Organização e Representação do Conhecimento na Web: Desafios para a construção colaborativa de uma ontologia do samba Marcos Miranda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Jair Miranda Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro [email protected] 1 Introdução Este trabalho é fruto do diálogo entre os projetos de pesquisa “Genealogia do Samba” e “Preservação da Memória do Samba Carioca: Escolas de Samba, sua história sua gente” vinculados à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Para os estudos da representação, conceituação, classificação e o registro sobre a história e memória do samba, lançamos mão de um fato muito marcante na história do tráfico atlântico de africanos para se tornarem escravos: o da árvore do esquecimento. Conta-se que os escravos antes de embarcar nos tumbeiros na cidade de Ajudá, 252 em Benin (antigo Daomé), para a viagem de destino ao Brasil, eram obrigados pelos traficantes a caminharem várias vezes em círculos, em torno de uma árvore que tinha o poder de apagar todo o seu passado, a sua memória e toda a sua resistência cultural (Araújo, 2009: 127-128) Esse ritual, que certamente não foi de todo eficiente, tinha o objetivo de minimizar as perdas financeiras dos escravagistas pelo alto grau de mortes de escravos no Brasil, causadas pelo banzo, uma doença decorrente de uma tristeza profunda, acometida aos escravos pela saudade da terra de origem, uma depressão aguda originada das condições adversas do novo habitat. Essa história, vista a partir deste trabalho, que busca rememorar o samba para representá-lo, nos remete imediatamente à significação que tem as árvores na cosmovisão africana, ou seja: à da própria noção de tempo e ancestralidade, muito presente no Inquice Tempo (da Nação Angola) ou no Orixá Iroco (da Nação Gege/Nagô), aquela sacraliza a árvore como uma entidade de memória, como uma guardiã de lembranças, de testemunho de um tempo, ao mesmo tempo passado e futuro, que, diferentemente da noção linear do mito ocidental “Cronos”, indicam um ciclo Complexidade e Organização do Conhecimento: Desafios do nosso século permanente que une a vanguarda à velha guarda, um olhar sempre contemporâneo sobre a tradição e a memória. Portanto, essas referências iniciais, ao contrário da ideologia subjacente naquela árvore do esquecimento, provavelmente a milenar Baobá, serve como preâmbulo para fundamentar histórica e filosoficamente este texto, ao sugerir simbolicamente uma árvore da lembrança para essa tão significativa manifestação da cultura afro-brasileira, na sua transposição para a árvore baniana de Ranganathan. As dificuldades encontradas em diversas unidades de informação no Rio de Janeiro para a representação do conhecimento do samba nos despertou o interesse em discutirmos as possibilidades de configurações do etnoconhecimento para além das estruturas arborescentes. A partir dessas constatações, empreendemos este estudo para investigar o etnoconhecimento e sua representação em sistemas de organização do conhecimento no universo do Samba. Neste sentido, buscamos analisar a representação do conhecimento afrodescendente, especificamente do samba, nos sistemas de organização do conhecimento; possibilitar novas formas de representar a partir do conhecimento dos 253 saberes milenares das culturas afrodescendentes; estimular a criação de um fórum permanente congregando os atores do processo de construção de sistemas de organização do conhecimento (afrodescendentes, profissionais da informação e classificacionistas); contribuir para a organização do conhecimento no Portal do Carnaval e superar preconceitos e discriminações nos sistemas de organização do conhecimento. 2 Os desafios na configuração do Samba para fins de organização do conhecimento na Web A fundamentação teórica deste estudo reflete conceitos oriundos da Teoria da Classificação Facetada, da Teoria do Conceito, dos aspectos éticos da Organização do Conhecimento, da tese sobre Garantia e Hospitalidade Culturais, da Epistemografia Interativa e da Teoria do Rizoma conforme estudos de Miranda (2011: 153). Considerando o universo do conhecimento e sua dinâmica, a Teoria da Classificação Facetada apresenta os elementos de uma estrutura que abrange a unidade classificatória, as categorias, as facetas, as cadeias e os renques. Os princípios da Teoria do Conceito, por outro lado, nos permitem identificar qualquer objeto no universo Complexidade e Organização do Conhecimento: Desafios do nosso século empírico (referente), atribuindo-lhe um conjunto de características que visam construir enunciados verdadeiros acerca de tal objeto. Este será posteriormente nomeado, chegando assim à definição de conceitos. Este modelo de formação possibilita também a identificação de semelhanças e diferenças em relação a outros objetos, o