A Arte De Correr Na Chuva

A Arte De Correr Na Chuva

Apresentação Querido leitor, No verão de 1986, tive o imenso prazer de participar do Grande Prêmio de Fórmula 1 de Detroit. Estava acompanhando um amigo que tinha acesso a todos os lugares do circuito. Lembro-me de ter ficado atrás de uma barreira de concreto, maravilhado com quão pequenos, embora incrivelmente poderosos, os carros de Fórmula 1 eram. Tão rápidos e tão perto — a apenas um braço de distância... Um piloto era, obviamente, mais rápido que os outros. Ele largou na pole position e, depois de perder muitas posições por causa de um problema no pneu, retomou a liderança e venceu a corrida. Lembro-me de ter visto seu capacete verde passando. Nunca tive o prazer de conhecer Ayrton Senna, mas tive o prazer de assistir à sua corrida... e de vê-lo vencer de maneira gloriosa. Sou fã de Fórmula 1 desde menino e sempre gostei muito de assistir às corridas na teve. Mas não há nada como ser fisgado. O cheiro, o som. Já participei de corridas em clubes, e estar dentro de um carro potente faz a adrenalina ficar a mil. São estes os sentimentos que tentei capturar em A Arte de Correr na Chuva. Quando o personagem Enzo surgiu na minha mente e começou a conversar comigo, percebi que era a voz perfeita para conduzir estes sentimentos. Um cachorro é um observador elementar. Não tendo como pronunciar palavras, analisa tudo o que está à sua volta. Os sentidos de um cão são apuradíssimos. Seu foco é singular. Enzo, o cachorro do meu romance, é um verdadeiro estudante do mundo ao seu redor. E também um fã devoto da Fórmula 1. Seu herói? Ayrton Senna, claro! Escrever este livro foi mágico para mim. Estou comovido por saber que pessoas em todo o mundo irão, em breve, ter contato com Enzo e sentirão a mesma alegria lendo sobre ele como me senti escrevendo a respeito dele. E estou especialmente grato por meu livro ser publicado no Brasil, pela incrível equipe da Ediouro, que sei é tão apaixonada quanto eu pelo livro A Arte de Correr na Chuva. Minhas saudações, GARTH STEIN Prezado leitor Ayrton fez história. E uma história que não se resumiu às pistas de corrida. A trajetória de meu irmão ajudou o País a ser mais conhecido e respeitado pelo público internacional. De outro lado, alimentou no nosso povo um lado determinado, que supera desafios todos os dias para vencer. Sendo piloto de F1, o tricampeão fez a sua parte. Ele emocionou e uniu toda uma nação em torno do sonho de um Brasil renovado. Garra, determinação e superação são alguns dos valores que ele seguiu na vida e nas pistas. De cada erro, fez uma nova oportunidade para aprender e se superar. Depois de perder a liderança em uma corrida por causa da chuva, Ayrton decidiu que não deixaria, mais uma vez, que isso atrapalhasse seu desempenho. Determinado, treinou exaustivamente até atingir a perfeição. E passou a ser conhecido como o "Rei da Chuva". Seu jeito insistente de ser atraiu e influenciou pessoas em todo o mundo. Pessoas como Garth Stein, que conheceu apenas o Ayrton das pistas e se inspirou em sua coragem e talento para escrever, com tanta sensibilidade, esta obra. Este livro aborda a importância das experiências provenientes do nosso aprendizado diário. A importância de se doar, de acreditar em um ideal. Que cada leitor se identifique com algum ponto desta história e que não perca nunca a vontade de aprender e voar cada vez mais alto. VIVIANE SENNA Presidente do Instituto Ayrton Senna. Com o poder da sua mente, determinação, instinto e experiência, você pode voar muito alto. AYRTON SENNA Para Muggs 1 Os gestos são tudo que eu tenho; às vezes precisam ser de natureza ampla. E, apesar de passarem dos limites em algumas ocasiões e parecerem melodramáticos, são o que tenho para me comunicar claramente. Para me fazer entender sem que reste nenhuma dúvida. Não posso contar com as palavras, pois, horror dos horrores, minha língua é comprida, lisa e descoordenada, sendo, portanto, um instrumento absolutamente ineficiente para empurrar a comida dentro da minha boca enquanto mastigo, e ainda menos eficiente para produzir sons inteligentes e polissilábicos complexos que possam se unir para formar sentenças. E é por isso que estou aqui agora, esperando Denny chegar em casa — ele deverá chegar logo —, deitado nos ladrilhos do piso frio da cozinha em uma poça de minha própria urina. Estou velho. E, embora esteja em condições de ficar ainda mais velho, não é assim que desejo ir embora. A base de injeções com remédios para a dor e esteróides para diminuir o inchaço das juntas. A visão nublada pela catarata. Tenho certeza de que Denny me