Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves SÍTIO ARQUEOLÓGICO “PEDRA DO MUINHO”, CAETÉS, MERIDIONAL DE , BRASIL ARTE RUPESTRE E COMUNICAÇÃO EM CONTEXTO

Alexandre Gomes Teixeira Vieira [email protected] Luiz José dos Santos Silva [email protected] Rogerio Ferreira de Oliveira [email protected] Charles de Souza Oliveira [email protected] Gabriel Barbosa de Melo Neto [email protected] Marina de Sá Leitão Câmara de Araújo [email protected] Prof. Dr. Adjair Alves [email protected]

RESUMO: A arte rupestre e sem sombra de dúvida um importante registro da passagem do ser humano pelo Nordeste do Brasil. O presente trabalho busca discutir as inscrições rupestres enquanto agentes comunicadores entre os grupos caçadores – coletores que habitaram a região Agreste de Pernambuco, bem como enquanto registro sobre o povoamento dessa região. Além da revisão bibliográfica sobre arte rupestre em Pernambuco o trabalho contou com intervenções em campo visando mapear e registrar as inscrições do sítio Pedra do Muinho no município de Caetés – PE. Nesse sítio é possível encontrar inscrições rupestres de tradição Agreste e Itacoatiara dentro de um mesmo contexto e divididos em vários painéis tendo três desses painéis um maior destaque visualmente falando, onde estão inscritas as principais inscrições desse sítio. Sendo assim este sítio apresenta grande potencial e diversidade de escritos em um mesmo contexto. Palavras – chave: Arte rupestre, comunicação, simbologia

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 164 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves ABSTRACT: The rock art is undoubtedly an important record of the passage of the human being through the Northeast of . This paper aims to discuss the rock inscriptions as communication agents between hunting-gatherers groups who inhabited the region of Pernambuco hinterland, as well as to record of the settlement of this region. Besides the literature review on rock art in Pernambuco (PE), the work included field on interventions which aimed to map and record the inscriptions in the Muinho Stone site, in the municipality of Caetés - PE. In this site you can find inscriptions of Hinterland and Itacoatiara tradition within a context and divided into several panels, with three panels being prominent, where the main inscriptions of this site are listed. So this site has great potential and diversity of writings in the same context.

Keywords: Rock art, communication, symbolism.

01.Introdução A arte rupestre é de longe a principal fonte de registro histórico e signológico dos grupos caçadores coletores da pré- história, sendo que o Nordeste brasileiro apresenta um dos mais ricos acervos de arte rupestre do mundo (MARTIN, 1996; PESSIS, 2003). O estudo dessas manifestações gráficas é de vital importância, pois é um registro fidedigno da experiência de vida dos humanos primitivos (SILVA, 2012). As obras de arte podem não servir de forma utilitária ao homem, mas servem ao menos para que expressem seus sentimentos diante

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 165 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves da vida e sua visão sobre o momento histórico em que viveram (SANTOS, 2001). O semiárido nordestino apresenta em quantidade significativa essas representações rupestres em variadas técnicas e tradições (MELLATI, 2007). Essa variedade de representações gráfico-artísticas dos caçadores – coletores que viveram nessa região semiárida em períodos históricos passados tem chamado atenção de inúmeros estudiosos, tais como Ferreira (2001), que inicia sua obra sobre o povoamento do Agreste pernambucano tendo como ponto inicial sítios arqueológicos localizados na Serra dos Cachorros nas proximidades de Caruaru (PE), Laroche (1980), que catalogou e datou sítios arqueológicos na região do município de Bom Jardim, MARTIN (1996) que fez trabalhos de prospecção no município de , e AGUIAR (1986), que contribuiu muito com suas produções bibliográficas para o estudo da arte rupestre pernambucana, principalmente no que diz respeito à tradição Agreste. A região do Agreste Pernambucano foi ocupada por populações pré-históricas. Isso pode ser constatado pela variedade de sítios arqueológicos existentes nessa região, que estão distribuídos por uma grande área. Os primeiros povoamentos no Nordeste Brasileiro teriam ocorrido por volta

