Cora Coralina e Leodegária de Jesus 130 anos de nascimento N º 16, abril de 2020, ISSN 2179-2801 As instituições e o processo de “canonização” de Cora Coralina Institutions and the coralice cora “canonization“ process Thaise Monteiro1 RESUMO: Este artigo analisa os discursos, agentes e instituições responsáveis pelo processo de reconhecimento e canonização da poeta goiana Cora Coralina, com intuito de compreender o pa- pel e a importância desses agentes. Para tanto, elencamos as instituições que se envolveram nesse processo e levantamos a Fortuna crítica da autora, levando em conta a teoria do Sistema Literário, de Itamar Even-Zohar (1990), que considera que as relações sistêmicas determinam o status de certos autores e obras. Consideramos ainda que o valor estético da obra da autora é igualmente relevante nesse processo e constatamos que o caráter narrativo de sua poesia retoma o passado histórico da Cidade de Goiás, atrelando o valor de sua obra à construção identitária da cidade. Assim, é associada à construção identitária da Cidade de Goiás que as Instituições determinaram a canonicidade de Cora Coralina, graças às relações existentes no sistema literário. PALAVRAS-CHAVE: Instituição; Canonização; Poesia; Cora Coralina. ABSTRACT: This article analyzes the discourses, agents and institutions responsible for the pro- cess of recognition and canonization of the poet from Goiás, Brazil, Cora Coralina. The objective of this work is to understand the role and importance of these agents. For that, we will list the ins- titutions that were involved in this process and we will investigate the critical fortune about that author. We will also take into account the theory of the "Literary System" by Itamar Even-Zohar. Theorist who considers that systemic relations determine the status of some authors and literary works. Thus, we found that the aesthetic value of the author’s work was equally relevant in this process. We also perceive that the narrative character of her poetry resumes the historical past of the Cidade de Goiás, linking the value of her work to the identity construction of the town. In this way, the procedures of the literary system determined Cora Coralina's canonization precisely because her work is linked to the identity construction of the Cidade de Goiás. KEYWORDS: Institutions; Canonization; Poetry; Cora Coralina ¹ Thaise Monteiro possui Bacharelado em Letras, com habilitação em Estudos Literários (2011) e Licenciatura em Letras, com ha- bilitação em Língua Portuguesa (2011), ambas as graduações concluídas na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goi- ás, onde realizou o Mestrado (2014) e o Doutorado (2018) em Letras e Linguística na área de concentração dos Estudos literários. 46 ler.iiler.puc-rio.br Períódico L.E.R. - iiLer/PUC-Rio - RJ-Brasil Cora Coralina e Leodegária de Jesus 130 anos de nascimento N º 16, abril de 2020, ISSN 2179-2801 INTRODUÇÃO O termo canonização nos remete a um processo pelo qual um indivíduo morto passa, a fim de ser declarado santo, de acordo com regras e rituais determinados pela Igreja. Trata-se, portanto, de um termo comumente relacionado a princípios religiosos e, de fato, as primeiras utilizações da pa- lavra, de forma generalizada, remetem a uma série de Livros Sagrados listados pela Igreja Cristã. Posteriormente o conceito foi ampliado para uma seleção, uma lista de indivíduos e textos eleitos por uma sociedade, como detentores de valores universais e de critérios de medidas, que são por eles impostos a outros textos e indivíduos, de modo que o cânone apresenta um valor normativo. A literatura se apropriou do uso da palavra para designar obras de leitura obrigatória, “grandes” obras, obras “clássicas”, ou seja, um conjunto de obras e autores de reconhecido valor, dignos de serem transmitidos de geração em geração. Nesse sentido, o presente artigo, cujo tema é a importância das instituições no processo de canonização da poeta goiana Cora Coralina, ao tratar do que chama de “processo de canonização” da poeta, evidentemente não discute sobre um pro- cesso para torná-la santa, e sim sobre um processo de reconhecimento que a insere num cânone regional, da literatura goiana, e a estabelece, cada vez mais, como parte do cânone nacional bra- sileiro. Itamar Even-Zohar (1979, p.7) entende por canonizadas aquelas normas e obras literárias que, nos círculos dominantes de uma cultura, se aceitam como legítimas e são preservadas para que for- mem parte da herança histórica de uma comunidade, o que não quer dizer que definir uma obra como canônica seja um eufemismo para “boa literatura” frente a uma “má literatura”. Mas o que faz com que uma obra seja aceita como legítima e seja preservada como parte da herança histó- rica de uma comunidade? O que faz com que algumas obras façam parte de um cânone literário, e assim, ultrapassem a barreira do tempo e se eternizem na história ou permaneçam um longo tempo na cultura de um povo? Existe uma série de critérios e fatores, além dos estéticos, que