O Mito Na Sala De Jantar

O Mito Na Sala De Jantar

Rosa Maria Bueno Fischer O MITO NA SALA DE JANTAR leitura interpretativa do discurso infanto-juvenil sobre televisão Segunda Edição, 1993 Editora Movimento SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 CAPÍTULO I – TV, MITO E CULTURA 15 CAPÍTULO II – ABORDAGENS DO MITO 25 II.1 – A NARRATIVA DOS COMEÇOS 25 II.2 – MITO COMO FALA IDEOLÓGICA 27 II.3 – A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA FINITA 29 CAPÍTULO III – A ESPECIFICIDADE DO MITO NA TV 34 CAPÍTULO IV – ANÁLISE INTERPRETATIVA DOS DISCURSOS 42 IV.l – O DISCURSO SOBRE AS NARRATIVAS 44 IV.1.1 TELENOVELAS: as razões da escolha 44 IV.1.2 FILMES: o gosto pelo terror e pela aventura 53 IV. l.3 DESENHOS ANIMADOS: onde nada é impossível 59 IV. 1.4 SHOWS: o divertimento da futilidade aparente 65 IV.2 – AS PRINCIPAIS TEMÁTICAS DISCUTIDAS PELOS ENTREVISTADOS 69 IV.2.1 – Real versus imaginário 69 IV.2.2 – A realidade dos adolescentes 73 IV.2.3 – O desejo de ver a si mesmo 76 CONCLUSÃO 81 ANEXO I – MÉTODO E TÉCNICA DAS ENTREVISTAS / A FALA DOS ENTREVISTADOS 92 ANEXO II – DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS PROGRAMAS PREFERIDOS PELOS ENTREVISTADOS 103 BIBLIOGRAFIA 130 INTRODUÇÃO "Que eu gostaria de ver na TV? Eu. A gente mesmo". "Eu sei. Eles poderiam colocar dinheiro e jogar pela televisão, pra gente pegar", "TV ensina sim, marido pega a mulher com outro cara dentro de casa". "Violência é o que a gente mais vê na televisão. No jornal é o que mais tem. Uma cena que eu acho que foi no mês de agosto, do assassinato de um jornalista na Guerra da Nicarágua. Isso não devia aparecer na televisão. É violento demais. Minha mãe, por exemplo, chorou pra caramba, achou aquilo um absurdo. Ela não queria acreditar no que ela tava vendo. Uma pessoa ser matada a sangue frio". "Violência na TV eu acho ótimo. Violência de homem matando homem. Destruindo". "Filmes eróticos eu gosto muito. Tem bem tarde na TV, mas tem". "Na novela a gente vê a vida do outro lado, entende? Por exemplo, o problema dos atores, a forma que eles reagem fazendo o papel. A gente interpreta como eles, sente igual a eles". "Tinha que ter mais filmes de terror. Terror é legal". A motivação imediata para a realização deste trabalho nasceu de um conjunto de depoimentos como esses. Fazíamos uma pesquisa de audiência junto ao público infanto-juvenil, para a TV Educativa do Rio de Janeiro, em dezembro de 1979. Já no primeiro contato com as crianças, percebemos a qualidade e a profundidade dos relatos. Antes mesmo da conclusão dos trabalhos, víamos que os depoimentos ultrapassavam a finalidade das entrevistas: quando a equipe saiu a campo, desejava conhecer as preferências, críticas e sugestões de crianças e adolescentes, representativos das camadas populares da cidade do Rio de Janeiro, sobre televisão, com o objetivo de oferecer material para o planejamento anual da emissora. Eles falam sobre televisão com a intimidade de quem trata de seus brinquedos, seu quarto, sua casa, seus segredos, sua vida mais prosaica e cotidiana. Pessoalmente, encontrávamos ali material prático riquíssimo, para uma investigação teórica mais ampla, que já havíamos de certa forma iniciado há algum tempo, no exercício do magistério superior. Na época - 1975-1976 – estudávamos,... p. 9 ***** ...com alunos de Curso de Letras, a linguagem e a estrutura de narrativas dos diferentes meios de comunicação de massa: programas de rádio, de TV, histórias em quadrinhos, música popular, cartazes de propaganda, fotonovelas, comerciais em geral. Embora tivéssemos assumido, inicialmente, um posicionamento de ataque e crítica aos produtos veiculados através desses meios, também observávamos nos alunos e em nós mesmos a atração, o interesse e o gosto, particularmente por televisão. Desde criança, as narrativas de ficção tinham para nós um significado especial na busca do conhecimento, na viagem a mundos tão distantes que falam tão perto ao ser humano que está dentro de nós mesmos, na intimidade mais escondida de nosso ser. Contos de fadas e romances de aventuras povoaram nossa imaginação e fantasia, durante muitos anos. E foi com emoção e surpresa que, aos dez anos de idade, pela primeira vez assistimos a um programa de televisão. Na sala-de-estar da casa de uma família vizinha, o primeiro programa que vimos foram belíssimas encenações de contos de fadas, apresentado por Shirley Temple, que conversava com o público nos intervalos de fantásticas histórias como a de Rapunzel. Não seria de estranhar que, mais tarde, fôssemos continuar os estudos numa Faculdade de Letras, com dedicação especial aos cursos de Literatura. Exercendo o magistério, nosso interesse se estendeu das obras clássicas literárias para os objetivos da cultura de massa, que emocionavam, ao mesmo tempo, milhões de espectadores, leitores e ouvintes. Exercíamos a crítica, sim, nos moldes então vigentes, fazendo