Almanack, Guarulhos, n. 24, ea03918, 2020 http://dx.doi.org/10.1590/2236-463324ea03918 ORDENAMENTO TERRITORIAL DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS: MINAS GERAIS, SÉCULOS XVIII-XIX Angelo Alves Carrara1;2 Pedro José de Oliveira Machado3;4 RESUMO Um dos desafios enfrentados pelo Estado brasileiro ao longo do século XIX foi a definição da área dos municípios emanci- pados em número crescente em especial a partir da década de 1830. Por conseguinte esse número ascendente de municípios passou a exigir maior rigor quanto à demarcação de seus ter- ritórios. Contudo o modo como eram estabelecidos os limites municipais nesse período constitui um problema considerável. Este artigo tem por objetivo discutir as dificuldades que envol- vem a demarcação do território dos municípios brasileiros no século XIX, por meio do estudo de um exemplo concreto em Minas Gerais. Palavras-chave Ordenamento territorial – município – Brasil – Minas Gerais. 1 Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora – Minas Gerais – Brasil. 2 Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (1988-2004), atualmente é professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Atua principalmente em pesquisas nas áreas da história econômica do Brasil, fiscalidade, história agrária, bem como em projetos de tratamento de acervos documentais. E-mail: [email protected]. 3 Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora – Minas Gerais – Brasil. 4 Professor Associado III, lotado no Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora, lecionando nos cursos de graduação e mestrado em Geografia, desenvolvendo pesquisas na área de formação e ordenamento territorial de Juiz de Fora e Sul da Zona da Mata Mineira]. E-mail: [email protected]. 1 / 54 Almanack, Guarulhos, n. 24, ea03918, 2020 http://dx.doi.org/10.1590/2236-463324ea03918 TERRITORIAL PLANNING OF BRAZILIAN MUNICIPALITIES: MINAS GERAIS, 18-19 CENTURIES ABSTraCT One of the challenges faced by the Brazilian state throughout the nineteenth century was the definition of the area of the increasing number of emancipated municipalities especially since the 1830s. As a consequence, this growing number of mu- nicipalities began to demand a greater accuracy regarding the demarcation of their territories. However, the way municipal boundaries were established during this period is a considera- ble problem. This article aims to discuss the difficulties invol- ved in the demarcation of the territory of Brazilian municipali- ties in the nineteenth century, through the study of a concrete example in Minas Gerais. Keywords Teritorial planning – municipality – Brazil – Minas Gerais. 2 / 54 Angelo Alves Carrara & Pedro José de Oliveira Machado Almanack, Guarulhos, n. 24, ea03918, 2020 Ordenamento territorial dos municípios brasileiros: Minas Gerais http://dx.doi.org/10.1590/2236-463324ea03918 séculos XVIII-XIX m dos desafios enfrentados pelo Estado brasileiro ao lon- go do século XIX foi a demarcação dos territórios dos mu- Unicípios emancipados em número crescente sobretudo a partir da década de 1830. Para as pesquisas cujo objeto tenha rela- ção com determinado território, é indispensável a explicitação dos limites da área em estudo. No caso de uma investigação sobre algum evento que se passe no Brasil no século XVI ou XVII, por exemplo, deve-se definir de antemão e com toda a clareza que espaço geográ- fico se está entendendo por Brasil. Se se aborda de forma estrita a área sob jurisdição da Coroa portuguesa no século XVI, o território a ser considerado deveria levar em conta precisamente os limites es- tabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas (1494). Mas, se o estudo se volta para as áreas efetivamente ocupadas pelos colonos portugueses na América, o território se reduz a uma estreita faixa de terra a pou- cos quilômetros do litoral. Destaca-se que, neste artigo, o conceito de território é utilizado em associação à noção de soberania, pois, como alertam Flávio Gomes de Andrade e Manuel Correia de Almeida, esse conceito não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, por- que está diretamente relacionado à ideia de controle, de poder, de domínio sobre uma área5. De imediato, cabe uma advertência quanto ao emprego do vocá- bulo município, cujo uso corrente em português no sentido moderno é posterior ao ano de 1820. Até então, a ocorrência dessa palavra se limitava à história administrativa do período romano6. Foi o decre- to de 14 de dezembro de 1789 da Assembleia Nacional Constituinte Francesa que introduziu o termo. Segundo seu artigo 1º: 5 ALMEIDA, Flávio Gomes de. O ordenamento territorial e a Geografia Física no processo de gestão ambiental. In: SANTOS, Milton et al. Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007; ANDRADE, Manuel Correia de. A questão do território no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2004. 