influenciam no reconhecimento de uma obra ou de um autor como parte de um cânone, como críticos literários, editoras, periódicos, clubes e grupos de escritores, órgãos do governo, escolas, universidades, entre outros meios de comunicação de massa, que determinam quem e quais produtos serão recordados por uma so- 47 ler.iiler.puc-rio.br Períódico L.E.R. - iiLer/PUC-Rio - RJ-Brasil Cora Coralina e Leodegária de Jesus 130 anos de nascimento N º 16, abril de 2020, ISSN 2179-2801 ciedade, por tempo indeterminado. Esse conjunto de fatores consiste no que Even-Zohar (1990, p.12) chama de Instituição, elemento que compõe a sua teoria do Sistema Literário, segundo a qual o sistema é uma rede heterogênea e dinâmica composta por uma série de macrofatores: o produtor, o consumidor, o repertório, o mercado, o produto e a instituição. Esses elementos se relacionam e são interdependentes. No sistema, a canonicidade se manifesta mais concretamente no repertório, agregado a leis que regem a produção de textos, porém, não seria apenas o repertório a determinar o que pode ser canonizado ou não. Segundo Even-Zohar (1979, p.10), na Língua, não é o repertório linguístico que determina a canonicidade e sim o sistema, ou seja, o agregado de fatores que operam na socie- dade implicados na produção e no consumo de enunciados linguísticos, de modo que seriam as relações sistêmicas que determinariam o status de certas obras, em determinada língua. A Instituição dita as normas que prevalecem na atividade literária, aceitando alguns produtos e resistindo a outros, remunerando alguns produtores e penalizando outros. Para Cora Coralina, as relações entre os elementos que compõem o sistema são determinantes em seu processo de canonização. A possibilidade de consumo do produto literário é determinada por instituições, agentes e discursos que fundam imagens de determinado produto ou produtor, podendo gerar e perpetuar símbolos e ícones para uma sociedade. Dessa forma, as Instituições podem determinar a canonicidade de uma obra e de um autor, como é o caso de Cora, incorporada à construção identitária do Estado de Goiás, graças às relações existentes no sistema literário. Assim, o objetivo deste artigo é elencar os agentes e discursos, as Instituições responsáveis pelo processo de reconhecimento e canonização de Cora Coralina, compreendendo o papel e a importância delas nesse processo. 48 ler.iiler.puc-rio.br Períódico L.E.R. - iiLer/PUC-Rio - RJ-Brasil Cora Coralina e Leodegária de Jesus 130 anos de nascimento N º 16, abril de 2020, ISSN 2179-2801 1. As Instituições e o processo de “canonização” Nascida em agosto de 1889, Ana Lins dos Guimarães Peixoto, a poeta Cora Coralina, desde muito cedo teve estreita relação com o mundo das Letras. Devido à Abolição da Escravatura, no ano anterior ao seu nascimento, com a falta de mão-de-obra, maus empreendimentos e dívidas, com as dificuldades que se agravavam a cada dia, por volta de 1900, Cora, sua mãe e suas irmãs muda- ram-se para a fazenda Paraíso, residência de seu avô materno. Nessa altura, aos 11 anos de idade, foi obrigada a deixar os estudos, que nunca concluiu2. A estada na fazenda Paraíso, em contato com o meio rural, constitui baliza crucial de suas des- cobertas, pois a autora manteve contato com a vida na gleba e com a prática da contação de histórias, que a acompanhou por toda vida. Esse contato, provavelmente, começou a gerar o fio narrativo que percorre grande parte de sua obra. Cora frequentou pouco os bancos escolares, teve uma educação formal reduzida, mas a autora foi uma autodidata. Lia literatura no Gabinete Literário Goiano, lia jornais e revistas que a mãe assi- nava e, além do mais, foi uma mulher que soube ler bem o grande livro da vida. Em 1905, ao retornar com a família para a cidade, Cora Coralina passou a frequentar o Gabinete Literário Goiano e a fazer parte do Grêmio Literário Goiano, criado em 1906, do qual a autora foi vice-presidente. Em 1907, foi criado o jornal literário A Rosa. O periódico era impresso em papel cor de rosa e era considerado como veículo de ideias dos intelectuais goianos da época. Cora Coralina passou então a ser uma de suas redatoras e assim, por meio de um contato diário com a intelectualidade, desen- volveu seu talento como escritora. Data de 1910 a primeira importante crítica sobre a autora, escrita pelo professor Francisco Fer- reira dos Santos de Azevedo, na parte literária do Anuário Histórico, Geográfico e Descritivo do Estado de Goyaz. Sobre o conto “Tragédia na roça” escreveu: “ Cora Coralina (Anna Lins dos Guimarães Peixoto), é um dos maiores talentos que possui Goiás [...] É a maior escritora do nosso Estado, apesar de não contar ainda 20 anos de idade”(AZEVEDO, 1910, p.210) 2 Todas as referências biográficas sobre Cora Coralina apresentadas neste artigo foram tiradas do livro: Cora Coralina: raízes de Aninha, de Clóvis Carvalho de Britto e Rita Elisa Seda, 2ª edição publicada pela Ideias e letras em 2009.
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