Do Sarau Ao Comício

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Do sarau ao comício: MARCOS NAPOLITANO relação entre os fatos musicais examinados neste artigo e os fatos sociais e políticos que A delimitaram a crise do desenvolvimentismo e a emergência das mobilizações reformistas, entre 1959 e 1963, não é mera coincidência. O surgimento da Bossa Nova e a reorganização do mercado musical que se seguiu a ela pode ser visto como marco fundamental no processo de “substituição de importações” do campo cultural. Os dados referentes ao mercado musical bra- sileiro parecem confirmar esta afirmação. Em 1959, cerca de 35% dos discos vendidos no país eram de música brasileira. Dez anos depois, as cifras se inverteram: 65% dos discos eram de música brasileira, boa parte dela herdeira do público jovem e universitário criado pela Este texto é uma versão do primei- BN e pelos movimentos que se seguiram (1). Para isso, ro capítulo de tese de doutorado, desenvolvida junto ao programa de História Social da FFLCH-USP. favoreceu-se de uma estrutura singular da indústria fonográfica que mesmo dominada pelas grandes 1 Fonte: Jornal do Brasil, 24/9/ 69, B-1. multinacionais necessitava estimular a produção local 2 P. Flichy, Les Industries de l’Imaginaire, pp.225-7. de canções, como parte da sua lógica de lucro (2). 168 REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 168-187, março/maio 1999 inovação musical no Brasil (1959-63) MARCOS NAPOLITANO é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná e autor de O Regime Militar Brasileiro (Atual) e O Saber Histórico em Sala de Aula (Contexto). REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 168-187, março/maio 1999 169 Tanto o nacional-desenvolvimentismo adequação entre forma e conteúdo para da era Juscelino Kubitschek como o nacio- transmitir uma mensagem ideológica ade- nal-reformismo do governo de João Goulart quada ao ideário reformista, a música po- estão na base dessa clivagem. À medida pular deveria ter um papel ativo no pro- que essas ideologias, pólos diferentes da cesso de “nacionalização” dos produtos cultura política nacional-popular, penetra- culturais como um todo. Este desejo de vam no panorama musical, eram incorpo- “modernidade” não é mera inferência de radas nas obras que trazem em si marcas pesquisador. Muitos artistas assumiram, das contradições inerentes ao processo so- conscientemente, esse wishful thinking. cial como um todo. Portanto, não tomamos Tom Jobim, por exemplo, declarou ao jor- a BN como “reflexo” do desenvolvimento nal O Globo, em 12/11/62, por ocasião do capitalista da era JK, como muitas vezes é show no Carnegie Hall em Nova York: vista, mas como uma das formas possíveis “Já não vamos recorrer aos costumes típi- de interpelação artístico-cultural desse pro- cos do subdesenvolvimento. Vamos pas- cesso, a forma com que os segmentos mé- sar da fase da agricultura para a fase da dios da sociedade assumiram a tarefa de indústria” (4). traduzir uma utopia modernizante e refor- Foram estas as questões, intimamente mista, que desejava “atualizar” o Brasil ligadas ao contexto histórico como um todo como nação, perante a cultura ocidental. e à situação do artista e do intelectual frente A proposta das Reformas de Base como ao nacional-popular, em particular, que estratégia para superar a crise social e eco- organizaram a complexa articulação entre nômica em que o país mergulhou em 1961 três vetores – tradição, ruptura e mercado – foi um elemento perturbador na utopia de por trás da emergência da Bossa Nova. atualização sociocultural que a Bossa Nova Vejamos como esses problemas foram representava. Era preciso conscientizar e incorporados nas obras concretas e forne- integrar os setores sociais marginalizados ceram as bases para a posterior reorganiza- pelo desenvolvimento capitalista e a cultu- ção do panorama musical, que instituiu a ra tinha um papel importante nesse proces- “moderna” MPB, por volta de 1965. so. O excessivo “otimismo” da Bossa Nova passou a ser repensado. Setores do movi- • • • mento estudantil, uma das maiores expres- sões da esquerda nacionalista, perceberam O advento da Bossa Nova, ainda que o potencial da BN junto ao público estu- possa e deva ser melhor analisado do ponto dantil. Tratava-se, pois, de politizá-la. de vista histórico, inaugurou um novo ci- Ao lado do cinema e do teatro que, diga- clo de institucionalização na música brasi- se, nunca conseguiram romper certos limi- leira, no qual o próprio conceito de música tes quantitativos e qualitativos de audiên- popular vai ser modificado (5). Na conclu- cia, a música poderia se transformar no são desse ciclo os festivais da canção, entre grande veículo ideológico de mobilização 1966 e 1968, desempenharam um papel de massa, pois já possuía um nível de popu- fundamental. Obviamente, esse não foi um laridade considerável. Na visão dos inte- processo causal, linear e direto. Ao contrá- lectuais do Movimento Estudantil, dois rio, foi um processo contraditório, permea- caminhos, nem sempre auto-excludentes, do de tensões e