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A AÇÃO E O DISCURSO: UMA BREVE ANÁLISE DA TRAJETÓRIA INTELECTUAL DE DURANTE O REGIME MILITAR (1964-1975).

RAQUEL FRANÇA DOS SANTOS FERREIRA *

1 - Introdução: Visando comunicar o andamento de pesquisa com fins à defesa de tese de doutoramento, pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação da Professora Doutora Magali Gouveia Engel, venho submeter essa proposta de apresentação ao Simpósio Temático Intelectuais, Sociedade e Política (Séculos XIX e XX). Através dela, pretende-se fazer uma breve reflexão sobre alguns pontos da trajetória intelectual da escritora cearense Rachel de Queiroz (1910-2003). Ao trabalhar, fundamentalmente, com as crônicas publicadas na revista O Cruzeiro - propriedade dos Diários Associados cuja presidência era exercida pelo jornalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo – tem-se observado expressões conceituais, análises acerca de culturas nacionais e internacionais, e importantes críticas à outros aspectos da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea. Tais marcas escritas, deixadas por Rachel, nos permitem vislumbrar um pouco da tessitura de seu tempo, mas também nos convoca a questionamentos sobre sua formação intelectual, os caminhos que percorreu, as idas e vindas de suas ações e as relações com o discurso proferido através de seus textos semanais. Essa exposição, entretanto, não pretende esgotar o assunto tal a sua complexidade e necessário aprofundamento em debates que, por ora, serão apenas sinalizados. Igualmente, não cabem aqui todas as crônicas escritas pela autora naquele período – houve a seleção das mais significativas para compreendermos questões primordiais em sua escrita literária, que também é intelectual. Assim, delineiam-se os seguintes objetivos: a) Apresentar os caminhos que levaram ao tema proposto; b) Situar as crônicas da Rachel de Queiroz no período definido para esse estudo (O ‘Pós- 64’);

* Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do e servidora da Fundação Biblioteca Nacional.

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c) Analisar, via crônicas e cotejamento com outras fontes, seus discursos e atuação político- social, no momento da configuração de uma identidade nacional, a partir do regime de exceção estabelecido no Brasil, pós-1964.

2 – Uma justificativa: caminhos que levaram à escolha do tema. A apresentação: “Entre o discurso e a ação: uma breve análise da trajetória intelectual de Rachel de Queiroz durante o regime militar (1964-1975)” , cumpre etapa de divulgação da escrita da tese de doutoramento, como anteriormente citado, intitulada A ÚLTIMA PÁGINA DE ‘O CRUZEIRO’: CULTURA, POLÍTICA E CIDADANIA EM RACHEL DE QUEIROZ. Esta, por sua vez, tem por meta compreender os meandros da atuação de Rachel de Queiroz, tanto em sua vida de jornalista – ao escrever crônicas semanais para a revista O Cruzeiro – quanto em sua vida política, na atuação no Conselho Federal de Cultura. Como recorte cronológico, escolheu-se o período de 1964 como marco inicial, por causa do estabelecimento do regime militar no Brasil, até o ano de 1975 – quando foi publicada última crônica da autora, naquele impresso. Devido à busca de uma contextualização mais elaborada, durante a pesquisa acadêmica, viu-se a necessidade de uma complementação a partir de referências político- sociais encontradas em outras matérias de jornalistas presentes no conteúdo de cada revista. Na tese, aparecerão menções as suas capas, artigos, charges e outros recursos freqüentes. Isso se deve ao diálogo que a própria autora fazia com seu cotidiano, citando calamidades, curiosidades e reportagens sobre acontecimentos políticos nacionais e internacionais em seus textos, com vistas à construção de um discurso que contribuísse para a formação de opinião, entre os mais diversos grupos sociais onde a revista circulava. A escolha do título: ‘Entre o discurso e a ação’, busca remeter essa reflexão aos postulados teóricos que incluem os intelectuais não só no âmbito do pensamento organizacional de uma sociedade, como também na atuação em sua contemporaneidade, movimentando-se no sentido de construir uma perspectiva de vida condizente com valores morais e éticos de um determinado grupo social (GRAMSCI.1995). Esse artigo insere-se no Simpósio Temático 018: ‘Intelectuais, Sociedade e Política (Séculos XIX e XX), pela sua proximidade com a argumentação das coordenadoras Magali Gouveia Engel e Débora El-Jaick Andrade, constante na justificativa do evento:

