REVISTA BRASILEIRA 61-Duotone.Vp

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Guardados da Memória Casa Grande & Senzala* Afonso Arinos de Melo Franco Quinto ocupante da Cadeira 25 na Academia Brasileira de Letras. ma das coisas que mais impressionam na crítica brasileira é Ua sua irresponsabilidade. Qualquer moço, bem ou mal in- tencionado, senta-se à mesa com o livro à frente, e assegura coisas in- cisivas, enfáticas e peremptórias, a propósito do volume, que não leu, e do autor, que não conhece. Parece-me que este hábito vem do jornalismo, que é, também, feito dentro da mesma escola. Os que se ocupam da crítica são, em geral, jornalistas e herdam da profissão a ligeireza, a ousadia e a irresponsabilidade, advindas do anonimato. Se um mequetrefe incompetente pode combater um programa fi- nanceiro, um tratado internacional, um plano de estrada de ferro, com a mais ingênua das insolências, porque não poderá, também, julgar um livro, demolindo-o ou endeusando-o, segundo o seu capricho? Daí, a confusão absoluta de categorias e de níveis no julgamento das nossas produções literárias. Os mesmos adjetivos, as mesmas * FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Gilberto Freire É Espelho de Três Faces. São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 1937, pp. 160-172. 323 Casa Grande & Senzala Afonso Arinos de Melo Franco afirmações, são empregados às vezes para obras de valor totalmente distinto e de significação completamente diferente. O autor de um romance escandaloso e mundano que pode e deve vender mui- to, mas que não pode nem deve ser tratado com consideração pela alta crítica, é aquinhoado com os mesmos adjetivos de “homem culto”, “escritor eminente” etc., que se aplicam, com justiça, a um Rodolfo Garcia, um Paulo Prado, um Gil- berto Freire. Não sei se este meu amigo pernambucano já publicou outro livro antes de Casa Grande & Senzala. Acredito que não, porque, então, eu teria dele conheci- mento, como tenho de trabalhos seus esparsos, ou estampados em revistas e coletâneas literárias ou de outra natureza. Por isso, estou aqui a ver vários críticos que chamarão Gilberto Freire de “rútila esperança”, o seu livro de “promissora estreia”, ou outros, mais adian- tados, que dirão que ele “já deixou de ser uma esperança para se afirmar uma esplêndida realidade”. Tal como se estivessem criticando um volumezinho de crônicas mais ou menos mundanas, ou um romance suficientemente obsceno, para gáudio dos ginasianos e das mocinhas praieiras. Ou, mesmo, algum poeti- nha de caixa de pó de arroz. Não sei se Gilberto Freire se aborrece com esta falta de noção das diferenças e perspectivas. A mim confesso que é o que mais me irrita na análise que fazem dos meus trabalhos. Prefiro que falem mal, arrasem. Prefiro, mesmo, que não falem nada, que se diz ser o pior de tudo, mas que, francamente, não é tão ruim assim. Além desta falta de compreensão das categorias intelectuais, irrita-me, tam- bém, muito, nos críticos, um certo jeito de dar por assentadas, por pacíficas, as ideiazinhas pessoais deles, e de julgarem, assim, de plano, as do autor. Não consigo me explicar bem sobre esse ponto. Quero me referir aos homens que dizem mais ou menos isto: “O Sr. Fulano é muito interessante, escreve muito bem. O seu livro é bem feito, embora não se possa estar de acordo com as suas ideias, ou com as suas conclusões” etc. E encerra a crítica sem dizer com quais ideias não se pode estar de acordo, ou quais são as outras ideias que derrotam essas com que se não pode concordar. Enfim, uma maçada! Não há nada mais 324 Casa Grande & Senzala fácil nem mais covarde do que o sujeito se escudar atrás de uma pretensa e ine- xistente unanimidade de opiniões contrárias às ideias do autor, e, assim, derru- bar malandramente o que ele afirma, sem apresentar nada que o substitua. “Não se pode concordar com o Sr. Fulano”. Muito bem. Mas com que dia- bo, então, se deve concordar, a propósito do assunto em questão? Eis aqui a pergunta que fica, sempre, sem resposta. Eu não sou tão “foca” em jornalismo como se pode supor. Na minha existên- cia, tenho feito vida de jornal várias vezes, é verdade que todas ocasionalmente ou de passagem. Mas já aprendi o suficiente para perceber que esses defeitos que estou imputando à crítica são resultado da vida de jornal, tal como se processa entre nós. O sujeito tem que escrever sobre um livro, sobre dez livros, sobre cin- quenta livros que deixou conscienciosamente de ler. Então, tapeia, diz coisas va- gas, lê o índice dos capítulos, faz considerações sobre ele e vai para o cinema. Mas eu não sou crítico de profissão. Por isso, não falo dos livros que não me interessam. E, dos que me interessam, falo em meu nome próprio, expri- mindo as reações que a sua leitura exerceu sobre mim, e não em nome de prin- cípios genéricos, ou de certezas