PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC – SP) PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Alexandra Varassin

Processos Transmidiáticos de Criação Obra em Progresso, de

Mestrado em Comunicação e Semiótica

SÃO PAULO 2016 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC – SP

Alexandra Varassin

Processos Transmidiáticos de Criação Obra em Progresso, de Caetano Veloso

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da Profa. Dra. Cecilia A. Salles.

Programa de Pós-Graduação em da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PEPGCOS/PUC-SP). Área de concentração: Signo e significação nas mídias. Linha de pesquisa: Processos de criação nas mídias

SÃO PAULO 2016

Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

A autora agradece à CAPES pelo apoio recebido no desenvolvimento deste trabalho.

RESUMO

A pesquisa teve por objetivo investigar os processos transmidiáticos de criação, fenômeno contemporâneo que permite a formação de uma rede colaborativa entre artistas e público, utilizando-se da combinação de meios digitais e tradicionais. Hoje em dia, muito se fala acerca das possibilidades criativas que podem surgir em um processo artístico ao se agregar a participação das pessoas no mundo online. Porém, são menos frequentes os estudos que buscam analisar a fundo como se dá a troca entre artista e público; ou que descrevam quais são os possíveis efeitos dessa interação para o artista e para a materialidade da obra. Para endereçar estas questões, utilizamos como objeto de pesquisa a experiência transmídia Obra em Progresso, que Caetano Veloso propôs em meados de 2009 ao seu público. Por meio de duas plataformas simultâneas shows ao vivo e um blog digital, o músico convidou as pessoas a acompanharem o passo-a-passo da construção de uma obra musical, disponibilizando em primeira mão o que seria seu próximo álbum na época, . Destacamos como o projeto poético do artista e os aspectos comunicativos da criação foram explicitados na experiência transmídia. Também identificamos o que a interação com uma audiência dinâmica e multifacetada proporcionou ao artista e, consequentemente, à obra. O corpus empírico foi formado pela análise dos posts do blog e seus respectivos comentários, registros em vídeo dos shows, entrevistas com o artista e a banda durante o processo de criação; complementados com a repercussão do projeto na imprensa, blogs e redes sociais. A metodologia utilizada foi a Crítica de Processo, de Cecilia Almeida Salles, segundo a qual pudemos analisar a singularidade desta proposta em consonância com as teorias gerais de criação fundamentadas pela semiótica peirceana. Desta maneira, revelamos o pensamento complexo sobre o qual se formaram as redes semióticas da obra artística.

Palavras-chave: comunicação; processos de criação; redes; transmídia; música; mídias digitais; colaboração.

ABSTRACT

A pesquisa teve por objetivo investigar os processos transmidiáticos de criação, fenômeno contemporâneo que permite a formação de uma rede colaborativa entre artistas e público, utilizando-se da combinação de meios digitais e tradicionais. Hoje em dia, muito se fala acerca das possibilidades criativas que podem surgir em um processo artístico ao se agregar a participação das pessoas no mundo online. Porém, são menos frequentes os estudos que buscam analisar a fundo como se dá a troca entre artista e público; ou que descrevam quais são os possíveis efeitos dessa interação para o artista e para a materialidade da obra. Para endereçar estas questões, utilizamos como objeto de pesquisa a experiência transmídia Obra em Progresso, que Caetano Veloso propôs em meados de 2009 ao seu público. Por meio de duas plataformas simultâneas shows ao vivo e um blog digital, o músico convidou as pessoas a acompanharem o passo-a-passo da construção de uma obra musical, disponibilizando em primeira mão o que seria seu próximo álbum na época, Zii e Zie. Destacamos como o projeto poético do artista e os aspectos comunicativos da criação foram explicitados na experiência transmídia. Também identificamos o que a interação com uma audiência dinâmica e multifacetada proporcionou ao artista e, consequentemente, à obra. O corpus empírico foi formado pela análise dos posts do blog e seus respectivos comentários, registros em vídeo dos shows, entrevistas com o artista e a banda durante o processo de criação; complementados com a repercussão do projeto na imprensa, blogs e redes sociais. A metodologia utilizada foi a Crítica de Processo, de Cecilia Almeida Salles, segundo a qual pudemos analisar a singularidade desta proposta em consonância com as teorias gerais de criação fundamentadas pela semiótica peirceana. Desta maneira, revelamos o pensamento complexo sobre o qual se formaram as redes semióticas da obra artística.

Palavras-chave: comunicação; processos de criação; redes; transmídia; música; mídias digitais; colaboração.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...... 6 2. CAPÍTULO I: UMA EXPERIÊNCIA TRANSMÍDIA...... 11 1. Contextualização...... 11 2. Obra em Progresso: uma experiência transmídia...... 14 3. Como surge e termina o blog Obra em Progresso...... 15 4. Análise do blog: sistema de classificação...... 19 5. Recorrência de temas: os principais assuntos propostos pelos autores...... 20 6. Os rumos do blog: proposta original versus interação das pessoas...... 28 7. Motores para interações: como as pessoas colaboraram com o blog...... 31 8. O ápice das interações: quando e como as pessoas mais interagiram...... 36 9. Tendências de processo: projeto poético e aspecto comunicativo...... 41 3. CAPÍTULO II: O RUMO INCERTO DE UMA OBRA EM PROGRESSO...... 43 1. Obra em Progresso no contexto da trajetória do artista...... 43 2. Transamba como princípio direcionador do projeto...... 51 3. A trajetória das canções em diferentes tempos de criação...... 59 4. A influência da oralidade e da performance no processo de criação...... 70 5. A dinâmica amalgamada do blog como termômetro da cultura...... 74 6. O que Obra em Progresso revelou sobre o processo de criação...... 84 4. CAPÍTULO III: AS VOZES DE COLABORAÇÃO E SEUS ECOS NA OBRA.....85 1. Elementos de identificação e atração à experiência Obra em Progresso...... 85 2. Regras do jogo ditas e não ditas: acolhimento e rejeição dentro do blog...... 94 3. A formação de uma comunidade...... 99 4. Vestígios do processo de criação musical: o que restou das interações na obra artística?...... 109 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 124 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 130 ANEXOS (em pen drive) ANEXO 1: Planilha de Catalogação Cronológica e Temática do blog ANEXO 2: Obra em Progresso na íntegra: o blog e os shows ANEXO 3: Inventário de Repercussão Midiática: matérias, press releases e blogs sobre Obra em Progresso e questões correlatas

INTRODUÇÃO

A busca por um olhar transversal sobre os fenômenos da vida contemporânea foi um princípio direcionador da minha atuação acadêmica e profissional, o que aparece refletido na minha formação multidisciplinar em Direito, Marketing e Artes Dramáticas. Esse processo foi lapidado e intensificado com o trabalho que desenvolvi junto a produtores culturais e ONGs no Ministério da Cultura, e com os anos de experiência profissional em branding, publicidade e marketing digital em grandes empresas multinacionais como Google, Publicis e Ogilvy & Mather. Cresci e vivi na transição da internet, e tive contato com os primórdios da sua evolução, inclusive em uma era que soa tão distante hoje, na qual os buscadores eram ineficazes e as conexões, lentas. Desde essa época, sempre me instigaram os tão alardeados processos de colaboração do público por meio da internet. Testemunhei e implementei uma boa variedade de experimentos publicitários convocando os consumidores à participação nas redes sociais – empreitada em que tive sucessos imediatos, que caíram nas graças do público, assim como fracassos retumbantes, com os quais ninguém quis interagir.

Algumas vezes fui convidada a dar palestras para compartilhar essas experiências e, inevitavelmente, em algum momento aparecia a inefável pergunta, normalmente proferida por pessoas céticas quanto à efetividade desse tipo de ação: afinal, qual a diferença agregada por todo esse processo participativo no resultado final? Será que não se chegaria ao mesmo lugar sem tanto esforço?

A verdade é que eu mesma não sabia a resposta, por mais casos que tivesse vivenciado e outros tantos que coletava como referência. Por isso, propus-me a entender mais a fundo os mistérios por trás dessa participação e tive a sorte de ser beneficiada pelo contato próximo com Henry Jenkins e os pesquisadores do seu grupo, conselheiros informais da empresa em que eu era sócia. Participei de eventos e grupos de discussão com esses pensadores no Massachussets Institute of Technology (MIT) e na Universidade do Sul da Califórnia (USC). À época, chamou-me a atenção o fato de que a maior parte dos estudos realizados por eles versava sobre a indústria cultural, em especial as novas narrativas que estavam reinventando o cinema, mas também outras manifestações em música, teatro, artes plásticas e literatura.

Percebi que as experimentações artísticas estavam na vanguarda desse fenômeno e que muitas pessoas estavam cada vez mais dispostas a colaborar com esses processos de modo genuíno e sem qualquer tipo de incentivo publicitário como motivação.

Era visível que a combinação de meios digitais e tradicionais possibilitava maior interação entre público e artista durante as etapas de desenvolvimento de uma obra, e não apenas no momento em que esta era lançada ou aberta oficialmente para consumo. Como consequência, mais e mais pessoas buscavam opinar, participar e interferir nos processos de criação, enquanto o mesmo ocorria do outro lado: inúmeros artistas experimentavam novas formas de se conectar com suas audiências ao colocarem sua própria obra em discussão, possibilitando o diálogo com pessoas que, até então, não estavam incluídas na dinâmica decisória. O público passava a ter a possibilidade de vivenciar todo o aspecto de produção de uma obra antes mesmo que ela fosse constituída como tal. A recepção estava sendo trazida para dentro do processo de produção.

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Buscando maior aprofundamento nas teorias relacionadas a esse tema, bem como metodologias que pudessem oferecer um processo de pesquisa mais consistente para essa investigação, decidi partir para o projeto de Mestrado.

A definição do objeto partiu da busca por projetos concebidos e realizados no Brasil cuja proposta fosse incentivar a participação do público na produção de uma obra artística com a utilização de recursos transmidiáticos, isto é, que tivesse suporte em mais de uma mídia de forma coordenada para compor o todo, não apenas como mera continuidade ou ferramenta de divulgação.

Em princípio, poderia ser mais de um projeto, inclusive de diferentes modalidades artísticas, as quais poderiam ser analisadas em conjunto para entendermos os fatores em comum e características distintas.

O fator determinante para a escolha dos projetos para a análise era a adesão do público, pois, dessa forma, poderíamos caracterizar uma participação efetiva e observar se houve aproveitamento das interações no processo de criação.

Após inúmeras pesquisas, aventamos alguns possíveis objetos de análise, dentre eles a experiência transmídia Obra em Progresso, de Caetano Veloso, desenvolvida entre 2008 e 2009, e que resultou no lançamento do álbum “Zii e Zie”, em 2009. O projeto foi iniciado em shows para o público acompanhar a evolução do próximo álbum que estava sendo trabalhado pelo artista à época, com as canções sendo apresentadas pela primeira vez e ainda sendo lapidadas pelo cantor e banda. Pouco depois, foi lançado um blog para discussão e acompanhamento do processo de criação, com espaço para que as pessoas pudessem se manifestar em relação aos diversos vetores de desenvolvimento do álbum: o que pensavam sobre as letras, se gostaram ou não das canções, trocar ideias sobre como foi cada composição e votar qual das duas versões de uma mesma canção deveria ser gravada no álbum.

O registro dos shows estava ainda disponível em grande parte no YouTube e no DVD oficial do álbum. Àquele momento, porém, o blog já havia sido retirado do ar, dado o término do projeto. Entramos em contato com Hermano Vianna – o qual, segundo descobrimos, havia lançado o blog em parceria com Caetano Veloso –, explicamos o projeto e solicitamos uma cópia do blog. Gentilmente, Hermano nos direcionou para a página “Arquivo da Web Portuguesa”1, que continha o blog na íntegra. Para não corrermos o risco de perder esse conteúdo, optamos por copiar e colar todos os posts e as respectivas interações em um arquivo do Word2. Qual não foi a surpresa ao finalizarmos o processo e descobrir que o conteúdo totalizava mais de 3.300 páginas3.

Dada a riqueza do material e as múltiplas possibilidades de análise que poderiam ser extraídas a partir dele, optamos por concentrar a pesquisa neste objeto. Isto porque quanto mais interações, maiores as possibilidades de interferência na obra artística e melhor a possibilidade de comparação entre o que o artista absorveu e o que não considerou durante o processo.

1 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 2 Conteúdo do blog na íntegra no pen drive anexo a este projeto. 3 Fonte Arial 8,5, espaçamento simples. 8

A escolha, portanto, não foi por Caetano Veloso em si; porém, indubitavelmente, o fato de se tratar de um artista amplamente conhecido pelo público brasileiro levou ao grande número de interações que encontramos, somado à disposição do artista e de Hermano Vianna em alimentar o blog pessoalmente durante quase um ano.

A análise teve como foco principal o blog Obra em Progresso, mas contempla também referências aos shows de mesmo nome enquanto parte da experiência transmidiática. Para fins de análise de processo, foram considerados também aspectos da obra musical e da trajetória de Caetano Veloso que conversam diretamente com temáticas presentes na discussão do blog. Buscamos analisar também o que ocorreu na obra do artista após o período da experiência transmídia, por entendermos que a criação é um processo contínuo e que, muitas vezes, o efeito das interações ainda vai se fazer sentir na materialidade de mais de uma obra artística.

Não tivemos o intuito de nos aprofundar na obra do artista como um todo e tampouco abordar a “persona” Caetano Veloso, muitas vezes considerada polêmica. Também tivemos o cuidado de não pautar nenhuma análise em juízos de valor sobre as opiniões expressas no blog, sejam pelo próprio artista ou pelos demais participantes.

O principal objetivo da pesquisa é observar quais os efeitos da participação das pessoas ao estabelecerem diálogo com um artista enquanto uma obra é concebida – isto é, em que medida esse caminho de mão dupla alimenta e estimula aspectos específicos da criação –, buscando encontrar vestígios dessa interação na materialidade da obra artística.

Tendo em vista os aspectos intrínsecos ao objeto para o intuito da análise desejada, formulamos o seguinte problema de pesquisa: como a materialidade de uma obra artística transmidiática reage ante os processos de interação com o público?

O objeto é o estudo do show e blog Obra em Progresso, de Caetano Veloso e a Banda Cê, enquanto atuação transmidiática. A experiência ocorrida durante o ano de 2008 teve por objetivo disponibilizar o processo de formação do futuro álbum “Zii e Zie”, de forma a solicitar a colaboração do público em interações no blog e no show.

O corpus será construído por um misto de fontes primárias e secundárias de pesquisa que evidenciam os registros de processo da obra artística, quais sejam:

Análise do blog Obra em Progresso: 107 posts e 9.517 comentários dos internautas durante o período em que o projeto permaneceu ativo, entre junho de 2008 e abril de 2009;

Estudo de trechos do show Obra em Progresso disponibilizados no canal do YouTube e do registro da obra resultante do projeto, encontrado no DVD “Zii e Zie”;

Pesquisa de registros secundários: press release de lançamento do projeto e do álbum, notícias relacionadas ao show e ao blog, entrevistas com Caetano Veloso e banda, blogs que comentaram o projeto, obra escrita do artista.

O principal objetivo da pesquisa é analisar os aspectos processuais da criação transmídia, ou seja, buscar os principais nós da rede presentes no projeto poético em

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questão (tempo, temas, modos de fazer, referências), e de que forma a colaboração interfere na trama de pensamento do artista (diálogos, interações, aprovações e reprovações).

Como decorrência da pergunta de pesquisa, foram formuladas as seguintes hipóteses, que poderiam ser comprovadas ou não durante a pesquisa:

O processo de interação do público com o artista em Obra em Progresso interferiu de forma contundente na criação transmidiática, de modo que é possível traçar uma genealogia precisa do que foi aportado pelo público na materialidade dessa obra;

O processo de interação do público com o artista tem efeitos que se fazem sentir para além de uma dada obra, vez que a criação ocorre enquanto processo e, portanto, tem continuidade em outras obras.

A base teórica sob a qual a pesquisa foi desenvolvida está na Teoria de Processos de Criação de Cecilia Almeida Salles, com especial enfoque para as obras “Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística”, datada inicialmente de 1998; e “Redes de Criação: Construção da Obra de Arte”, de 2006. Ambas trazem conceitos fundamentais como “obra em processo” e “redes de criação”, que permitem evidenciar os aspectos complexos envolvidos na evolução do processo criativo e de seus consequentes registros de processo.

Vez que a referida autora se apoia no binômio da Semiótica Peirceana e nas Teorias de Pensamento Complexo, em especial a dialógica de Edgar Morin e o conceito de rede de Pierre Musso, temos também nesses autores o mapa teórico para nossa análise.

