guiné-Bissau foi o português Álvaro Fernandes, em 1446. Por consequência da conquista, “invasão”, choque ou encontro e desencontro de civilizações na África, nasceram duas subjetividades: uma nativa e outra estrangeira, a europeia. Entre o fascínio e o horror, passaram a dividir o continente africano e, dessa divisão, nasceu o espaço que hoje chamamos de República da Guiné-Bissau. Guiné Portuguesa era o nome da atual Guiné- Bissau, colônia portuguesa desde 1446 até a data da independência, 10 de Setembro de 1974. É válido lembrar que seu território hoje é denominado República da Guiné- Bissau, e antes da chegada dos portugueses fazia parte do Império Sahel1, 1 A palavra Sahel é proveniente do árabe, significando Borda do Deserto, que no caso é a do Saara. A área caracteriza-se pela presença de vastas extensões de savanas, sendo conhecida como Sudão (não atual país, mas o nome dado na época). Essa enorme porção do continente africano presenciou, particularmente na sua porção ocidental, o surgimento de grandes Impérios, como o de do Ghana, Mali e Songhai. Desses, o Mali ocupou uma posição de destaque. 2 cujas etnias locais comercializavam sal, ouro e outros bens de valor, inclusive o arroz, que era – e continua sendo – a principal base da alimentação dos guineenses. É bom lembrar que o território da Guiné-Bissau foi, por muito tempo, o reino de Gabu2, parte do Império do Mali; e partes do reino sobreviveram até ao século XVIII. Os rios da Guiné e as ilhas de Cabo-Verde estiveram dentre as primeiras regiões da África a serem exploradas pelos portugueses. O navegador português Álvaro Fernandes chegou à Guiné em 1446 e reclamou a posse do território; porém, poucas feitorias de comércio foram estabelecidas antes de 1600. A ocupação do território pela Coroa Portuguesa só se deu a partir de1558, com a fundação da Vila de Cacheu, que foi criada em 1630 como Capitania-Geral da Guiné Portuguesa para a administração do território. A feitoria de Cacheu, situada a norte de Guiné-Bissau, junto ao rio do mesmo nome, foi um dos maiores mercados de africanos escravizados durante vários anos. Com a abolição da escravatura, no final do século XIX, o comércio de africanos escravizados caiu em forte declínio, embora restassem alguns focos clandestinos. A Cidade de Bissau, atual capital da República da Guiné-Bissau, foi fundada em 1697, como baluarte militar e entreposto de tráfico negreiro na costa da Guiné. Embora os rios e as costas dessas áreas estivessem entre os primeiros locais colonizados pelos portugueses, e aí tenham se iniciado o tráfico de escravos com a instalação de feitorias no século XVII, os colonizadores não exploraram o interior até ao século XIX. O Mali era governado pelos Mansas, isto é, imperadores. Seu surgimento relaciona-se com os feitos que cercam a memória do primeiro Mansa, Sundjata Keita. A vitória de Sundjata sobre Suamoro Kantê, o Rei do Sosso, na Batalha de Kirina (1235 d.C.), foi o marco fundamental para a criação do Império, ampliado pelos seus sucessores, perdurando até o século XV. O Mali tornou-se um poderoso Estado, configurando um respeitável arranjo territorial, alcançando o Atlântico e o curso médio do Níger no sentido Leste-Oeste, e o Saara e a Floresta Equatorial no sentido Norte-Sul. 2 O Reino de Gabu, também conhecido por outros nomes, como: Kaabu, Ngabou ou N’Gab, foi um reino da etnia mandinga que existiu entre 1537 e 1867 na região da Senegâmbia, centrado no atual nordeste da Guiné-Bissau, mas estendendo-se à Cassamansa, no Senegal, cuja ascensão se deu na região graças à sua origem como antiga província do Imperio de Mali. Após o declínio do Império Mali, Gabu tornou-se um reino independente. 3 Em consequência disso, a cidade de Bissau tornou-se logo a capital da Guiné Portuguesa, pois, nesse momento começa outra estratégia de exploração, o de conquistar mais grupos étnicos para poder ter uma administração completa, plena e confiante do território. Com a evolução das conquistas na África, Portugal perdeu uma grande parte do território para a França (que se tornaria, mais tarde, o atual país da Guiné-Conakry), incluindo a próspera área do rio Casamansa (hoje Senegal), que era um grande centro comercial para a colônia. Antes disso, no período da invasão portuguesa, o Reino Unido também tenta apoderar-se de Bolama-Bijagós3, o que resultou numa grande disputa entre os dois aliados, quase se tornando uma guerra. A resolução do conflito muito se deveu a Antônio José de Ávila (recompensado pelo feito com o título de Duque de Ávila e Bolama), o