O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco Monica Grin* Marcos Chor Maio** RESUMO Este artigo tem por objetivo analisar o contexto de elaboração e promulgação da primeira lei contra a discriminação racial no Brasil, de autoria do deputado Afonso Arinos de Melo Franco, no início dos anos 1950. Trata-se de explorar as diferentes formas de recepção da lei; sua tramitação no Congresso; o debate racial em curso e, por fim, o sentido e justificação que Arinos confere à lei. Partimos da hipóte - se de que, ao transformar o preconceito racial em objeto de contravenção, sob penas da lei, Arinos procurou esvaziar politicamente a questão racial ao deslocá-la para o plano da moral. A luta contra o racismo, traduzida nos termos de um imperativo ético, inspirado na tradicional visão de um país racialmente harmônico, teria a função de evitar a crescente atmosfera de tensão racial, mais do que de reconhecer as demandas sociopolíticas do movimento negro. Palavras-chave: Lei Afonso Arinos; antirracismo; preconceito racial; movimento negro; Congresso Nacional; debate racial pós-Segunda Guerra Mundial. ABSTRACT This article analyzes the context in which the first bill against racial discrimination in Brazil, proposed by Representative Afonso Arinos de Melo Franco in the early 1950s, was formulated and approved. It explores the law’s diverse reception; its trajectory in Congress; the contemporary racial debate; and, finally, the meaning and justification of the bill, according to Arinos. By turning racial prejudice into a criminal matter, with legal punishment, Arinos sought to shift the racial question from a political debate to a moral issue. The fight against racism, once translated into ethical mores inspired by the traditional view of a racially harmonic country, should inhibit the rising atmosphere of racial conflict rather than recognize the Black movement’s sociopolitical demands. Keywords: Afonso Arinos Law; anti-racism; racial prejudice; Black movement; National Congress; post-WWII racial debate. Artigo recebido em 29 de outubro de 2012 e aceito em 16 de maio de 2013. * Doutora em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, professora associada da Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista de produtividade científica do CNPq, nível 2. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. ** Doutor em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, pesquisador e professor da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, bolsista de produtividade científica do CNPq, nível 1D. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 33-45 | www.revistatopoi.org 33 O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco Monica Grin e Marcos Chor Maio Em 5 de julho de 1951, o jornal O Globo publicou uma matéria sobre a recém-aprovada Lei no 1.390,1 que tornava contravenção penal a discriminação racial e que ficou conhecida pelo nome de seu autor, o deputado federal pela UDN, Afonso Arinos de Melo Franco.2 Não havia na trajetória de Afonso Arinos de Melo Franco — como intelectual, parlamentar, jurista — maiores evidências de que nasceria de seu mandato, como deputado federal no Congresso nos anos de 1950, a primeira lei contra o preconceito racial no Brasil, especialmente em meio a uma intelligentsia que pensava o Brasil como um país racialmente harmônico. Quase duas décadas antes, em 1934, Arinos publicou Preparação ao nacionalismo (carta aos que têm vinte anos), inspirado nos Protocolos do Sábio de Sião, brochura apócrifa e, pode-se dizer, maior expres- são do antissemitismo moderno, ao atualizar o mito da conspiração mundial judaica.3 O curioso é que Afonso Arinos, um pensador antissemita nos anos 1930, transformara-se, nos anos de 1950, no mentor de uma lei que rejeita a raça como critério de discriminação na sociedade brasileira. A afirmação da igualdade de todos perante a lei, independentemente da raça ou da cor, do sexo ou da religião, presente na Constituição à época, deveria agora ser respeitada, por meio de lei específica, em lugares públicos, em estabelecimentos comerciais e no funcionalismo público.4 Pela primeira vez o preconceito foi objeto de penalização no país através de lei específica. O que teria levado o jovem intelectual com convicções antissemitas nos anos 1930 a se tornar autor nos anos 1950 de uma lei antirracista? Em suas memórias de 1965, Arinos justificaria essa aparente ambiguidade nos seguintes termos: Desde os dias em que, antinazistas apaixonados, Virgílio e eu acompanhávamos ansiosos as monstruosidades praticadas na Europa pela camarilha hitleriana em nome da religião racial, uma repugnância crescente me invadia contra o racismo. As tinturas antissemitas que me haviam perturbado o espírito quando da composição da Preparação ao Nacionalismo na mocidade tinham desaparecido completamente.5 A justificativa de Arinos, presente em suas memórias de 1965,6 é apenas parte da história. Este artigo tem como objetivos: 1) explorar algumas versões que tentaram dotar de sentido a ini- ciativa de Arinos, tanto no contexto de feitura da lei, quanto depois; e 2) mapear, no contexto da apro- vação da Lei no 1.390, o debate racial em suas configurações normativa, político-jurídica e legislativa. Partimos da hipótese de que, ao transformar o preconceito racial em objeto de punição sob penas da lei, Arinos procurou esvaziar as potencialidades do conflito político da questão racial ao deslocá-la para 1 A lei Afonso Arinos foi aprovada pelo Congresso Nacional em 3 de julho de 1951. 