O conceito de criação sustentado pela semiótica de Peirce, enquanto teoria geral e formal, é abrangente o suficiente para oferecer um alicerce profundo à nossa análise, permitindo observar diferentes suportes transmidiáticos, sejam eles escritos, falados ou imagéticos, através de um denominador comum.

O pensamento sistêmico e complexo de Edgar Morin nos permite trabalhar simultaneamente com ideias – as quais, num primeiro momento, apareceriam como opostas numa lógica dicotômica – através de uma dialógica em que essas mesmas ideias podem ser justapostas de forma complementar, revelando um conceito mais abrangente. Esse conceito é de fundamental importância para a análise de processos em rede, vez que a lógica da linearidade não consegue abarcar a variedade de fenômenos associados ao processo artístico, principalmente quando há multiplicidade de sujeitos e a respectiva colaboração entre eles, como é o caso do objeto empírico em questão. Vem também de Morin o conceito de calor e de efervescência cultural, segundo os quais as novas ideias surgem das trocas, colisões e intercâmbios entre indivíduos.

Também é de fundamental importância conceituar nosso entendimento de transmídia e colaboração na internet, motivo pelo qual analisaremos o conceito de narrativa transmídia de Henry Jenkins, ao lado de outros pensadores contemporâneos voltados aos fenômenos de interação em múltiplas plataformas, como Pierre Lévy, Clay Shirky, Jay Bolter, Richard Grusin, Lev Manovich e Grant McCracken.

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Ainda, para observar as múltiplas facetas do objeto, lançamos mão de conceitos correlatos ao projeto de pesquisa, sempre que pertinentes, tais quais a serendipidade de Steven Johnson; Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour; Teoria da Vanguarda, de Peter Bürke; e inteligência conectiva, de Derrick de Kerckhove.

A partir da análise processual do objeto, mapeamos de forma qualitativa e quantitativa os aspectos de similaridade e distinção entre cada publicação do autor no blog e os respectivos comentários. Em seguida, observamos essas publicações e interações em face do projeto como um todo, de forma a buscar os “nós” da rede que mais se destacavam ao longo da experiência transmidiática Obra em Progresso.

Por entendermos que se trata de uma obra em processo e observa-la a luz do princípio peirceano de continuidade, também foi levada em consideração conexões com outros aspectos da obra do artista, sempre que pertinente.

É nesse cenário que situamos a presente pesquisa, na qual buscaremos investigar de que forma os processos de criação artística estão sendo transformados à luz dos processos participativos, como são as interações dos sujeitos nesse novo modo de conceber o processo criativo e o que, de fato, pode interferir na materialidade da obra artística.

A dissertação é composta por três capítulos: no primeiro, “Uma experiência transmídia”, analisaremos o projeto Obra em Progresso em profundidade, de modo a observar os textos postados pelos autores e os comentários das pessoas que com eles interagiram, evidenciando as principais tendências do processo criativo identificadas na pesquisa, quais sejam, o projeto poético e o aspecto comunicativo. Nos capítulos seguintes, aprofundaremos ambas as tendências. O segundo capítulo, “O rumo incerto de uma obra em progresso”, analisa o projeto poético explicitado pela experiência transmídia, de modo a investigar o que o blog oferece de informação sobre o processo criativo do álbum, além de dialogar com outros momentos das carreiras artísticas dos músicos, a fim de identificar o contexto em que estavam inseridos ao mergulharem no projeto Obra em Progresso. O terceiro capítulo, “As vozes de colaboração e seus ecos na obra”, explora a comunidade que se formou ao redor do blog, motivada pela possibilidade de interação com Caetano Veloso, e de que forma as suas diferentes manifestações mobilizaram discussões com impacto no processo criativo do artista.

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CAPÍTULO I: UMA EXPERIÊNCIA TRANSMÍDIA

1. Contextualização

Há um pensamento bastante alardeado e divulgado no início do século XXI de que o advento da internet permitiu dar voz a espectadores passivos, os quais antes apenas contemplavam os meios de transmissão de massa, sem possibilidade de intervir naquilo que era produzido. O princípio por trás dessa ideia parte da consolidação da indústria cultural e da chamada cultura de massa no século XX, no qual a transmissão via broadcast possibilitava a um único emissor atingir de forma ampla muitos receptores. Isto é contraposto pela ideia de que, na internet, há espaço para que cada um produza seu conteúdo e o disponibilize, ou mesmo produza conteúdos de forma colaborativa com outras pessoas, o que acabaria oferecendo mais espaço para a participação ativa dos até então chamados espectadores. Em , receptores também passariam a ser emissores e isso mudaria completamente a dinâmica de participação nos meios digitais em relação aos meios de massa.

Vale contextualizar alguns aspectos relacionados a esse tópico antes de prosseguir, de modo a esclarecer, com mais precisão, o que é e o que não é premissa deste trabalho.

Em primeiro lugar, a suposta passividade do receptor já foi bastante questionada no próprio século XX pelos Estudos Culturais e as Escolas de Chicago e Toronto, para os quais a recepção já era uma atividade comunicativa em si e que interferia inclusive no que produzia o emissor. Prova disso seriam as pesquisas de opinião sobre a programação dos meios de massa, a mediação feita por todos aqueles que recebem os conteúdos midiáticos e os inúmeros relatos de artistas que criam pensando no público.

Sabemos que é também questionável se a internet é realmente democrática no que diz respeito ao acesso a conteúdos de diferentes emissores. Eli Pariser, autor do “The Filter Bubble” e ativista digital para a democratização de acesso aos conteúdos, afirmou em palestra do TED, em 2011, que a sofisticação dos algoritmos dos principais veículos da internet para facilitar a encontrabilidade de conteúdos, em meio à multiplicação exponencial dos mesmos, acaba por impor uma limitação aos conteúdos na web que as pessoas conseguem acessar. É o caso dos mecanismos de busca com ferramentas como “autocompletar” ou das redes sociais, em que as pessoas só veem opiniões dos seus amigos, os quais normalmente têm opiniões muito próximas às suas próprias. Ou seja: as pessoas podem até produzir o que quiserem, mas nem sempre esse conteúdo é acessado, tendo em vista o grande volume de informação presente na rede e a concentração em poucas empresas que detêm as formas de acesso aos conteúdos, sejam estes portais, redes sociais ou ferramentas de busca.

Em relação à participação das pessoas no desenvolvimento de obras artísticas, há inúmeros relatos de artistas que já traziam, desde muito tempo, as considerações de terceiros (vivos ou mortos, presentes ou imaginados) no processo de produção de suas obras. Há histórias sobre Beethoven interpelando amigos sobre suas sinfonias em desenvolvimento, e que estes, muitas vezes emocionados com a beleza das obras, apenas conseguiam oferecer relatos do mundo sensível, enquanto o compositor esperava críticas a partir de aspectos técnicos. Dostoiévski é considerado por Bakhtin o primeiro romancista polifônico, justamente por trazer diversas vozes de outros

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pensadores russos em suas obras, ampliando sua própria autoria. Machado de Assis considerava a presença do leitor em seus romances, inclusive chamando-os para manifestar sua opinião no próprio texto e considerando de antemão seu julgamento prévio.

Nas artes visuais, muitos artistas, desde o início do século XX, promovem a interação direta do público por meio de happenings, tendência que mais para frente redefiniu o tipo de trabalho artístico apresentado nos museus e espaços de arte contemporânea para “artes de performance”, em contraponto à arte meramente contemplativa.

No teatro, a quebra da chamada “quarta parede” do realismo, com o surgimento de autores experimentalistas como Brecht e Beckett, trouxe o aspecto da cocriação para a plateia, formando espetáculos únicos, que só existiam na fugacidade daquela interação.

Mesmo longe do universo da alta cultura, nas entranhas da mídia de massa, há inúmeras evidências de que os receptores nunca foram tão passivos como julga o senso comum e já se manifestavam de diversas formas, no sentido de contribuírem para as obras artísticas de seu interesse, seja por meio de cartas às emissoras de TV e aos artistas, fan fiction, fã-clubes, ciclos de debate ou eventos que reuniam diversos fãs de uma dada obra como Star Wars, Harry Potter e a Comic Con.

Portanto, temos que não foi a partir da internet que passou a haver processos de interação e colaboração entre pessoas nas obras artísticas, pois estes sempre existiram. Então, o que os meios digitais podem realmente oferecer em termos de novas possibilidades de participação das pessoas no processo de criação?

Os meios digitais não trazem uma substituição de saberes, e sim representam mais um passo no acúmulo de heranças relacionadas à participação das pessoas em obras artísticas. Na prática, são mais ferramentas para artistas e público explorarem durante o processo de criação. Observamos que a internet traz diferentes possibilidades na medida em que aproxima pessoas que, de outra forma, não teriam como se conectarem: pessoas que não se conhecem, pessoas de diferentes lugares, pessoas que não falam a mesma língua, mas que, com uma ferramenta de tradução, conseguem se comunicar. Também confere um caráter mais dinâmico e acelerado às interações, as quais podem acontecer em poucas horas e, muitas vezes, até em poucos minutos. É o caso, por exemplo, da “cobertura” informal do Oscar em que os espectadores comentam ao vivo pelo Twitter e, com a ajuda de uma hashtag, outras tantas pessoas também podem acessar e espalhar pela sua rede. Por fim, a internet é mais plural, na medida em que pessoas que normalmente não teriam acesso a determinadas informações conseguem participar e atuar, formando um processo menos hegemônico e com maior diversidade de opiniões.

Foram essas possibilidades que começaram a chamar a atenção de artistas no mundo todo e que passaram a integrar os temas e formatos de suas obras. A interação por meio da internet passou a ser um aspecto considerado na concepção de obras artísticas e se manifestou em diferentes ideias ao redor do mundo.

Em 2003, o experimento artístico “Bumplist”, de Jonah Brucker-Cohen e Mike Bennet, inaugura a galeria de arte online do Whitney Museum de Nova York. Baseava-se em

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uma lista de e-mails em que as pessoas tinham que participar ativamente para mapear as redes de comunicação e padrões de comportamento em grupos de e-mail.

Em 2007, já em face da queda da indústria musical ante a pirataria, a banda Radiohead lança pela primeira vez um álbum exclusivamente pela internet, intitulado “In Rainbows”, e convoca o público a baixá-lo gratuitamente ou mediante o pagamento que entenderem justo. A banda decide que não cobrará um preço fixo, como faziam as gravadoras com os discos e CDs, e deixa totalmente a cargo dos fãs a remuneração por seu trabalho.

Em 2008, o projeto “Mil Casmurros” divide o livro Dom Casmurro, de Machado de Assis, em mil partes e convoca o público da internet a fazer uma leitura coletiva por meio de uma webcam com som. O resultado passou a fazer parte de um site que continha a história completa.

Entre 2007 e 2008, Fernando Meirelles publica o “Diário de Blindness” para retratar o dia a dia das filmagens do longa metragem “Ensaio sobre a Cegueira” e compartilhar seu processo criativo com os internautas. Apesar de razoável boa adesão de pessoas querendo discutir a evolução do filme, a falta de tempo não permitiu que o diretor se dedicasse tanto à iniciativa e, com os poucos estímulos, o projeto acabou minguando.

Em 2011, a islandesa Björk lança o projeto musical “Biophilia” em parceria com a Apple: em vez de gravar um álbum tradicional com as faixas já determinadas, a artista opta por disponibilizar as músicas em um aplicativo de iPad cheio de recursos de mixagem para servirem como base para que as pessoas possam criar suas próprias versões.

Em 2015, a artista argentina Amalia Ulman cria uma vida falsa nas redes sociais e estimula a interação de pessoas, com o intuito de criticar a forma como os padrões femininos são construídos de forma massacrante e se multiplicam graças ao fanatismo do público.

Hoje, em pleno 2016, todos esses experimentos podem soar pouco inovadores ante a popularização de mecanismos de participação via redes sociais como o Snapchat. Pessoas fazem transmissões ao vivo no Facebook, como a mulher que vestiu a máscara de Chewbacca e virou um fenômeno mundial instantâneo. A geração de produtores de conteúdo por meio do YouTube, alardeado como a “nova televisão dos jovens”. Tempos de “musos e musas” do Instagram que retratam seus corpos e rotina de exercícios. Fenômenos com intensa participação voyeurística do público, que pede mais detalhes da vida pessoal das “estrelas”, sugere conteúdos, mergulha em interações sem fim, encantados com a proximidade que os novos ídolos prometem.

Porém, era apenas abril de 2008 e foi nesse contexto, em que muitos artistas ainda engatinhavam na experimentação de possibilidades de interação com o público via internet, que surgiu o projeto Obra em Progresso.

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2. Obra em Progresso: uma experiência transmídia

Como pressuposto teórico da nossa análise, consideramos o projeto Obra em Progresso como uma experiência transmídia. Nos termos definidos por Henry Jenkins (2009, p. 384), a narrativa transmídia é o conjunto de “histórias que se desenrolam em múltiplas plataformas de mídia, cada uma delas contribuindo de forma distinta para nossa compreensão do universo”. Nesse sentido, o conceito de narrativa na nossa concepção não se reduz, simplesmente, a uma história com começo meio e fim; trata-se de um conjunto de manifestações que faz parte de uma mesma linha-mestra e compõe um todo maior, coordenado e lógico.

O projeto Obra em Progresso tem início com a proposta de shows semanais para o público acompanhar a evolução das músicas a serem gravadas no novo álbum de Caetano Veloso, mas estes acabam sendo apenas a ponta do iceberg para o universo narrativo.

Poucos dias depois, é lançado um blog: trata-se da primeira expansão do universo narrativo da obra. Não apenas replica o que acontece nos shows, mas vem agregar outras possibilidades de entrar em contato com a obra artística e de acrescentar uma nova dimensão a ela. Além disso, com o encerramento do período dos shows, o blog continua com vida própria e retrata o momento em que os artistas partem para gravar o disco em estúdio.

Os shows, por sua vez, mesmo depois de encerrados, têm seus registros organizados em vídeos em um canal do YouTube, permitindo que mais pessoas assistam a eles além das que estiveram presentes fisicamente.

Por fim, todo o projeto gera duas obras oficiais que foram formalmente comercializadas a posteriori: o álbum de estúdio “Zii e Zie” e o DVD e CD “MTV ao Vivo Zii e Zie” que documentou a turnê de shows após o lançamento do álbum.

Ainda segundo Jenkins, a obra transmídia funde as mídias mais tradicionais e passivas com as mais contemporâneas e participativas, o que acaba por incentivar maior interação do público:

A narrativa transmídia refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa das comunidades do conhecimento. A narrativa transmídia é a arte da criação de um universo. (JENKINS, 2009, p. 49)

Dessa forma, a combinação dessas diversas manifestações da mesma obra – show, blog, álbum, DVD, canal no YouTube – forma um todo, o qual denominamos universo narrativo da experiência transmídia. A essas, somam-se as manifestações dos participantes dentro do blog e todos aqueles que contribuíram para a expansão do universo narrativo em seus próprios blogs, comentando o projeto, por se tratarem de comunidades criativas que se envolvem ativamente na experiência transmídia.

Portanto, temos que o conceito de narrativa transmídia abarca processos interativos de criação em múltiplas plataformas, independentemente da modalidade artística: não se limita somente ao universo de histórias de ficção e pode ser aplicado a uma obra

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musical, motivo pelo qual qualificamos o projeto Obra em Progresso como uma experiência transmídia.

Para fins desta pesquisa, vamos nos aprofundar em um aspecto específico do universo narrativo: o blog Obra em Progresso, cujo registro impresso nos possibilita uma investigação mais ampla, não apenas das manifestações do artista, mas também de todos os participantes que interagiram ao longo do processo.

3. Como surge e termina o blog Obra em Progresso

Em meados de 2008, o artista Caetano Veloso promoveu uma série de shows intitulados Obra em Progresso com o objetivo de trazer a público o processo de criação de seu novo álbum. A ideia partiu da vontade do artista em ficar no Rio de Janeiro, cidade onde mora; e o mote principal dos shows era mostrar o progresso das músicas antes da gravação em estúdio, ao mesmo tempo em que recebia artistas locais. Um projeto similar a algo que o próprio Caetano havia feito em 1984, antes da gravação do álbum “Velô”. Dentro da trajetória do artista, tratava-se também de uma continuidade de seu trabalho com a Banda Cê, o qual havia sido materializado no álbum de mesmo nome (“Cê”) em 2006 e veio a inaugurar uma nova fase de sua carreira, que mais à frente viria a ser conhecida como “trilogia do rock”.