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 166 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves de 40.000 anos AP na região do Piauí. Essas comunidades seminômades teriam chegado à bacia hidrográfica do São Francisco e se dispersado pelas bacias menores por volta de 18.000 anos AP (FERREIRA, 2001). Entre essas bacias está a do Rio Ipanema, na qual está localizado o vale do Riacho São José, em Pernambuco. Recentemente nessa área foram encontrados sítios arqueológicos nunca estudados, portanto sem datação, onde estão inscritas pinturas rupestres representando imagens abstratas integradoras da memória de grupos caçadores coletores do passado pré-histórico do Agreste Pernambucano. Elas estetizaram o meio ambiente imediato e registraram momentos de pertença coletiva e/ou fatos relacionados à natureza e ao seu modo de vida. Este trabalho tem por objetivo fazer uma abordagem antropo-arqueológica das pinturas e gravuras rupestres do sitio “Pedra do Muinho” em Caetés - PE, dentro de seus padrões e técnicas, partindo de uma análise crono-tecnológica e cultural, interpretar o sitio correlacionando-o com o meio em que o mesmo está inserido, bem como fazer um registro aprofundado das inscrições rupestres nele existentes, tendo como objetivo específico: interpretar as inscrições rupestres do sítio com base

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 167 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves em padrões gráficos e crono-estilísticos, com base nas descrições propostas pela Arqueologia em Pernambuco.

02.Material e métodos 02.1Área de estudo O sítio arqueológico “Pedra do Muinho” está localizado na zona rural do município de Caetés, na mesorregião do Agreste Meridional do estado de Pernambuco e na microrregião de domo meridional do Planalto da Borborema, uma das principais áreas de vegetação úmida do Agreste de Pernambuco segundo Andrade (1998), nas coordenadas 08°46’22’’ S e 36°37’22’’ W. A área total do município de Caetés é 329 km² (IBGE, 2010). O sitio encontra-se nas coordenadas S 08° 46’13.1’’, W 036° 44’03.8’’, com altitude de 850m, em meio à área remanescente de , num afluente do Riacho São José, conhecido como Filapa. O mesmo escoa para um riacho maior chamado Firme e, em seguida, deságua no riacho principal, o riacho São José. Foram encontrados outros sítios de interesse arqueológico em toda a extensão do Riacho São José e afluentes, bem como outros possíveis locais de ocorrência arqueológica que carecem de mais observações.

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 168 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves Entre as principais características do sitio está a vegetação em seu entorno. Predominantemente, a vegetação nos arredores do sitio é correspondente ao bioma Caatinga. As espécies em destaque são: Braúna (Schinopsis brasiliensis Engl.), Pau-ferro (Libidibia ferrea (Mart.ex Tul.) L.P. Queiroz), Catingueira (Poincianella pyramidalis Tul.), Jurema- preta (Mimosa tenuiflora (Willd.) Poir), entre outras espécies lenhosas da Caatinga, também é possível observar pastagens e plantas fluviais, que só ocorrem nos períodos chuvosos. Evidencia-se a presença de marmitas e caldeirões nas proximidades do sítio, que localiza-se em um curso d’água.

02.2 Procedimentos em campo Os procedimentos feitos em campo para o registro do sitio “Pedra do Muinho” começam com ensaio fotográfico das inscrições rupestres do sitio e do entorno do mesmo, o que inclui o registro da vegetação, relevo, formações rochosas além do próprio sitio e vestígios humanos recentes provocados pela agricultura nas proximidades do local. Também foi utilizado o decalque em plástico transparente, para preservar os grafismos, somando ao acervo fotográfico. Para as inscrições em baixo relevo outros métodos de decalque foram utilizados, tais como a utilização de

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 169 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves marcadores sobre um plástico e papel 40, gravando todas as marcas aparentes ou não a olho nu, permitindo o entendimento dos grafismos em sua totalidade. Informações dadas por moradores locais contribuíram para esse trabalho, desde a coleta de informações de caráter etnológico sobre o local até informações sobre a posição geográfica do mesmo. O geoposicionamento do sitio foi feito utilizando um aparelho GPS. Posteriormente as informações foram tratadas, formando um banco de dados para a produção geocartográfica sobre a área.

