115 Merchandising social ebulição; c) a discussão de temas atuais (a mulher pós-pílula na brasileira inserida no espaço social e os problemas da ética na política) em várias novelas entre 1969-91; e d) a incorporação de estra­ tégias de marketing nas ações dramáticas. Lisandro Nogueira* Esses melodramas no entanto perderam força depois do fra­ Lourival Belém Júnior** casso monumental de audiência de O dono do mundo (199l), As atualizações se tornaram caricaturas após os anos novent~ O que as novelas incorporaram daquele contexto se perdeu 1\2 Resumo diluição fria e consistente patrocinada pela padronização e re­ A partir do final dos anos 80 surge um novo tipo de propaganda na televi­ petição da indústria cultural. são brasileira: o merchandising social. Aproveitando o descaso dos Uma das inovações fincou raízes, é regada pela indústria da governantes do País, as começam a incorporar em sua trama televisão e rende frutos e dividendos. O merchandising( a publi­ certas campanhas de interesse público. A novela "Explode Coração", por cidade incorporada no contexto dramático) acoplado nas novelas exemplo, dedicou-se a uma sistemática campanha em favor das crianças de­ saparecidas. desde Beto Rockfeler (1969) se tornou uma das principais fontes de patrocínio de uma produção cara e complexa - um capítulo Palavras-chave: merchandising; televisão brasileira; telenovela; propa­ tem um custo entre 35 e 50 mil dólares. A inovação, de tão ganda política. rentável, rendeu departamentos específicos nas emissoras vi­ sando à comercialização dos merchandisings. No período compreendido entre 1970 e 1991 a novela das oito 1 O merchandising social conseguiu um patamar de interesse que a distingue das outras no­ velas nacionais, das americanas e principalmente das soap operas O merchandising foi sendo aprimorado e começou a trans­ congêneres latinas. Quem angariou esse interesse foram os melo­ bordar alcançando leitos de outros rios. A incorporação de dramas atualizados; escritos por Lauro Cesar Muniz, Silvio de temáticas urbanas pelos autores foi diluída no novo tipo de Abreu, Benedito Ruy Barbosa, , Braulio Pedroso e merchandising surgido no final dos anos oitenta, pois de tanto Cassiano Gabus Mendes. Esse tipo de melodrama inseriu algumas abordar temáticas da realidade brasileira as emissoras desco­ atualizações num gênero marcadamente conservador. briram o "merchandising social". Num primeiro momento, de­ E quais foram essas atualizações? a) O anti-herói protagonizado vido às imensas carências e dívidas sociais, a inserção de cam­ por Beto Rockfeler e Felipe Barreto é menção ao cínico anti-herói panhas de saúde nas novelas foi saudada e louvada. Aprovei­ de O acossado de Jean-Luc Godard; b) a inserção da música tando o descaso das elites que dominam o Estado e seus apare­ popular brasileira nas trilhas sonoras adveio da força evolutiva lhos, as telenovelas, com ampla penetração na sociedade bra­ da bossa nova e do tropicalismo - inseridos nas novelas pelos sileira, ocuparam o espaço e, através dos "merchandisings autores fascinados pelo charme vanguardista daqueles anos em sociais", substituíram em alguns casos o papel do poder públi­ co. Tanto a campanha do Betinho foi inserida na novela das * Jornalista, mestre em Comunicação pela ECAlUSP, doutorando na oito como as campanhas pela diminuição do colesterol na ali­ PUC-SP, professor na Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da mentação. As novelas a partir daí não seriam mais um narcótico UFG e membro do Cineclube Antônio das Mortes. alienante pois estariam contribuindo para a suavização dos pro­ ** Médico, cineasta e membro do Cineclube Antônio das Mortes. blemas dos "menos favorecidos".