Em paralelo aos shows, o produtor Hermano Vianna, inspirado pelas possibilidades que a internet oferece para incentivar a participação do público em projetos artísticos, propôs a Caetano ampliar o projeto nesta outra mídia por meio da criação de um blog, também intitulado Obra em Progresso. A ideia é descrita pelo próprio Hermano no post inaugural do blog, em que explicita o caráter de experimento que visava conferir ao mesmo:

Vi o primeiro e o segundo shows de Obra em Progresso, os únicos realizados até agora. No final do segundo show, percebendo a evolução de algumas das músicas ainda não registradas em disco, a alteração no repertório das músicas antigas e tantas outras novidades, tomei a coragem de propor para Caetano que o processo “analógico” que o público pode presenciar no show fosse acompanhado e aprofundado por uma versão digital (possibilitando também, para quem não estiver presente na “real life” dos shows do Rio, o contato com o que aqui está acontecendo). Esse mundo cibernético paralelo terá lugar neste site que agora entra no ar, e que é uma outra obra em progresso (ciber-obra em progresso?): começa totalmente simples, hoje apenas com vídeos de uma entrevista que fiz ontem com Caetano (aproveitando a equipe do Toni Vanzolini, que planeja fazer um documentário sobre o processo, gerando uma obra em progresso fílmica!), mas aos poucos vai documentar - com cada vez maior riqueza de detalhes - o cotidiano da criação de cada show e do próximo disco, de vários pontos de vista e em várias mídias, com muitos observadores convidados. É uma aventura: ninguém pode saber onde isto aqui vai terminar (downloads de música? shows transmitidos ao vivo para outras cidades? concursos de remixagens? tudo isso já foi testado por outros músicos: queremos ser surpreendidos por muito mais…), se vai terminar um dia. [...] (trecho do post “Obra em Progresso também no Mundo Digital”, de 04/06/08)

Na aba “Sobre” encontramos um maior detalhamento do que se tratava o projeto Obra em Progresso (ver Anexo 2). Interessante notar que Hermano e Caetano, apesar de

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convergirem na questão experimental e quererem testar novas possibilidades com o público, diferem no início do blog quanto ao seu propósito e alcance. Hermano se entusiasma com tudo o que poderá experimentar no blog e como isso poderá influenciar a produção cultural contemporânea:

Obra em Progresso, série de concertos realizados no Rio de Janeiro por Caetano Veloso durante todo o ano de 2008, é oportunidade inédita para o público acompanhar de perto o processo criativo de um dos maiores artistas brasileiros. Canções que acabaram de ser compostas são apresentadas no palco e aprimoradas em shows diferentes a cada semana. Apesar de não ter sido concebida com esta intenção (Caetano diz que resolveu agir assim inicialmente apenas como uma maneira de ficar mais tempo no Rio de Janeiro, depois de anos de muitas e demoradas excursões nacionais e internacionais), essa proposta tem tudo a ver com questões centrais que o surgimento da internet coloca para a produção cultural contemporânea. No mês passado, Brian Eno declarou para a revista norte-americana Wired algo que poderia descrever um aspecto evidente de Obra em Progresso. A pergunta era: “Qual a influência que a internet tem exercido sobre a arte e os artistas?” Parte da resposta: “As idéias são colocadas na esfera pública muito mais cedo, e não completamente terminadas, do que elas seriam no passado.” Não é apenas o MP3, ou o filme completo, que escapa clandestinamente do estúdio de edição. Não é apenas o vídeo do show de ontem que o fã publica no YouTube. Para o artista, a facilidade de comunicação imposta irremediavelmente pela digitalização de todas as etapas de seu trabalho também sugere a possibilidade de experiências criativas que levem em consideração o feedback imediato do público, de várias maneiras e com intrigantes (e ainda não previsíveis) consequências. A lógica do segredo, que governava as estratégias de lançamento dos principais produtos da indústria cultural pré-internet (com discos trancados a sete chaves em cofres das gravadoras, distribuídos para lojas e jornalistas ao mesmo tempo na tentativa de evitar “furos”), deixa de fazer sentido quando tudo é acessível o tempo todo a poucos cliques de mouse. E essa situação pode ser libertadora.

Já Caetano, de início, não participa diretamente do blog. A explicação dada pelo artista na mesma aba “Sobre” é retirada da descrição do projeto dos shows (ver Anexo 2):

A concepção “O ponto de partida foi desenvolver os tratamentos do ritmo de na guitarra elétrica, sugerido pelo modo como Pedro Sá cria ‘riffs’ com sonoridades refinadas. As novas composições, em que comecei a trabalhar no verão em Salvador, serão concebidas tendo em vista esses experimentos rítmicos. Meu desejo é ir mostrando semanalmente o progresso desse trabalho. Não se trata, porém, de ensaios abertos. São shows.” A seleção das músicas “O repertório de uma noite nunca será idêntico ao de outra. Mas os números serão apresentados como números prontos para serem curtidos pelas platéias. Esse repertório inclui canções muito conhecidas e canções pouco conhecidas da minha carreira; canções de autores da história da música popular brasileira (mas não só) que se mostrem pertinentes ao projeto; canções do disco ‘Cê’ (a banda existe por causa dele e essa assinatura tem de aparecer); e, finalmente, canções novas que são a razão de ser do projeto. Essas serão, digamos, duas ou três nas primeiras noites e deverão ir crescendo de número.” O público

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“Claro que conto com o interesse de um grupo, talvez pequeno, que acompanhará o progresso desse trabalho. Algumas pessoas podem voltar de vez em quando para ver como andam as coisas. Mas o público poderá ser predominantemente aquele que gosta de música e vai a concertos com freqüência.” Novo CD “No fim da temporada, já teremos o repertório para um novo disco, que seria gravado logo, talvez ao vivo, ali mesmo onde tudo foi se construindo. Mas isso não quer dizer que os últimos shows se comporiam exclusivamente do novo repertório. Um disco pode ter 10, 12 faixas; um show, 22 músicas. E nós não faríamos o novo repertório todo sempre. Apenas na(s) noite(s) de gravação (se decidirmos por gravar ao vivo) tocaríamos todo o novo repertório. Nas outras noites, teríamos sempre um show variado e animado, inclusive contando com a possibilidade de algumas das novas canções serem cantáveis pela platéia, a despeito do ousado teor experimental de abordar o samba com um trio de rock moderno. A decisão é ir, por esse meio, mais longe do que já fomos em ‘Cê’, na criação de um som novo e nosso.” (grifo nosso)

Essa distinção fica bem marcada no início do blog: os primeiros posts são a réplica digital do que acontece nos shows e dos vídeos de making of que estavam sendo gravados por Toni Vanzolini.

O primeiro post que foge um pouco a essa dinâmica data de 19 de junho de 2008 e é intitulado “Caetano fala sobre acusações de Fidel”. Logo após publicar um post sobre a nova canção “A Base de Guantánamo”, no mesmo dia, Caetano pede a Hermano que faça um post contando a polêmica que foi gerada com Fidel Castro. Esse post ainda mistura a autoria de Hermano e Caetano: o texto se inicia com teor mais jornalístico, relatando os fatos ocorridos, e abre aspas para citar a opinião de Caetano:

Hoje o jornal O Globo publicou a matéria “Guantánamo: Fidel critica opinião de Caetano” (caderno Mundo, página 36), que continha o seguinte trecho: HAVANA. O líder cubano Fidel Castro criticou declarações do músico brasileiro Caetano Veloso num livro cujo conteúdo foi divulgado ontem. Fidel interpretou como um pedido de perdão aos Estados Unidos comentários de Caetano sobre sua música “Baía de Guantánamo”, parte do repertório do novo disco do compositor. [...] Caetano declara: “Não pedi perdão a ninguém. Procuro pensar por conta própria. Minha irreverência diante dos poderes estabelecidos é impenitente. [...] Minhas palavras são: criação e liberdade. Se não me submeto ao poderio norte- americano, tampouco aceito ordens de ditadores. [...]

Essa dinâmica começa a se intensificar e observamos que, a partir daí, o blog já conta com a participação mais ativa de Caetano, que começa a enviar textos para Hermano publicar ou até mesmo pequenos textos que complementem os posts sobre os shows. Nesse período, os textos, quando de autoria de Caetano, são sempre trazidos com aspas e introduzidos devidamente com frases como: “Caetano, da Itália, continua a refletir sobre a concepção da Obra em Progresso” (trecho do post "Transamba e Caserta!", de 25 de julho de 2008).

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Cerca de dois meses depois do lançamento do blog, Caetano Veloso vai pouco a pouco apropriando-se do blog e escrevendo ele mesmo os posts. A lógica se inverte: quando Hermano vai escrever algo, deixa claro que, dessa vez, trata-se dele, processo que segue ocorrendo até o fim do blog.

O mais interessante é que, quanto mais Caetano toma posse dos textos do blog, mais ele acaba por expandir a ideia inicial de Hermano e passa a escrever textos para além dos shows Obra em Progresso, comentando diversos aspectos de seu interesse. Hermano, por sua vez, continua atuante na moderação dos comentários e também escreve mais alguns posts.

O blog é encerrado em abril de 2009, após a finalização do álbum em estúdio “Zii e Zie” e o início da turnê oficial de mesmo nome. É curioso notar que o último post do blog já não é mais aberto, ou seja, não é passível de comentários. Os moderadores deixam claro essa limitação já no início do post:

NOTA DA MODERAÇÃO: Não é possível fazer novos comentários, mas os comentários antigos podem ser lidos após clicar no título de cada post deste blog. Apenas este post não tem comentários. Posts anteriores geralmente têm centenas de comentários que devem ser lidos por quem quiser saber o que aconteceu no progresso desta obra. [...] (trecho do post “OeP (SAUDADES) ZeZ”, de 14/04/09)

Trata-se de um contraponto direto ao primeiro post, em que os comentários eram incentivados e bem-vindos. Dado o fim do projeto, os autores não têm mais interesse em estimular a interação e possivelmente não mais dispõem da mesma quantidade de tempo para alimentá-lo e responder aos internautas. Provavelmente é esse o motivo que os faz retirar o blog do ar, posteriormente, em outubro de 2009.

Na trajetória do blog, vale destacar alguns aspectos particulares que, algumas vezes, aproximam-se da dinâmica que observamos nas interações via meios digitais, e outros que parecem se diferenciar.

A duração do projeto de quase um ano com o mesmo propósito, ou ao menos com as mesmas características centrais, conforme veremos abaixo, não é um fato tão corriqueiro no meio digital. Há, obviamente, blogs e páginas ou perfis sociais que duram muitos anos, normalmente focados em uma personalidade que comenta diferentes aspectos da atualidade, e que vão modificando-se na medida em que os acontecimentos se sucedem. Porém, uma das características mais marcantes das comunicações em meios digitais é a efemeridade – traço que pode aparecer em muitos aspectos da comunicação, mas que, nestes meios, ocorre de forma ainda mais frequente, dada a própria multiplicidade de expressões que competem consigo mesmas pela atenção do público. Memes como “bela recatada e do lar”, satirizando a matéria da “Veja” cujo título reverenciava a passividade de Marcela Temer, duram o tempo da piada (ou da revolta). O “Desafio do Balde de Gelo” ou projetos como “Not on App Store” geram muitas adesões e conversas num curto período de tempo e tendem, aos poucos, a se esvaziarem, à medida que o aspecto de novidade não é mais tão evidente e eles passam a se tornar menos interessantes para as pessoas. Normalmente, na dinâmica das redes sociais, esse esvaziamento ocorre de forma natural; a menos que seja constantemente revisto e renovado, o propósito que motiva o início de um blog vai aos poucos se esvaindo, sem que os autores publiquem textos e/ou com as pessoas

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gradualmente perdendo aquele interesse em participar. Os projetos duram o tempo que devem durar, sem mais nem menos, e esse tempo é determinado pelo interesse mútuo dos autores e participantes em continuarem o pacto colaborativo. Notadamente, esse não foi o caso de Obra em Progresso: o post anterior ao último havia gerado 127 comentários, o que demonstra que as pessoas ainda tinham interesse em continuar colaborando com o projeto. Portanto, deve ter sido necessário um corte mais abrupto diante do início da turnê, o que levaria a uma menor possibilidade de dedicação dos autores para manterem o propósito do projeto vivo, estimulando ainda as interações.

Há também um certo desejo de que, mais tarde, alguém descubra esses registros: essa intenção se manifesta de forma sutil no texto da moderação, o qual esclarece estarem ainda disponíveis as centenas de comentários nos posts anteriores. De fato, esse é um motor importante para os produtores de conteúdo em ambientes digitais, as pessoas buscam tanto valores pessoais, quanto valores coletivos, quando se dão ao trabalho de usarem seu tempo para alimentar uma página, um blog ou um canal de vídeo. Clay Shirky (2011) ao colocar essa questão reforça que os valores pessoais dizem respeito à própria satisfação de se ver como um indivíduo criativo, que não apenas consome conteúdo de forma passiva. Porém, tão importante quanto isso é perceber que não se está sozinho nessa jornada, que existem pessoas interessadas em discutir, colaborar e participar da sua proposta. Não à toa, “agora que se podem compartilhar vídeos no YouTube, muito mais pessoas os produzem do que jamais produziriam quando compartilhá-los era mais difícil e a audiência potencial era menor” (SHIRKY, 2011, p. 154). Talvez tenha sido por isso que, ao ser procurado, o coautor Hermano Vianna nos direcionou gentilmente ao local da internet em que se encontrava o blog na íntegra. Embora esteja fora do ar e não seja localizável pelos mecanismos de busca, houve uma decisão de não o eliminar de vez. Quem sabe para tornar possível a consulta de pesquisadores, o que de fato veio a ocorrer com esta pesquisa? Uma empreitada de rumo vago e incerto que encontrou um destinatário.

4. Análise do blog: sistema de classificação

Diante da vasta quantidade de material a ser analisado, surgiu a necessidade de buscar um sistema de classificação para o conteúdo. Após uma primeira leitura do material de 3.372 páginas na íntegra, fez-se necessário organizá-lo para a análise. Foi criada uma planilha (ver Anexo 1) para catalogação de todos os posts, com as informações básicas de cada um: data de postagem, título e número de comentários de cada. Esta primeira sistematização nos permitiu quantificar os posts e comentários: 107 posts e 9.517 comentários no total.

Uma segunda leitura, agora com foco no conteúdo de cada post, permitiu mapear os temas recorrentes, isto é, assuntos gerais que foram tratados em diferentes ocasiões nos conteúdos das publicações, os quais denominamos “categorias”. Esta análise também permitiu mapear a frequência com que esses temas se repetiam ao longo do blog, o que trouxe uma visão quantitativa sobre os assuntos que provocavam o artista a se manifestar ao longo do projeto, e traçar hipóteses de como alguns deles viriam a aparecer na sua obra.

Em ainda mais um nível de aprofundamento, uma última coluna (“Observações”) foi inserida na planilha a fim de resumir, em poucas palavras, o principal aspecto

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diferenciador de cada post, seja no conteúdo da publicação e/ou na interação das pessoas – essa classificação foi feita com o intuito de facilitar a localização de determinados posts para posterior retirada de trechos para compor a dissertação.

Este sistema de classificação, o qual, em um primeiro momento, surgiu pela necessidade de organizar o conteúdo para posterior análise, acabou por propiciar uma série de análises quantitativas e qualitativas que o formato de planilha favorece, tais como uma soma rápida do número de comentários totais e em cada tema, assim como gráficos para entender a predominância de temas e evolução no número de comentários. Através desta análise, conseguimos mapear com maior precisão os rumos que o blog tomou em relação ao seu propósito inicial, a importância dos temas e sua posterior aparição na materialidade das obras artísticas de Caetano Veloso; bem como a perspectiva de que as interações foram determinantes para moldar o blog com características próprias, as quais diferiam bastante dos shows de Obra em Progresso e foram construídas de forma coletiva.

5. Recorrência de temas: os principais assuntos propostos pelos autores

Os 107 posts tratam de assuntos bastante diversos – desde conteúdos diretamente relacionados à experiência Obra em Progresso, até opiniões sobre as eleições municipais do Rio de Janeiro daquele ano, passando por toda a variação possível de referências musicais, literárias e até gramaticais do artista. Para fins de análise, buscamos mapear os principais temas recorrentes nos posts e classificar, em cada um deles, qual foi o tema dominante – muito embora vários temas pudessem aparecer em um só post. Foram identificados nove temas recorrentes, os quais denominamos “categorias”. Ao aprofundarmos a análise em cada uma delas, identificamos os principais conteúdos tratados no blog e de que forma eles evoluíram ao longo do projeto.