conflitos, entre os quais a 3 N. L. Barros, “Bossa Nova: Co- lônia do Jazz”, in Movimento, se colocavam para atingir tal objetivo: in- idéia de “impasse” estético-ideológico foi no 11, maio/1963, pp. 13-5. corporar as técnicas musicais ligadas à BN, direcionando o debate intelectual em torno 4 Apud J. R. Tinhorão, O Samba fundindo-a com o material musical folcló- da música, e os caminhos possíveis da cria- Agora Vai, p. 104. rico e tradicional (3); ou expurgar a sofis- ção, dentro do ideário da esquerda nacio- 5 E. Paiano, Do Berimbau ao Som Universal. Lutas Culturais e In- ticação técnica das canções “de massa” e nalista. Esse processo teve um profundo dústria Fonográfica nos Anos utilizar-se dos gêneros e estilos consagra- diálogo com outros campos da sociedade 60. dos com fins puramente exortativos. Ao (6) (intelectual, artístico, econômico, polí- 6 P. Bourdieu, O Poder Simbóli- co, pp. 59-159. mesmo tempo que deveria buscar a justa tico, etc.), determinando a configuração de 170 REVISTA USP, São Paulo, n.41, p. 168-187, março/maio 1999 um espaço próprio, dotado de autonomia a inserção de um novo extrato social no relativa e que passa a gerar sua própria iden- panorama musical, sobretudo no plano da tidade e reconhecimento, a partir de uma criação e no consumo de música popular. economia interna específica. Em outras As classes médias superiores, tomadas em palavras, o processo histórico de redefinição seu conjunto, mais abastadas, mais infor- sociocultural da MPB conduziu à sua madas e com circulação no meio universi- institucionalização, oscilando entre a con- tário, passaram a ver a música popular como figuração de uma cultura de protesto e re- um campo “respeitável” de criação, expres- sistência e a consolidação de um produto são e comunicação. Na metade da década altamente valorizado pela sociedade. Como novas parcelas de ouvintes/consumidores tal, parte fundamental para a formulação foram agregadas a esse novo quadro musi- de uma identidade social como um todo. cal, oriundos, sobretudo, da classe média Por se consolidar como uma instituição baixa (sociologicamente falando, as clas- cultural ao longo dos anos 60, a MPB de- ses C e D), devido à presença marcante da senvolveu meios de difusão próprios, cri- televisão, como novo veículo musical de térios específicos de julgamento de valor; massa. seus “gênios” criadores são situados den- O grande legado desse movimento, em tro de uma hierarquia social destacada e que pesem os mitos historiográficos em seu leque de materiais e técnicas musicais torno dele, foi o de deslocar o pólo mais tem sido objeto de seleção, atualização e dinâmico de criação e debate musical em referência para os novos criadores que al- vários níveis: cultural, ideológico, socio- mejam reconhecimento. lógico. Para alguns, confirmação da “ex- A música “popular” brasileira chegou propriação” cultural, racial e classista por ao fim dos anos 50 na forma de uma tradi- parte da pequena burguesia internacionali- ção consolidada, sob diversos aspectos: já zada, em relação ao povo “pobre e negro” possuía um panteão artístico consagrado (7). Para outros, salto qualitativo em dire- (ao qual iriam ser agregados novos artistas, ção ao primeiro mundo da música (8). à medida que se acentuava o debate sobre Essas mudanças e inovações sugeridas qual tradição deveria ser seguida); era pela BN não se deram num “vazio” histó- marcada pela abertura à renovação, sem rico, como tem sido enfatizado pelos desconsiderar totalmente os materiais, os ideólogos e entusiastas do movimento. Tem parâmetros e estilos musicais convencio- sido muito comum afimar a Bossa Nova nais do passado; tinha forte presença no como o “marco zero” da “moderna” MPB. mercado de bens culturais, a base de uma Mas a análise de obras concretas e eventos audiência bastante popularizada (hege- específicos pode demonstrar que a relação monizada sobretudo pelo rádio). com a tradição musical (e cultural) anterior Naquele momento o panorama musical foi mais complexa do que sugerida por al- sofria uma série de mutações estruturais. guns memorialistas. Os músicos da década Por um lado, no âmbito do mercado, a cres- de 60 herdaram formulações estéticas e cente importância da televisão e a consoli- ideológicas socialmente enraizadas, que se dação do long playing de rotação 33-1/3, traduziam nos mitos fundadores da musi- como suporte principal da canção, altera- calidade brasileira e no reconhecimento do ram as bases criativas e os parâmetros ex- samba como música “nacional”, fazendo pressivos da música “popular” brasileira, com que muitos deles se propusessem a que se adequava às novas demandas e pos- renovar a expressão musical sem romper sibilidades técnicas. Esses novos veículos totalmente com a tradição. Mesmo os mú- expressavam mais do que a ampliação do sicos mais identificados com a Bossa Nova, 7 J. R. Tinhorão, Música Popu- público/consumidor musical. Houve uma que apontavam para um afastamento em lar: do Gramofone ao Rádio e mudança estrutural na sua composição.

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