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Sob o impacto das transformações da modernidade, os intelectuais ora ressentem a perda de um mundo melhor, ora tornam-se arautos dos novos tempos. Desta forma é importante pensá-los em inserção nas instituições de poder ou Estado, como a Igreja católica, a burocracia estatal, o partido comunista, os setores empresariais, enfim os diversos espaços da sociedade política e da sociedade civil. Os intelectuais se movimentaram no campo de poder, engajando-se em debates fervorosos sobre os rumos das nações, participaram de revoluções e nas guerras mundiais e denunciaram crimes e atrocidades dos regimes autoritários. Atualmente, nota-se a tendência dos intelectuais gradualmente se distanciarem da esfera pública e tornarem-se acadêmicos ou especialistas, o que não impede que continuem defendendo pontos de vista políticos.(ANDRADE/ENGEL. 2012: ST018).

3 – Contextualizando: A pesquisa e, consequentemente, a escrita da tese, levam em consideração três objetos de estudo importantes: a escritora Rachel de Queiroz, as suas crônicas e a própria revista O Cruzeiro – suporte para o qual o texto foi originalmente elaborado. Ressalta-se que, embora os assuntos das crônicas sejam múltiplos, existem aspectos recorrentes os quais – em uma busca pela regularidade presente na diversidade – serão selecionados em uma escrita acadêmica que pretende observar mais cuidadosamente as posições críticas que a autora cearense adota com relação aos conceitos cultura, política e cidadania. A O Cruzeiro foi fundada em 1928. Criada por Assis Chateaubriand a partir da compra da Empresa Gráfica Cruzeiro, a revista Cruzeiro (depois com o título O Cruzeiro ) prometia ser um dos ícones representativos daquela geração. Sua publicação semanal, trazia notícias escandalosas, muito bem diagramadas, com imagens de resolução e qualidade ainda não vistas, até então, antecipavam que se poderia esperar daí em diante: um meio de comunicação com intuito sensacionalista e tiragens vultosas. A opção pelo estudo de crônicas se dá pelas possibilidades que se apresentam a partir de sua escrita. Com pretensões de relatar com fidelidade o que acontecia no dia a dia da cidade, a crônica foi concebida, segundo Afrânio Coutinho (1964), como um gênero literário que relatava, cronologicamente, os acontecimentos diversos. Tomando como empréstimo para sua designação a palavra grega chronos , esses textos mantêm uma estreita relação com o tempo, a memória, e o cotidiano vivido.

