Antônio Cândido assinala que a temática da malandragem está presente na literatura especialmente a partir do século XIX, com a publicação do romance Memórias de um sargento de milícias. De acordo com o autor, este romance destacou “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira”. Publicado inteiramente pela primeira vez em 1854, a trama diz respeito a aspectos do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, no tempo de D. João VI. Em razão disso, foi caracterizado como “romance de costumes”, “realismo antecipado” e “romance tipo marginal”. 1 No referido romance, o personagem Leonardo desde criança aprontava travessuras e nem mesmo o professor cuja fama era de ser bastante “cruel e injusto”, escapava das peraltices do menino. Leonardo gostava de desobedecer tudo que lhe era ordenado. No entanto, tinha a “bossa da desenvoltura” e conseguia na maior parte das vezes escapar dos castigos do rígido professor.2 Consideramos que para além do gosto por travessuras, Leonardo era uma criança de espírito livre. De acordo com Cândido, este personagem compreende características pertinentes aos malandros, visto que “vive ao sabor da sorte, sem plano e nem reflexão”, e nada aprende com as experiências vividas, pois falta-lhe uma característica essencial do malandro, a saber, “o choque áspero com a realidade”. 3 Essa característica não escapou da essência do malandro retratado nas narrativas de Jorge Amado. No livro Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios, o autor diz que a malandragem é um fenômeno que “nasce da fome que se abate sobre as classes pobres”. Os meninos considerados malandros cometem “mal feitos”, em decorrência da dura realidade em que vivem desde o momento em que nascem, e recebem como único corretivo as “surras da polícia e os maus tratos sucessivos. 4 No romance Jubiabá (publicado pela primeira vez em 1935), o escritor baiano sinaliza a perspectiva de que ser malandro está ligado à valentia e à liberdade. O personagem principal Antônio Balduíno, sempre ouvia as histórias heróicas de um famoso desordeiro do morro, o Zé Camarão, que vivia sem trabalhar e já fora fichado na polícia como malandro. Para Balduíno, o malandro Zé Camarão tinha duas grandes virtudes: “era valente e cantava ao violão histórias de cangaceiros célebres”. A seguir um trecho do livro: Antônio Balduíno ouvia e aprendia. Aquela era uma aula proveitosa. Única escola que ele e as outras crianças do morro possuíam. Assim se educavam e escolhiam carreiras. Carreiras estranhas aquelas dos filhos do morro. E carreiras que não exigiam muita lição: malandragem, desordeiro, ladrão. Havia também outra carreira: a escravidão das fábricas do campo, dos ofícios proletários. Antônio Balduíno ouvia e aprendia5 Antônio Balduíno havia aprendido desde cedo que, se por um lado, nas casas das famílias ricas, havia a tradição do pai, tio ou avô, que se tornou um engenheiro, político ou médico de sucesso, por outro, para quem morava no morro, a única tradição que havia era a “da escravidão ao senhor branco e rico”, porque a tradição “ da liberdade nas florestas da África já a haviam esquecido e raros a recordavam, e esses raros eram exterminados ou persseguidos”.6 Antônio Balduíno ouviu tantas histórias heroicas de homens que recusavam permanecer na escravidão das fábricas e do ofício proletário que esqueceu a tradição de servir. Ainda criança já sabia que queria ser do mundo dos livres. Não queria trabalhar no cais até ver seu corpo ficar curvo com o peso dos sacos de cacau, nem trabalhar nas fábricas. Queria ser valente, malandro e livre como Zé Camarão. Para ter a liberdade, e recusar a escravidão das formas de trabalho opressoras nas quais viviam os trabalhadores comuns no cais do porto e nas fábricas, era preciso se arriscar, se aventurar em outras atividades, fazer bicos para “ganhar a vida”. Nesta perspectiva, o malandro é livre e aventureiro. O espírito de aventura compreende uma característica comum nas discussões a respeito do personagem do malandro representado nos apontamentos de Antônio Cândido bem como nas narrativas de Jorge Amado. Tanto na literatura, quanto na vida cotidiana, a personalidade do malandro coexiste com outros tipos de personalidades. Holanda, em seu estudo a respeito de elementos de formação da sociedade brasileira assinalou a presença do aventureiro e do trabalhador. 