NA MIRA DO OLHAR: AFERIÇÕES SOBRE GÊNERO E RAÇA NAS CAPAS DAS REVISTAS CLAUDIA E TPM Gabrielle Vívian Bittelbrun1 Resumo: As capas de revistas atuam como promessa das publicações para estimular a venda (KITCH, 2001), de modo que os corpos estampados são seu principal recurso. A questão é que, olhando as primeiras páginas de uma revista feminina como Claudia, notam-se corpos brancos e magros sendo reproduzidos exaustivamente. Outra publicação do setor, a revista TPM, surge com a proposta de dar espaço a mulheres do “mundo real” (TRIP, 2015). Pretende-se debater, no entanto, até que ponto TPM consegue propor alguma “realidade” e, portanto, diversidade. Essas discussões e a análise dos recursos utilizados se justificam à medida em que os dois títulos, referenciais no mercado, podem influenciar no imaginário de uma cultura específica, naquelas imagens prontas pelas quais elaboramos sentidos sobre corpos sociais (GATENS, 2002). Além disso, é preciso colocar em xeque como se manifestam, em maior ou menor medida, padrões eurocêntricos que podem, inclusive, endossar as discriminações no contexto brasileiro. Palavras-chave: Revista. Mulher. Raça. Imagem. Não foi só o sorriso largo da apresentadora Ana Hickmann, acompanhado da chamada “Kit verão: mais magra, mais ágil, mais durinha, mais linda”, na primeira página da revista Claudia de outubro de 2005, e nem só o bumbum arrebitado de Gaby Amarantos, na TPM de agosto de 2012, junto com chamada “Eu não visto 38. E daí?”, que fizeram dezenas ou centenas de milhares de pessoas comprarem uma revista ou outra. Mesmo assim, como se sabe, a capa é uma importante ferramenta para a compra das publicações. De acordo com o que destacou Carolyn Kitsch (2001, p. 5-6), voltada para o contexto norte- americano, desde o final do século 19 as capas despontam como uma promessa das publicações e, portanto, precisam ter impacto e atrair a maior quantidade possível de pessoas. E, se os corpos de mulheres foram predominantes nas manifestações artísticas mesmo antes da cultura de massa, em estátuas, pinturas e etc., como recordou ainda Kitsch (2001), na era atual, eles se multiplicariam nas privilegiadas primeiras páginas dos veículos impressos. Afinal, os corpos femininos foram historicamente consolidados como foco da atenção nas imagens, como destacou ainda Nochlin (1988, p. 30), em suas aferições sobre as artes visuais. Não se pode perder de vista, então, que as imagens das capas das publicações envolvem padrões sociais, históricos e, mais especificamente, padrões estéticos. De todo o modo, se Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2015, p. 357) falariam em uma “glocalização” da beleza na atualidade – 1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis-SC, Brasil. Mestra em Jornalismo pela mesma instituição e jornalista pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Integra o Grupo de Pesquisa Núcleo de Literatura Brasileira Atual - Literatual - Estudos Feministas e Pós-Coloniais de Narrativas da Contemporaneidade da UFSC. E-mail: [email protected]. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X sempre personificada pelas mulheres –, com um pluralismo que levaria ao reconhecimento de belezas negras, asiáticas e mestiças no cinema, na publicidade e nas passarelas de moda, os próprios autores reconheceriam o domínio crescente e planetário dos padrões estéticos ocidentais, relativos ao rosto e ao corpo. Assim, “é quando o Ocidente deixa de ser o centro hegemônico da economia mundial que se impõem, nos quatro cantos da Terra, seus cânones e suas práticas estéticas ilimitadas” e é quando as “raízes” culturais e “etnicidades” são glorificadas que triunfa em todo o globo o mesmo padrão de beleza (LIPOVETSKY; SERROY 2015, p. 358). Como complementam os autores Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 20), “os traços residuais de séculos de dominação europeia axiomática dão forma à cultura comum, à linguagem do dia a dia e aos meios de comunicação, engendrando um sentimento fictício de superioridade nata das culturas e dos povos europeus”, atingindo também os padrões de beleza. Portanto, ao mesmo tempo em que manifestam questões culturais, evidenciando os corpos de mulheres como alvo de olhares e ferramentas de demonstração de beleza, as revistas femininas brasileiras podem manifestar padrões eurocêntricos, com a repetição de modelos notadamente brancos, que se distanciam da conhecida – e por vezes exaltada – miscigenação da população brasileira. A isso ainda se somará um outro atributo, tão associado aos corpos de mulheres na mídia, o da magreza. Assim, se veículos de comunicação podem delimitar formas de discriminação, a partir do que não é destacado nas páginas, é preciso observar o que vem sendo trazido pelos privilegiados espaços de capa de duas revistas que foram referenciais no mercado brasileiro nestes anos do século 21: Claudia2 e TPM3. As mulheres sob medidas de revistas Considerando as publicações do período entre 2004 e 2014, que podem dar um panorama do que vem sendo apresentado no século 21, não é difícil perceber que são as mulheres brancas e magras que dominam as primeiras páginas de Claudia, sempre sendo apresentadas com intensa produção de maquiagem e figurino, em posturas sugerindo alegria e descontração. As líderes em 2 Revista feminina mensal mais antiga em circulação no Brasil, Claudia foi lançada pela Editora Abril em 1961, elencando especialmente matérias sobre comportamento, moda, beleza corporal. 