02.3. Análise de dados Para compreender os padrões de comunicação criados, as dimensões e as suas significações simbólicas, esse estudo pede um campo multirreferenciado que aproxime epistemologias, sem, no entanto, abrir mão de uma racionalidade científica na perspectiva de caracterização das estruturas simbólicas e suas variadas dimensões. O método proposto por Aguiar (1986) na interpretação da arte rupestre e classificação de suas tradições foi aplicado para descrição e caracterização dos grafismos e gravuras do sítio arqueológico, bem como os conceitos e descrições propostos por Carvalho (2003). Os métodos articuladores deste trabalho

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 170 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves foram baseados na interpretação dos padrões gráficoestilísticos, correlacionando-os a partir da perspectiva etno-histórica e promovendo discussões acerca das inscrições rupestres como elementos de representação e comunicação humana e sua relação com o meio onde viveram os humanos do passado do Agreste Pernambucano. Os dados adquiridos em campo foram analisados consultando a bibliográfica selecionada dentro das temáticas próprias da Arqueologia e áreas afins para esse trabalho. O primeiro passo foi a seleção das imagens para o tratamento em softwares próprios para tal fim, identificação e “interpretação” dos signos registrados no sitio. As informações geográficas coletadas em campo foram analisadas e tratadas, produzindo-se a partir delas uma cartografia da área do sitio “Pedra do Muinho”. As informações que resultaram na produção cartográfica geraram um banco de dados contribuindo para o trabalho no sítio arqueológico. Um outro procedimento importante para a interpretação dessas inscrições rupestres foi o tratamento das imagens fotografadas através de softwares de edição de imagem, utilizando ferramentas de realce, inversão e seleção das cores. Esse tipo de método torna visível aquilo que não está aparente a olho nu. Muitas das inscrições mais apagadas apresentam

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 171 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves traços de pigmento avermelhado em seu entorno, apesar desse pigmento não possuir uma forma aparente. Esse processo de interpretação utilizando softwares de edição de imagem permite uma compreensão das formas dos grafismos menos preservados.

03.Resultados e discussão 03.1 Características do sítio A descoberta do sítio se deu através de informações fornecidas pelos moradores locais das comunidades no entorno dos sítios Serrote, Exu e Montevideo, na zona rural de Caetés, Agreste pernambucano. Segundo os mesmos, havia um lugar onde existia um “muinho” (ferramenta rústica de pedra utilizada para triturar grãos, principalmente milho) gravado na rocha. Por esse motivo, o lugar é conhecido como Pedra do Muinho. Por estar situado num local de difícil acesso, o sítio permaneceu em um bom estado de conservação. Entretanto, segundo a comunidade local, um antigo morador teria tentado arrancar as inscrições em baixo relevo (Itacoatiaras) do local, pois, segundo a concepção imaginária da comunidade daquele lugar, por trás da imagem haveria um suposto “reino encantado” onde existiria ouro. Ao local ainda são atribuídas características mágicas que tem relação direta com a religiosidade popular, fazendo com que alguns moradores tenham receio em ir até o local.

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Figura 1- localização do sitio “Pedra do Muinho” no município de Caetés – PE

No sítio arqueológico “Pedra do Muinho” as inscrições estão divididas em três “painéis” principais, cada um com representações distintas. O primeiro apresenta um grande painel com um conjunto de inscrições pintadas que toma quase toda a formação rochosa onde estão os grafismos; também é possível encontrar manchas e outros vestígios neste painel. O segundo painel apresenta grafismos isolados, traços e uma representação provavelmente zoomórfica encontrada também em baixo relevo em outro painel. E no terceiro, inscrições

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 173 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves grafadas em baixo relevo, concebidas pela técnica de raspagem e polimento. Sendo assim, os grafismos do sítio podem ser descritos como pertencentes às tradições “Agreste” e “Itacoatiara”. Além dos três paredões principais, vários outros pontos da formação rochosa correspondente ao sitio “Pedra do Muinho” apresentam inscrições rupestres e vestígios de inscrições rupestres. Sempre em pigmento avermelhado, com tons alaranjados em alguns pontos, essa coloração depende do estado de conservação e luminosidade das inscrições em particular. Dentre outras formas geométricas é possível encontrar semicírculos, bastões, espirais e formas que lembram triangulações. Outras formas de representação observadas facilmente em quase todos os paredões, são linhas organizadas na vertical e sempre de três em três. As inscrições grafadas são encontradas sempre em um pigmento avermelhado que entra em contraste com a cor da própria rocha, onde ela está dificultando a interpretação de algumas das inscrições. Os sinais grafados são círculos, linhas, curvas e conjuntos de três linhas curtas sempre juntas. Também foi possível identificar outras formas geométricas no sítio, todas se relacionando umas com as outras. As inscrições em baixo relevo são polidas. Além da inscrição que dá nome ao

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 174 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves sítio, que é um círculo com sulcos na direção do centro, onde existe um polimento arredondado, há outras inscrições que lembram motivos encontrados nos grafismos, como padrões de três linhas e picoteamento. E algumas que lembram um motivo zoomórfico também foram encontradas em destaque no lugar.