Categoria 1: Obra em Progresso

Posts diretamente ligados à experiência Obra em Progresso: explicação sobre a mecânica de funcionamento do blog, vídeos dos shows, entrevistas com os músicos e propostas de interação com participantes no processo de criação. O início do blog, compreendido entre junho e agosto de 2008, é marcado por posts nesta categoria. São replicados trechos dos shows com as performances das músicas que estavam sendo trabalhadas para o álbum, bem como participações especiais de artistas convidados cantando músicas do antigo repertório de Caetano, como no exemplo abaixo:

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Figura 1 – “Canção Inédita: ‘A Cor Amarela’”, publicado em junho de 2008

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Logo no início do blog, estes conteúdos apresentam de forma mais explícita o conceito de transamba, projeto que estava sendo desenvolvido com a Banda Cê e que buscava um tipo de arranjo no qual as clássicas batidas de samba eram tocadas de modo mais acelerado por um trio de rock. Também são elencadas as letras das novas canções, a agenda de shows e a turnê de Caetano pela Europa naquele ano. No final de agosto, os músicos entram em estúdio e a partir daí, até o final do blog, os posts relacionados a essa categoria vão mostrando a evolução do álbum: fotos do estúdio, entrevistas com a banda, capa do álbum e votação de duas versões da mesma canção.

Figura 2 – Sessão de gravação no estúdio

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Categoria 2: Referências

Comentários diversos sobre o universo de referências artísticas, intelectuais e até de conhecimento específico do artista, revelando seu interesse por assuntos diversos e como sua criação reflete essa mistura. Esse diálogo intermitente com uma miscelânea de temas é um aspecto marcante da trajetória de Caetano e se sobressai também em sua obra escrita, seja em letras de músicas ou em textos em prosa:

Não há um valor predeterminado nem a possibilidade de o objeto ser pensado isoladamente. [...] O sucedâneo dos assuntos se dá não porque

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animado por um simples mecanismo de digressão, mas porquanto o deslocamento parece ser o modo único de aquela sensibilidade existir. Um estilo, portanto. (FERRAZ, 2005, p. 11)

Em relação ao universo de referências artísticas, vemos conteúdos que descrevem os músicos, cineastas, artistas plásticos e performers que inspiram o trabalho Obra em Progresso e também a obra do artista de maneira geral.

Aprendo algo com essas coisas e não lembro muito depois. Mas ouvir o CD do António Zambujo me prendeu à necessidade de ouvir de novo, de novo e de novo. Esse mesmo desejo senti quando Moreno me mostrou Buika cantando Mi Niña Lola. Quero ouvir muito, mais vezes, mais fundo. No caso do Zambujo, muito mais ainda. É a língua portuguesa. É a história do fado. É o fato de eu ter sempre só gostado de cantoras de fado, nunca verdadeiramente de cantores. (trecho do post “Zambujo, Cícero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08)

Já no universo de referências intelectuais, observamos posts que citam filósofos, poetas, autores clássicos e escritores contemporâneos.

[...] Ao ler os comentários (justamente) entusiasmados sobre os arrazoados de Cicero4, me lembrei de que, ao ler “Dialética do Esclarecimento” [...] Sei que Haroldo5 gostava muito de Benjamin – e que a Escola de Frankfurt foi levada em grande consideração pelo grupo Noigrandres quando foi levado a pensar na dimensão política da aventura em que embarcavam. Augusto6 não gosta da apreciação que Adorno faz do jazz. Mas nunca desejou descartar os desafios teóricos que Adorno lançava. Fui olhar o livro e achei um dos trechos que me fizeram pensar em Augusto. Eis: “O sentimento de horror materializado numa imagem sólida torna-se o sinal da dominação consolidada dos privilegiados. Mas isso é o que os conceitos universais continuam a ser mesmo quando se desfizeram de todo aspecto figurativo [...] É essa unidade de coletividade e dominação e não a universalidade imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento”. (trecho do post “Zambujo, Cicero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08, grifo nosso)

Ainda, no universo de referências de conhecimento específico surgem questões linguísticas, discussões com internautas sobre regras de gramática da língua portuguesa e até da língua inglesa, como neste post escrito originalmente em inglês:

OK, Exequiela, nem TODAS, mas a MAIORIA das vogais em inglês são na verdade ditongos. Ainda assim, escuto duas vogais em todos aqueles “oos” que você falou. Bem, talvez não em “goose” [ganso]… Um amigo meu me disse que pareço pedante quando começo a falar de gramática e fonética. Eu pensei que soava sexy. É porque acho a teoria muito sexy. Obviamente, eu não tenho erudição em nenhum desses assuntos.7 (trecho do post “Rei, Reis”, de 04/10/08)

4 Referência ao compositor e escritor carioca Antonio Cícero. 5 Referência ao poeta Haroldo de Campos. 6 Referência ao escritor Augusto de Campos. 7 No original, em inglês: “Okay, Exequiela, not ALL but MOST long English vowels are in fact diphthongs. Still I hear two vowels in all those ‘oos’ you mentioned. Well, maybe not in ‘goose’ A friend of mine told me I sound pedantic when I start talking about all this grammar and phonetics business. I had thought I sounded sexy. It’s because I find theory very sexy. Mostly when it’s obvious I have no scholarship whatsoever in the matters”. 23

Este é um aspecto curioso abordado em outros pontos da trajetória do artista: a língua, a gramática, os aspectos singulares de articulação da fala em um idioma ou noutro. Nos termos observados por Eucanaã Ferraz:

Daí os textos dizem de si mesmos (explicitamente ou não, sempre o dizem) que estão sendo escritos em língua portuguesa: consciência e afirmação de um lugar, de uma civilização, de um problema, de um projeto e de uma utopia. Escreve-se, em tal perspectiva, com o desafio de projetar-se na língua e de projetar a língua. (FERRAZ, 2005, p. 13)

Categoria 3: Processo de Criação do álbum

Similares aos posts de Obra em Progresso, porém mais específicos sobre o modo de criação das músicas que estavam sendo construídas para o álbum, com ainda mais enfoque para o conceito de transamba e o modo como os artistas estavam perseguindo esse estilo próprio em suas composições e arranjos. Estes conteúdos trazem de forma mais explicativa a maneira como as músicas foram feitas, tanto do ponto de vista de letras quanto da melodia e arranjos. Comuns no início do blog, a partir de setembro, com a entrada em estúdio, eles deixam de aparecer.

Figura 3 – “Caetano comenta o processo de composição de ‘Por Quem’”, publicado em julho de 2008

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Categoria 4: Negro

Um número considerável de posts propôs uma discussão sobre a condição do negro no Brasil e no mundo, destacando a mistura de raças como condição central para o desenvolvimento da identidade do Brasil, em linha com uma discussão levantada frequentemente por Caetano em suas entrevistas, como vemos neste trecho capturado pela jornalista argentina Violeta Weinschelbaum:

Há quem gostaria de se livrar do Brasil, de sua mulatice, de sua desconhecida língua portuguesa (há um texto de Borges sobre a contribuição negra às Américas em que o Brasil nem sequer é citado), de sua desordem, sua pobreza e sua má distribuição; há quem, ao contrário, misture nacionalismo com patriotismo e exalte a paz racial [...] Eu não me enquadro em nenhum desses estereótipos. Acho que a maioria da população também não. (WEINSCHELBAUM, 2007, p. 31)

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No blog, a questão do negro na sociedade brasileira é abordada sob diversos aspectos, desde a canção de Noel Rosa "Feitiço da Vila" descrevendo um mulato à eleição de Obama nos Estados Unidos, passando por discussões sobre os termos “mulato” e “preto”. Apesar do tema aparecer em muitos posts, é interessante observar que, logo no início do blog, em junho de 2008, há uma sequência de posts exclusivamente dedicados a ele. Depois, isso só volta a aparecer com maior destaque em dois posts de novembro de 2008.

Figura 4 – “Feitiço da Vila é uma canção racista?”, publicado em junho de 2008

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Categoria 5: Política

Há forte influência do cenário político do ano de 2008 em muitos conteúdos, como a eleição municipal do Rio de Janeiro e a eleição presidencial dos Estados Unidos. Caetano desfila variadas opiniões e análises sobre o cenário político do mundo e do Brasil. Citações a políticos nacionais e internacionais atuantes no período aparecem com bastante frequência: Lula, Fernando Henrique, Obama, McCain, Zé Dirceu, Eduardo Paes. Na reta final das eleições municipais para prefeito em 2008, no período de setembro a outubro, esses posts atingem seu ápice e Caetano se manifesta abertamente em apoio a Fernando Gabeira no Rio de Janeiro:

GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA GABEIRA. Vamos redobrar o entusiasmo e deixar a onda crescer. Gabeira é uma onda boa. O Rio está tendo coragem de olhar para si mesmo. Acho que estamos bem com Paes e Gabeira para escolher. Não tenho nada contra Paes. Mas Gabeira é muito mais coerente. Desprezemos a mão pesada da grande imprensa em sua tentativa de sufocar a força espontânea que a candidatura de Gabeira desencadeou. Tudo o que ele fez de admirável - respeito aos concorrentes, limpeza na campanha de rua, desprezo pelos “santinhos” - vai ganhar cada vez mais significado. Gabeira se eleger prefeito do Rio é algo bom em si mesmo. [...] (trecho do post “Eleições”, de 10/10/08)

É curioso notar que a questão política apareça com tanta relevância no blog e explicite um apoio tão direto a um candidato. Embora tenha trabalhado, de algum modo em suas

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letras críticas à situação do país, o posicionamento político sempre foi um aspecto controverso na trajetória de Caetano desde a Tropicália, época em que foi acusado de “alienado” e “vendido às guitarras elétricas norte-americanas” pelos militantes de esquerda. Alheio às críticas e sem pretensões de ocupar cargos políticos como Gilberto Gil, o artista sempre optou por prezar pela independência de suas opiniões, fossem elas controversas, como na ocasião em que afirmou que Antônio Carlos Magalhães era “sexy”, ou mesmo contraditórias entre si.

Essa oscilação entre posturas anárquicas e de centro moderado marca a independência de suas posições liberais, cuja contundência está menos no seu teor específico do que na capacidade de desafiar a sobrevivência de práticas arbitrárias no seio da “Nova República”. (WISNIK, 2005, p. 114)

Categoria 6: Cidades

A relação do artista com grandes cidades do Brasil e do mundo é um aspecto recorrente em sua obra, que expõe o paradoxo de sua criação no interior da Bahia e a admiração espantada de encarar as maiores metrópoles do Brasil e compará-las ao resto do mundo. Este aspecto é fonte de inspiração de muitas de suas canções e aparece destacado na mesma entrevista à Violeta Weinschelbaum:

Eu gosto das cidades. A própria palavra “cidade” me agrada muito, tanto em português como em espanhol. Talvez em português seja a palavra que eu mais gosto de ouvir, me dá uma felicidade. As cidades são importantes para a minha cabeça. (WEINSCHELBAUM, 2007, p. 30)

De fato, “não será exagerado dizer que Caetano é o compositor brasileiro que mais fez canções em homenagem explícita a cidades” (WISNIK, 2005, p. 104).

Não à toa, relatos sobre grandes cidades seguem sendo uma tônica no blog, com ênfase para a relação de Caetano com Rio e São Paulo. O projeto Obra em Progresso começa marcado pela forte vontade de ficar no Rio, onde residem o artista e os músicos da banda, e muitos são os posts que falam de locais específicos dessa cidade, como o conjunto de salas de cinema Cinematheque, em Botafogo. Salvador e Santo Amaro, cidades que marcam a origem do artista, aparecem com força. São Paulo também aparece muito e é citada com emoção por Caetano:

Estou tão enfronhado no Rio com esse projeto da Obra em Progresso que tenho me sentido longe à beça de São Paulo. Vim aqui fazer o show com o Rei no belo teatrinho do Niemeyer no Ibirapuera e senti o tamanho da saudade que eu estava de Sampa. [...] Quando vi a Ponte Otávio Frias em frente aos prédios pós-modernos da Marginal Pinheiros (prefiro prédios pós- modernos aos chamados modernos que encheram nossas cidades de desarmonia, em nome da racionalidade) me senti esperançoso. [...] (trecho do post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08)

O post com maior número de comentários do blog (576) está nesta categoria: intitulado “Mau Gosto”, descreve as memórias de Caetano nos carnavais do Rio e de Salvador.

Cordão é sinônimo de bloco. Só quem saía sem corda eram os trios elétricos. Das grandes sociedades às escolas de samba (como lembro dos Diplomatas de Amaralina!), dos Filhos de Gandhi aos Internacionais, do Crocodilo ao Ilê Aiyê - todos sempre saíram com cordão de isolamento. Isso nunca impediu os foliões de brincarem carnavais inteiros de graça. Ainda hoje é 26

assim. [...] A primeira vez que vi as escolas de samba do Rio foi na Avenida Presidente Vargas, com Dedé8. Choramos de emoção: era 1965, o ano em que a Império Serrano saiu com os “Cinco bailes na história do Rio”. [...] (trecho do post “Mau Gosto”, de 05/03/09)

Ao longo da existência do blog, Caetano faz algumas viagens – seja para shows ou para comparecer em eventos – e, sempre que as faz, comenta sobre a cidade em que está. Este é o caso de Los Angeles, durante o Oscar, e Istambul, durante uma turnê europeia.

Categoria 7: Participação Especial

Posts em que convidados ou fãs assumem parte ou a totalidade do conteúdo. É o caso dos posts de Carlos Santorini, comentando sobre a figura do negro na música de Noel Rosa, e do escritor Alberto Mussa, com reflexões sobre o conceito de transamba. Há ainda um post que replica uma matéria sobre o blog publicada no tabloide musical “International Magazine”, e um post em que Hermano introduz Tyrone, um comentador frequente do blog, que descreve o show Obra em Progresso.

AQUI FALA O HERMANO: Quem quiser pode conferir nos comentários de todos os post deste blog: o Tyrone está sempre presente. Foi aqui que eu o conheci virtualmente. Percebi logo que ele sabe tudo sobre todos os discos e shows do Caetano. É uma enciclopédia ambulante de conhecimentos transcaetânicos! Pois bem: encontrei com o Tyrone na porta do show de ontem: ele veio se apresentar e me disse só tinha ingresso para o show de hoje, mas mesmo assim foi para o Casa Grande, para tentar arrumar uma maneira de entrar. Conseguiu, não sei como: no final, lá estava o Tyrone no camarim. Não resisti e pedi para ele um relato da noite. O cara é rápido. Suas impressões já estão aqui. O blog vive seu momento de radical democracia: o povo dos comentários ocupa a sala de visitas da Obra em Progresso (rsrsrsrsrsrs) [...] (trecho do post “A Obra de ontem segundo um fã”, de 20/08/08)

Categoria 8: Polêmicas

Posts nos quais Caetano expõe seu posicionamento crítico em relação a pessoas ou à imprensa. Metade dos posts que se enquadram nesta categoria surge da irritação do artista ante as críticas feitas pela imprensa especializada após os shows que fez com Roberto Carlos em homenagem a Tom Jobim.

Não, Leonardo, uma crítica negativa não é inaceitável. Essas de Sampaulo agora não tiveram peso dentro de mim. Não do ponto de vista da minha necessidade de ser aprovado. Nem sequer da de não ser injustiçado. Foi só minha vontade de ensinar. Quando moço, quis ser professor. Achei os textos da Colombo e do Jotabê tão ruins que quis alertá-los. “Boba” e “burro” são puxões de orelha. Achei a edição dos dois segundos-cadernos tão suspeita que quis mostrar aos responsáveis que eu tinha detectado algo. Isso me basta. [...] (trecho do post “Imprensa”, de 30/08/08, grifo nosso)

É interessante observar que a notória habilidade de Caetano em soltar farpas para todos os lados, atacando de forma iconoclasta quem bem entender, aparece em menor medida no blog. É possível que isto seja por efeito da moderação de Hermano, ou mesmo

8 Referência a Dedé Gadelha, primeira mulher de Caetano Veloso. 27

porque os internautas que interagiam em Obra em Progresso estivessem menos afeitos às questões polêmicas com os jornalistas musicais e não fizeram a discussão render muito. Fato é que os internautas não parecem irritar tanto o artista quanto a crítica especializada, a quem Caetano dedica sempre um tom ferino, o que ficou popularizado no popular meme da internet “Como você é burro, cara”, retirado originalmente de uma entrevista do artista no programa Vox Populi, dirigindo-se a Geraldo Mairinque.

Categoria 9: Respostas a Internautas

Posts dedicados a responder diretamente comentários de pessoas em posts anteriores. Há muitos posts classificados em outras categorias que também possuem respostas diretas a internautas que haviam comentado o post anterior. Porém, classificamos aqui os posts cuja maior parte do conteúdo se dedicava a uma ou mais respostas aos internautas.