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No Brasil, as crônicas circulam em jornais desde o século XIX – nos chamados folhetins – e sua publicação se consolidou por volta de 1930 (SÁ. 1985). A dedicação de autores clássicos como , José de Alencar, dos contemporâneos Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Luís Fernando Veríssimo, e da própria Rachel de Queiroz, contribuiu decisivamente para o fortalecimento desse gênero em nossa literatura. Pensadas quase que exclusivamente para o uso em jornais, as crônicas, por causa de sua escrita do ‘casual’, abrem portas e janelas para que se possa tentar desembaraçar alguns fios da complexa malha social que nos envolvem, com imagens, memórias, identidades de quem as escreveu e nos contam um pouco do cotidiano1 de certas sociedades que as utilizam como forma de expressão. Ao estarem vinculados aos meios de comunicação de massa, circulam de forma abrangente, enriquecendo a si mesmas e aos imaginários sociais, sendo parte construtora e constitutiva de um conjunto de representações construídas socialmente, sobre acontecimentos, eventos, situações, ligadas a interesses de determinados indivíduos e/ou grupos sociais (BACZKO.1985). Apesar de sua preocupação inicial em contar os acontecimentos cotidianos, o uso de figuras alegóricas de linguagem, como comparações e metáforas, atribuindo ao autor o ofício de narrar memórias e experiências de personagens, até mesmo fictícios (NEVES. 1992), parece ter afastado esses textos de um compromisso com a ‘História’ como área de conhecimento científico, aproximando-as do tratamento literário, com a conotação mais voltada para a arte do que para ciência (BOURDIEU. 1990). Entretanto, após as mudanças na historiografia graças aos novos objetos e preocupações de que tratam Jacques Le Goff e Pierre Nora (1976), apesar de obras literárias que o são, suas mensagens não podem prescindir de apelos subliminares a partir dos quais podemos chegar a algumas das visões políticas e ideológicas do autor. Aproveitando a discussão acima, ressalta-se uma tênue diferença entre a concepção de crônicas para jornais e para revistas: de acordo com o suporte, os efeitos produzidos são mais ou menos duráveis na contemporaneidade em que a obra foi produzida (SÁ. 1985). Por exemplo, a crônica que sai em um jornal é planejada para que, no dia seguinte a sua publicação, seja superada por outra que a complemente ou a contradiga. Já a publicada em uma revista semanal, como é o caso de O Cruzeiro , permite que esteja em debate por, no mínimo, uma semana antes da edição da próxima.

1 Que aqui será utilizado na perspectiva de Agnes Heller, ou seja, vivência social heterogênea e hierarquizada, pautada na repetição e na regularidade de ações (HELLER, 1989).

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Rachel de Queiroz, assim como diversos outros nomes de nossa literatura e jornalismo tais como Dinah Silveira de Queiroz, Austregésilo de Athayde e Gilberto Freyre – para citar apenas alguns – integravam as páginas do periódico com crônicas, colunas políticas, romances de ‘folhetim’. As crônicas de Rachel aparecem na revista, semanalmente, a partir do ano de 1945. Daí em diante seus textos tem como local cativo a ‘Última Página’, nome escolhido pela própria autora para dar título à seção, devido ao posicionamento exatamente na folha derradeira do impresso. A colaboração dela segue praticamente sem faltas e só finaliza definitivamente em 1975. Escolheu-se, aqui, a manutenção do recorte cronológico advindo do projeto de doutorado – ou seja, crônicas pós-1964 – pela contemporaneidade dos escritos ao evento de caráter autoritário estabelecido naquela data. Até o momento atual, cerca de 430 crônicas serão escolhidas e copiadas para análise, dentre aquelas que contribuem para a (des)construção e crítica de ações e discursos na interlocução entre a autora, a imprensa e o poder de Estado quando da sua atuação no Conselho Federal de Cultura 2 (1967-1989). A fase posterior, na escrita da tese, será a de cotejamento com informações provenientes dos artigos publicados no corpo da revista, para estabelecer indicativos de diálogo entre as crônicas e a mídia.

4 – Rachel de Queiroz: ação e discurso. Aspectos da trajetória de vida de Rachel podem ser conhecidos através das memórias da autora em capítulos do seu romance O Quinze (1930), além das inúmeras biografias já escritas sobre ela. Marcada pela fuga da seca nordestina, em 1917 se retirava com os pais para o Rio de Janeiro. Anos depois, em 1925, ela retornou a Fortaleza, onde se formou professora primária no Colégio da Imaculada Conceição, com apenas 15 anos de idade. Daí em diante, passou de redatora efetiva no jornal O Ceará , onde inicialmente adotava o pseudônimo de Rita de Queluz, a romancista, cronista em impressos como: Diário de Notícias , O Jornal e O Cruzeiro . Chegou a ser a primeira mulher eleita imortal da Academia Brasileira de Letras, em 4 de agosto de 1977, onde ocupava a Cadeira Cinco, na sucessão de Candido Motta Filho. Durante a década de 30, quando se envolveu com ativistas comunistas e foi presa pela polícia repressora do Estado Novo, Rachel de Queiroz procurava expressar sua visão regionalista, de forte apelo social, e crítica contumaz aos corruptos e entendidos, por ela,