Figura 2 – Pinturas rupestres do sítio Pedra do Muinho. 02 – Itacoatiara que dá nome ao sítio. 03 – um dos três painéis com arte rupestre do sítio. 04 – Visão geral dos afloramentos rochosos que compõem o sítio arqueológico e seus arredores.

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Figura 3 – Painel com pinturas rupestres. 02 – inscrição zoomórfica do segundo paredão. 03 – painel com itacoatiaras. 04 – visão geral do sítio arqueológico.

A prática gráfica foi a maior resposta do ser humano primitivo às intempéries do meio onde vivia (CHILDE, 1988; PESSIS, 2003; COOK, 2005). Dentro da prática gráfica concebida por arte rupestre, estão impressos elementos comunicativos próprios do ser humano. Os registros e representações da memória do ser humano surgem diante de experiências vivenciadas que possuem algum valor para aquele(s) que manifesta(m) suas sensações diante de um determinado momento e de um meio.

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 176 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves Visto que toda forma de arte implica em um sistema de linguagem e comunicação, e sendo a linguagem uma característica essencialmente humana (JOVANOVIC, 1987), sendo assim, as inscrições rupestres encontradas no sítio Pedra do Muinho são de fato documentos históricos, testemunhos de um período histórico e da passagem humana pelo Agreste Pernambucano, visto, que todo vestígio da presença humana em um lugar é uma fonte para interpretação de sua história (LE GOFF e NORA, 1988). As práticas arqueológicas para a compreensão das relações sociais não são feitas apenas a partir da coleta de materiais avulsos, mas de todo o contexto do sítio arqueológico e das possíveis relações entre o meio e o homem (PROUS, 2006). A vida cotidiana em si não deixa vestígios que podem ser lidos de fato, apenas os utensílios, marcas, restos biológicos e as manifestações gráficas deixadas pelos homens e mulheres da “pré-história” podem apresentar um desenho para compreender o contexto histórico e social em que viveram, sobretudo em condições improvaveis. Esses vestígios e registros de experiências do passado são encontrados em abundancia na região Agreste de Pernambuco, e no vale do São José onde está inserido o sítio Pedra do Muinho, os vestígios de arte rupestre nessa região

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 177 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves permitem uma leitura e interpretação da história desse lugar, sendo essas inscrições registros da experiência de grupos que teriam habitado essa região, de fato isso pode ser observado, talvez até em um único sitio que apresenta técnicas e grafismos distintos de um painel para outro (ACENE, 2013). A arte rupestre é o mais significativo dos registros do passado humano, principalmente em uma região como a do vale do São José em Caetés e o Nordeste brasileiro como um todo, onde todos os grupos étnicos conhecidos com a chegada dos colonizadores europeus possuíam apenas a oralidade como ferramenta de perpetuação de conhecimento. Além da fala, é na arte que o ser humano manifesta toda sua realidade e identidade cultural e social, além de reconhecer como pertencente a um determinado espaço social. À medida que as práticas culturais se ampliam, o ser humano tende a transformar o espaço intocado ao menos em objeto de contemplação, o que dá ao grupo que ali vive uma característica de pertença, transformando o meio em um fruto próprio da produção histórico-cultural (SANTOS, 1996). No que hoje corresponde a região Agreste é possível perceber os espaços trópicos como ambiente hostis à habitação humana. Porem as inscrições deixadas por seres humanos nessa região mostram que essa região foi palco para experiências culturais

