Reflexões E Polêmicas Em Torno De Um Destino Turístico Revista Brasileira De Ciências Sociais, Vol

Reflexões E Polêmicas Em Torno De Um Destino Turístico Revista Brasileira De Ciências Sociais, Vol

Revista Brasileira de Ciências Sociais ISSN: 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Freire-Medeiros, Bianca A favela que se vê e que se vende: reflexões e polêmicas em torno de um destino turístico Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 22, núm. 65, outubro, 2007, pp. 61-72 Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10706506 Como citar este artigo Número completo Sistema de Informação Científica Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE Reflexões e polêmicas em torno de um destino turístico* Bianca Freire-Medeiros Introdução focaliza as experiências narradas pelos turistas ou as opiniões dos favelados, mas investiga o papel A atividade turística dispõe-se em imbrica- desempenhado por empresários, ONGs, lideran- ção com vários setores – econômico, social, ças comunitárias e agentes públicos no processo ambiental, político e cultural –, porém há muito de transformação da favela carioca em atração 1 os cientistas sociais privilegiam o tema da acultu- turística. ração e das dinâmicas de recepção. Reflexões Como os promotores turísticos convencem sobre a responsabilidade dos agentes promotores potenciais clientes a visitar um lugar associado à pobreza – e em grande medida à violência – na conformação de desejos e fantasias que mol- como a favela carioca? Que mecanismos discursi- dam o produto turístico como tal são sintomatica- vos e práticos precisam ser acionados para viabi- mente escassas. A contrapelo, este artigo não lizá-la como atração turística? Como as atividades turísticas nas favelas se relacionam com produ- * Uma versão anterior deste artigo foi apresentada ções midiáticas e outras práticas de contato trans- no 30º Encontro Anual da Anpocs. Aos partici- nacionais? Para responder essas questões, propo- pantes do ST ST07 – Modernidade, cultura e entre- nho inserir o processo de construção da favela tenimento, em particular a Maria Celeste Mira, agradeço os comentários e sugestões. como destino turístico em um duplo contexto: na conjuntura de expansão dos chamados reality tours mundo afora; e no fenômeno de circulação Artigo recebido em outubro/2006 e consumo, em nível global, da favela como tra- Aprovado em agosto/2007 demark, como um signo a que estão associados RBCS Vol. 22 nº. 65 outubro/2007 62 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 65 significados ambivalentes que a colocam, a um só lhes é dada a possibilidade de formular sua pró- tempo, como território violento e local de auten- pria trajetória e a de sua sociedade, como ocorria ticidades preservadas. durante as peregrinações do medievo: na expe- riência turística estariam condensados, portanto, sentidos e valores anteriormente vinculados àque- Os chamados tours de realidade la experiência religiosa vivida como encontro com o autêntico. Creio, porém, que no novo milê- There are plenty of people saying “I must go to the nio, já não se trata de uma autenticidade transcen- Algarve”, or “to Corfu”, or “to Marbella”, places to which every decent person […] went at least once. dental, mas outra que se inscreve em um territó- But the tourist industry can’t settle for that. New rio colonizado por referências midiatizadas e business must be created, and created daily. apela não para o contemplativo, mas para o inte- And the sky is the limit once wish takes over. rativo – é o que os agentes turísticos anunciam Z. BAUMAN2 como hands-on experiences. Nas práticas turísticas ditas alternativas, de Zigmunt Bauman (1997) lança mão das maneira geral, as noções de autenticidade e inte- metáforas do “turista” e do “vagabundo” para ilus- ração reaparecem investidas de um capital sim- trar o caráter líquido da modernidade que torna bólico ausente no turismo de massas (Carneiro e “turística” a vida cotidiana. Quedar-se em um lugar Freire-Medeiros, 2004). No caso dos tours de rea- temporariamente, viver a sensação de não per- lidade, esta premissa é levada ao paroxismo. A tencimento, estabelecer laços frouxos com o ter- possibilidade de vivenciar as emoções do Outro – ritório e encontros pontuais com outros indivídu- entidade potencialmente tão diversa quanto os os: os sujeitos contemporâneos vivem, queiram ou aborígines da Austrália, as vítimas do Holocausto não, a “síndrome de turista”. Quando não vivem e os favelados cariocas – é o que asseguraram os essa síndrome, estão sob jugo de algo ainda pior: promotores. Para efeito de análise, divido os rea- a condição de “vagabundos”. Imagens especulares lity tours em dois tipos ideais: “tours sociais” e invertidas do turista, os exilados, os imigrantes ile- “tours sombrios”. gais, os sem-teto, não podem e não ficam em Tendo como destino localidades em desvan- determinado lugar o quanto desejam – apenas o tagem econômica, os “tours sociais” vendem par- quanto ali forem desejados. ticipação e autenticidade, conformando