XVIII SimpósioPALESTRA de Mirmecologia 161

BIOLOGIA DE ALGUMAS ESPÉCIES DE BLEPHARIDATTA

P.R. da Silva

Universidade São Marcos, R. Clóvis Bueno de Azevedo, 176, CEP 04266-040, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: [email protected]

As formigas do gênero Blepharidatta têm distribui- Diniz, Carlos Roberto F. Brandão, Patricia Romano da ção exclusivamente Neotropical e eram até há alguns Silva e Flávio Roces fizeram vários estudos sobre B. anos consideradas extremamente raras, sendo repre- conops; Jorge Diniz, Patricia Romano da Silva, C. sentadas por pouquíssimos espécimes em coleções de Rabeling, Manfred Verhaagh e Ulrich Mueller estu- museus. daram alguns aspectos de B. brasiliensis e um pouco da O gênero pertence à e em 1995 foi biologia de Blepharidatta sp. foi estudada por Jorge incluído por BOLTON na tribo Blepharidattini junta- Diniz e Patricia Romano da Silva. mente com o gênero Wasmannia. As larvas de B. brasiliensis foram estudadas por Análises filogenéticas feitas por SHULTZ & MEIER George C. Wheller e Jeane Wheeler. (1995) e trabalhos não publicados de DINIZ & MAYÉ- B. conops habita os cerrados brasileiros. Formigas NUNES (comunicação pessoal) consideram uma es- desta espécie escavam ninhos de arquitetura simples treita relação entre Blepharidatta e atíneos. Em 2003, e freqüentemente acumulam carcaças de artrópodes BOLTON publica que a tribo Blepharidattini apresenta ao redor do orifício de entrada de seus ninhos. sinapomorfias com Attini. As operárias forrageiras de B. conops coletam Atualmente são reconhecidas sete espécies de artrópodes vivos ou mortos para alimentarem suas Blepharidatta: larvas. Restos desse material são arranjados ao redor - B. brasiliensis, descrita por WHEELER em 1915, com da entrada do ninho, formando um anel, e quando distribuição amazônica, registrada no Brasil e na artrópodes que se alimentam de material em decom- Venezuela; posição se aproximam do anel eles são emboscados, - B. conops, descrita por KEMPF (em 1967), que ocorre na puxados e despedaçados pelas operárias-guardas região central do Brasil (Mato Grosso, Mato Grosso do que ficam escondidas sob a abertura do ninho. Depois Sul, Goiás, Tocantins e Maranhão); de puxados pelas operárias até a boca do ninho - uma espécie ainda não descrita registrada em matas cairiam em câmaras alargadas na base do ninho e pluviais do leste da Bahia, designada como seriam fragmentados. Há cooperação entre as Blepharidatta sp.; forrageadoras durante o transporte de material gran- - uma espécie conhecida apenas por cinco exemplares de e pesado. A distribuição regular dos ninhos de B. de machos coletados em 1971 na caatinga de Pedra conops sugere competição intra-específica por recur- Azul (norte de Minas Gerais). Esta espécie foi indicada sos limitados e pelo controle de áreas para o estabele- por DINIZ (1994) enquanto fazia a revisão do gênero. cimento de novos ninhos. Este material foi depositado na coleção do Museu de O acompanhamento ao longo de seis meses de Zoologia da USP; trinta e dois ninhos de B. conops em uma área de 100 - uma espécie não descrita, coletada e registrada na m2 em Selvíria (Mato Grosso do Sul) revelou que Bahia por JACQUES DELABIE (comunicação pessoal em quando a distância entre dois ninhos é maior do que 2002), diferente de Blepharidatta sp. O material foi duas vezes o raio de suas áreas de forrageamento, isto depositado na coleção do CEPLAC em Ilhéus, na é, quando não há intersecção entre áreas de Bahia; forrageamento, estes não migram. Ninhos mais pró- - uma espécie não descrita de matas da Amazônia ximos chegaram a migrar quatro vezes neste período. boliviana, conhecida por exemplares de operárias As migrações não seguiam direção preferencial como coletadas em abril de 2003 por Fernando Fernandez. seria esperado caso o ambiente fosse o determinante. O material foi depositado na coleção da Fundación A direção de migração parece ser preferencialmente a Humboldt na Colômbia; oposta à direção onde está o ninho mais próximo, - em maio de 2003, Antônio Tavares trouxe para a sugerindo que as migrações ajudem a evitar a compe- coleção do Museu de Zoologia da USP duas operárias tição pelas carcaças. de mais uma espécie não descrita. Os exemplares As constantes migrações das colônias de B. conops foram coletados por Quinet na caatinga de Crateús, para novos ninhos podem ser devidas à pressão da no Ceará. predação de larvas e pupas por coleópteros Histeridae. Até agora, apenas as três primeiras espécies foram Este padrão de distribuição dinâmico também pode estudadas. B. conops é a mais bem conhecida. Jorge estar relacionado com o modo de fundação dos ni-

