IMPRESSÕES SOBRE O MEIO ARTÍSTICO NACIONAL NAS CARTAS DE RODOLPHO BERNARDELLI, DIRETOR DA ENBA, A ELISEU VISCONTI, PENSIONISTA EM PARIS Ana Maria Tavares Cavalcanti O que a leitura de seis cartas enviadas por Rodolpho Bernardelli (1852-1931) a Eliseu Visconti (1866-1944) entre 1894 e 1896 pode acrescentar ao nosso conhecimento sobre o meio artístico brasileiro do final do século XIX? Guardemos essa pergunta em mente, voltaremos a ela. Antes, porém, gostaria de fazer algumas considerações sobre o uso desse material como fonte de pesquisa. Quando lemos cartas trocadas entre personagens que hoje fazem parte da história nacional, temos a impressão de entrar na intimidade desses indivíduos, vislumbrar suas ideias as mais pessoais e ter acesso a pensamentos que eles não exporiam em jornais ou documentos públicos. Ou seja, temos a ilusão de que aí se revelam verdades com uma sinceridade sem disfarces. No entanto, como é sabido, e bem observou a historiadora Rebeca Gontijo, devemos “desconfiar daquilo que aparece como espontâneo, autêntico e verdadeiro, não para descartá-lo, mas para problematizá-lo”, pois “a correspondência (como outros documentos) tanto é um ato individual quanto é uma prática social, sujeita a regras e códigos que precisam ser considerados”.I No caso da correspondência entre Rodolpho Bernardelli e Eliseu Visconti, o aspecto da prática social sujeita a regras é fato, pois a troca dessas cartas fazia parte de um processo pedagógico institucional, como veremos. Portanto, ao estudar esses documentos, fiquemos atentos ao tom da escrita. Que tipo de relação se estabelece aí? Observemos também a seleção dos assuntos abordados, percebendo quais temas sempre se repetem a cada nova carta, e como são tratados pelos missivistas. Infelizmente, até o momento, conhecemos apenas as cartas enviadas por Rodolpho a Eliseu. Não temos acesso à correspondência completa e só podemos deduzir o conteúdo das cartas escritas por Visconti a partir das respostas que recebeu. De todo modo, comecemos nosso estudo com seis cartas que estão no arquivo do Museu Nacional de Belas Artes.II Elas não são as únicas missivas de Bernardelli a Visconti conservadas no museu,III mas foram selecionadas para nosso estudo por se inserirem no período de pensionato de Visconti na Europa (1893-1900). As seis foram escritas no Rio de Janeiro, nas seguintes datas: • 1a – em 10 de dezembro de 1894, • 2a – em 23 de dezembro de 1894, • 3a – em 8 de agosto de 1895, • 4a – em 8 de setembro de 1895, • 5a – em 1o de novembro de 1895, • 6a – em 24 de abril de 1896. Rodolpho Bernardelli e Eliseu Visconti se conheceram na Academia Imperial das Belas Artes, provavelmente em 1885, ano em que Visconti se matriculou como aluno e Bernardelli foi empossado professor. Em 1890, participaram da mobilização que agitou o meio artístico carioca. Estimulados pela proclamação da República que ocorrera em novembro de 1889, parte dos professores e alunos pedia a reforma da Academia.IV Após a reforma decretada no final de 1890,V Bernardelli assumiu a Direção da agora chamada Escola Nacional de Belas Artes. Dois anos mais tarde, em 1892, Visconti venceu o concurso para Prêmio de Viagem destinado aos alunos da Escola, partindo para a Europa no final Ana Maria Tavares Cavalcanti 161 de fevereiro de 1893 e se estabelecendo em Paris. Como era de praxe, uma de suas obrigações como pensionista era escrever com frequência ao Diretor da ENBA, comunicando-lhe o andamento de seus estudos. Portanto, conforme mencionamos, um caráter institucional está na origem dessas cartas. A relação diretor-pensionista está presente na atitude assumida por Rodolfo Bernardelli ao longo da correspondência. Ele procura orientar Visconti, incentiva sua participação nos Salões de Paris e do Rio de Janeiro, e não o deixa esquecer de suas obrigações, entre outras a de mantê-lo informado sobre suas atividades. Na verdade, o regulamento de 1892 é omisso sobre essa obrigaçãoVI, mas em alguns trechos, Bernardelli deixa muito claro que essa era uma das tarefas dos pensionistas. Em sua carta de 8 de setembro de 1895, por exemplo, se queixa por não ter recebido notícias de Rafael Frederico (1865- 1934) que recebera o prêmio de viagem de 1893, e tampouco de Bento Barbosa (?