Respostas a internautas dentro de um determinado post começam a aparecer logo no início do blog, e vão ganhando força à medida que personagens recorrentes e discussões sobre os temas ficam mais frequentes, notadamente a partir de agosto de 2008. Isto se torna um padrão até o fim do blog: em meio à exposição de suas ideias, Caetano sempre cita pessoas que lhe escreveram nos comentários. O tema é tão relevante que alguns posts são quase inteiramente dominados por respostas e os nomes dos comentadores viram título das publicações, como o caso da internauta Labi:

Labi ilumina tudo com sua graça. Mas não gostei de Baraka não. E será que eu escrevi que música na praia devia ser proibido? Meu Deus! Perdão, Labi. Seu amigo diplomata assintomático tem sintomas de diplomata. [...] (trecho do post “Lula Pena Bamor Labi”, de 12/02/09)

Em um dado momento, o artista vai ficando empolgado em responder comentários e começa a fazê-lo com tamanha frequência, que um dos internautas lhe diz: “Você está publicando comentários rápido demais”. Caetano decide, então, fazer um post ao invés de um comentário, inspirado nesse título:

O discurso de McCain caracterizou a vitória de Obama como uma vitória dos “africanos-americanos”, como eles dizem lá. [...] (Isso acima ia num comment, mas recebi essa resposta do blog que transformei em título. Seguia assim: “vai devagar”.) (trecho do post “Li: você está publicando rápido demais”, de 05/11/08, grifo nosso)

Essa característica de interação é mantida até o último post, em que Caetano agradece aos principais comentadores, citando-os nominalmente e dando exemplos de suas interações.

Eu adoraria falar de todos e de cada um que escreveu aqui. [...] Exequiela, Vero e Lucre, sempre mais sexuais do que as discretas brasileiras. Paloma que me cortou o coração ao sumir como que zangada, depois de ter feito aquela versão adorável de “Incompatibilidade de gênios”. Barbara, a quem eu precisava explicar por que eu ser baiano explica em parte eu gostar assim de São Paulo (remember my telling about Paulo Leminski’s idea of a link between Bahia and São Paulo: how these two, when put together, tend to be the most inventive team). Labi, tão inteligente e tão boa. Salem, Carias, Glauber, Joaldo (vou olhar a Impertinácia e de repente dou uma canja, de improviso), Paulo Osório (depois de São Paulo, minha preferência seria 28

estrear em Lisboa), Teteco dos Anjos, esse anjo lírico do interior de Taubaté e da Sardenha, vianna vana caravana, Miriam Lucia, guto guimarães, bruno gumarães, Lucesar, Rafael, Luiz Castello, Tabatinga, Wesley Correia, Marcio Juqueira, Neyde L., Mara, Siboney, Kauim, Nando, ju, Lícia, Maria, Maria e Erica, Marcos Lacerda, Julio Vellame, Enzio Andrade, Emerson Leal, Guido Spolti, Miki Kawashima, Rea Silvia, Rosana Tiburcio, tanta gente de que não lembrei o nome agora – mas que não deve se sentir preterida por eu ter escrito tantos outros: era vontade de chegar até o seu. Minha idéia era não citar ninguém. Mas não resisti. [...] (trecho do post “OeP (Saudades) ZeZ”, de 14/04/09)

Por fim, vale ressaltar que, apesar de termos procedido à catalogação temática para fins de análise, e que esta classificação tenha nos permitido mapear e entender os conteúdos principais dentro de cada categoria, uma das principais características do blog é uma grande mistura e sobreposição de temas. Como no lema “Tudo junto e misturado”, sabemos que frequentemente é impossível classificar se um post fala de uma música que está sendo feita ou de análises diversas sobre o mundo ao redor – para Caetano, as coisas estão, de fato, amalgamadas.

Aprofundaremos, no Capítulo II, a correlação específica entre esses temas e o que podemos observar de materialidade no álbum “Zii e Zie” – bem como em outras expressões da obra do artista –, observando sua evolução enquanto processo.

6. Os rumos do blog: proposta original versus interação das pessoas

O agrupamento por categorias descrito acima permitiu irmos além da análise qualitativa dos temas tratados pelos autores: trouxe também a possibilidade de procedermos a uma análise quantitativa em relação aos temas que mais apareceram no blog, bem como os que mais despertaram o interesse das pessoas. Tal análise nos permitiu entender, com razoável grau de confiabilidade, se o blog havia se mantido fiel ao seu intuito original – de acompanhar o processo criativo do novo álbum de Caetano –, ou se havia se desviado em temáticas correlatas, não necessariamente ligadas a esse tema. Ao mesmo tempo, permitiu-nos traçar um comparativo entre os temas que mais foram propostos pelos autores e os temas que mais mobilizaram a interação das pessoas.

Do ponto de vista da proposta original, a primeira conclusão é que, de maneira geral, os autores do blog mantiveram boa parte dos conteúdos alinhada à proposta de acompanhar o processo criativo do álbum “Zii e Zie”. Apesar de outros temas terem aparecido e ganhado força ao longo do tempo, do início até o fim do blog houve posts cujo conteúdo esteve diretamente ligado à experiência Obra em Progresso, abordando especificamente o processo de criação das canções que iriam compor o álbum em produção. Como podemos observar no gráfico abaixo, quase metade dos posts foi relacionada às categorias “Obra em Progresso” e “Processo de Criação”, as quais, conforme já analisado no item anterior, formam o eixo central de conteúdos relacionados ao projeto original do blog.

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Gráfico 1 – Classificação de Posts em Categorias

Fonte: Elaborado pela autora

A outra metade – na realidade, 53,3% dos posts – é pulverizada em temas diversos, e é possível observar que há uma forte tendência do artista em se manifestar para além do projeto, comentando sobre fatos da atualidade, reflexões de sua própria vida e memória, sua trajetória de referências e inspirações. Apesar de que, em um primeiro momento, isso leva à impressão de que o blog estivesse desviando-se de sua finalidade, esses conteúdos revelam, na verdade, uma segunda camada do processo de criação artística: o projeto poético e impulso do artista, que sempre manifestou interesse plural e abrangente por diversos assuntos ao longo de sua obra, conforme observa Guilherme Wisnik (2005, p. 98): “O ‘estilo’ cancional de Caetano é não ter estilo definido e poder transitar por dicções diversas estabelecendo a sua especificidade na multiplicidade”.

A principal temática desses assuntos não relacionados ao blog é a categoria “Referências”: tratam-se de posts em que o artista fala de uma miríade de influências artísticas e intelectuais que marcaram sua trajetória e que fazem parte de seu repertório. Os demais assuntos são referências mais específicas de temas que interessam ao artista comentar no momento (“Política”, “Polêmicas”) ou que são recorrentes em seu discurso e mesmo em sua obra (“Cidades”, “Negro”), conforme analisamos no item anterior.

Se os autores se mantiveram razoavelmente fiéis à proposta original do blog, resta entender de que forma o público reagiu. Para tanto, procedemos a mais uma análise quantitativa, desta vez sobre os percentuais de interação. O resultado é bem menos equilibrado: os temas mais abrangentes, que não fazem referência explícita ao processo de criação do álbum, acionam 80,3% dos comentários do blog. Ou seja: os temas que geraram maior engajamento não foram os relacionados à experiência Obra em Progresso, e sim aqueles em que o artista se expressava sobre assuntos de interesse geral. A tendência que domina o blog fica nítida quando comparamos a categoria “Referências”, que abrange quase 1/3 dos comentários, com a categoria “Processo de Criação”: os assuntos que atraem um maior número de comentários são aqueles em que Caetano explicita pensamentos à luz de influências artísticas, intelectuais e pessoais.

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Gráfico 2 – Percentual de Comentários por Tema

Fonte: Elaborado pela autora

Com efeito, apesar de soarem distintas, a categoria “Processo de Criação” se encontra irremediavelmente relacionada a “Referências”: enquanto esta trata de temas diversos, em estado aberto de reflexão, trazendo à luz músicos, autores e diferentes artistas com os quais a obra de Caetano dialoga, os posts sobre o processo de criação mostram o efeito prático, nas canções, desse universo amalgamado de referências, o qual tanto caracteriza seu trabalho.

Impossível não reconhecer em sua obra musical o êxito na mobilização do vário sortimento de pesquisas formais da poesia e da música contemporâneas tanto para a captação das modulações cambiantes de sua expressão pessoal quanto para a apreensão da multiplicidade avassaladora da vida urbana. E, dado fundamental, a síntese aí alcançada não abdica de sua origem e não deixa de retornar a ela: a música popular. (FERRAZ, 2005, p. 9)

De qualquer forma, por que as pessoas não interagiram tanto com os conteúdos que refletiam o propósito inicial do blog e dos autores, qual seja, o desenvolvimento do novo álbum musical?

O mais provável é que tenha havido uma falta de brechas e até de ferramentas para colaboração no âmbito musical. Pensando na composição das canções do álbum, a maioria já estava praticamente pronta quando do início dos shows, os quais foram definidos pelo próprio Caetano como um ambiente de teste para entender quais arranjos funcionariam melhor e quais agradariam mais à plateia. Porém, enquanto nos shows a possibilidade de colaboração existia, ainda que restrita à participação com elementos relacionados à performance dos artistas (palmas, dança, canto, etc.), no blog seria difícil materializar a mesma experiência, ainda mais considerando os recursos tecnológicos da época, que não permitiam tão facilmente as transmissões ao vivo e interações em tempo real. O blog, portanto, mantinha-se mais como um registro para as pessoas que não podiam comparecer aos shows e que, portanto, não tinham possibilidade de interagir com aquele momento e, de alguma forma, influenciar Caetano e a banda.

Também é de se notar que o blog era aberto a um grande número de pessoas, as quais não necessariamente tinham formação musical ou técnica que as permitisse interagir com as composições, tornando mais difícil a discussão sobre especificidades das

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canções. Ainda, cabe observar que partilhar experiências solitárias, como o momento de inspiração de uma composição, é sempre muito difícil, vez que envolve aspectos do sensível que, muitas vezes, não são replicáveis diante de um grande grupo, ainda mais em um ambiente virtual. De fato, as melodias e letras das canções do álbum foram desenvolvidas por Caetano e a Banda Cê em um ambiente diferente àquele dos shows e do blog, e dizem respeito à dinâmica dos artistas entre si. É uma característica bastante própria ao processo de criação musical: a dinâmica entre os instrumentos, a voz e possíveis letras vai dando o rumo e a inspiração para o surgimento das canções. Não é impossível que isso aconteça de modo virtual ou diante de um grande número de pessoas, porém, essa seria uma proposta bastante diferente daquela explicitada por Hermano e Caetano quando da criação do blog. Ou seja: é muito provável que as pessoas que aderiram ao projeto Obra em Progresso não tivessem sequer a expectativa de que iriam interferir na criação da obra em si.

Temos, portanto, que os aspectos relacionados ao desenvolvimento do álbum apresentavam, de fato, maior dificuldade e menos estímulos para a interação dos internautas, sendo compreensível que a relação entre os temas apresentados pelos autores e os comentários dos internautas sejam tão desproporcionais.

Resta entender a pergunta ao revés: por que, mesmo diante de tantas dificuldades de interagir com o processo de criação musical, o que parecia em princípio a grande vedete do blog, as pessoas ainda seguiram estimuladas e trouxeram suas contribuições, como é possível aferir diante do grande número de comentários? Existia um aspecto mais aberto à colaboração e que foi intuitivamente percebido pelos internautas: a troca de ideias com o artista e com outros integrantes do blog. Passaremos a estes componentes- chave, que forjaram os grandes estímulos de colaboração no blog de forma mais detalhada no item seguinte.

7. Motores para interações: como as pessoas colaboraram com o blog

Para entender o que estava no cerne da mobilização de comentários no blog, traçamos uma comparação entre os temas considerando uma métrica de divisão entre comentários e número de posts. Com esse método, foi possível delinear quais os temas mais estimulantes para os internautas. Não surpreendentemente, o tema “Respostas a Internautas” aparece com fortíssimo destaque, apesar de ter sido abordado em apenas quatro posts pelos autores do blog, conforme podemos observar na tabela abaixo.

Tabela 1 – Razão entre Comentários e Número de Posts por tema

# Comentários # Posts Razão Obra em Progresso 1687 39 43.26 Referências 2896 22 131.64 Processo de Criação 136 11 12.36 Negro 811 7 115.86 Cidades 1091 6 181.83 Opinião 858 6 143.00 Participação Especial 54 4 13.50

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Política 807 9 89.67 Respostas a Internautas 1177 4 294.25 Fonte: Elaborada pela autora

Nesta análise é possível observar que, apesar de estar presente em um menor número de posts, o tema que gera maior interesse ao público do blog, muito à frente de qualquer outro, é “Respostas a Internautas”. Novamente, verificamos que os maiores motores dos comentários são a aproximação ao artista e a possibilidade de dialogar diretamente com ele. Inclusive, há uma “recompensa” implícita para aqueles que mais interagem: os personagens recorrentes nos comentários passam a ser conhecidos por Caetano, ao menos virtualmente, e passam a ser chamados pelo nome. Essa “recompensa” tangibiliza o que Shirky (2011) denomina “motivação intrínseca”. Ao contrário das chamadas motivações extrínsecas, como dinheiro ou status, as motivações intrínsecas são aquelas realizadas por amadores, no sentido original da palavra: pessoas que amam o que fazem e não esperam receber qualquer outro tipo de recompensa além do prazer em contribuírem e serem reconhecidos como importantes naquele meio. Tais motivações aparecem no cerne das participações que observamos em redes sociais, porque se trata de um espaço em que as pessoas são recompensadas por serem quem são e por fazerem o que gostam, independentemente de quão boas são no que fazem e de quão famosas podem vir a ser. A recompensa mais provável, neste caso, é a própria discussão com o universo do artista, é poder trocar ideias de forma próxima com alguém que se admira e criar um senso de comunidade com os outros participantes. Prova disso é que o tema que gerou maior engajamento foi “Referências”, num total de 2.896 comentários: é notável a mobilização que o artista causa nos seguidores do blog quando resolve se manifestar acerca de suas fontes de inspiração, dos músicos que admira, dos autores que lê, dos ritmos musicais que prefere, entre outros.

Para além da recompensa, cabe ainda analisar o conteúdo dessas interações, isto é, o que as pessoas trouxeram para o blog e de que se tratavam suas colaborações. Contudo, ao contrário da análise dos posts, os comentários do blog não são passíveis de classificação por temas em comum. Primeiro, porque há uma variação muito grande nos temas dos comentários – tão grande quanto o número de pessoas que resolvem interagir. Dessa forma, os temas acabam ficando muito pulverizados, sem possibilidade de categorização, o que torna a análise menos conclusiva. Também notamos que os posts são muito determinantes para os comentários, ou seja, as interações acabam seguindo os temas propostos nos posts e é mais adequado analisá-las sob essa ótica, contextualizando cada comentário em face do seu fator propulsor. No entanto, a leitura atenta dos comentários permite identificar alguns padrões recorrentes, os quais ocorrem independentemente do conteúdo dos posts: isto nos permite analisar os comentários para além de sua temática e observar os aspectos comunicativos presentes nas variadas interações.

Em primeiro lugar, notamos que há uma relação proporcional entre estímulo e interação, no que diz respeito ao tamanho dos textos: quanto maiores os textos dos posts, mais longas as respostas. Pessoas gostam de comentar os vários pontos sobre os quais o artista se manifesta, e separam-nos por parágrafos:

Assisti, na semana passada, ao show de Tom Zé…. que figura é aquela….. Poderia ficar escrevendo horas sobre todo o óbvio que se falou a seu respeito, mas não vale a pena [...]