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nhos pela ergatóide, que consiste em fissões, onde um durante um período de aproximadamente 24 horas. grupo de operárias e uma ergatóide jovem deixam o As larvas que originam ergatóides jamais são antigo ninho e formam outra colônia em novo ninho. posicionadas pelas operárias e se alimentam direta- Esta espécie apresenta uma forma de proteção mente das carcaças oferecidas. Portanto, a criação de contra predação única entre as formigas: As ergatóides uma ergatóide envolve aspectos nutricionais quanti- de B. conops apresentam extraordinárias modifica- tativos transmitidos via trofaláxis. ções na cabeça e na porção anterior do tronco, que As observações da criação de uma nova ergatóide formam uma estrutura com a forma de um disco. em uma colônia órfã levaram à hipótese de que a Quando os ninhos são invadidos por predadores ergatóide controle a produção de novas reprodutoras como os besouros Histeridae, as formigas levam os na colônia e que talvez este controle esteja relacionado imaturos a uma câmara subsidiária separada da com alguma substância produzida pela glândula sob câmara principal por uma parede construída pelas os poros citados acima. No local onde as asas são operárias com fragmentos de carcaças das presas normalmente inseridas nas rainhas das formigas foi capturadas. A ligação entre as duas câmaras é através observado sob lupa estereoscópica com aumento de de um pequeno túnel, que é fechado pela rainha com 100 vezes que existe nas ergatóides de B. conops uma sua porção anterior modificada. Há construção do mancha escura. Esta mancha corresponde ao microscó- mesmo tipo de parede com a mesma localização no pio eletrônico de varredura a dois brotos alares que não interior de vários ninhos de B. conops no campo, em se desenvolvem e apresentam um poro na base comum diferentes localidades: Campinaçu (Goiás), Chapada semelhante ao que na literatura é descrito como se dos Guimarães (Mato Gosso), Selvíria 51º25"W (Mato originando de glândulas epidérmicas. O acompanha- Grosso do Sul) e Três Lagoas (Mato Grosso do Sul). mento de situações experimentais mostrou que colôni- Uma colônia da Chapada dos Guimarães construiu as de B. conops com a rainha ergatóide com os poros da parede similar em um ninho artificial mantido no área dos brotos alares não vedados geralmente não Laboratório de (MZ-USP). produzem nova rainha enquanto a residente está pre- Há provavelmente ainda mais uma forma de pro- sente, ou, se ocorrer, a jovem morre em poucos dias caso teção a predadores: o comportamento peculiar de não migre. Colônias de B. conops com a rainha ergatóide operárias quando aparentemente parecem disputar com os poros da área dos brotos alares (possivelmente) seus próprios imaturos. Enquanto uma operária de B. artificialmente vedados não produzem nova rainha conops carrega um imaturo dentro de seu ninho, segu- enquanto a residente está presente. rando-o entre suas mandíbulas, uma ou mais operá- B. brasiliensis nidifica em serapilhera, entre as fo- rias se aproximam, abrem suas mandíbulas e segu- lhas, em cavidades de plantas vivas ou em caules ram o mesmo imaturo pela extremidade livre. Durante cobertos por folhas, onde também acumulam carapa- alguns segundos as operárias puxam o imaturo cada ças de artrópodos. Em alguns ninhos foram encontra- uma para o seu lado. A operária que ao fim da “dis- das câmaras com carcaças e fungos e, no lixo, insetos, puta” consegue permanecer com o imaturo afasta-se aranhas, diplópodos e pequenos fragmentos de caules. rapidamente, caminhando para outra parte do ninho. Como B. conops, B. brasiliensis alimenta-se de carca- Os imaturos jamais são feridos. Ao submeter algumas ças, atacando imediatamente uma presa oferecida. colônias a vibrações artificiais visando simular a Uma operária ou várias operárias se aproximam, presença de invasores, este comportamento sempre se tocam a presa e a ferroam. desencadeava. Testes revelaram que não há relação É muito comum um comportamento nunca observa- com o processo de ecdise dos imaturos ou com o do em B. conops: As operárias de B. brasiliensis locomovem- estabelecimento de uma hierarquia entre as operárias se com o gáster voltado para baixo e para frente. que exibem este comportamento. Um imaturo seguro De modo diverso ao de B. conops, nas colônias de por duas operárias é mais difícil de ser capturado do B. brasiliensis e de Blepharidatta sp. podem existir mais que quando é seguro apenas por uma. de uma ergatóide e as operárias não são muito meno- Não existe uma casta de rainhas verdadeiras nas res que as ergatóides. colônias nas três espécies de Blepharidatta e a função Blepharidatta sp. nidifica em serapilhera, no espa- reprodutiva é exercida por fêmeas sem asas, seme- ço entre as folhas e acumula carcaças de artrópodes lhantes às operárias e consideradas ergatóides. As e outros restos dentro e ao redor das aberturas de colônias de B. conops são monogínicas. A ergatóide é entradas de seus ninhos. relativamente maior que as operárias co-específicas e Assim como B. conops, as operárias de Blepharidatta possui cicatrizes da asa anterior. sp. alimentam-se de invertebrados, sugando-os pelas Quando uma colônia de B. conops se torna órfã, em áreas de articulações e pelas cavidades das regiões um período de 24 a 72 horas as operárias selecionam cortadas (nos casos de cabeças e pernas cortadas). a maior larva pré-existente, mantém-na à parte e a Enquanto manipulam uma presa e se alimentam dela, superalimentam através de trofaláxis consecutivas algumas operárias ficam sobre a presa.