valer nossas análises através de autores como Max Horkheimer e Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt e tantos outros estudiosos europeus e brasileiros, preocupados com os efeitos da ação dos objetos da indústria cultural: o apassivamento das pessoas, seu empobrecimento cultural, a manipulação ideológica dos grupos sociais, o nivelamento das mensagens pelo mais baixo degrau, fatos que até hoje é possível verificar. No entanto, ao mesmo tempo em que se fazia uma análise crítica, podia-se observar como as pessoas, no caso, os alunos do Curso de Letras, se identificavam com atores, personagens e principalmente com as histórias e fatos narrados. Na TV, encontravam a emoção, a expressão de sentimentos profundos como o amor, a saudade, a alegria, a inveja, a esperança, a raiva, o terror. Através de uma análise mais profunda, detectava-se também como, mobilizadas subjetivamente, essas pessoas recebiam muitas vezes mensagens bem claras e objetivas, a elas dirigidas intencionalmente pelo emissor. Não só as recebiam, como aderiam a elas, quase sempre inconscientemente. Tínhamos, assim, um exemplo da ação da TV como formadora da opinião pública, segundo os interesses dominantes na sociedade. Voltamos ao estudo de narrativas televisivas durante o Curso de Mestrado, quando, num trabalho para a disciplina de Antropologia, ensaiamos uma investigação sobre os mitos primitivos e modernos presentes numa telenovela. Nessa trajetória, começava a delinear-se uma hipótese sobre a TV, que só mais tarde, por ocasião deste trabalho, iríamos formular: a de que tanto o próprio meio como as mensagens por ele veiculadas atingiriam... p. 10 *** ...prioritariamente a subjetividade das pessoas, mais do que sua capacidade objetiva de compreender o real, pela presença neles do mito. A TV permitiria a vivência eletrônica do mito, ou seja, o encontro das pessoas com narrativas que tratam de questões muito profundas, como as relacionadas com a origem do homem, sua angústia diante da vida e da morte. Em nosso trabalho na TV Educativa, quando coordenamos a equipe que foi pesquisar a relação entre TV e espectador, tínhamos uma tarefa objetiva: fazer uma pesquisa entre crianças e adolescentes, sobre suas críticas, sugestões, preferências e expectativas diante da programação dos diferentes canais de TV a que tinham acesso. Para a emissora, os dados tinham uma finalidade muito clara - a que efetivamente serviram - qual seja, a de avaliar a programação em curso e redefinir as linhas de ação para o ano seguinte, na área infanto-juvenil. No entanto, o material coletado – talvez em virtude do método de entrevistas livres – superou as expectativas. Fornecia informações mais amplas, quantitativa e qualitativamente, e por isso merecedoras de uma investigação maior e mais profunda. Seria possível, com aqueles dados, verificar a hipótese da presença do mito na TV: as 450 crianças e os adolescentes, no decorrer de todas as entrevistas, manifestaram encontrar nela mais do que um simples entretenimento. Ela lhes servia também como um meio de projeção e identificação de sentimentos e desejos. Nela, esse público mostrou encontrar narrativas tão mitológicas como as que permeiam a vida de povos primitivos. E o próprio discurso sobre a TV mostrou-se carregado de conteúdos míticos. Ao mesmo tempo que conhecem tudo sobre a programação das emissoras, sendo capazes até de sugerir um mapa de veiculação de tipos de programas, pensando em diferentes públicos e horários, essas crianças e esses adolescentes selecionam, como preferidas, aquelas narrativas que mais tocam sua sensibilidade. O encontro e o desencontro amoroso, o mito do amor como entrega total, a eterna esperança da mulher dos sonhos ou do príncipe encantado, por exemplo, motivam a assistência permanente desse público a quase todas as telenovelas. Monstros, situações-limite entre vida e morte, pessoas excepcionais -- super-homens da bondade ou da maldade --, levam os menores a ficarem inclusive durante longos horários pela madrugada, assistindo a filmes teoricamente proibidos para sua idade. Ali encontram emoção, tragédia, motivo para medo, apreensão e até terror. Tal qual o homem das sociedades primitivas, com seus ritos, tabus e práticas mágicas, o homem de hoje encontra na televisão a narrativa de histórias que tratam dos começos da humanidade, que permitem a exorcização de seus medos em relação à anormalidade, ao desconhecimento do futuro, etc. Os dados colhidos, portanto, nos serviram para reforçar e ao mesmo tempo redefinir, com mais clareza, aquela hipótese que vínhamos tecendo, a princípio intuitiva e informalmente. Fazia-se necessário estudá-los e analisá-los. Do ponto de vista metodológico, não houve, assim, necessidade de proceder inicialmente a uma investigação empírica, uma vez que decidimos empreender este trabalho a partir do momento em

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