Fundamentos Filosóficos Dos Livros Didáticos Elaborados Por Ratke, No Século XVII

Fundamentos Filosóficos Dos Livros Didáticos Elaborados Por Ratke, No Século XVII

Fundamentos filosóficos dos livros didáticos elaborados por Ratke, no século XVII Fundamentos filosóficos dos livros didáticos elaborados por Ratke, no século XVII* Sandino Hoff Universidade do Contestado Introdução Realizei estudos sobre o pensamento de Ratke, tendo sempre por lema a sua inserção no ser tempo- Este artigo apresenta um esboço sobre a peda- ral-histórico, articulando suas idéias com a produção gogia de Wolfgang Ratke (1571-1635) e os funda- material das manufaturas e a permanência de seus mentos filosóficos que nortearam os conteúdos e as aspectos pedagógicos em tempos atuais, inquirindo o formas dos livros didáticos elaborados por esse pe- que de passado está presente na atualidade. O tema dagogo alemão. O princípio básico refere-se à har- deste estudo compõe-se com a mesma base, eluci- monia que estabeleceu entre fé, natureza e ciência e dando sua pedagogia e analisando os fundamentos está contido em todos os seus livros escolares, de filosóficos de seus livros escolares e didáticos. formato uniforme. Nesses livros encontra-se não so- mente um ensino que segue o curso da natureza, mas A obra pedagógica de Ratke também o comportamento do aluno, que deve ter sua psicologia natural reconhecida. O trabalho pedagógico de Ratke começou com o Inicialmente, serão expostos alguns aspectos da lançamento do Memorial de Frankfurt, em 1612, um pedagogia ratiquiana, considerando que seus estudos pequeno texto que causou muita polêmica, a ponto antecipam os de Comênio, este mais conhecido no de o autor ver-se obrigado a complementá-lo com Brasil. Sua obra perpassou os tempos, com sucessi- dois esclarecimentos, estes muito mais extensos do vas publicações de seus escritos. que o próprio Memorial. O texto contém basicamen- te três idéias: a) uma reforma do ensino das línguas; b) uma reforma da instrução pública; c) uma reforma * Trabalho apresentado no GT Filosofia da Educação, du- da vida política e religiosa na Alemanha. rante a 25ª Reunião Anual da ANPEd , realizada em Caxambu, Essas três idéias principais indicam, também, sig- MG, de 29 de setembro a 2 outubro de 2002. nificados correspondentes mais amplos. A primeira Revista Brasileira de Educação 143 Sandino Hoff idéia erige a língua materna1 como a língua das ciên- explicação da coisa”. Acrescenta: “tudo deve ser en- cias e das artes, em lugar do latim, propondo que os sinado na língua vernácula” (Ratke, 1617, p. 1). idiomas estrangeiros só devem ser ensinados após o Em Amsterdam, Ratke permaneceu nove anos aluno falar e ler corretamente a sua própria língua. O estudando e trabalhando como mestre-escola. A vida alcance dessa medida subordina o antigo domínio do na florescente cidade universal, com seu animado latim à língua vernácula e, conseqüentemente, o mo- comércio e suas manufaturas, entusiasmou ainda mais nopólio feudal-eclesiástico à cultura e à realização de seu pensamento para criar uma nova arte de ensinar uma educação nacional e burguesa global. O outro que, ao lado da instrução humanista em vigor, minis- ponto, o da reforma educacional, propõe a universa- trasse as ciências naturais e as ciências das coisas. lização do ensino através de uma “escola alemã” ou Aprendeu o significado das condições econômicas de um de sistema nacional de ensino. Essa escola de- para o desenvolvimento de uma coletividade e prepa- veria instruir todos os jovens, de ambos os sexos, rou-se para criar um método de ensino fácil, útil e nas ciências e nas artes. O último ponto se refere à rápido. Sua estada em Londres e Amsterdam forne- relação entre a educação e a sociedade. O Memorial ceu-lhe material de observação suficiente para poder de Frankfurt insere-se nas lutas político-religiosas da convencer-se de mudanças profundas que deveriam época, prometendo um programa educacional em prol ocorrer também na Alemanha, na vida social e na prá- da unidade política, cultural e religiosa da Alemanha.2 tica educacional. Antes de se dirigir a Amsterdam, Ratke teve con- Quando realizou as primeiras práticas escolares, tato com os escritos de Francis Bacon, em Londres. sofreu reações a seu método. Dois sábios, Jung e Os aforismos contidos no Novum Organum do sábio Helvic, estudaram a arte de ensinar e a defenderam inglês objetivavam um ensino que evitasse o trabalho em um relatório: penoso das crianças e um método que fizesse o aluno observar a realidade, ser um intérprete da natureza e, Todas as artes e ciências – como a arte de ensinar a na aprendizagem, obedecer ao curso da natureza. história, as ciências naturais, medicina, astrologia, figuras, Ratke, ao ler o escrito de Bacon, sentiu a necessidade peso, pedras, construção, arte da fortificação, etc. – serão de elaborar um método que auxiliasse o trabalho do- ensinadas