3 Lançada em 2001 pela Editora Trip, TPM surgiu com o indicativo de se contrapor às abordagens das revistas femininas mais tradicionais. A partir de 2017, a revista, que era mensal, reduziu sua periodicidade nas bancas, com uma nova proposta trimestral. Vale lembrar ainda que tanto Claudia como TPM apostam em um fluxo contínuo de matérias em seus portais na internet. 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X capas do veículo da Abril nesse intervalo de tempo são: a atriz Grazi Massafera e a apresentadora Angélica, ambas estampando sete edições no período, seguidas pela modelo Gisele Bündchen, com seis capas, e a atriz Mariana Ximenes e a cantora Ivete Sangalo, registrando ambas cinco capas cada. A manutenção do padrão estético é reiterada nessa recorrência de personagens, de modo que outras três celebridades apareceriam quatro vezes nas capas cada uma: as atrizes Claudia Raia, Giovanna Antonelli e Taís Araújo, única negra entre as mais conhecidas nesses privilegiados espaços. O imperativo de magreza se dá de tal maneira que, no caso de Claudia, em todo o período que abarca os anos entre 2004 e 2014, apenas uma personagem foge da aparência muito magra, no que se refere às capas: Grazi Massafera, que aparece grávida de sete meses na capa do exemplar de março de 2012. Todas as demais edições serão protagonizadas por mulheres conhecidas por seus traços esguios e por seus corpos trabalhados em academia. TPM teria como proposta ir na contramão das publicações hegemônicas como Claudia. A revista seria destinada à mulher “quase ofendida em sua inteligência e autoestima pela forma como são produzidas diversas revistas femininas vigentes nas prateleiras do país” (LIMA, 2001, s/p), enfim, seria destinada a mulheres do “mundo real” (TRIP, 2015). Em relação às capas, a revista da Editora Trip também chegaria a destacar Grazi Massafera, com a barriga de quase nove meses à mostra, em maio de 2012. Mas haveria outras figuras fugindo do padrão de rigorosa magreza. Entre 2004 e 2014, a revista propõe, na edição de dezembro de 2006, uma personagem comum, fora do meio midiático e dos rígidos padrões estéticos. Vanessa Trielli, então com 30 anos, sem muita produção de maquiagem e cabelo e vestindo um maiô, estamparia o exemplar com o tema “Você não é gorda”. Já na edição de agosto de 2012, a cantora Gaby Amarantos, conhecida por estar acima do peso, estaria na edição com a manchete “Eu não visto 38. E daí?”, enquanto a cantora Preta Gil, em uma das versões da edição de setembro de 2013, estaria na edição especial intitulada “Comida e culpa”. Apesar das curiosas propostas dessas edições temáticas de TPM, no balanço referente às capas, há apenas duas mulheres consideradas gordas e uma personagem fora do padrão, com algumas gordurinhas localizadas. Todas as demais capas convergem para o padrão de magreza tão comum nos títulos voltados para as mulheres. Tanto que, embora traga com frequência mais de uma opção de primeira página por edição, aquelas que apareceram mais vezes em TPM, em três momentos cada, foram as atrizes Leandra Leal, Alice Braga e Tainá Müller. Entre as personalidades 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X que aparecem duas vezes, notam-se alguns nomes também recorrentes em Claudia, como Mariana Ximenes, Angélica, Taís Araújo e Grazi Massafera. Naomi Wolf (1992) e Susan Bordo (2003) lembraram que a direta associação entre as mulheres e corpos ou padrões estéticos corporais tem sido uma das vias fundamentais de consolidação do patriarcado. As mulheres vem sendo, afinal, reduzidas à própria aparência, cobradas por um cuidado tão excessivo quanto constante, que passa pelo controle a cada caloria ingerida. Como havia detalhado Bordo (1993, p. 25), inclusive, o controle do apetite feminino é a expressão mais concreta da norma geral em que se baseia a feminilidade, a de que a fome feminina – seja ela por poder público, por independência ou gratificação sexual – deve ser contida e o espaço público que se destina às mulheres, limitado. Afinal, quando se recomenda a diminuição de medidas, recomenda-se que a mulher reduza o tamanho de seu corpo, o seu próprio tamanho, diante da sociedade, o que tem inclusive um peso metafórico. Ao mesmo tempo, sugere-se uma anulação feminina, com a contínua submissão ao olhar externo e o estímulo à restrição na dieta.
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