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Quanto ao “conhecer Caetano”, eu me lembro muito bem como ocorreu comigo. Com 13 anos, no natal de 1991, eu e minhas irmãs mais velhas nos reunimos e decidimos que pediríamos a nossos pais um só presente de Natal para os três: [...] (comentário ao post “Tom Zé, Mariana, Barbara & ”, de 19/11/08)

Seguindo essa mesma lógica, notamos que as reações a vídeos e fotos são mais simples. Em sua maioria, consistem em mera aprovação ao conteúdo exposto, similares ao botão “curtir” do Facebook, usado nos dias de hoje, e que expressa de forma sucinta um sentimento em relação ao que foi visto e/ou ouvido:

belíssima…gostei tanto quanto gostei de “para o mano caetano” do lobão. as duas foram escritas com sangue, suor e lágrimas. a banda cê é competentíssima, passional…é isso, tudo vale a pena quando a alma não é pequena. (comentário ao post “Caetano apresenta a música nova ‘Lobão tem razão’”, de 21/08/08)

Um segundo padrão que surge nos comentários são sugestões ao projeto Obra em Progresso: pessoas colocam nos comentários pautas sobre as quais gostariam que Caetano se manifestasse e até se arriscam a dar sugestões sobre os arranjos ou sobre a edição das músicas que estão em processo de gravação no estúdio. Muitas sugestões são acolhidas no blog, como no exemplo abaixo, em que o internauta solicita uma homenagem a Waldick Soriano e tem seu pedido endereçado no post seguinte:

Caetano, Neste dia triste para a música brasileira, em função da perda de Waldick Soriano, peço humildemente uma palavra sua sobre este grande nome do cancioneiro popular do Brasil. Você, cuja liberdade criativa que só os grandes têm nos proporcionou revisitações a obras de Peninha, Fernando Mendes e de outros subjugados pelos “bestinhas de nariz em pé”, pode, como ninguém, falar um pouco de Waldick, canção popular, música brasileira… Enfim, é isso. Muito obrigado pela atenção, Ilan. (comentário ao post “Lingüistas”, de 02/09/08)

Waldick Soriano morreu. “Eu não sou cachorro, não” é um clássico da cultura brasileira. Tenho orgulho desse grande baiano das nossas letras e músicas. Elite? Se há uma elite para mim, é a elite dos que têm ou tiveram grande intuição artística. Waldick era um desses. Que bom que nossa deslumbrante Patrícia Pillar fez um filme sobre ele a tempo. [...] (trecho do post “Samba Transexual”, de 06/09/08)

É comum os participantes trazerem espontaneamente sugestões às músicas que estão sendo trabalhadas no álbum, como no caso deste internauta que recomenda ainda mais rock na canção “Incompatibilidade de Gênios”:

Caê, a única “Incompatibilidade” que tem aqui no site (no vídeo) já parece boa demais da conta!!!… E se você a cantasse com um megafone? Pedro Sá, meu filho, por caridade ponha um bocadinho mais de pimenta no solo, pode ser microfonia ou wha-wha, pisa no pedal e corre pro abraço! Eu quero mais é comer com coentro! [...] (comentário ao post “Eleições”, de 10/10/08, grifo nosso)

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Neste caso, é um pouco mais difícil de precisar se a sugestão foi levada em consideração: a versão final da música de fato tem elementos mais marcados de rock no solo de guitarra de Pedro Sá, mas não se pode atribuí-lo inteiramente a este comentário, vez que diferentes versões da música foram submetidas à votação e muitas pessoas teceram comentários acerca do solo.

Durante o período dos shows, algumas pessoas se arriscam a fazer pedidos de músicas que gostariam que o artista e a banda tocassem ao vivo:

caetano, aceita uma sugestão? coloca “meu rio” no proximo [sic] show do “obra em progresso”, é uma samba tão bonito, e tb é um rio que faz oposição ao de perdeu e falso leblon, além obviamente da gente pode curtir como é essa canção tocada pela banda cê. (comentário ao post “Preparando o retorno ao Brasil e ao canteiro da Obra”, de 27/07/08)

Neste caso, não nos parece que o cantor tenha acolhido a sugestão do internauta, vez que, nos registros do show no YouTube, não aparece qualquer vídeo com essa canção.

Um terceiro aspecto curioso das interações é que os membros mais participativos nos comentários do blog, junto a Caetano e Hermano, começam a desenvolver uma linguagem própria. Surge um vocabulário autêntico, que só quem está acompanhando o blog entende: Hermano e Caetano criam formas de se dirigirem aos participantes do blog; estes aderem aos termos e se chamam de “obreiros” e “obreiros progressistas”. Aparecem “piadas internas”: em um determinado comentário de post, há uma referência crítica aos fãs de Caetano, os quais são chamados de forma irônica de “caetanetes gotejantes”. Os fãs assumem a denominação com orgulho e passam a se chamar assim. Caetano e Hermano também entram na brincadeira.

Em paralelo, muitas pessoas assumem proximidade com o artista, chamando-o de “meu querido” ou “amadinho”. Muitos simplesmente o tratam como “Caê”, até mesmo aqueles que o criticam.

Ps2.: Tô me divertindo chamando o figurão de Caê… vocês não? (comentário ao post “Lingüistas”, de 02/09/08)

Uma das comentadoras frequentes, Exequiela, inventa ela mesma um apelido para Caetano e passa a tratá-lo por “Leozinho” (leãozinho, em mistura de português com espanhol):

Sim, Leãozinho, muitas vezes você parece arrogante, egocêntrico, sabe-tudo [...]9 (comentário ao post “Rei, Reis”, de 05/10/08)

Esses membros mais ativos começam a formar uma comunidade dentro do blog, passam a ter uma participação intensa e a conhecerem-se entre si: comentadores respondem uns aos outros no espaço dos comentários, seja porque gostaram de um comentário, seja para se explicarem. Muitas vezes esse diálogo se dá em meio a uma avalanche de comentários, mas sempre se marcando a quem se está falando:

9 No original, em espanhol: “Sí Leozinho, muchas veces parecés arrogante, egocéntrico, sabelotodo...” 35

Caro Professor Rocha, adorei o teu texto, aprendi muitas coisas [...] Exequiela: eu vi tuas fotos no orkut e me lembrei de um filme que assisti uma vez em Buenos Aires sobre a historia [sic] do Tango [...] Caro Roberto, estou muito empolgada com este projeto seu da Impertinácia, tenho acompanhado sim o que você tem colocado e já me vi ate [sic] pensando sobre isso pelas ruas enquanto vou passeando aqui por Palermo [...] O Nelson sumiu mesmo, ja [sic] faz tempo que sinto a ausencia [sic] dele no blog, vai ver tirou ferias [sic] e foi passear, vamos esperar que ele volte. [...] (comentário ao post “Tom Zé, Mariana, Barbara & David Byrne”, de 19/11/08)

Caetano e Hermano também são ativos nos comentários, embora com menos intensidade – não comentam em todos os posts, por exemplo. No caso de Hermano, cabe a ele, normalmente, esclarecer as dúvidas sobre o blog. Contudo, além de cuidar da organização e moderação, Hermano frequentemente opina em alguns posts:

Obama ainda não se auto-classificou como mulato, mas disse explicitamente: “mutts like me” [...] falando do tipo de cachorro que quer levar para a Casa Branca – mutt pode ser traduzido sim como vira-lata, mas fui procurar no dicionário e pode significar também: “pessoa ignorante”, “mulher pouco atraente”... tudo pejorativo (como dizem que é o mulato vindo de mula)… bem interessante ele se dizer mutt logo na sua primeira entrevista depois de eleito... (comentário ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, de 11/11/08)

Já Caetano entra menos nos comentários: prefere endereçá-los nos próprios posts, fazendo referências às pessoas que escreveram. Eventualmente, porém, complementa algum post com comentários junto aos demais:

E, Heloisa, de onde você tioru [sic] a idéia de que seria surpresa para mim ouvir que a língua é viva. É assim que sempre a percebi. Não sou conservador no que tange à língua portuguesa. [...] Luedy, não li ainda o texto do Bagno na Caros. Os meus sobre os críticos paulistas eram também piadas. Vou ver o dele. Insisto em que a entrevista de Bagno era muito fraca. Vou ler os livros e volto ao assunto. [...] (comentário ao post “Erasmo, Glauco, Álvaro Guimarães”, de 18/10/08)

Ainda, é interessante destacar que os posts suscitam não só comentários lógicos e racionais sobre o que está sendo escrito, mas também abarcam a esfera do sensível, uma vez que as pessoas utilizam os comentários como forma de autoexpressão: muitas interagem colocando suas próprias músicas, poesias e interpretações de músicas, sendo várias delas em homenagem a Caetano e/ou inspiradas por sua obra:

No meio do caminho tinha uma pedra portuguesa Tinha uma pedra portuguesa no meio do caminho Tinha uma pedra portuguesa No meio do caminho tinha uma pedra portuguesa Nunca me esquecerei desse acontecimento Na vida de minhas estúpidas retinas (fatigadas?) Nunca me esquecerei que No meio do caminho tinha uma pedra portuguesa Tinha uma pedra portuguesa no meio do caminho (comentário ao post “P.S.:”, de 18/08/08)

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Várias pessoas respondem ao post com trechos ou links de músicas – muitas vezes do próprio Caetano e outras como referência ao post:

“Alguém me avisou” que os “Americanos” usando os seus “Podres Poderes” assim como seu “Dom de Iludir” fizeram a “Anunciação” do “Épico” e “Superbacana” “Remelexo” para tantar [sic] realizar “Sutis Diferenças” na “Errática” “Sina” da economia mundial. Enquanto isso, por aqui n “A Outra Banda da Terra”, aquela que fica abaixo da “Linha do Equador”, o “Menino do Rio” com ares de “” Mangabeira, uniu-se ao meu “Herói” Lula para planejar “Um Sonho” “Divino Maravilho”, doce como “Mel” de “Um dia” proporcinar [sic] uma “Vida Boa” para todos, seja “Um Índio”, “Um Tom”, “O Homem Velho”, “Os Passistas”, “Os Argonautas”, “O Leãzinho”, “Os Doces Bárbaros”, efim [sic] toda “Nossa Gente”, seja em “Sampa”, no “Meu Rio”, na “Bahia com H” ou em toda “Terra”. “Eu Não Peço Desculpa” por ser “Essa Cara” que acredita que quase nunca “Labão tem Razão”, apenas sigo fazendo minha “Oração ao Tempo” por “Sete Mil Vezes” até que concluir minha “Zera a Reza”, mesmo sem saber se “Quero ir a Cuba” ou se “Quero um Baby Seu”!! (comentário ao post “Gabeira e Mangabeira”, de 26/09/08)

Nessa linha, o blog acaba sendo um espaço para manifestações abertas de opinião. As pessoas colocam suas posições abertamente, sem sofrerem represálias, mesmo quando se trata de opiniões polêmicas ou de cunho político. Um aspecto que, hoje em dia, é tão frequentemente objeto de brigas intestinas em redes sociais, não aparece como um problema dentro do blog, muito provavelmente porque as pessoas estão ligadas por um senso de comunidade maior e, também, porque a moderação de Hermano não permite excessos que possam desrespeitar os membros da comunidade.

Gabeira é o primeiro candidato que desperta um sentimento de movimento, como foi dito na coluna do Jb, se não me engano. Apesar de possuir 17 anos e ser jovem, o que pra muita gente implica numa nula participação política, apoio abertamente gabeira em sua campanha, pois basta olhar sua biografia que se vê nele uma imagem diferente. (comentário ao post “Gabeira e Mangabeira”, de 26/09/08)

Por fim, vale mencionar as participações internacionais: há vários estrangeiros que comentam as músicas e o blog, em sua maioria em inglês e espanhol, e inclusive alguns de Portugal, comprovando a ideia de que uma das principais vantagens que o meio digital agrega ao processo criativo é a possibilidade de interação entre sujeitos que, normalmente, estariam distantes geograficamente.

Caro Caetano, só agora soube do teu (posso usar a segunda pessoa do singular, que aqui em Portugal se usa, mas conforme a proximidade?) blogue, pela minha amiga paulista-carioca Luciana, e é um prazer ler-te. Eu sou uma portuguesa-portuguesa-abrasileirada e por isso o tema certamente me interessa, muito. Muito eu troco a minha fala de Portugal pela do Brasil, por prazer e por emoção, dentro dos possíveis. Muito, isto é, de vez em quando. [...] (comentário ao post “Lingüistas”, de 04/09/08)

8. O ápice das interações: quando e como as pessoas mais interagiram

Nem sempre o blog teve tantas interações e, para fins desta análise, faz-se importante entender o momento da virada, isto é, o ponto em que os motores da interação estão

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mais acelerados. Investigamos a trajetória de comentários em relação ao número de posts, a fim de mapear exatamente em que momento as interações começam a ganhar mais relevância e o conteúdo passa a ser mais assertivo para provocar maior número de comentários.

Observamos que o blog começa com muitos posts por mês: em junho de 2008 foram 34; este número diminui drasticamente a partir de julho, aumenta um pouco em agosto e, a partir de setembro, vai caindo gradativamente até terminar com poucos posts por dia: em março de 2009, último mês antes do post final no início de abril, foram apenas quatro. Apesar do número de posts por mês ter ficado significativamente menor ao longo do tempo, notamos que isso não significa necessariamente uma redução do conteúdo: em realidade, o início do blog é marcado por vídeos e textos mais curtos, normalmente referentes a um só assunto e diretamente relacionados ao trabalho artístico em desenvolvimento.

À medida que Caetano começa a escrever mais, os textos ficam mais longos e muitos assuntos vão sendo misturados em um só post. As interações, por sua vez, seguem o caminho oposto: começam tímidas no mês de junho, raramente ultrapassando 20 comentários. Devagar aumentam a algumas dezenas entre julho e agosto, até que, no primeiro post de setembro, chegam a 100. Voltam a cair para algumas dezenas e, em outubro de 2008, passam a ter centenas de comentários – seguem esse padrão até o final do blog, com algumas poucas exceções em determinados posts. Atingem o recorde de 576 interações em um único post (“Mau gosto”) já na reta final do projeto, em março de 2009.

Quando comparamos diretamente o movimento de ambos, observamos que o movimento está inversamente relacionado: o pico de comentários acontece justamente no momento em que há menos posts publicados por mês no blog.

Gráfico 3 – Comparativo Evolução dos Comentários e Posts

Fonte: Elaborado pela autora

Por que isso aconteceu? Sem a pretensão de fazer uma análise estatística aprofundada, a hipótese mais provável, diante do que observamos na análise do blog, é que mais pessoas tomaram conhecimento do blog ao longo do tempo, seja porque Caetano o mencionou em entrevistas, seja porque elas ficaram sabendo por outras fontes. De todo

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modo, é certo que mais pessoas de diferentes perfis e até de diferentes nacionalidades passam a interagir com o blog à medida que os meses vão passando. Também destacamos o maior tempo que o post permanece no ar, sem que haja outro logo na sequência, o que permite que mais pessoas tenham acesso ao conteúdo: se a pessoa não entra todos os dias no blog, muitos posts por dia farão com que tenha acesso a diferentes conteúdos; ao passo que menos posts farão com que tenha acesso ao mesmo. De fato, observamos no post de maior interação (“Mau Gosto”, março de 2009) que os primeiros comentários datam do mesmo dia em que foi publicado e os últimos, de quase um mês depois. Já o post de menor interação (“Caetano convida Teresa Cristina”, junho de 2008) foi o terceiro conteúdo postado em um mesmo dia, sendo que no dia seguinte já havia outro. Ou seja, não houve um grande intervalo de tempo para que as pessoas pudessem entrar e comentar.

Apesar de parecer evidente que um fenômeno assim ocorra, essa nem sempre foi a regra na dinâmica das redes sociais: nos tempos de alcance orgânico do Facebook, por exemplo, em meados de 2010, a orientação de todos os especialistas era produzir o maior número de posts possível por dia, para se tentar “fisgar” a audiência por uma multiplicidade de temas, de forma a aumentar as chances de que as pessoas se engajassem em algum deles. Sob esse ponto de vista, o blog Obra em Progresso antecipou em quase dez anos uma tendência que hoje, em 2016, coloca-se como um novo paradigma nas interações: é preciso postar menos e garantir a qualidade de cada conteúdo, a fim de dar-se tempo suficiente para que as pessoas sejam impactadas e possam interagir de forma mais profunda.

Do ponto de vista qualitativo, cabe observar de forma mais aprofundada em que momento o blog passa a ganhar um aspecto de alta interatividade. O primeiro post a atingir uma centena de comentários, em setembro de 2008, foi intitulado “Lingüistas”. Expressa a paixão de Caetano pela língua portuguesa, cita autores clássicos, traça comparações entre o português falado na Europa e no Brasil, e ainda declara a indissociável relação da palavra com a música:

Quanto à lingüística propriamente dita, li Saussure (aquelas aulas) no início dos anos 70. Li somente porque os poetas concretos falavam dele, Lévi- Strauss (cujo “Tristes trópicos” me apaixonou em 1968) falava dele, todos falavam de Jacobson, que falava dele. Fiquei maravilhado com a afirmação de que a língua é viva e mutante na práxis dos falantes: a língua é falada, a escrita seria apenas uma notação convencionada a posteriori, como as pautas musicais. [...] (grifo nosso)

Conclui que a discussão da língua é também um ato de afirmação política e social:

O que isso tem a ver com os lingüistas, a língua falada, a norma culta, a norma oculta, a demagogia e a mania de pensar que o melhor modo de resolver o problema das favelas é destruir o sistema de esgoto de que desfrutam as “elites”? Tudo.

Os comentários que se seguem são múltiplos e variados, como é a norma do blog, mas sempre bastante ativos e cheios de energia ao colocarem uma opinião, sabendo que esta será lida por Caetano. Alguns são extremamente entusiasmados, parabenizando o artista por tanto conhecimento:

Meu Deus!!! O que foi isso qu [sic] eu acabei de ler? Uma mega aula de Letras!! [...]

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Outros colocam em xeque a capacidade do artista ao se colocar como escritor e até mesmo em opinar sobre temas nos quais não é especialista:

Bom Caê, confesso que nesse post acima você fez um excelente uso do blog como ferramenta de destruição em massa. Aliás, esse seu post é o exemplo perfeito da opinião que tenho sobre a MPB e a tchurminha que a segue como a uma religião. A MPB sempre tem uma explicação ou uma citação famosa pra tudo. Ô povinho que gosta de dar pitaco, vou te contar! [...]