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 178 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves únicas fruto da relação que os seres humanos criam entre eles e o meio onde estão inseridos e, das sensações que esse meio proporciona. Assim como a humanidade hoje, atribui significados e padrões estéticos para o semiárido nordestino, em períodos passados da história dessa região o ser humano também atribui- o significados sobre a mesma, criando nesse espaço um registro, fruto das experiências vividas num contexto territorial. Esse registro é o da arte rupestre. Um registro de experiências vividas que conseguiu resistir as intempéries desse meio apresentado com formas hostis a possibilidade de permanência e habitação de grupos humanos. O conjunto signográfico, criado por esses homens em meio a um contexto único, impôs uma criação estética. Intersubjetivamente modificaram a natureza em que viviam e apropriando-se desse meio ambiente inscreveram o “novo”, uma memória estetizadora do “eu” e/ou do “nós”, consciência de sua existência. Eles registraram e reproduziram nas rochas não só o meio imediato, mas todos os elementos coletivos, elementos esses inimagináveis se tratando dos grafismos puros do sitio “Pedra do muinho” que apresenta predominantemente formas sem nenhuma interpretação possível. Outros sítios que apresentam grafismos de composição e de ação deixam claras

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 179 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves as experiências religiosas, caçadas, relações sexuais etc., que foram de fato experiências do coletivo desses grupos e se tornam aparentes nessas outras técnicas de representação. Tais registros sígnicos foram produzidos com certa técnica, porém a partir de um contexto histórico-cultural único, pois o ser humano interpreta o meio, de modo a satisfazer suas necessidades, se apropria dos recursos ali existentes e recriando assim seu ambiente de convívio (BERNARDES e FERREIRA, 2010). Fenomenologicamente, esse estágio tecnológico, psicológico e comunicativo encontrado nas manifestações artísticas dos caçadores coletores do vale do São José bem como em todo Agreste Pernambucano são de fato um relato de sua experiência vivida. A área no entorno desse sítio arqueológico é caracterizada pela vegetação característica da Caatinga, a qual passou pelo processo de desmatamento, seja para dar lugar à agricultura de subsistência ou para a pecuária de bovinos e caprinos, visto que o ser humano se utiliza dos recursos materiais/naturais segundo às suas necessidades e cria uma relação direta com o meio onde vive. O aproveitamento e a relação com o meio são compostos pelos aspectos naturais que se naturalizam e torna-se agradável ao convívio da humanidade. Ele absorve, interpreta e cria a realidade imediata,

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 180 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves e a própria relação diária do ser humano com o meio deixa um vestígio material. O espaço sem habitação não tem sentido (SANTOS, 1996). É a capacidade humana de modificar e se modificar em relação ao meio que permitiu-lhe desenvolver tecnologias e descobrir meios que permitiram sua evolução biológica, dentro de um processo cultural, característica que fez o ser humano se sobressair entre outras espécies. As práticas agropecuárias levaram à exaustão dos recursos naturais bem como a modificação intensa da paisagem, descontextualizando o sítio de sua relação original com o meio. Esses processos modificaram as feições de toda a região e permitiram uma ressignificação dos aspectos naturais existentes no entorno do vale. Com isso a relação homem/natureza está cada vez mais confusa. O ser humano necessita dos recursos naturais, mas a não sofisticação das técnicas de manejo acabam por prejudicar essa relação, com prejuízo para o meio e o próprio homem. Em relação ao sítio arqueológico “Pedra do Muinho”, segundo depoimento de um morador local, “...os mais velhos acreditavam que lá existia uma chave, e quem descobrisse a chave encontraria muitas riquezas e um suposto “reino encantado”. Segundo Costa (1980):

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 181 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves Perto de Piracuruca, no Piauí, num ermo, afloram, por entre a rasteira vegetação do carrascal, inúmeros rochedos de bizarras formas esculturadas pelas erosões milenáres.Com certa dose de imaginação, o sertanejo nelas vê ruas alinhadas, arcos de triunfo, catedrais, estátuas e outras coisas urbanas. Estão agrupadas em sete posições distintas e disso lhes veio o nome de “sete cidades”. Contam que ali jazem sete belíssimas cidades encantadas por artes mágicas em tempo remotíssimo. O mistério daquelas rochas curiosas naquela região deserta e semi-árida, as inscrições rupestres betadas de tinta vermelha, que semeiam as lajes, as formas arquiteturais que se perfilam no horizonte, quando a gente se aproxima do lugar, tudo isso contribuía para a formação da lenda (COSTA, 1980) Normalmente, os sítios arqueológicos despertam diferentes interpretações entre aqueles que os observam com olhar leigo. O relato vindo do Piauí vem de encontro ao relato referente ao sítio Pedra do Muinho; atribuições divinas e mágicas sobre as inscrições rupestres são comuns em todo o Nordeste brasileiro. Ainda sobre a Pedra do Muinho, um morador relatou: “...eu acreditava que aquilo tinha sido deixado por Cristo quando esteve aqui na terra”.