6 “No tempo dos antigos romanos chamavam-se municípios as cidades que logravam as isenções dos cidadãos romanos”. BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1716. v. 5, p. 639. Ou: “cidade que tinha o direito de servir as magistraturas romanas, votar nas assembleias, mas governava-se por suas leis particulares”. SILVA, Antônio de Morais. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: S. T. Ferreira, 1789. v. 2, p. 104. 3 / 54 Artigos Angelo Alves Carrara & Pedro José de Oliveira Machado Almanack, Guarulhos, n. 24, ea03918, 2020 Ordenamento territorial dos municípios brasileiros: Minas Gerais http://dx.doi.org/10.1590/2236-463324ea03918 séculos XVIII-XIX as municipalidades atualmente existentes em cada vila, aldeia, paró- quia ou comunidade, sob o título de câmara municipal, prefeituras, cabidos, consulados, e geralmente sob qualquer título ou qualificação que seja, são suprimidos e abolidos, e os oficiais municipais atualmen- te em serviço, continuarão suas funções até que tenham sido substi- tuídos.7 Esse decreto substituía a estrutura administrativa do Antigo Re- gime por outra, acorde com os novos princípios políticos. A palavra francesa municipalités foi traduzida para “município” em português. Os artigos 2º, 4º e 5º do mesmo decreto estabeleciam como sinônimas as expressões corps municipal e officiers et membres des municipalités, ver- tidas para o português como “câmara dos vereadores”. Em Portugal a palavra começou a ser incorporada ao vocabulário político e administrativo em seu sentido moderno já nos debates das Cortes Gerais e Extraordinárias de 1821. Na sessão de 14 de abril de 1821, leu-se um requerimento “do Senado da Câmara da vila de Tor- res Novas, por si e como representante de todos os cidadãos daquele município”8. No Brasil, por sua vez, a mudança da estrutura adminis- trativa no nível local foi um dos primeiros temas a serem debatidos pela primeira legislatura. Na sessão de 11 de julho de 1826, foi apre- sentado um projeto sobre a administração e economia das provín- cias, que previa em seu artigo 3º que “nas freguesias e capelas curadas haverá uma junta municipal e juízes de paz”. Pouco depois, na sessão de 30 de agosto, o artigo 6º, item 16 do projeto sobre a “administração municipal”, estabelecia o município como divisão administrativa das 7 DECRET du 14 décembre 1789 concernant la constitution des municipalités. In: FRANÇA. Ar- chives Parlementaires de 1787 à 1860: premiere série (1787-1799) sous la direction de Emile Laurent et Jérôme Mavidal. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 1878. p. 564-567. (Tome X: du 12 novembre au 24 décembre 1789). 8 PORTUGAL. Assembleia da República. Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, n. 58, p. 577, sessão de 14 de abril de 1821. Outras ocorrências do mesmo ano: n. 7, p. 35, sessão de 20 de fevereiro de 1821 (“legislação municipal”); n. 38, sessão de 20 de março de 1821; n. 38, p. 307 (o Senado da Câmara de Lisboa referido como “primeiro corpo municipal do Reino”). 4 / 54 Artigos Angelo Alves Carrara & Pedro José de Oliveira Machado Almanack, Guarulhos, n. 24, ea03918, 2020 Ordenamento territorial dos municípios brasileiros: Minas Gerais http://dx.doi.org/10.1590/2236-463324ea03918 séculos XVIII-XIX províncias9. Todo o debate em torno do tema foi consolidado na Lei Geral de 1º de outubro de 1828, que deu nova forma às câmaras mu- nicipais, marcou suas atribuições e o processo para sua eleição e dos juízes de Paz. Mas, ainda que nessa Lei a palavra município pudesse ser entendida em seu sentido atual, isto é, a divisão administrativa de uma província, nota-se certa ambiguidade no uso do adjetivo “mu- nicipal”. O artigo 24 da mesma Lei, por exemplo, quando assinala as “funções municipais”, está-se referindo às prerrogativas da câmara. Já no artigo 39, a expressão “interesses do município” corresponde claramente aos interesses dos munícipes, embora fique implícito, em outro momento, que o município (termo) se referia à base territo- rial abrangida pela jurisdição de uma vila ou cidade, que seriam, por sua vez, as sedes do poder, onde se localizaria a centralidade político- administrativa desses territórios, como descrito no artigo 2º, que de- termina que “a eleição dos membros será feita de quatro em quatro anos, no dia 7 de setembro, em todas as paróquias dos respectivos termos das cidades ou vilas”. No entanto a Lei de 1828 não estabeleceu clara distinção entre vilas e cidades, que continuou conforme considerava-se no período colonial, isto é, como título honorífico, distinguindo-as apenas pelo número de vereadores, como disciplinado no seu artigo 1º, que esta- belecia a composição das câmaras das cidades com nove membros, e das vilas com sete10. Assim, o decreto imperial de 24 de fevereiro de 1823 elevou à categoria de cidade todas as vilas que eram capitais de províncias no Brasil. Como consequência, em 20 de março do mes- mo ano, Vila Rica foi elevada a cidade com a denominação de Im- perial Cidade de Ouro Preto11, E, após a instalação das assembleias provinciais, cada província começou igualmente a elevar vilas a cida- 9 BRASIL.
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