Comun. inf, v.I, n. 1, p. 114-119, jan./jun. 1998 Comun. inf, v.I, n. 1, p. 114-119, jan./jun. 1998 116 117 O mais recente exemplo de merchandising social se deu na mato e conteúdo. No afã de grande audiência, pois sobrevivem novela Explode coração, de Glória Perez. As mães que perde­ dela, as novelas apelam para os recursos mais variados. E foi ram seus filhos ganharam guarida na benevolência do melodra­ justamente por esses dois motivos que nasceu mais um tipo de ma com o apoio maciço dos telespectadores. A ficção mais merchandising. Inaugurado com Pantanal, que mostrou o es­ uma vez deu lugar à realidade e todos os dias fotos de crianças gotamento da "novela tipo-zona-sul-carioca", o merchandising desaparecidas e supostamente seqüestradas apareciam no vídeo. ecológico-cultural abriu um filão rural liderado por Benedito Algumas foram encontradas, o que sugeria o acerto da iniciati­ Ruy Barbosa (escritor) e Luis Fernando Carvalho (diretor). Jun­ va - depois descobriu-se que a maioria das crianças tinha saí• tos realizaram . Nela já se encontrava o embrião do do voluntariamente de casa. esgotamento dos "melodramas atualizados". Isso quer dizer que Assistimos aqui às telenovelas se irmanarem com nossos quando não há riqueza no texto apela-se para o potencial sedu­ governantes demagógicos que se apresentam como "administrado­ tor das imagens, que "nos convidam a contemplar o mundo res voltados para o social" e conclamam "os poderes constituídos como se f'o:->se um corpo nu" (Frederic Jameson, As marcas do a conhecer o país dos miseráveis", responsabilizando supostas "eli­ visível - Ed. Graal), quando não apelam para a pornografia tes" que eles dizem não representar. Como nas iniciativas que si­ explícita. Longas e enfadonhas, principalmente a partir do dé­ mulam preocupação com o sofrimento do povo brasileiro na cimo-primeiro capítulo, as novelas partiram para captar ima­ dramaturgia contemporânea, as ações políticas se resumem a gens da natureza brasileira. Paralelamente ao ornamento eco­ implementar programas assistencialistas com capacidade financei­ lógico-cultural das imagens visando cobrir textos frágeis, a du­ ra irrisória ou se propõem a criar ou manter "fundos sociais de pla se enveredou pelo caminho da citação glamourizante. emergência" que, hipocritamente, exploram falsas finalidades soci­ Uma das características da cultura pós-modema é a contami­ ais com objetivos camuflados. nação do entretenimento pela "alta cultura". Há um desejo no inte­ Percebemos um deslocamento de responsabilidades em que rior da indústria cultural em legitimar seus produtos com refe­ as telenovelas e algumas manifestações artísticas cumprem uma rências aos clássicos da cultura universal. O que se produz na função ideológica fundamental. Deixamos preceitos éticos e nos verdade é um pastiche com recheio de chantilly. Em Renascer preocupamos em ganhar dinheiro como advogados, engenhei­ sobram pastiches e as citações são constantes. A principal se­ ros, médicos, artistas e desportistas famosos, numa atitude nar­ qüência de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, cisista comum nas classes médias que lavam as mãos para a Corisco sendo fulminado por António das Mortes, é revivida miséria social e se lixam para o trabalho intelectual. Como diz com um texto fragilíssimo. Mas, neste caso, o que conta para a Robert Kurz (O colapso da modernização, Ed. Paz e Terra) em indústria televisiva são os créditos junto a um certo tipo de artigo jornalístico, os "intelectuais estetizam a miséria e a ex­ público formador de opinião. Não se percebem a redundância e ploram comercialmente; os sofrimentos daqueles que passam a cópia anacrónica. À novela é conferido prestígio por transfe­ fome são transformados em publicidade". rência. É irónico que a própria emissora não programe o origi­ nal, pois raramente se vê