2 Embora não tratemos aqui do Conselho Federal de Cultura, importa saber que Rachel de Queiroz foi conselheira na Câmara de Letras, emitindo pareceres que aprovavam ou negavam recursos financeiros para execução de publicações nacionais, peças teatrais, eventos na área da cultura de um modo geral – desde a sua fundação, no ano de 1967 até o seu fechamento, no ano de 1989.

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como inimigos do povo brasileiro. A coerência na crítica aos opressores levou a sua ruptura com o Partido Comunista, na década de 40, devido à profunda decepção sofrida quando Leon Trotsky foi morto a mando de Joseph Stalin. Suas ações, fortes e enérgicas num primeiro momento, inclusive chegando ‘às vias de fato’ quando um jornalista no Ceará a desqualifica enquanto escritora (QUEIROZ. 2004), envolviam a ação crítica mediante os acontecimentos sociais. Buscava a militância até o momento em que a censura a levou a questionar e a abandonar o trotskismo. A partir de então, tudo aquilo que remetesse ao fascismo, comunismo ou a Getúlio Vargas significariam para ela ‘o caos e a desordem’. Existe a tendência de compreender que primeiro encontramos o discurso do intelectual e, depois, suas ações. Ou mesmo que suas ações são o reflexo perfeito da sua fala previamente conhecida. E também que os pensamentos forjados apenas na intimidade do intelectual ganham vida em suas ações. Entretanto, essa relação não ocorre, necessariamente, de maneira linear. Em incontáveis casos, aquilo que o intelectual escreve, ou fala, não é condição sine qua non para as suas ações. As ações podem preceder os discursos e, inclusive, apresentarem discrepâncias e ambigudades. E. P Thompson (apud SOIHET, 2003: p.16) pode colaborar para essa análise quando afirma que “todo o significado é um significado-no-contexto e, quando as estruturas mudam, as formas antigas podem expressar funções novas e as funções antigas podem encontrar sua expressão em formas novas”. Essa aparente ‘falta de coerência’ (GRAMSCI.1995) entre ação e discurso, em parte se deve às estruturas de poder, sejam elas políticas, econômicas, religiosas; em outros casos às pressões sociais conjunturais, ou ainda a tomadas de posições individuais fruto de escolhas como as que Rachel fez, por exemplo, a partir da ruptura com o Partido Comunista. As crônicas selecionadas para leitura e análise, neste artigo, foram publicadas no ano de 1964. São contemporâneas ao choque causado na população pelo regime de exceção estabelecido no decorrer dos meses seguintes a abril daquele ano. Rachel de Queiroz participava da cúpula que organizou o movimento militar. Seria ela, inclusive, aparentada do Marechal Humberto Castello Branco que assumiu a presidência do país, na época. As primeiras impressões que obtivemos com a leitura dos textos da autora, giram em torno da euforia causada com o suposto ‘fim da ameaça comunista’, com a tomada do poder pelos militares:

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Dele [referia-se ao General Castello Branco, que havia assumido o governo] não temos a recear que os poderes excepcionais lhe subam a cabeça e que nenhuma escura noite ditatorial vá cair sobre nós, com os presídios cheios de presos políticos, sem inquérito nem processo, a opinião sufocada, a censura nos jornais e emissoras. O seu combate aos comunistas e demais conspiradores vai ser às claras, pela letra da lei, à sobra da toga dos juizes. Quem tiver crime paga – e para os crimes há definições específicas nos códigos e nas leis de segurança nacional. 3