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Quadro 1 – Comparação de traços da biologia das três espécies estudadas. Característica B. conops B. brasiliensis Blepharidatta sp. Distribuição geográfica GO, MT, MS, MA e TO AM, PA, AC eVenezuela BA Habitat Cerrados Floresta Tropical Úmida Floresta Tropical Úmida Ninho construído no solo (cerca feito entre ou sob folhas e feito entre ou sob folhas e de 20 cm de profundidade). fragmentos de galhos secos. fragmentos de galhos secos. Número de reprodutoras monogínica poligínica monogínicas (minhas obser ergatóides vações); poligínicas (DINIZ, 1994): Ergatóide “produzem” uma nova “produzem” uma nova “produzem” uma nova quan- quando retiramos quando retiramos a do retiramos a original. a original. original. Postura de ovos ergatóide e operárias ergatóide e operárias ergatóide e operárias Oofagia ergatóide e operárias ergatóide e operárias ergatóide e operárias alimentam-se de ovos de alimentam-se de ovos de alimentam-se de ovos de operárias. operárias. operárias. Número de operárias 139, 96 + -73,30, N = 33 167,66+-67,64, N = 5 112+-12,72, N = 2 por colônia Tamanhos médios dos ergatóide: +-5 mm ergatóide:+-2 mm ergatóide: +-2 mm indivíduos de cada casta operária:+-3 mm operária:+-1 mm operária: +-1 mm macho:+-4 mm macho: +-1,5 mm macho: +-1,5 mm Presença de machos outubro a junho outubro a abril não produziu machos no período de observação Carcaças ao redor do orifício de Não observado dispostas próximas as folhas entrada do ninho. secas onde estão os ninhos. Alimentação e tamanho artrópodos emboscados, artrópodos emboscados, artrópodos emboscados, das presas injuriados ou mortos até injuriados ou mortos injuriados ou mortos mesmo 100 x o tamanho de uma menores até maiores que tamanho de uma operária ou operária. uma operária. menor. Interações trofaláxis, limpeza trofaláxis, limpeza trofaláxis, limpeza Tanatose pouco freqüente pouco freqüente muito freqüente Operárias que “dormem” apresenta Não apresenta não apresenta deitadas no chão Disputas pelos próprios realizam Não realizam não realizam imaturos Gota anal expelida pela presente e operárias se ausente ausente larva alimentam da gota Mortos cemitério aparente Sem área preferencial sem área preferencial Recrutamento observado (Diniz, 1994) observado não observado Fusão de colônias em possível possível não observado laboratório Inquilinos no ninho apresenta apresenta apresenta