-?), laureado em 1894. Rafael e Bento estudavam em Roma quando o Diretor escreveu a Visconti: Dos pensionistas que estão em Roma nada sei. Isso não me admira, o Raphael nunca soube escrever e sempre pareceu dar-nos a honra de sua consideração. O B. Barboza seguirá o mesmo; comigo eles poderão fazer essas faltas, porque eu sou superior a essas ninharias que só provam a falta de educação, mas com meu sucessor eles verão o que lhes acontecerá.VII Dois meses mais tarde, Bernardelli escrevia novamente: “Do Frederico nunca recebi ofício algum!... do Bento Barboza recebi participação que tinha chegado.”VIII Vê-se que embora afirmasse ser “superior a essas ninharias”, não estava contente com a ausência de notícias. O “sucessor” ao qual se refere era Rodolpho Amoêdo, Vice-diretor da Escola. Sobre Amoêdo, Bernardelli menciona sua rigidez na cobrança dos deveres dos alunos. Em 23 de dezembro de 1894, diz a Visconti: “Prepare-se a sofrer o jugo do novo diretor Jacobino […]. Faltará ao meu sucessor a grandeza de vista, a nobreza d’alma; pelo que fez durante minha ausência posso prever funestos dias para a Escola e para os moços.”IX No entanto, sabemos que Amoêdo nunca foi Diretor, e Bernardelli permaneceu no cargo até 1915, completando 25 anos na Direção. A carta de 10 de dezembro de 1894, a mais antiga desse conjunto que se encontra no MNBA, não deve ter sido a primeira que Visconti recebeu, pois nessa data ele já estava na Europa há pouco mais de um ano e meio. Era assíduo na Academia Julian desde sua chegada em Paris, e lá realizou estudos de modelo-vivo que hoje fazem parte do acervo do Museu D. João VI da Escola de Belas Artes (UFRJ), pois eram envios obrigatórios de pensionista.X De outubro de 1893 a janeiro de 1894, frequentara a Ecole des Beaux-Arts;XI em seguida buscara os ensinamentos de Eugène Grasset, mestre do art-nouveau, inscrevendo-se em seu curso na École Imagem 1. Eliseu Visconti - A Leitura, 1893 ost – 38 x 47cm. XII Coleção particular. Fonte: www.eliseuvisconti.com.br Guérin que frequentaria até 1898. Ainda em 1894, além de estudar e se aperfeiçoar, Visconti expôs dois quadros no Salon des Champs Elysées, “A Leitura” e “No verão”. Essa última pintura, um estudo de nu, quando exposta no Rio no mesmo ano, recebeu uma “medalha de 2a classe” na Exposição Geral da Escola de Belas Artes. Conforme Bernardelli menciona na carta de 23 de dezembro, foi um dos trabalhos adquiridos para a Pinacoteca da ENBA ao final da Exposição.XIII Ana Maria Tavares Cavalcanti 162 “A Leitura” e “No Verão” são pinturas de caráter intimista. Nelas Visconti não mostra ações espetaculares e impressionantes, mas expressa a vida interior das personagens femininas, seja na concentração da leitura na primeira cena, ou no relaxamento e devaneio da segunda que parece estar entre a vigília e o sono. Mas voltemos às cartas. Como se percebe nos trechos já citados, o tom que aí transparece é muito franco. Em 1894 Bernardelli tinha 42 anos e Visconti 28. Ou seja, Bernardelli era catorze anos mais velho que Visconti, uma diferença de idade plausível entre dois irmãos, e rara entre um pai e seu filho. Isso torna compreensível o tratamento entre iguais, a troca de ideias entre um amigo experiente e outro mais jovem vivendo etapas pelas quais o primeiro já passou. A franqueza sem cerimônias também pode ser resultado da militância que ambos compartilharam em 1890. A movimentação pela reforma da Academia deve ter criado laços de companheirismo entre eles. Expressões de afeição e amizade De fato, em todas as seis cartas desse conjunto, Bernardelli reitera o sentimento de amizade. Inicia suas cartas com a expressão “amigo Visconti”, e se Imagem 2. Eliseu Visconti em seu ateliê em Paris despede como “amigo sincero”, “seu amigo”, “amigo com A Leitura Fotografia, autor desconhecido, 1894 dedicado”, “seu amigo e colega”. Também diz saber fonte: www.eliseuvisconti.com.br que Visconti é seu “afeiçoado”. Talvez essas expressões fossem simples fórmulas de cortesia. Contudo, algo mais confirma esse coleguismo. A cada carta, Bernardelli vai dando notícias dos amigos em comum. Em 23 de dezembro de 1894, informa que seu irmão Henrique e Modesto Brocos foram passar o verão em Teresópolis. Nessa mesma carta conta que Angelo Agostini prepara um novo jornal. Em 8 de setembro de 1895, comenta que Agostini está de partida para Paris, onde fará compras para o jornal “que está indo de vento em popa”.XIV Em uma ou outra carta, ao finalizar, envia “lembranças do amigo Brocos”, “lembranças do Angelo [Agostini] e Alberto [Nepomuceno]”. Sobre este último, em carta de 8 de agosto de 1895, relata o sucesso do concerto que o compositor e pianista realizara em 4 de agosto e comenta: “está o nosso bom amigo lançado”. Imagem 3. Eliseu Visconti Maestro Nepomuceno, Portanto, embora a correspondência entre 1895 fonte: www.eliseuvisconti.com.br Bernardelli e Visconti tivesse um caráter oficial, também foi um espaço de troca de notícias entre dois amigos artistas. Não se tratava de mera obrigação, e isso talvez explique a assiduidade com que Visconti lhe escrevia, enquanto os outros pensionistas pouco escreveram ao Diretor. Ana Maria Tavares Cavalcanti 163 Estímulo ao trabalho de Visconti Alguns assuntos estão presentes em todas as seis cartas aqui analisadas. Um deles é o interesse de Bernardelli pelos trabalhos de Visconti. Esse interesse se expressa em cobranças e conselhos. O Diretor pergunta sobre as atividades do pensionista, e o estimula a produzir.
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