um sub- Se, na vida cotidiana, os sujeitos já se portam campo do turismo de realidade chamado de pro- como turistas, viagens são empreendidas em busca poor tourism ou pitty tourism. Global Exchange, exatamente do quê? No trecho que serve de epí- organização não-governamental sediada na Cali- grafe, Bauman sugere que viajamos no intuito de fórnia, inaugurou a comercialização dos tours so- nos diferenciarmos. No processo, a prática do turis- ciais em inícios da década de 1990. Em julho de mo emerge inesperadamente em localidades que 2006, anunciava: são reinventadas em suas premissas históricas e estéticas: as slums de Calcutá, os campos de guerra Global Exchange convida: Venezuela – Trabalho, no Camboja, o Ground Zero em Nova York. O que Reforma Agrária e Agricultura (Preço: U$ 1,250,00 desde Caracas). Nesse reality tour único, partici- estas localidades, aparentemente tão díspares, têm pantes terão experiências práticas [hands-on- em comum que as torna capazes de atrair levas de experiences] e se aproximarão das pessoas [build turistas? Arrisco sugerir que seja a capacidade de people-to-people ties] desde Caracas até os plan- mobilizar emoções intensas e extremas, que vão tadores de café nos Andes [...] (grifos meus). além do contemplativo e se sustentam a partir dos pilares da autenticidade e da auto-realização. Hoje é crescente o envolvimento estratégico Dean MacCannell (1992 [1976]) sugere que a de organizações como The Center for Global explosão de diferenças do mundo hodierno leva Education3 e Where there be dragons,4 entre ou- os indivíduos a viajar para lugares idealizados co- tras. Partem da premissa de que, se é impossível mo autênticos, pertencentes a outras culturas ou abolir o turismo, urge transformá-lo em uma a um passado mitificado. Na condição de turistas, indústria mais justa. Previsibilidade, controle, con- A FAVELA QUE SE VÊ E QUE SE VENDE 63 forto e eficiência – pilares do turismo convencio- autênticas em destinos cujo apelo reside na antí- nal – cedem lugar aos valores da individualidade, tese daquilo que se convencionou tratar como da flexibilização e da auto-realização. “turístico”. Comercializada como rememorativa, Difícil não pensar em algumas das teses de educacional e/ou de entretenimento, essa moda- Richard Sennett (1988). Para o autor, a esfera lidade turística atrai pessoas ávidas por consumir pública é tomada, no mundo contemporâneo, mortes, desastres e misérias espetacularizadas. como injusta e devoradora, provocando o desejo Para este tipo de prática, Lennon e Foley (2002) de refúgio em um espaço íntimo e acolhedor. A criaram o termo dark tourism. valorização do espaço e da experiência da intimi- A complexidade dos tours de realidade – dade leva a política moderna a incorporar, na quer sociais ou sombrios – deve-se, sobretudo, ao legitimação do homem público, valores como a fato de seu objeto de consumo não ser algo óbvio autenticidade, “resultado da superposição do ima- e tangível. Articulam-se, nos reality tours, dois ginário privado sobre o imaginário público” domínios – dinheiro e emoções –, cuja superpo- (1988, p. 41). Esta “fixação na autenticidade” ga- sição a moralidade ocidental define como incon- nha impulso a partir das lutas contra a repressão gruente e agramatical. Não por acaso, provocam e a discriminação nas décadas de 1960 e 1970, calorosos debates, em particular aquele em torno quando o discurso político passa ser marcado da pertinência ética de se fazer da miséria alheia pela ênfase na expressão dos sentimentos: era mercadoria. preciso tudo dizer, em qualquer lugar, em nome Argumento que a favela comercializada co- da autenticidade. Paralelamente, aprofunda-se um mo atração turística condensa as premissas dos sentimento de nostalgia diante do autêntico, que dois tipos de tours de realidade: ao mesmo tempo só pode ser recuperado a partir de um duplo em que permite engajamento altruísta e politica- movimento: mediante interações face-a-face e a mente correto, motiva sentimentos de aventura e revalorização das culturas “não contaminadas” deslumbramento. É a experiência do autêntico e pelo racionalismo ocidental. do exótico, do risco e do trágico em um único Mas se essas experiências turísticas preten- lugar. No item que se segue, examino como este dem transformar turistas do Primeiro Mundo em território da imaginação veio a ser. sujeitos sensíveis aos problemas da “periferia”, é possível dizer o mesmo de outras tantas expe- riências de contato igualmente comercializadas A circulação da favela como reality tours? Hoje, são mais e mais fre- como trademark qüentes os passeios a localidades trágicas rein- Yo fui a los morros de día y de noche y solo tuve ventadas como atrações turísticas: Sniper’s Alley que cruzarme con gentes educadas que al pasar me em Sarajevo, os campos radioativos de Cher- saludaron amablemente. nobyl, os túneis Viet Cong (devidamente alarga- JOSÉ CASAIS (1940, p. 14) dos para acomodar o número crescente de visi- tantes estrangeiros).

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