Muitos lembram de trechos de uma canção de grande sucesso, “Língua”, em que Caetano discorre sobre o tema:

“Minha pátria, minha língua!” A colega Vivi tem toda razão, é linda essa tua frase Caetano! [...]

Até mesmo alguns poucos especialistas entram no diálogo e agregam um ponto de vista mais técnico à discussão, como uma doutoranda em Linguística:

[...] as idéias em relação aos fenômenos lingüísticos mencionados me pareceram bastante razoáveis, principalmente considerando que não é especialista na área. Também acho que não é preciso ser lingüista para discuti-los. Afinal, em seu ofício, você também trabalha o tempo todo com a palavra.

O grande número de interações nesse post dificulta a moderação por parte de Hermano Vianna, que acaba também por se manifestar, trazendo explicações:

oi Fernando: não sou só eu na moderação - claro que o timing é um problema - vamos melhorando aos poucos (se o movimento por aqui exigir - como nos últimos dias com picos inesperados de visitas) - afinal a Obra nos bastidores do blog também está em progresso – abraços PS: e desculpa colocar este comentário nada a ver com o post por aqui - mas era tanta gente reclamando por não ter tido comentários publicados que tive que colocar os links para os esclarecimentos… (grifo nosso)

O tema “Referências” já era presente no blog, mas, a partir dessa explosão de comentários, passa a aparecer com ainda mais frequência e a atrair ainda mais interações, chegando ao expressivo número de 564 comentários no post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé” – o segundo com maior número de comentários. Esse ponto de inflexão é decisivo para moldar como ficariam os posts dali em diante: a alta receptividade em relação a temas mais abrangentes vai naturalmente instigando Caetano, Hermano e os comentadores frequentes a falarem cada vez mais de aspectos não diretamente relacionados à evolução do álbum; estes passam a compor apenas uma parte do blog e não constituem mais o único foco.

O provável motivo para tamanha interação em torno de um tema tão plural e abrangente quanto “Referências”, ao mesmo tempo em que há tão pouca participação nos temas diretamente relacionados ao processo de criação do artista, revela as características que emolduram o projeto: o veículo blog determina um tipo de interação mais propícia ao debate de ideias e conceitos. Em primeiro lugar, porque os textos publicados pelos autores são, em geral, mais longos e mais reflexivos, o que estimula interações

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similares. Também, porque é dada a possibilidade de rapidamente se enfileirarem comentários e muitas pessoas poderem escrever sem limitações, colocando suas opiniões da forma a mais diversificada possível. Finalmente, o blog demanda aprofundamento, porque trata de um grande macrotema e reúne somente pessoas interessadas naquele tipo de interação.

Caso fosse um outro suporte, com limitação de caracteres como o Twitter, ou mesmo com características de multiplicidade de conteúdos, como o Facebook, ou com a fugacidade de um Snapchat, é de se supor que o tipo de interação seria completamente diferente e acabaria seguindo o formato destas mídias.

Outro fator relevante, que reforça o porquê de a interação com esses temas ser tão atraente para o público, é a possibilidade de trocar ideias e discutir conceitos de forma direta com um artista tão famoso. É como se a internet quebrasse a distância que o mundo físico impõe, e isso é altamente estimulante para aqueles que se dispõem a interagir no blog. Existe um desejo de usar a discussão como forma de se aproximar de Caetano Veloso e, assim, estabelecer contato com aqueles seres que Morin (2011) define como “olimpianos”, pessoas que resguardam a veneração dos antigos deuses mitológicos que habitavam o Olimpo, porém ressignificados à luz da cultura de massas do século XX, com roupagem mais próxima e humana para que pareçam acessíveis o suficiente.

Isso aparece de forma recorrente em muitos comentários do blog. Fernando Salem, um dos comentadores mais ativos e frequentes, resume o sentimento em um comentário ao post “Lingüistas”:

Vocês notaram como os coments aos POSTS do Caetano não relacionados a Transamba e Obra em Progresso se intensificam? Sei que esse blog nasceu como parte orgânica do belo projeto. Mas é visível o quanto ele despertou em Caetano o desejo de falar e escrever sobre temas variados, claro que direta ou indiretamente relacionados ao seu trabalho. A web é perfeita para acolher a sua inquietação! Confesso que estou (como tantos aqui) bem curioso sobre o disco que está nascendo. Mas quero ouvi-lo. Surpreendentemente, mesmo sendo músico não tenho tanta vontade de saber como as coisas estão rolando no útero do, no estúdio. Por incrível que pareça, pra mim é menos instigante. Corrigindo a digitação: Os coments aos posts em VT com Caetano cantando são poucos e apenas elogiosos. Claro! Precisa mais? A gente escuta e vê o cara. E basta. Já é maravilhoso. Mas quando lemos suas relexões [sic] paralelas ao trabalho estamos diante de um privilégio inédito. Pensar com ele. [...] (grifo nosso)

Luciano Sá, outro personagem recorrente no blog, postou também um artigo de sua autoria, publicado em outro blog, “Overmundo”, falando sobre a humanização do artista:

Em constantes visitas e leituras ao blog Obra em Progresso, do cantor, compositor e escritor Caetano Veloso, pude verificar como o artista se humaniza diante de outros internautas, “possibilitando um espaço de comunicação entre os interagentes, além de proporcionar a discussão e o diálogo, o processo de debate e a invenção cooperada”.

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Caetano Veloso humaniza-se porque se afasta de seu posto de mito ou medalhão ou monstro sagrado da MPB, para expressar-se livremente por meio de posts, LER comentários e trocar idéias com os leitores e comentaristas do seu blog, a quem coerentemente denomina obreiros. [...] (SÁ, 2009, grifo nosso)10

Já as publicações relacionadas ao processo de criação geraram menor interação: nenhum dos 11 posts específicos sobre o tema gerou mais que 32 comentários. As discussões entre Caetano, Hermano e os internautas, tão frequentes nos temas mais abrangentes, pouco acontecem nesse tipo de post. As interações tendem a ser menos profundas, com textos mais curtos que geralmente se resumem a elogios ou sugestões, conforme o exemplo abaixo, em resposta ao post “Preparando a volta ao Brasil e ao Canteiro da Obra”, de julho de 2008:

Mestre querido, muitíssimo obrigada por dividir conosco suas verdades, vontades, conceito/partido criativo e impressões sobre os últimos acontecimentos e criações! A arquitetura das idéias é a nossa constante “Obra em Progresso” e graças a ela podemos construir, verdadeira e singularmente quem somos! Bravo pela idéia do espetáculo! Já estou ansiosíssima para ouvi-lo e vê-lo aqui em Minas! Meu carinho e admiração daqui das Gerais, Vivi Norman

9. Tendências de processo: projeto poético e aspecto comunicativo

Após esta análise aprofundada, levando em consideração aspectos quantitativos e qualitativos, passaremos a identificar as principais tendências do processo de criação na obra artística, por entendermos o processo de criação como um trajeto com tendências, nos termos definidos por Salles (2011). Apesar do rumo vago e incerto que qualquer projeto artístico necessariamente implica, observamos que existem características que se tornam mais fortes que outras e conduzem o destino da obra e sua consequente materialidade. É um processo em que, seletivamente, o artista vai se amoldando àquilo que mais lhe interessa, ao mesmo tempo em que se esquiva dos caminhos que não lhe inspiram tanto. Essas marcas sutis da evolução durante a obra se avolumam e se tornam mais evidentes até que acabam por revelar os princípios direcionadores, os quais permitem definir o processo de criação artística.

A primeira forte característica que surge ao analisarmos o blog Obra em Progresso é o projeto poético do artista, isto é, “os gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único” (SALLES, 2011, p. 44). Em que pese o fato de que o blog não constitui um projeto poético em si mesmo, visto que é apenas mais uma extensão da experiência transmidiática, as manifestações de Caetano presentes em Obra em Progresso acabam por revelar os princípios que direcionam o seu processo de produção, desnudando os meandros que o instigam e o inspiram nessa trajetória. Sim, a materialidade da obra acontece ao final, mas o principal destaque está, justamente, em acompanhar o que acontece durante essa jornada e de que forma vão sendo tecidos os fios invisíveis da inspiração até que se materializem em algo a ser ouvido e, quiçá, apreciado.

10 Ver Anexo 3. 42

O processo atrai a atenção do público como uma obra em si mesma, caracterizando-se pela estética do inacabado e pelo imaginário que evoca, como situa Jean-Claude Bernardet em artigo ao jornal “Folha de São Paulo”:

A questão que coloca a minha reação, que com certeza não é a do público em geral, é que o não-ver, o evocar, o sugerir, o aludir podem ser mais expressivos que o visto, o representado. A evocação fornece elementos ao espectador e, por não concluir a representação, o deixa trabalhar e estimula sua imaginação. A evocação abre um além do mostrado que, justamente por estar indefinido, pode proporcionar indagações e emoções mais intensas que a representação completa. (BERNARDET, 2003)

A segunda característica marcante que identificamos no objeto é o aspecto comunicativo: as interações entre Caetano, Hermano e os participantes que escrevem nos comentários propulsionam novas ideias e discussões, as quais passam, inclusive, a determinar o modo como o blog começa a se desenvolver e o tipo de estímulo gerado pelos posts. Tais aspectos permitem visualizar o artista como sujeito semiótico, segundo a análise de Vincent M. Colapietro sobre a obra de Peirce: “Além disso, o self como falante nunca é simplesmente um falante; em qualquer elocução produzida pelo self há ecos do discurso dos outros” (COLAPIETRO, 2014, p. 79).

No caso de Obra em Progresso, os aspectos comunicativos são fundamentais para revelar o intangível da obra que, até então, só se encontrava na mente de seus criadores: encontramos rastros de como a criação vai tomando forma a cada explicação sobre o processo de criação das letras, a cada conceituação de como se constituiu o processo de composição melódica, a cada resposta a uma pessoa sobre a gravação nos estúdios. O que inicialmente parecia ser apenas uma dramaturgia do processo de criação, isto é, um acompanhamento de como a obra artística evoluía ao longo do tempo, aos poucos vai tomando uma nova forma que nasce, justamente, da interação do artista com seus interlocutores, e confere ao blog Obra em Progresso seu caráter de extensão transmidiática da obra principal “Zii e Zie”.

Portanto, temos que as principais tendências identificadas no processo de criação da experiência transmídia Obra em Progresso são: as evidências relacionadas ao projeto poético, isto é, todos os aspectos sobre o desenvolvimento da obra artística e o universo referencial do artista que se podem apreender por meio dos posts no blog; e o aspecto comunicativo, ou seja, todas as interações entre sujeitos ao longo da experiência e como uns afetaram os outros.

Iremos detalhar ambas as tendências com maior profundidade nos capítulos seguintes. No que tange ao projeto poético, analisaremos a identificação de padrões que se manifestam na materialidade do álbum em produção (“Zii e Zie”) e no restante da obra do artista, manifestando nossa visão de processo. A base para essa análise será composta pelos posts que tratam do processo de criação, complementada por fontes secundárias como trechos de shows, entrevistas, textos/livros do autor e sobre o autor. Já em relação ao aspecto comunicativo, investigaremos a dinâmica das interações e a formação da comunidade ao redor do blog Obra em Progresso. O conjunto dessas participações será determinante para compor nossa visão de rede de criação na experiência transmídia.

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CAPÍTULO II: O RUMO INCERTO DE UMA OBRA EM PROGRESSO

1. Obra em Progresso no contexto da trajetória do artista

Em meados dos anos 2000, Caetano Veloso parecia ter se acomodado ao seu papel de um dos grandes nomes da MPB, a despeito do aparente contragosto com que recebia o título11. Após a consagração unânime de seu trabalho com o álbum e show ao vivo “Circuladô” no início dos anos 90, Caetano intensificou a parceria com o músico de formação clássica Jaques Morelenbaum, que lhe rendeu arranjos sofisticados em canções novas e antigas, com direito a elementos orquestrados e uso de violinos. Caetano ainda lançou um álbum inteiramente em espanhol, trouxe para o repertório canções extremamente populares como “Sozinho”, do compositor Peninha, e se consagrou como uma “celebridade”, a ponto de ter figurado em sites sobre famosos simplesmente por ter estacionado seu carro no Leblon e atravessado a rua – fato de tamanha irrelevância que gerou inúmeras piadas e até virou um meme na internet.

Após o lançamento de “Noites do Norte”, em 2001, esse ciclo já dava mostras que estava chegando ao fim, porém ainda sem uma perspectiva clara de qual seria a nova direção. Apesar da conhecida habilidade do artista em propor reinvenções para si mesmo e movimentar sua carreira em diferentes direções, alguns davam como certo que esse período profícuo de criatividade havia chegado ao fim:

Como observou Nuno Ramos, a impressionante capacidade de criar novidades pela exposição viva das contradições sempre se fez como uma “hipérbole de sentido”, fragmento de um “todo nunca formado” capaz de unificar simbolicamente “a cisão das grandes tensões nacionais”, sendo portanto, na opinião do autor, criativamente dependente dessas tensões que se abrandaram progressivamente com a volta à normalidade democrática. (WISNIK, 2005, p. 120)

Caetano passou a dirigir seu olhar em múltiplas e não convergentes direções: a nova cena da MPB, representada por Afroreggae, Martn'ália, Virgínia Rodrigues e Maria Gadú. Gravou um disco inteiramente em inglês, “A Foreign Sound”, com clássicos norte-americanos como “Smoke gets in your eyes”, numa tentativa de dominar a língua da dominação, conforme ele mesmo afirmou no encarte do álbum. Celebrou parcerias do passado, com os Doces Bárbaros, Roberto Carlos e Jorge Mautner. Escreveu um livro (“Verdade Tropical”) e publicou textos em coletânea (“O mundo não é chato”). Chegou até a fazer uma parceria inusitada com Zezé di Camargo e Luciano para o filme “Dois filhos de Francisco”. Foi ao Oscar cantar “Burn it blue”, trilha sonora do filme “Frida”. Compôs a trilha sonora do balé “Onqotô”, do Grupo Corpo, em parceria com Zé Miguel Wisnik.

Não se pode deixar de reconhecer que um certo fastio pela composição de canções – Caetano lançou apenas 2 discos autorais em 14 anos – somado a uma hipertrofia do Brasil no campo de suas preocupações intelectuais, acabaram deslocando-o para uma vocação anterior à de cancionista: o de pensador da cultura e intérprete do Brasil – em prejuízo da tensão artística mais efetiva. (WISNIK, 2005, p. 120)

11 Caetano Veloso atesta recorrentemente em entrevistas que é um “medalhão rebelde”. 45

De fato, em 2004, por ocasião do lançamento de “A Foreign Sound”, o artista não se dizia propriamente entusiasmado com o novo álbum, que parecia ter sido feito em nome de um interesse suscitado no passado, na época do exílio em Londres. Fazer um disco inteiramente em inglês não representava tanto uma vontade atual, conforme foi explicado pelo próprio Caetano no release do álbum:

Fazendo A Foreign Sound sofri muitas vezes por não estar fazendo outras coisas que estava inspirado a fazer. Também virou um pouco lugar comum para músicos da minha geração revisitar a grande canção norte-americana. Há uma espécie de desafio na feitura deste CD. Gravei-o agora porque posso fazer . [...] Não supunha que pudesse fazer nada de relevante. Pode ser que minhas gravações suscitem algum interesse enviesado. Não espero mais que isso. (VELOSO, 2005, p. 159)

Em 2005, um fato de sua vida pessoal pareceu movimentar o artista de volta à música: ele se separou de Paula Lavigne, com quem fora casado por 20 anos, e passou a frequentar novamente o universo de encontros e desencontros dos relacionamentos, o que trouxe novas composições e suscitou diferentes interesses, como podemos notar na letra de uma das composições da nova fase, “Deusa Híbrida”:

com você eu tenho medo de me apaixonar eu tenho medo de não me apaixonar tenho medo dele, tenho medo dela os dois juntos onde eu não podia entrar com você eu tenho mesmo de me conformar eu tenho mesmo de não me conformar sexo heterodoxo, lapsos de desejo quando eu vejo o céu desaba sobre nós mucosa roxa, peito cor de rola seu beijo, seu texto, seu queixo, seu pêlo, sua coxa menina deusa urbana, neta do sol eu sou você e os meus rivais. sou só

Esse novo momento favoreceu outros tipos de conexões e possibilidades para o artista, e provocou a vontade de realizar algo através da música, tendo como ponto de partida sua nova realidade:

O artista apropria-se da realidade externa e, em gestos transformadores, constrói novas formas. Nessa apropriação, são estabelecidos jogos com a realidade. [...] Esse movimento transformador é responsável pelo estabelecimento de elos. O artista está ligado e precisa da realidade externa ao mundo ficcional, no sentido que se alimenta dela. O ato criador estabelece novas conexões entre os elementos aprendidos e a realidade em construção, desatando-os, de certa maneira de seus contextos. (SALLES, 2011, p. 100)

Ato contínuo, o artista se colocou diante de um novo trajeto de experimentação também na busca por sonoridades ainda pouco exploradas ao longo de sua carreira: rompeu com o momento mais popular, de vendagens de sucessos e poucos álbuns gravados, para formar, em 2006, uma banda que desse forma ao seu reavivado interesse por compor canções. Surgiu a Banda Cê com os músicos Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes. A escolha foi pela clássica formação roqueira de vocal-baixo-guitarra-bateria, algo inusitado na carreira de Caetano, que já havia se aventurado no rock no início dos

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anos 80, com a Banda Nova, porém seguindo a linha mais new wave12 do rock da época, com sopro e teclado.