daria um daqueles carrinhos que já vi na rua, aqueles que apóiam os quadris de modo que o cachorro consiga arrastar o traseiro quando as coisas começam a ficar realmente preocupantes. É uma situação constrangedora e degradante. Não sei se é pior do que vestir um cachorro com roupas de Halloween, mas está perto. Ele faria isso por amor, é claro. Tenho certeza de que faria qualquer coisa para me manter vivo pelo máximo tempo possível, com meu corpo se deteriorando, se desintegrando, se dissolvendo até que não restasse mais nada além do meu cérebro flutuando em um vidro cheio de líquido transparente, os globos oculares boiando na superfície e todos os tipos de cabos e tubos alimentando o que restasse. No entanto, eu não quero que me mantenham vivo. Porque sei o que vem depois. Eu vi na televisão. Um documentário sobre a Mongólia. Foi a melhor coisa que já vi na televisão, tirando o Grande Prêmio da Europa de 1993, é claro, a maior corrida de todos os tempos, em que Ayrton Senna mostrou que era um gênio na chuva. Depois do Grande Prêmio de 1993, o melhor programa a que assisti na televisão foi um documentário que explicava tudo, esclarecia pormenores, dizia toda a verdade: quando um cachorro termina a vida como cachorro, sua próxima encarnação será como homem. Sempre me senti quase humano. Sempre soube que havia algo em relação a mim que era diferente dos outros cachorros. Certo, estou preso no corpo de um cachorro, mas trata-se apenas da carcaça. O que está dentro é que é importante. A alma. E a minha alma é muito humana. Agora estou pronto para me tornar um homem, apesar de saber que perderei tudo que fui. Todas as minhas lembranças, toda a minha experiência. Gostaria de levá-las comigo para a minha nova vida — vivi tantas coisas com a família Swift... — contudo não sou eu quem determina essas coisas. Que mais posso fazer senão me forçar a lembrar? Tentar gravar o que sei em minha alma, algo que não tem superfície, não tem lados, páginas ou forma de qualquer tipo. Levar as lembranças tão entranhadas nos bolsos da minha existência que, ao abrir os olhos e baixar o olhar para minhas novas mãos, com polegares capazes de se fechar em volta dos meus dedos, eu saberei. Já terei visto. A porta abre e ouço seu chamado familiar: — Ei, Zo! Normalmente não resisto e deixo a dor de lado. Fico em pé, abano o rabo, penduro a língua e enfio o focinho no meio de suas pernas. E preciso ter força de vontade como a dos humanos para me controlar numa situação dessas, mas eu consigo. Eu me controlo. Não levanto; estou atuando. — Enzo? Ouço os passos, a preocupação em sua voz. Ele me encontra e olha para baixo. Levanto a cabeça, abano o rabo debilmente e o deixo ir ao chão. Cumpro meu papel. Ele balança a cabeça e passa a mão pelo cabelo. Coloca de lado a sacolinha do mercado com seu jantar. Dá para sentir o cheiro de frango assado que vem de lá. Esta noite ele vai comer frango assado e salada de alface. — Ah, Enz — ele suspira. Ele estende o braço, agacha, toca a minha cabeça, passa a mão na dobra atrás da orelha, e eu levanto a cabeça. Dou uma lambida em seu braço. — O que foi que aconteceu, garoto? — ele pergunta. Os gestos não bastam para explicar. —Você consegue se levantar? Eu tento e me atrapalho. Meu coração vai a mil, dispara, porque não, não consigo. Entro em pânico. Pensei que estivesse apenas fingindo, mas não consigo mesmo levantar. Merda. É a vida imitando a arte. — Calma, garoto — ele diz com a mão no meu peito para eu me acalmar. — Peguei você. Ele me levanta com facilidade, me carrega, e consigo sentir o cheiro do seu dia em seu corpo. Posso sentir tudo que ele fez. Seu trabalho, a loja de automóveis onde ele passa o dia inteiro atrás do balcão, em pé, sendo gentil com os clientes que gritam com ele porque seus BMWs não estão funcionando perfeitamente e eles gastam muito para mandar consertá-los; por isso ficam irritados e precisam gritar com alguém. Posso sentir o almoço. Ele foi até seu restaurante indiano preferido. Comida à vontade. Tudo que você conseguir comer. É barato, e às vezes ele leva um potinho e pega umas porções extras de frango assado em tandoor e arroz amarelo, e traz para o jantar. Dá para sentir o cheiro de cerveja. Ele parou em algum lugar. O restaurante mexicano no alto da colina. Posso sentir o cheiro de tortilla em seu hálito. Agora tudo faz sentido. Normalmente, tenho excelente percepção logo no primeiro contato, mas não estava prestando atenção por causa das minhas emoções. Ele me coloca gentilmente na banheira e liga aquela coisa de lavar com a mão.

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