impalpáveis. Eis o que pretendo fazer com Casa Grande & Senzala. Comentários pessoais, à margem de um grande livro. Grande é ele a começar pelas suas imponentes proporções. Volume sólido, belo, com uma capa austera e convincente. A gente já o abre com gosto e respeito, como se preparando para um longo e grave roteiro intelectual. De passagem, cha- marei a atenção de Gilberto Freire para a má revisão do seu livro. Não sei que dia- bo arranja o lírico Schmidt, editor, que as obras saídas de sua casa têm sempre má revisão. Disso me queixo eu, entre outros. E são desagradáveis esses choques em palavras mutiladas, aleijadas. São como topadas nos pés alados do pensamento. Depois de falar da feição material do livro, que parece ter sido, realmente, construído para viver nos tempos, não posso deixar de fazer algumas observa- ções conexas, a propósito da língua em que ele foi escrito. Ninguém, mais do que eu, ama e admira o idioma brasileiro. Nele encontro graça, plasticidade, riqueza, naturalidade, identidade com o am- biente em que vivemos, sendo, talvez esta, a sua maior qualidade. Nele observo, 325 Afonso Arinos de Melo Franco também, coisa que muitos negam: sutileza e finura. Portanto, possibilidade inte- lectual. Mas considero que é indispensável manejá-lo com cuidado. A sua forma- ção rapidíssima, a prodigiosa receptividade que o distingue, imprimem à sua estru- tura elementos muitas vezes efêmeros. Modismos, gírias, que perdem o valor e o interesse em poucos anos. Por isso, parece-me que, num livro feito para durar no tempo, num livro escrito com sentido de permanência, como este de Gilberto Fre- ire, é mais prudente manejar a língua brasileira sem exageros, porque os exageros se vão, e o estilo fica avelhantado e precioso em curto espaço de tempo. Em obras puramente literárias, compreende-se o esforço de um Murilo Mendes, de um Manuel Bandeira. Trata-se de uma espécie de exercício militar da linguagem, de uma revisão de valores verbais, de uma experiência de materi- ais de construção, para se ver quais são os aproveitáveis e quais os desprezíveis. Numa obra como a de Gilberto Freire, porém, se a língua deve ser simples e nos- sa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas das suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que o seu assunto e as suas graves proporções não comportam. A linguagem de Gilberto Freire devia ter um pouco mais de dignidade. (Que ele não leve a mal este vocábulo, mas não encontrei outro que exprimisse melhor o meu pensamento). Sobretudo que não se suponha que eu seja algum purista asmático e intransigente. Ao contrário, faltam-me, infelizmente, bons conhecimentos da nossa língua, como os que possuem, por exemplo, Manuel Bandeira ou Rodrigo M. F. de Andrade. E faltam-me hoje, sobretudo, tempo para estudá-la como desejo. Apenas estou querendo salientar que o estilo, aliás, gostoso e agradável, que Gilberto Freire emprega no seu livro, era mais próprio para outro gênero de literatura que ele pratica tão bem quanto a socio- lógica: o de ficção. Será que Gilberto, homem civilizado, vai a um jantar de ce- rimônia com o mesmo traje sumário com que saiu para o tênis matinal? Outra observação que eu desejaria fazer era sobre a rapidez da composição do livro. Gilberto Freire acumulou conscienciosamente uma formidável bibliografia e leu-a com escrupulosa honestidade (Ele é um homem de bem). Mas tenho a impres- 326 Casa Grande & Senzala são de que escreveu sem descanso, sem fôlego, muito depressa, quase sem notas, pro- vavelmente sem fichas, que me parecem necessárias numa obra de tal amplitude. Oresultadoéqueagrandezaeariquezadolivroperturbameconfundemum pouco o leitor e ele tem que se esforçar, sozinho, para encontrar um rumo único e nítido e não perder o fio de Ariadne no meio daquele labirinto de fatos, de conheci- mentos, de observações, de sugestões, de críticas, de citações, de narrativas, de recor- dações, de conselhos clínicos, higiênicos, dietéticos, de anedotas bandalhas, contadas gravemente, com aquele quase-semi-sorriso de Gilberto, que eu conheço bem. Sabe o leitor o que me fez lembrar o livro, sob este prisma, e em ponto pe- queno? Rabelais. Sim, excusez de peu, Rebelais. Não é senão rabelaisiana aquela prodigiosa exposição de frades caprinos, de mulatas e índias que se deitam do- cilmente, de receita de doces, de vestuários, (até os íntimos!) de lutas, de doen- ças (venéreas e outras), de plantas de casas, castelos, engenhos, pomares, de atos de sodomia e bestialidade de rebanhos, amores e danças. Tudo bem agita- do, misturado, conserve-se em lugar fresco e tome-se quando convier! Ambiente pantagruélico, planturoso, feito de cultura e de malícia, pejado de conhecimentos e de instintos, de fábulas e observações científicas, de gran- dezas e ingenuidades.

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