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 182 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves Como o principal referencial religiosos para as comunidades do entorno do sitio “Pedra do muinho” é o referencial cristão, os moradores atribuem um sentido religiosos a quase todos os fenômenos que não conseguem explicar. Como pontua Aguiar (1996), não podemos desvincular as inscrições rupestres do fator religiosos, a autora ainda aponta de forma indireta que as inscrições de tradição Itacoatiara podem possuir uma relação com cursos d’água, essa relação seria de cunho religioso. Enfim, o sitio arqueológico “Pedra do muinho” conta com pelo menos seis painéis contendo inscrições rupestres três deles bem preservados, em todos é possível compreender as formas registradas nas rochas o que facilita alguma interpretação. Predominantemente as inscrições do sitio são grafismos de tradição Agreste, sempre grafismos puros, com poucas exceções insertas e, apenas um dos painéis com grafismos em baixo relevo, Itacoatiaras. Esses signos e, esse tipo de representação são de grande valor, pois são poucos os sítios que apresentam de forma sistêmica como é o caso de “Pedra do muinho”, grafismos com técnicas e de tradições diferentes. Sendo assim, como qualquer obra de arte as inscrições do sitio arqueológico “Pedra do muinho” são únicas.

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04.Conclusão O presente estudo feito na área do vale do São José no município de Caetés, Agreste Pernambucano, revelou que o mesmo possui um grande potencial arqueológico, e que com estudos mais aprofundados. Será possível preencher algumas lacunas ainda existentes acerca do povoamento do atual Estado de Pernambuco, pelas comunidades que aqui viveram num período pré-colonial, bem como incluir mais uma grande área de ocorrência de material arqueológico nos roteiros de pesquisa e turismo do estado de Pernambuco.

Desde já fica claro que as manifestações gráfico- estilísticas encontradas no município de Caetés e sua grande variedade e quantidade. Isso mostra que essa área ainda sem estudos, tenha sido intensamente povoada em vários períodos passados por comunidades seminômades distintas, que habitaram a região em vários períodos diferentes, e ali deixaram um riquíssimo acervo de arte rupestres que permite uma leitura nova das manifestações culturais num passado pré- histórico no agreste pernambucano.

As inscrições do sítio arqueológico Pedra do Muinho apresentam diversidade de técnica, diferenciando-o de outros

Revista Diálogos – N.° 12 – Set. / Out. ‐ 2014 184 Vieira, Silva, Oliveira, Oliveira, Melo Neto, Araújo & Alves sítios com o mesmo tipo de inscrição conhecidos em outras regiões e também no vale, ainda é preciso um trabalho mais intenso no local, interpretações e comparações com outras inscrições rupestres dentro e fora da área de estudo, também podem contribuir para correlacionar os signos, e em trabalhos futuros oferecer informações precisas sobre os povos que ali viveram.

05.Agradecimentos À Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns e o programa de bolsa PIBIC/PFA. À Escola de Referência em Ensino Médio (EREM) Luiz Pereira Junior, por ceder espaço e acolher a pesquisa. À toda a equipe de trabalho do projeto “Uma abordagem Antropo-arqueológica, Geográfica e Biológica de sítios arqueológicos no Agreste meridional de Pernambuco”. Aos professores: Bruno Câmara, Clovis Gomes. À Gisele dos Santos, João Luís, Wirlan Pageú, Luiz Gustavo, Rafael Brasil, Alexandre Silva, Lucian Ferreira, Raidone Luiz, Marcos Antonio, Jheferson, Daniel, Marcelmo e Jucelino, pelo apoio em vários momentos da pesquisa e, aos membros das comunidades do entorno do vale do São José que tem contribuído para este e outros trabalhos, em especial aos Sr. João dono da propriedade onde está localizado o sitio arqueológico “Pedra do Muinho”.

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