2 Oriundo de tradicional família política mineira, Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) formou-se em direito, exercendo a carreira de advogado, político e jornalista. Foi um dos fundadores da União Democrática Nacional (UDN) em 1945 e deputado federal a partir de 1947, após a promulgação da nova Constituição. Além dos diversos mandatos parlamentares, Afonso Arinos desempenhou, ainda, as funções de professor, diplomata e ministro das Relações Exteriores. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/afonso_arinos>. Acesso em: 5 jan. 2013. Ver também a biografia de Afonso Arinos em ABREU, Alzira A. et al. (Org.). Dicionário histórico biográfico brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: FGV, 2001. 3 Sobre o antissemitismo no Brasil republicano, ver: LESSER, Jeffrey. O Brasil e a Questão Judaica: imigração, diplomacia e preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995. 4 A Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951, é bastante sucinta em sua tipificação e se detém em punir atos de discriminação em ambientes públicos e estabelecimentos comerciais. Não é uma lei que promova compensação para vítimas de atos racistas, mas sim uma lei que criminaliza e pune com multa os agentes de tais atos. Em seu art. 1o encontra-se o motivo da lei: “Art 1o Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de en- sino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor.//Parágrafo único. Será considerado agente da contravenção o diretor, gerente ou responsável pelo estabelecimento”. Coleção de Leis do Brasil. 1951. v. 5, p. 11. 5 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A escalada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. 6 Ibid. Topoi, v. 14, n. 26, jan./jul. 2013, p. 33-45 | www.revistatopoi.org 34 O antirracismo da ordem no pensamento de Afonso Arinos de Melo Franco Monica Grin e Marcos Chor Maio o plano da moral. A luta contra o racismo, traduzida nos termos de um imperativo moral, como um dever ser, como objeto de normalização da sociedade brasileira, perderia a força com que vinha sendo conduzida pelo Movimento Negro, especialmente após os debates constituintes de 1946, por meio dos quais esse Movimento se fez representar; e pela pesquisa sociológica que avançava em suas denúncias contra a versão disseminada no senso comum de que o Brasil era um paraíso racial e que a sociedade desfrutava de harmonia racial. A recepção da lei Há uma versão comumente aceita acerca da motivação que teria levado Afonso Arinos a elaborar a Lei no 1.390, de 3 julho de 1951. Trata-se de um evento de preconceito racial na cidade de São Paulo. Em episódio amplamente divulgado na imprensa, a bailarina norte-americana Katherine Durham teria sido impedida, em razão de sua cor, de se hospedar em um hotel em São Paulo, trazendo “à baila o tema do racismo no Brasil, provocando o pronunciamento e a repulsa da Câmara dos Deputados”.7 Em princípio, a elaboração da lei, motivada por um evento contingente, como a manifestação singular de um preconceito racial “inesperado” contra uma negra americana na cidade de São Paulo, não se justificava, para os seus críticos, pois não haveria evidências contundentes de que o Brasil era realmente um país racista. Havia ainda a acusação, em pleno contexto das eleições de 1950, de que a lei não passava de uma estratégia julgada demagógica.8 Outra restrição dizia respeito à inocuidade da proposta na medida em que seria um tipo de lei de rara aplicação, justo por se mostrar incompleta nas tipificações legais do preconceito racial.9 Foi considerada, ademais, uma lei sem clamor público e cuja elaboração não passava de uma inicia- tiva individual como resposta a situações particulares.10 Foi tida como insuficiente “para transformar a mentalidade racista”, até por companheiros de partido, como o sociólogo e deputado federal Gilberto Freyre (UDN-PE). Nas palavras de Freyre: ao projeto Afonso Arinos deve-se juntar uma verdadeira campanha antirracista para qual muito pode concorrer a imprensa brasileira. Numa tal campanha deve-se pôr em relevo o que há de antibrasileiro, antidemocrático e anticristão, tanto no racismo da direita quanto no racismo da esquerda que se tenta desenvolver entre nós.11 Em Freyre, observam-se duas apreciações sobre o projeto.
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