As operárias de B. brasiliensis e Blepharidatta sp. nho bem maior que o dos indivíduos destas espécies comportam-se de modo semelhante ao das operárias de Blepharidatta (em alguns registros de até 100 vezes de B. conops. Atos comportamentais como o tamanho). Uma vez que os indivíduos destas espé- autolimpeza, limpeza de companheiras de ninho, cies não apresentam nenhuma estrutura que os capa- cuidados com os imaturos (mantendo-os seguros entre cita a serem grandes predadores, parece então prová- as mandíbulas, lambendo-os e os alimentando atra- vel que os indivíduos se alimentam de presas seria- vés de trofaláxis ou os posicionando diretamente mente feridas ou de restos de presas que encontram sobre as presas) são executados de forma semelhante durante o forrageamento ou ainda realizando embos- por indivíduos nas três espécies. cadas, registrado apenas em B. conops. B. brasiliensis e B. conops também têm em comum o Os fragmentos encontrados na pilha de restos fato de que algumas de suas presas apresentam tama- alimentares de Blepharidatta sp. eram de organismos

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do mesmo tamanho ou menores que as operárias BRANDÃO, C.R.F.; DINIZ, J.L.M.; SILVA, P.R.; ALBUQUERQUE, desta espécie, mas pelo comportamento que estas N.L.; S IVESTRE, R. The first case of intranidal phragmosis formigas exibem frente ao oferecimento das iscas, in atns. The ergatoid queen of Blepharidatta conops comparado com o das espécies descritas, devem (Formicidae, Myrmicinae) blocks the entrance of the freqüentemente coletar animais seriamente feridos ou brood chamber. Insectes Sociaux, v.48, p.251-258, 2001. DINIZ, J. L. M. Revisão sistemática e biologia de Blepharidatta mortos, ou coletar restos destes seres, como B. conops Wheeler, 1915, com uma discussão sobre a utilização do e Blepharidatta sp. aparelho de ferrão na classificação de Formicidae Observe Quadro 1. (Hymenoptera). 1994. 147p. Tese (Doutorado) - Depar- B. conops, B. brasiliensis e Blepharidatta sp. compar- tamento de Zoologia, Instituto de Biociências, USP, tilham muitos tipos de comportamentos, mas somen- São Paulo, 1994. te B. conops apresenta ergatóide com cabeça e pronoto DINIZ, J.L.M.; BRANDÃO, C.R.F.; YAMAMOTO, C.I. Biology of modificados formando uma placa única utilizada Blepharidatta , the sister group of the Attini: a como estrutura fragmótica; operárias que “dormem”; possible origin of fungus- symbiosis. e operárias que realizam aparentes disputas como Naturwissencschaften, v.85, p.270-274, 1998. forma de proteger seus próprios imaturos ao ataque KEMPF, W. W. Three new south american ants. Studia de predadores. B. conops reúne maior número de Entomologica, v.10, p.353-360, 1967. RABELING, C.; V ERHAAGH, M.; M UELLER, U. Behavioral ecology caracteres derivados em relação às outras espécies and natural history of Blepharidatta brasiliensis conhecidas do gênero. (Formicidae, Blepharidattini), Insectes Sociaux, v.53, p.300-306, 2006. ROCES, F. Energetics in ant colonies: effects of environmental REFERÊNCIAS temperature on activity rhythms and metabolic expenditure in Blepharidatta. Relatório do Projeto FAPESP BOLTON, B.. A taxonomic and zoogeographical census of nº13.676-8 /1997. 1998. the extant ant taxa (Hymenoptera: Formicidae). Journal SCHULTZ, T. R. & MEIER, R. A phylogenetic analysis of the of Natural History, v.29, p.1037-1056, 1995. fungus-growing ants (Hymenoptera: Myrmicinae: BRANDÃO, C.R.F. & DINIZ, J.L.M. Eco-etologia deBlepharidatta , Attini) based on morphological characters of the o grupo-irmão das formigas cortadeiras. Encontro larvae. Systematic Entomology, v.20, p.337-370, 1995. Anual de Etologia, 11ºAnais, p.311. 1997. WHEELER, W. M. Two genera of Myrmycine ants from BRANDÃO, C.R.F.; DINIZ, J.L.M.; YAMAMOTO, C.I.; AMARANTE, . Bulletin of the Museum of Comparative Zoology, S.T.P. Intradinal Phragmosis in Blepharidatta conops v.59, p.483-491, 1915. ants. Proceedings International Congress of IUSSI, WHEELER, G.C. & WHEELER, J. The larva of Blepharidatta 13º, Adelaide, Autrália, Oxford Press. IUSSI. p.75. (Hymenoptera: Formicidae) Journal of New York 1998. Entomology, v.99, p.132-137, 1991.

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