7 De acordo com Holanda, o aventureiro e o trabalhador constituem dois tipos de personalidades que encarnam alguns princípios que orientam as experiências de vida coletiva. Assim como haveria a ética do trabalhador existe a ética do aventureiro. Neste sentido, o indivíduo do tipo do trabalhador atribuirá valor positivo às ações fundamentadas na precaução/previdência, atitudes consideradas positivas/corretas para alcançar seus objetivos. Não há problema se porventura a recompensa demorar a acontecer. Por outro lado o trabalhador compreenderá como incorretas/desprezíveis as práticas/características pertinentes ao indivíduo aventureiro tais como “audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem – tudo, enfim, que se relacione com a concepção “espaçosa do mundo” constituem aspectos próprio desse tipo. O aventureiro está sempre em busca de “novas experiências, acomoda-se no provisório e prefere descobrir a consolidar” enquanto o trabalhador, “estima a segurança e o esforço, aceitando as compensações a longo prazo”. Os elementos que caracterizam tanto o aventureiro quanto o trabalhador, podem se apresentar a partir de diferentes combinações nos indivíduos da sociedade, entre homens e mulheres. Conforme ressalta Holanda, “em estado puro, nem o aventureiro, nem o trabalhador, possuem existência real fora do mundo das ideias.” No entanto, não resta dúvida quanto ao fato de que tais conceitos podem contribuir para situar e orientar nossa compreensão a respeito dos/as homens/mulheres e dos respectivos grupos sociais a que pertencem. 8 Em seu estudo a respeito do universo social brasileiro, Roberto Da Matta desenvolve uma reflexão a respeito do malandro a partir também da comparação com as características da personalidade do caxias e do renunciador. 9 Para Da Matta, o malandro é um personagem que está deslocado das regras formais/tradicionais da estrutura social. No universo social marcadamente individualizado, o malandro se destaca por ser alguém mais criativo, livre e aventureiro, pois recusa as posições fixas, demonstrando que nem todos precisam necessariamente entrar na ordem como empregados/as formais aceitando, na maioria das vezes, condições de trabalho pouco satisfatórias. Entre outros aspectos ressaltados por Da Matta, a liberdade e a improvisação compõem a essência do malandro. O espaço social sobre o qual o malandro atua é bastante complexo, pois podemos observar/encontrar “desde o simples gesto de sagacidade que, afinal pode ser realizado por qualquer pessoa, até o profissional dos pequenos golpes” ou ainda realizar atitudes explicitamente desonestas, se tornando um indivíduo “marginal ou bandido”. 10 O malandro tem a perspectiva de que a sociedade em que vive é injusta, visto que a lei não é aplicada de forma igualitária a todos. O que Da Matta denomina como o ritual do “você sabe com quem está falando?” constitui um exemplo da perspectiva desigual de aplicação das leis e regras sociais. A personalidade do caxias refere-se ao indivíduo que, ao contrário do malandro, acredita e segue plenamente as leis, e considera cômodo um trabalho formal mesmo que este não lhe permita viver satisfatoriamente tanto econômica quanto emocional e pessoalmente. É um indivíduo que “está totalmente dentro da ordem e se preocupa com a defesa e a implementação de regras sociais mais explícitas”, segundo Da Matta, o caxias pretende realizar uma revolução por meio de requerimentos e leis. A figura do renunciador, o terceiro tipo que compõe o quadro social segundo Da Matta, refere-se à personalidade que está intimamente ligada ao romeiro e ao fiel religioso. O aspecto essencial do renunciador é que ele entende sua vida como obra do destino. Por acreditar fielmente que sua condição social e financeira constitui algo que “é natural do seu destino”, o renunciador – como o próprio termo diz – renuncia a sociedade e foge dela, focalizando suas energias para “um outro mundo” melhor e mais justo que se concretizará no futuro. Ao contrário do caxias e do renunciador, o malandro é o personagem social que vive e aproveita o tempo presente. Essa questão vai ao encontro da ideia bastante compartilhada em nossa sociedade neste limiar do século XXI, de que o malandro é compreendido como um bom vivant, ligado às festas, boemia, romances. O malandro tem a compreensão de que não há como mudar as injustiças sociais e então ele procura aproveitar as coisas boas da vida. As narrativas de Jorge Amado, as reflexões de Holanda e de Da Matta, apontam elementos que podem contribuir na compreensão do universo do malandro e da malandragem, no sentido de aproximarmos da simbologia que envolve tais termos. Procuramos rejeitar a compreensão limitada na qual o malandro é apenas um indivíduo totalmente avesso ao trabalho, ou que simplesmente faz apologia “à boa vida”. Entendemos que é também na relação com indivíduos de perfis do tipo trabalhador e do aventureiro (Hollanda), bem como do caxias e do renunciador (Da Matta) que a personalidade do malandro pode ser compreendida na sua complexidade. Da Matta aponta, entre outras questões, que o malandro sinaliza que a vida pode ser regida por outros eixos, que não se referem apenas à esfera econômica e política. O malandro não renuncia totalmente a ordem, mas também não se aventura na plena marginalidade. Ele prefere o campo intermediário a “zona das inconsistências onde não ter caráter significa justamente o inverso: ser um homem de caráter e nunca, jamais, pretender reformar o mundo apresentando-se como grande exemplo”. 11 Concordamos com o autor quanto à ideia de que este constitui o paradoxo dos malandros. No âmbito da modernização das cidades no Brasil nas primeiras décadas do século XX, ideias pertinentes às personalidades tanto do malandro quanto do trabalhador estiveram em evidência.
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