Bom, ainda era o ‘alvorecer’ do regime militar que estava em vias de se consolidar no Brasil, nos anos seguintes. Assim como Rachel de Queiroz, grande parcela da população brasileira – especialmente localizada entre as classes médias urbanas, trabalhadores assalariados e intelectuais de direita – entendiam que aquele movimento era ‘inevitável’, para a contenção de anseios esquerdistas. Nos primeiros meses de organização do governo militar, observa-se uma defesa contínua nas crônicas de Rachel de Queiroz, para que não haja perseguições ideológicas, censuras, presos e exilados políticos... Tudo isso porque ela mesma vivenciou a prisão por motivos ideológicos em 1932, em pleno governo Vargas, quando foi identificada com o movimento comunista daquele tempo. Tal acontecimento levou a autora a execrar tudo o que tivesse ligação com Getúlio Vargas – e o fascismo que lhe foi característico nas décadas de 1930 e 1940. João Goulart e Leonel Brizola também eram alvos de suas fortes críticas. Primeiro por causa da relação que ela fazia entre os dois e o próprio Vargas, pois os considerava herdeiros políticos comuns. Depois por causa das reformas propostas por João Goulart e apoiadas por Brizola que, segundo ela, tinham raiz comunista. Mas as limitações contra o comunismo deveriam ser bem trabalhadas, como se vê no fragmento abaixo:

No consenso da maioria, o mais que se pode fazer democraticamente, nesse sentido, é prender e punir os que forem culpados de conspiração contra o regime, cometendo atos de deliberada malícia contra as instituições e a Constituição. Mas prender por mero “crime ideológico”, é caçada a feiticeiras que só dá resultados negativos, e só consegue desencadear uma onda policial direitista tão antidemocrática e perigosa para as liberdades

3 QUEIROZ, Rachel. ‘A Nova Revolução’. O Cruzeiro , RJ: 23/05/1964, p. 130.

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públicas quanto da onda comuno-esquerdista. Prendam-se, processem-se, condenem-se os homens que ativamente, concretamente, “atualmente”, promoveram a agitação, a conspiração, os atentados . Castigue-se duramente não só com a suspensão dos direitos políticos, mas com toda a força das sanções penais, a entourage imediata do Sr. João Goulart que, por sujos motivos de ambição pessoal (pois nem ideologia se lhes pode atribuir), instituíam o caos, a desordem social e a derrocada econômica, a fim de assentarem sobre os destroços a sua ditadura de espertalhões, de pelegos e caudilhos. 4

Podemos perceber que as noções de política e cidadania defendidas pela autora eram baseadas em pensamentos de direita, isto é, em defesa à propriedade, da moral e dos anseios burgueses. Apesar disso, em seu discurso, aparecem críticas às atitudes autoritárias e antidemocráticas assumidas pela extrema-direita, de cunho fascista, em décadas anteriores – já que ela os identificava com os ‘comuno-esquerdistas’, devido à semelhança de ações de caráter arbitrário dos primeiros. Segundo Rachel: punição sim, mas contra aqueles que deliberadamente tivessem atuado contra o governo estabelecido em abril de 1964, pois que ela entendia este como ‘constitucional’ e ‘legítimo’. Estaria a autora salvaguardando o direito à crítica ao regime? Sabe-se que, em qualquer comunidade humana, há disputas pelo poder (FOUCAULT. 2000). E que emergem, nestas disputas, as heterogeneidades presentes dentro de cada grupo, ainda que compartilhem da mesma matriz ideológica – que no caso da autora, é de direita. Ou seja, ter posturas ideológicas e políticas diferentes do grupo à frente do movimento, ainda que em consonância com o governo, não deveriam ser encaradas como oposição a este, ou como ‘crime ideológico’. Se esta era a sua intenção, fazia ela uma crítica às posturas mais radicais presentes no movimento? Mais alguns elementos de crítica aparecem no fragmento abaixo, em que Rachel pede auxílio ao Ministério da Viação e Obras Públicas para a construção de estradas e outras formas de escoamento de mercadorias, para contornar os problemas causados por constantes chuvas no Nordeste. Essa crônica, em forma de carta ao Ministro Juarez Távora foi, ao mesmo tempo, um apelo e uma análise acurada, apesar de simples, das medidas equivocadas que estavam sendo tomadas pelo governo:

4 QUEIROZ, Rachel. ‘Os Mestres das Obras Feitas’. O Cruzeiro , RJ: 06/06/1964, p. 122.

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Se isso não for feito, tudo o mais – programas de assistência agrícola, ajuda econômica, eletrificação, industrialização, etc., fica em pura demagogia. O velho Washington Luiz, que o Tenente Juarez Távora ajudou a derrubar, já dizia que “governar é fazer estradas”. E nunca esse slogan antigo pareceu tão atual e tão justificado quanto neste nosso infeliz Nordeste, afogado num dilúvio, um dilúvio até agora sem Arca e sem Noé. (...) P.S. – E já que estamos conversando, permita que pergunte: o Ministério da Viação já se informou do que andavam fazendo com os navios da Costeira, tipo “Princesa”, prometidos para as linhas costeiras do Brasil e que nunca chegaram direito a cumprir a tarefa, porque eram cedidos às companhias de turismo para cruzeiros de passeio, sendo que foi num desses cruzeiros que quase afundaram o Ana Nery? E agora, Deus que me perdoe, o “Princesa Leopoldina” até servindo de prisão, em vez de navegar, como se não fizesse tanta falta! 5

Ora, será que essas também não seriam críticas da esquerda? Com o estabelecimento do regime, pouca coisa havia mudado em termos de investimentos em obras públicas que favorecessem a população em geral – em especial a camponesa. Havia a compreensão de que o governo era recém inaugurado, contudo, algumas medidas políticas não se fizeram tardar, como a disposição de navios para servirem de prisão. Por que então as obras tão importantes para a população, tanto demoravam? As classes operárias e camponesas no Brasil seguiram caminhos diferentes em termos de agremiação sindical. Seus desejos, apesar de similares, chegaram primeiro – mas não integralmente – aos trabalhadores urbanos, via Consolidação das Leis do Trabalho, criada durante quinze anos do governo Vargas. Naquela época, sindicatos de operários urbanos foram organizados e controlados pelo governo, como forma de coibir as manifestações ligadas ao Partido Comunista - posto na ilegalidade em 1935. Entretanto, os trabalhadores do campo, apesar de sua origem remontar aos tempos coloniais da história do país, não eram considerados uma categoria até a formação das Ligas Camponesas, em 1950 – lideradas pelo advogado e escritor Francisco Julião Arruda de Paula.

5 QUEIROZ, Rachel. Carta ao Ministro da Viação. O Cruzeiro, RJ: 30/06/1964, p. 122.

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A aproximação entre o PC e os trabalhadores do campo foi fundamental para a formação de movimentos pela reforma agrária. Os ideais de esquerda brilhavam nas mentes daqueles que, relegados pelos governos à margem econômica, política e social, encontravam nos discursos comunistas a verdadeira ‘salvação de suas lavouras’. Isto é: já que o governo não cuidava do equilíbrio na distribuição de terras, fizessem isso eles mesmos. Mesmo que, para tal, tivessem que invadir propriedades. João Goulart parece haver entendido a intenção das Ligas Camponesas. Talvez por isso, planejava a distribuição de terras através do governo. O problema é que a noção de propriedade privada é muito cara às elites que sustentam a política brasileira, tanto as urbanas quanto as rurais. Ao lado delas, lia-se a palavra da Rachel que tudo fazia para descaracterizar a legitimidade daquela organização de trabalhadores:

Se há obra que é inteiramente, totalmente, o resultado do trabalho paciente, cuidadoso, deliberadamente estudado, do Partido Comunista Brasileiro, essa obra foi a sindicalização rural. Começaram os comunistas da estaca zero, da terra virgem, da selva bruta; deles foi a idéia, iniciativa, a realização. E se o movimento não lhes obteve maiores e mais imediatos resultados, demos graças a Deus aos vícios da organização interna do PC, às suas dissenções [sic], aos choques das ambições e à corrupção dos prepostos utilizados, aos erros estúpidos e primários que eles sempre cometem na sua presunção de infalibilidade, enfim, ao conjunto de causas e efeitos que tem retardado e em outros casos impedido o avanço da pregação comunista no resto do Mundo. 6

Segundo a autora, inclusive os sertanejos eram avessos à ideia de sindicato, devido à associação dessas instituições aos movimentos sociais armados. Se pararmos para pensar, há certa lógica nesta concepção por encontrarmos o imaginário social brasileiro impregnado das críticas aos anarquistas da Primeira República, época em que os sindicatos que promoviam manifestações em prol de seus interesses eram considerados ‘baderneiros’ e, para Rachel, nem sempre com aspirações legítimas:

Para se fazer o saneamento da má semente, há pois, querer e começar tudo de novo. A própria palavra sindicato está hoje profundamente comprometida

6 QUEIROZ, Rachel. Os Sindicatos Rurais. O Cruzeiro, RJ: 16/05/1964, p. 122.

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ante a massa rural. “Gente de sindicato”, para os sertanejos, quer dizer os ressentidos, os cabeças de motim, os promotores da desordem, os agitadores da pobreza. A idéia de sindicato está profundamente confundida, na inteligência dos homens do campo, com o janguismo, os pelegos, os promotores de uma “guerra” que de modo geral os assustava e repeliam, mas que lhes diziam inevitável. 7

Sempre muito preocupada com o trabalhador rural, em especial os do Nordeste, pela sua ligação afetiva com a cultura de sua terra natal, Rachel de Queiroz também mostrava o lado alegre e inventivo dos sertanejos. Lutando para sobreviver e no meio do embate entre forças políticas governistas e oposicionistas que percebiam no povo nordestino uma importante parcela da população a conquistar – já que as regiões Sul e Sudeste pareciam ‘sob controle’, para o governo e intelectualizadas o bastante para saberem como reagir, segundo os opositores ao regime – o povo ainda encontrava espaço e criatividade para obterem um pouquinho mais de lucro em seus produtos, mostrando que astúcia não depende de intelectualidade. Pelo menos até que alguém descobrisse:

P.S. Você sabe como é o negócio dos dois couros num bode só? Foi no tempo em que o Boris comprava pele de cabra por unidade. Em vez de se dar ao bode um corte ao comprido da barriga, divide-se o bode em dois “hemisférios”: o de cima inclui o maxilar superior, a testa, o espinhaço, a parte externa dos membros e a metade superior da cauda; o de baixo compõe-se do queixo, a barriga, a parte interna dos membros e a parte inferior da cauda. Espiche os dois couros e cada um tem tudo, cabeça, corpo, mão, perna e rabo... Mas depois descobriram, e deram para comprar couro a peso. Estragou-se o “comércio”... 8

Aproximando-se do linguajar e dos trejeitos populares, Rachel ganhava adeptos para as suas crônicas e difusores de suas idéias e opções políticas. Ainda que sua preocupação fosse honesta, obviamente há que se considerar que para chegar aos corações e lares dos seus interlocutores principais, os seus leitores, havia a necessidade de falar sobre a cultura popular,

7 IDEM, ibidem. 8 QUEIROZ, Rachel.Carta ao Patrão. O Cruzeiro, RJ: 21/03/1964, p. 130.

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fazer críticas aos governos passados e informar aos grupos então hegemônicos o caminho que deveriam seguir, para se manterem no poder, de maneira clara e objetiva. Discursos e ações se entrelaçavam na construção de identidades e memórias, no momento de consolidação do regime militar.