que permite estabelecer as relações conceituais existentes. Em se tratando de uma pesquisa sobre o samba, as primeiras questões que nos desafia respostas, são de ordem ontológica, ou seja: afinal, o que é samba? Um gênero musical, uma dança ou uma festa? Um desfile de carnaval, um espetáculo musical ou uma manifestação cultural? Ele seria o mesmo no Recôncavo Baiano, em Salvador, Recife, Manaus, no Rio de Janeiro ou em Tókio e Berlin? Quais e quantas são as espécies ou sotaques do samba? samba-reggae é samba? bossa nova é samba ? afro- samba é samba ? Jongo é samba ? Côco é samba ? Cabula é samba? São questões complexas que antecedem qualquer tentativa de conceituar, categorizar, classificar ou designar uma música, uma performance ou seus registros documentais como samba. No âmbito desta pesquisa, nossa hipótese, no entanto, é de que o samba, muito mais que um gênero musical e uma matriz cultural, se constitui, também, como nos diz Ligiéro (2011: 25), como uma força motriz, presente nas muitas manifestações culturais 254 afro-brasileiras que integram o canto, a dança e a música na sua performance, uma vez que cantar, dançar e batucar nas culturas de origem africana são indissociáveis. Como legado dessa força e da ancestralidade africana, o samba é também visto aqui como uma árvore frondosa de muitos ramos, mas de raiz forte que se movimenta subterrânea e subliminarmente em rede como um rizoma, fazendo nascer, sob uma ótica "deleuziana”, outras árvores da mesma família em vários pontos da terra como uma árvore baniana. Deleuze&Guattari (1980). O samba também é entendido aqui, contemporaneamente, como uma potência cultural, afetada pelo sentimento positivo da alegria, como nos indica Spinoza (2003); é, ao mesmo tempo, um capital cultural, como nos fala Bourdier (1982), que agrega valor à própria marca Brasil; como também, é uma forma de vida extremamente sedutora, uma ocupação virtuosa e um trabalho imaterial prazeroso Virno (2009), que arrebata multidões e constitui um império, segundo os conceitos “negrianos” de multidão e império. Hardt & Negri (2003, 2005); além de se constituir como o maior e mais longo exemplo de movimento de resistência biopolítica no Brasil. Focault (1988), já que para lutar contra uma morte anunciada do corpo, da alma e da memória, toda uma legião de escravos desvalidos optou por celebrar a vida cantando e dançando como estratégia de sobrevivência, resistência cultural e exercício de fé, uma Complexidade e Organização do Conhecimento: Desafios do nosso século quase religião, já que nascido nos rituais sacros dos terreiros de Batuques e Candomblés, como observado por Caciatore (1977 ), Sodré (1998), D’Ávila (1982), Lopes (2005), Spirito Santo (2011) e Ligiéro (2011). O fato, porém, é que, independente das nossas hipóteses, todas as teses e conceitos já produzidos sobre o samba, suas várias manifestações e sua vasta produção, ainda é cercada de contradições, desconhecimentos e alguns “propositais esquecimentos”. Para contrapor, então, essas teses com nossas hipóteses e responder minimamente a questão: o que é samba, é que nos propusemos nesta pesquisa a criação de uma “Ontologia” para o Samba”, como um recurso metodológico extraído do campo de estudo das ciências da informação e da computação, que à semelhança das taxonomias, vocabulários controlados e tesauros, visa organizar, representar, compreender e compartilhar o conhecimento de um dado domínio, como nos aponta Silva (2009) ao citar Jurisica, Mylopoulos e Yu (1999): as ontologias podem ser usadas como conhecimento comum de um domínio, viabilizando a comunicação entre uma comunidade de interesse... na perspectiva da ciência 255 da computação e da ciência da informação, uma ontologia pode ser útil na organização e representação de conhecimento, tendo a tecnologia como apoio na viabilização de uma infra-estrutura para gerência de conhecimento (Silva, 2008: ) Considerando que a gerência desse conhecimento comum sobre o domínio “Samba”, especialmente na web, deve ser baseada nessa infra-estrutura tecnológica das redes sociais, o grande desafio desta pesquisa, no nosso entender, deve-se à prevista dificuldade para se estabelecer um consenso nas comunidades de interesse sobre o samba, em relação ao que viria a ser a sua definição, sua história, suas vertentes, seus sotaques, seus conceitos e as designações de elementos de seu repertório em determinadas categorias, uma vez que essas comunidades, especialmente aquelas formadas por musicólogos, antropólogos, etnomusicólogos, cronistas, jornalistas e outros estudiosos do samba, nem sempre ratificam as conceituações e categorizações usadas no cotidiano por aqueles que praticam, produzem e reproduzem o samba nas suas variadas formas. Dessa forma, entendemos que
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