qual, recorrendo à intervenção do presidente norte- americano Ulysses S. Grant, que intercedeu a favor de Portugal, conseguiu assegurar para a Coroa Portuguesa a posse de Bolama-Bijagós. A Guiné foi administrada como uma colônia das ilhas de Cabo Verde até 1879, altura em que foi separada dessas ilhas para passar a ser governada autonomamente. No século XX, Portugal iniciou uma campanha contra as etnias animistas, sociedades tradicionais. Isso iria desencadear uma luta constante pelo controle do interior e arquipélagos (Bijagós). A conquista total das ilhas Bijagós aconteceu mais tarde em relação aos outros grupos étnicos guineenses. Devido à grande resistência à ocupação por parte dos Bijagós, somente em 1936 o controle das ilhas Bijagós estaria assegurado na totalidade para Portugal. Em 1951, quando Portugal reformou o sistema colonial, todas as colônias portuguesas passaram a designar Províncias Ultramarinas (AUGEL, 2007). A luta pela independência iniciou-se em 1956, quando Amílcar Cabral e outros companheiros formaram o Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que se manteve relativamente pacífica até 1961, ocasião em que foi deflagrada a Guerra Ultramar, declarando-se a Província 3 O nome dado a Bolama segundo a divisão administração, o país divide em oito regiões, Bolama bijagós referente ao arquipélago. 4 Ultramarina como independente e alterando-se o seu nome para Guiné-Bissau. A releitura e a compreensão dessas duas subjetividades originais da formação da nação guineense são especialmente importantes aqui para embasar a análise da dinâmica dos saberes e das práticas tradicionais dos Povos Bijagós. O que se busca, ao resgatar essa leitura da conquista da Guiné-Bissau, é ressaltar o questionamento da visão atual do povo guineense enquanto sociedade civil composta por guineenses, frente à questão dos saberes e às práticas tradicionais, que podem ser entendidas como uma re-edição da questão dos Bijagós, como uma continuidade do drama do enfrentamento da “civilização” pelos povos nativos da Guiné-Bissau, no caso específico dos Bijagós, pois, além desse, a Guiné-Bissau tem 26 outros grupos étnicos. Este breve histórico justifica-se ao buscar-se reavivar a lembrança das raízes desse processo, o qual, os guineenses enfrentam e continuam enfrentando, embora com feições diferentes, a globalização, que pode ser configurada como um desafio de lidar com essa herança colonial junto às suas comunidades tradicionais. Dessa sorte, qual papel vem desempenhando a sociodiversidade guineense, herdeira dos invasores europeus e dos nativos africanos, em relação aos saberes e práticas tradicionais? A partir do se verificou nas entrevistas, há um entendimento de que os saberes tradicionais dos Bijagós são conhecimentos tradicionais produzidos e gerados de forma coletiva, a partir de ampla troca e circulação de idéias e informações, e transmitidos oralmente, de uma geração a outra. Neste trabalho, pretendemos restringir-nos à análise dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que vão desde as técnicas de manejo de recursos naturais, alimentícias e agrícolas de espécies, métodos de caça e pesca, conhecimentos sobre os diversos ecossistemas e sobre propriedades farmacêuticas, até as próprias categorizações e classificações de espécies de flora e fauna utilizadas pelas populações tradicionais. Desse modo, os 5 conhecimentos dessas populações tradicionais - Bijagós são produzidos a partir de atividades e práticas coletivas. Este estudo assume a perspectiva de que foi com a chegada da sociedade europeia que se criou um conflito por conta do choque de visões de mundo diferentes, ameaçando, assim, a sobrevivência dos saberes e das práticas tradicionais no continente africano; no caso específico, da etnia Bijagós. Sendo assim, cabe hoje ao Estado da República da Guiné-Bissau prover o amparo legal e político-institucional necessários para garantir as condições de sobrevivência das populações tradicionais guineenses, a posse dos seus territórios e de suas terras, e também a manutenção de seus estilos de vida tradicionais. Acredita-se, para tanto, que a contribuição desse trabalho é fomentar o debate analítico acerca da gestão e apropriação do conhecimento tradicional e sua valoração, em uma nova perspectiva da relação homem-natureza. Sem dúvida, ao tratarmos desse tema, corre-se o risco de certo vernaculismo, de uma supervalorização das sociedades ditas “primitivas” em detrimento das sociedades ditas “civilizadas”.
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