5 – Horizonte de Expectativas 9: Rachel de Queiroz figurava entre os elementos pertencentes às classes hegemônicas durante o regime militar. Suas performances, em seus textos, apresentavam características flagrantes de assimilação dos valores dispostos pelos discursos de militares e setores conservadores da sociedade brasileira de então. Pairam dúvidas: o que teria acontecido com a mulher outrora presa como comunista? Seria uma nova consciência de classe forjada pela autora? Sabendo de sua penetração em camadas populares, através das páginas da revista, haveria mensagens ‘subversivas’ ou ‘coercitivas’ em seus textos? Como dito anteriormente, o tema não se esgota nessa apresentação, contudo o estudo das crônicas pretende levar em consideração as estruturas discursivas que lhes são peculiares, por estarem forçosamente inseridas dentro de um suporte transitório, por serem escritas poucas horas antes de serem publicadas e por estarem ligadas intrinsecamente a padrões estéticos que transitam entre a escrita jornalística e a ficcional (COUTINHO. 1964). Por um lado, as crônicas são filhas de seu tempo histórico levadas à luz pelas mãos do autor. São também primas do discurso que compõe as suas linhas. Nelas, aparecem categorias explicativas fundamentais, para que possamos detectar as posições com as quais o escritor se afina, difundindo ou negando concepções político-sociais daquele presente e transparecendo suas expectativas de futuro. Esta seria uma das características próprias de sua função jornalística. Por outro viés, são também parentes da memória. O passado do autor, dos conflitos históricos, das trajetórias de vida, emergem nas linhas escritas. Também fazem parte delas ausências e esquecimentos. Partes de um todo, que é a vida experimentada, que constam no anverso do texto. Lacunas que chamam a atenção para o que se quer selecionar como fator merecedor de continuidade, ou sobre o que se quer silenciar – calar diante de uma indignidade, decepção ou inconveniência, sejam elas individuais ou coletivas (LE GOFF.

9 Expressão em referência ao autor alemão Reinhart Koselleck, que pressupunha que construção histórica precisa levar em consideração os contextos e processos sociais que criam possibilidades para desfechos de acontecimentos dentro do que chama ‘espaços de experiências’ e ‘horizontes de expectativas’.

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1984). Aqui, a memória assume ares de elemento ficcional importante – exatamente não conseguir esconder o que se quer camuflar. De certo modo, pesquisar crônicas é penetrar nas marcas de vida de quem as escreveu. O contexto em que foram escritas deve ser levado em consideração. Mas, para encerrar com uma última provocação, como esquecer que as memórias do autor ajudaram a construir as nossas trajetórias intelectuais? As marcas de vida dele, também fazem parte do agora, já que somos fruto das expectativas de futuro que herdamos do seu tempo.

6 – Referências. ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS . Biografia da Rachel de Queiroz . Disponível em: www.academia.org.br , acesso em 21/08/2010. ANDRADE, Débora El-Jaick/ Engel, Magali Gouveia. Simpósio Temático 18: Intelectuais, Sociedade e Política (Séc. XIX e XX). SP: ANPUH, 2012. Disponível em: http://www.encontro2012.sp.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=886 BACZKO, Bronislaw. “ Imaginário Social” . In: Enciclopédia Einaudi . Vol 5. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico . Lisboa: DIFEL, 1990. BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana . 21ªEd. Rio de Janeiro: Record, 1999. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações . Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil . Volume III - RJ: Livr. São José, 1964.

O CRUZEIRO . Rio de Janeiro: Empresa Gráfica ‘O Cruzeiro’. Ano 1, n.1(10 nov.1928).

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