mais facilmente, mais corretamente e melhor cente e fosse um instrumento da mente a facilitar o difundidas na língua alemã do que no grego, latim ou árabe. ensino dos alunos. Assim, em seus próprios aforismos, [...] A nação alemã ficará melhorada através da língua naci- ele prescreve um ensino “sem coação e constrangi- onal. [...] A nova arte de ensinar só poderá entrar na vida mento, por ser contra a natureza”; estabelece que a concreta quando os livros de ensino, correspondentes a aprendizagem e os livros didáticos devem seguir “a cada língua, arte ou ciência, forem elaborados e divulgados. ordem e o curso da natureza”. Seu método institui (Jung & Helvic, 1612, p. 2) “não mais do que uma matéria por vez”, “uniformi- dade em todas as coisas”, “primeiro a coisa, depois a Ratke compôs o seu sistema pedagógico obser- vando o exemplo holandês: o uso da língua materna em todos os níveis escolares. Alguns príncipes, como 1 Em inícios do século XVII, Ratke observou na Inglaterra a Luís de Coethen, aprenderam o mesmo plano na França proposta educacional de Mulcaster, que elaborou um currículo e na Itália. Da alta valorização da língua materna nas- totalmente em inglês, reservando o latim apenas como um curso ceu também uma visão de mundo idealizada, huma- introdutório à universidade. Na Holanda, aprendeu que todas as nista e patriótica. Luís de Cohen, o duque João Ernesto matérias escolares tinham que ser ministradas em neerlandês. e a condessa Dorotéia Maria criaram a Sociedade 2 Maiores informações sobre o Memorial de Frankfurt o Frutuosa, nos moldes das Sociedades de Línguas de leitor encontrará na Revista Histedbr On-Line, nº 5, da UNICAMP. Amsterdam, de Delle Cruscia em Florença e dos Ami- 144 Jan /Fev /Mar /Abr 2004 No 25 Fundamentos filosóficos dos livros didáticos elaborados por Ratke, no século XVII gos do Senso Alemão em Hamburgo, cujos objetivos mães falarem a língua corretamente e lerem os textos eram manter a língua pátria em sua pureza (Rioux, bíblicos na fonte, o velho ensino católico e apostólico 1963, p. 31). Defendiam o uso da língua vernácula, poderá livrar-se do que é falso e tornar-se puro e úni- baseado nos objetivos nacionais e burgueses. co em todo o império” (Ratke, 1630, p. 2). Nascido na província de Holstein, Ratke passou Nesse momento, Ratke considera que a estrutu- sua juventude na livre cidade hanseática de Hambur- ra escolar do luteranismo precisava ser renovada, pois go e firmou ali, na burguesia, sua posição política. negligenciava as realidades concretas, a começar pela Em Amsterdam aprendeu as livres condições de vida língua alemã. Estava convencido de que a educação de uma burguesia autoconsciente e saciada. Obser- somente teria sucesso se utilizasse um método por vou em forte medida como ocorrem as relações entre ele considerado prático, útil e fácil. os homens e entre países nas condições econômicas Ramus3, a partir de 1536, depois de ter elabora- internacionais; como o comércio e a manufatura trans- do sua tese denominada Tudo o que disse Aristóteles formaram totalmente as condições da Europa Cen- é falso, exigiu que a instrução pública se voltasse tral; e como a burguesia alcançou as liberdades civis. contra os métodos medievais. Utilizando a língua Entendeu que a racionalidade das relações sociais era materna, a educação deveria partir das experiências e uma garantia para se ultrapassar as limitações, os de procedimentos reais. Tem-se também, nessa pers- obstáculos e as fronteiras. Tudo bem ao contrário do pectiva, Erasmo, Vives e Rabelais. Seguindo esses que encontrou no seu retorno à Alemanha. pensadores, Ratke instituía um ensino concreto e sim- Na Holanda, uma parte das rendas da antiga Igreja ples, que não permitia dar ao aluno nenhuma regra havia sido desviada para a manutenção de escolas antes de ter estudado e entendido a matéria e a língua públicas. Os governantes criaram um sistema de es- dos autores em estudo. Fundamenta toda a aquisição colas comuns para as massas populares e de escolas do saber na experiência. Os fundamentos filosóficos clássicas para meninos que queriam ingressar na vida de sua didática constituem-se pela classificação de profissional (Hohendorf, 1957, p.14). As lutas em prol todos os fenômenos naturais e culturais que ele de- da unificação da nação alemã e em prol de uma edu- nomina Allunterweisung (O ensino de tudo ou O en- cação nacional em língua vernácula apresentaram-se sino de todas as ciências ou ainda Enciclopédia). Esta em Ratke como princípios básicos para sua nova arte de ensinar. A Ratio Studiorum fazia sucesso na Europa e 3 Pierre de la Ramée (Ramus) (1515-1572) tem uma obra conquistava a juventude, atraindo-a aos bons colégi- considerável. Perseguido e condenado por suas idéias contra o os jesuítas, o que fortalecia a escolástica, reforman- ensino de Aristóteles, converteu-se ao luteranismo.

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