Glauber Rocha na televisão. Ora,· o 2 A citação glamourizante que se pretende é um "brilho de aluguel" e apresentar a jóia orig~nal já seria pedir demais ao vampiro dissimulador. o melodrama abarca os problemas brasileiros por motivos que As citações glamourizantes e ao regionalismo que camuflam vão muito além da filantropia (e aqui importa ressaltar que filantropia fragilidades se agrega também o maniqueísmo no trato da polí• e solidariedade são conceitos distintos). Há uma queda gradativa tica por parte da dupla Barbosa e Carvalho. Num estudo esti­ da·audiência e uma crise de criatividade que comprometem for- mulante, Mauro Porto (Comunicação e Política, Cebela, 1995,

Comun. inf, v.J, n. J, p. JJ 4-JJ9, jan./jun. J998 Comun. inf, v.J, n. /, p. Jl4-JJ9, jan./jun. 1998 118 119 p. 55-76) detecta em Renascer a repugnância à política e a dade contemporânea, para a manutenção de relações desqualificação do governo e do Estado. O diálogo entre José assimétricas de poder. Inocêncio e. Noberto sobre a venda de uma fazenda em Goiás para um político desencadeia diálogos apressados e superfici­ Abstract ais, amalgamando toda a atividade política com corrupção e demagogia. Beginning in the late 1980's a new kind ofpropaganda campaign sprung A referência à desqualificação do governo e do Estado aparece up in brazilian television: social merchandising. Because of 'lhe lack of quando o filho do coronel, José Augusto, afirma, conforme Por­ interest of the govemment, television soap-operas began to incorporate with-in the plot ofthe story campaigns ofpublic intevest. The soap-opera to, que "largar a coisa na mão do governo é fogo. Empata mes­ "Explode coração" for example dedicated a systematic campaign for lost mo. Tudo fica mais caro, tudo fica mais dificil (...)". No decor­ children. rer da seqüência não se sai da superficie e sequer se pergunta quem administra esse Estado e quem são aqueles (grupos ou Key words: mcrchandising; brazilian television; soap-opera; politicaI pro­ instituições) que desqualificam governos. Suas generalizações paganda. são grosseiras e maniqueístas. Nunca a pecha de conservado­ ras vestiu tão bem as novelas brasileiras. As generalizações em relação à política são comuns no solo Referências bibliográficas melodramático nacional. Gilberto Braga, por exemplo, não se cansa de cometê-las em Vale tudo, O dono do mundo e Anos KURZ, Robert. O colapso da modernização. São Paulo: Paz e Terra, 1993. rebeldes. Por essas e outras características as novelas contri­ FREDRlC, Jameson. As marcas do visível. São Paulo: Graal, 1995. buem para reforçar idéias e comportamentos conservadores. PORTO, Mauro. Comunicação e política. Brasília: Cebela, 1995. Podemos aqui também traçar um paralelo entre essas desqualificações do Estado e governos e o que se ouve nas falas lingüísticas cotidianas. A hipermidiatização (a comunicação ocu­ pando todos os espaços) dos fenômenos sociais e da vida política aumenta cada vez mais a frustração de cidadãos passivos, sem voz e com grande sentimento de inutilidade social. Os cidadãos vivem se lamuriando das péssimas condições de vida, da instabilidade econômica, das repercussões emocionais e da política como antro de corrupção, mas sentem que seus gritos não desfazem sua ansie­ dade histérica, talvez porque não compreendem exatamente o que se passa e não vêem canais legítimos de amplificação de suas vo­ zes. Assim, quando assistem ao que foi comentado acima, sen­ tem o efeito catâ1tico trarrqüilizador proporcionado pela "re­ percussão" do que vêm dizendo na vida diária. O gozo, mes­ mo iris-atisfatório, lhes dá energia suficiente para aguardar a próxima frustração e revela a importância da telenovela, com suas atualizações dentro do espaço midiático da socie-

Comun. inj., v.1, n. 1, p. II4-11 9, jan./jun. 1998 Comun. inj.. v.1, n. 1, p. 114-119, jan./jun. 1998