O projeto também se mostrou bem diferente do que Caetano vinha trabalhando nos últimos 20 anos, seja em relação aos espetáculos sofisticados com muitos músicos e arranjos elaborados (álbuns dos anos 90 e 2000, como “Circuladô” e “Noites do Norte”), seja em relação aos momentos de simplicidade total, em que o foco era no artista cantando, algumas vezes sozinho, outras vezes acompanhado de uns poucos músicos (álbuns dos anos 90 e 2000, como “Prenda Minha” e “A Foreign Sound”).

Figura 5 – Caetano e a Banda Cê

Fonte: Jornal “Folha de São Paulo”

A Banda Cê representa uma retomada de Caetano aos projetos musicais com a companhia de uma “banda”, e revela o quanto o aspecto coletivo da música é um fator relevante para propulsionar a criação do artista. Apesar de ter sido considerado, durante muitos anos, um “artista de bandas” – como nos anos 70 com A Outra Banda da Terra e nos anos 80 com a Banda Nova – ou minimamente de compartilhar interesses junto a grupos de músicos, como no caso da Tropicália e dos Doces Bárbaros, dos anos 90 em diante Caetano deixou de lado esse tipo de projeto e passou a colaborar com músicos de forma mais esporádica, sem o projeto “banda” manifestado, como é o caso dos discos com Jorge Mautner, Gilberto Gil e Maria Gadú.

Contudo, o espírito criativo fomentado na experiência coletiva ainda parece mover Caetano, inclusive em seus momentos menos propícios, na composição de novas canções, e é exatamente nesse apreço que surge a centelha do que viria a ser a Banda Cê. Isso pode ser constatado no êxtase manifestado diante dos músicos que lhe acompanharam em “Noites do Norte ao Vivo”, de 2001:

Para mim, o disco é um tesouro por causa do trabalho dos instrumentistas. O som que resulta das amarras das guitarras de Davi e Pedrinho com os couros de Cesinha, Márcio, Junior, Du e Jó – no diálogo singular que esse som mantém com o arco musical de Jaques Morelenbaum – é uma máquina poderosa. Ela produz enlevo e libertação. (VELOSO, 2005, p. 165)

“Pedrinho” é Pedro Sá, o guitarrista da Banda Cê, uma das crias musicais de Arto Lindsay13 e amigo de infância de Moreno Veloso, filho mais velho de Caetano. Moreno,

12 New wave é um subgênero do rock, muito comum no início dos anos 80, que incorporou o uso de recursos eletrônicos, como sintetizadores, e tinha como marca os teclados e sopros somados à formação clássica do rock de vocal-baixo-guitarra-bateria. 13 Músico experimental norte-americano, parceiro de David Byrne e colaborador de diversos músicos brasileiros. Produziu o álbum “Circuladô”, de Caetano Veloso, em 1991. 47

também músico e produtor, é proclamado pelos músicos da banda e pelo pai como o “quinto elemento”. Na ocasião de lançamento de “Cê ao Vivo”, Caetano declara sua influência na nova fase de trabalho:

Moreno é a quem já devíamos a clareza do som do disco de estúdio – e é, além do grande artista que vem se afirmando no grupo +2, na Orquestra Imperial, nas participações com Adriana Calcanhoto ou com João Donato, meu filho e conselheiro. Devo a ele o encontro com Pedro Sá e Kassin (que produziu o disco que fiz com Mautner), com toda uma geração de músicos inventivos. 14

De fato, a participação de ambos é essencial nesse novo momento de Caetano. Moreno participa de shows de Obra em Progresso e é citado frequentemente no blog, em especial na fase de gravação de estúdio, em que teve forte participação. Ele circula à vontade entre os músicos, sugerindo novos elementos dentro do processo criativo, como fica claro nesse post de outubro de 2008, com uma foto de Moreno:

Figura 6 – Post “Moreno” mostra o artista no estúdio

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Pedro Sá, porém, é a figura central e o grande catalisador que dá forma à Banda Cê. Já havendo trabalhado com Caetano anteriormente, Pedro recebe carta branca para recrutar os demais membros da banda:

O Caetano tinha visto um show do Wilco15 e queria piano na banda, então eu chamei o Ricardo (Dias Gomes) que é originalmente pianista e migrou para o baixo, então poderia ocupar as duas funções e o Ricardo convidou o Marcelo Callado. Foi conexão no primeiro toque. No primeiro ensaio, na primeira música, a gente já saiu tocando. Foi muito rápida a conexão, a maneira como aconteceu tudo e até hoje. Muito justo, como é o som da banda. (SÁ, 2014)16

A essa altura, Pedro já era um guitarrista razoavelmente conhecido e respeitado no meio musical, tendo participado de bandas como Mulheres Q Dizem Sim e Orquestra Imperial, além de ter tocado com músicos como Lenine. Já havia conhecia Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado anos antes de formar a Banda Cê, como lembram o baterista e o baixista em entrevista ao site “Terra”:

14 Press Release de lançamento do CD/DVD “Cê ao Vivo”, em 2007. Ver Anexo 3. 15 Banda indie norte-americana, conhecida pelo caráter experimental de suas composições. 16 Ver Anexo 3. 48

“Eu conheci o Pedro em 1994, em um show do Mulheres que Dizem Sim (banda do guitarrista dos anos 90)”, lembra Marcelo. “No mesmo dia, conheci o Ricardo e já fizemos uma banda, ensaiamos muito durante a adolescência.” A ponte, no entanto, foi feita principalmente por Jonas Sá, irmão mais novo de Pedro. “Éramos muito amigos, então, frequentamos muito a casa deles”, lembra Ricardo. (AGOSTINI, 2012)

Não é exagero, portanto, afirmar que sem Pedro Sá a Banda Cê não existiria. Além de ter propriamente formado a banda, Pedro aproximou Caetano de um outro universo de influências musicais, uma vez que alguns deles eram mais ligados à cultura do indie rock. Estes, notadamente, tiveram grande peso na concepção dos álbuns da banda, como atesta o próprio Caetano em uma conversa com Pedro retratada no blog17:

C – Eu vejo tudo o que houve de desenvolvimento, mas acho o “Cê” mais conciso. Você sabe que não estava só o andré t: tinha uma turma do rock de Salvador. Tava o Glauber Guimarães, o Fábio Cascadura, estava também o baterista do Cascadura, era uma turma assim. Numa coisa eles concordavam: achavam que esse disco tem muito mais unidade do que o “Cê”… P – Ah, é? Engraçado. C – …o que pra mim é muito surpreendente… P – Mas ao mesmo tempo isso quer dizer alguma coisa. C – É. Todos não podiam se enganar da mesma maneira. P – E é o pessoal do rock. Mas é engraçado. Porque eu ouço o “Cê” como muito mais conciso no conceito. C – É. Ele se ateve ao que ele é. Quase não tem nuances pra fora. Mesmo “Musa híbrida” não vai muito longe. E eu lembro que muito dessa concisão se deveu a você ter me chamado a atenção para o disco dos Pixies na BBC de Londres. P – “The BBC Sessions”. C – Que é uma coisa incrível. Lembro de você falar que é João Gilberto – e é. E o “Cê” sempre me pareceu ser fiel a isso. A primeira faixa ser “Outro”, tão concentrada e original, com uma linha melódica radical, em três mas com a melodia em relação estranha com esse três, e a bateria dobrada em cima, tocando reto e rápido. E essa peteca não cai ao longo do disco. Eu não vejo isso no “zii e zie”. Eu vejo que o “zii e zie” tem mais densidade no som da banda mas não tem a mesma unidade do “Cê”. Eu disse isso a eles e eles até ficaram um tanto surpresos. E essa redução ao mínimo do “Cê” eu atribuo muito àquele disco do Pixies. Lembro que fiquei tão maravilhado que fui ouvir os discos de carreira do Pixies, que são bonitos mas nenhum é como aquele. (trecho do post “Papo com Pedro”, de 04/04/09, grifo nosso)

Também é Pedro quem se arrisca musicalmente a traduzir a inusitada ideia de Caetano de promover experimentações ao tocar samba com sonoridades roqueiras. Ninguém mais adequado para essa tarefa do que um músico que define sua formação musical como um híbrido de rock e música brasileira, como se apreende em outro trecho do mesmo post:

17 No texto, “C” se refere a Caetano Veloso e “P” a Pedro Sá. 49

C – E emocional e esteticamente, como você se identifica? Se você é mais blues, se é mais cool – e quais os guitarristas que mais te inspiram no seu gosto, você pode admirar mais um mas gostar mais de outro… P – Eu posso começar respondendo isso dizendo quais as minhas duas inflências [sic] no instrumento e na música, que foram Jimi Hendrix e João Gilberto. Foram os dois caras que me formaram. Na pré- adolescência eu fiquei tomado pelos discos deles. Abriram minha cabeça. Eu pensei música e aprendi a ouvir música ouvindo essas duas pessoas. Como uma coisa básica pra mim. Na verdade são dois caras muito diferentes, são dois caras extremamente diferentes. O Jimi Hendrix é um cara muito mais explosivo, ele é distorcido, saturado, Jimi Hendrix é saturado, ele é saturação, ele é descontrole, é dionisíaco, ele até se perde na coisa dele mesmo. E ele só faz música dele, ele quase não toca música de outras pessoas. João Gilberto é o contrário. É o cara introvertido, que calcula, que pensa aquilo, as passagens, os acordes, a harmonia, João Gilberto é harmonia. Jimi Hendrix é blue, que quase não é harmonia, né?, é outra coisa... Agora os dois têm uma coisa, têm um feeling, têm um banzo, têm um negócio, os dois têm um suíngue, um molejo, um mambo, uma magia que nos dois me leva para a música. (trecho do post “Papo com Pedro”, de 04/04/09, grifo nosso)

Assim, na confluência entre a articulação de um artista com as singularidades de Pedro e o desejo de Caetano de partir para uma sonoridade mais experimental, surge um projeto musical conjunto que se manifesta em uma banda. Esta, a princípio, não tem nome, mas, após o lançamento do álbum “Cê”, passa a ser conhecida como a “Banda do Cê” e, mais tarde, simplesmente como “Banda Cê”. O processo de voltar a tocar com uma banda, especialmente com músicos de características tão diferentes das que Caetano vinha trabalhando até então, inerentemente convida o compositor em novos rumos, vagos e incertos para ele próprio, mas certamente instigantes. Um processo de novidades e surpresas, sobre o qual Caetano reflete por ocasião do lançamento de “Cê ao Vivo”:

“Cê” é antes de tudo um disco de banda. Registrar essa banda em atividade num show seria o procedimento a se adotar o mais prontamente. E assim foi feito. Gosto de pensar na banda do “Cê” como uma das bandas de que Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes participam. Felizmente, no Rio de Janeiro há um bom número delas. Gosto de vê-la também como uma das bandas que Pedro Sá poderia criar e liderar. Não que não goste de que ela seja a expressão de minhas próprias necessidades musicais agora. Acho o som que fazemos com “Cê” o que melhor mostra o que sempre tenho sido. E isso justamente por parecer opor-se a tanto do que fiz. Ele me livra um pouco de mim mesmo para que eu me aproxime mais de ser quem sou.18

A parceria do artista com a Banda Cê resulta em três álbuns, que ficaram conhecidos como a “trilogia do rock” de Caetano: “Cê”, “Zii e Zie” e “Abraçaço”; todos com suas respectivas versões ao vivo, as quais ampliaram ainda mais a proposta original de cada álbum. Permitiram também que fossem inseridas canções do repertório de Caetano que há muito tempo não eram tocadas ao vivo, como “Nine out of Ten”, “You don’t know me” e “Triste Bahia”, todas estas do álbum experimental “Transa”. Este álbum é bastante cultuado por fãs de rock underground e por músicos alternativos, como Devendra Banhart, que declarou ter sido a obra fundamental para sua trajetória artística, ou a banda The Magic Numbers, que fez uma versão para “You don’t know me”.

18 Trecho do release de lançamento de “Cê ao Vivo”. Ver Anexo 3. 50

Não coincidentemente, “Transa” também é considerado por Caetano um disco que só poderia ter surgido de um processo coletivo, revelando mais uma vez o impulso criativo que surge do contato com outros artistas, que o instigam a descobrir novas facetas de si mesmo:

Era um trabalho orgânico, espontâneo, e meu primeiro disco de grupo, gravado quase como um show ao vivo. Foi Transa que me deu coragem de fazer os trabalhos com A Outra Banda da Terra. [...] Me orgulho imensamente deste som que a gente tirou em grupo. (VELOSO, 1991, grifo nosso)

De fato, a coletividade é reconhecida no campo da inovação como um dos aspectos mais profícuos para a geração de novas ideias: “As ideias se manifestam nas multidões, como afirmou Poincaré. Elas crescem em redes líquidas nas quais a conexão é mais valorizada que a proteção” (JOHNSON, 2011, p. 245).

Outro elemento de conexão frequentemente associado entre a Banda Cê e o álbum “Transa” é o espírito de rock alternativo, manifestado nos riffs de guitarra, improvisações e letras reflexivas, além do aspecto experimental das misturas com ritmos brasileiros. Caetano e Pedro falam de “Transa” na conversa entre ambos publicada no blog, manifestando o interesse mútuo que têm pelo álbum, mas sem admitirem explicitamente uma conexão tão direta:

C – [...] E de todos os discos de rock que saíram depois dos Beatles o que eu mais gosto é o do John Lennon, o primeiro Plastic Ono Band. P – Eu amo esse disco também. E seu disco que saiu logo depois desse do Lennon – se bobear foi feito na mesma época – é um disco assim, que é o “Transa”. Não é à toa que a gente tocava duas músicas dele no show do “Cê”. Eu adoro a gravação de “Maria Bethânia”, aquele baixo! C – Vamos tocar mais duas do “Transa” no “Zii e Zie”. [...] (trecho do post “Papo com Pedro”, de 04/04/09, grifo nosso)

Alguns críticos, porém, consideram um certo exagero o rótulo de “rock”, vez que o clássico álbum de 1975 não é propriamente de rock, apesar de ter sido feito sob a influência do período de exílio de Caetano em Londres, no qual teve contato com expoentes mundiais como Jimi Hendrix e Eric Clapton. Além disso, apesar de o gênero ter sempre suscitado a admiração de Caetano desde a Tropicália, nunca foi sua especialidade, como atesta Carlos Eduardo Lima sobre o lançamento de “Cê”:

Confesso que seu lançamento me causou irritação. Até hoje não gosto do conjunto de canções que o compõem, mais ainda: a associação imediata ao Rock também foi motivo de incômodo. Acompanho a carreira de Caetano desde muito tempo e não é preciso ir muito longe para notar que seu diálogo com o Rock nunca foi fácil. [...] Caetano nunca foi um roqueiro e, muito provavelmente, não deseja ser. Pensar no ritmo ao elaborar o conceito de Cê pode ter sido inevitável. [...] Cê, motivado por um momento importante na vida de Caetano, a separação de sua esposa, Paula Lavigne. Movido pelo binômio liberdade/tristeza, o baiano lançou-se em um processo de redescoberta/reinterpretação de relacionamentos e, trocando em miúdos, caiu na esbórnia, algo louvável e que deve ter feito o veterano compositor sentir-se mais jovem. Sendo assim, ao contrário das reflexões típicas de um sexagenário, Caetano veio com um conjunto de canções sobre sexo, juventude, traição, descoberta e pauduragem. Não precisava, no entanto, despir sua sonoridade ao básico dos básicos, usando como guia estético um

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semi-rock enguitarrado, com o qual, repito, jamais se deu muito bem. (LIMA, 2014)19

Há também críticos musicais que fazem analogia ao álbum “Velô”, de 1984, em que Caetano, com a Banda Nova, aventura-se no rock da época com canções como “Podres Poderes”, de forte crítica ao modus operandi brasileiro e em conformidade à rebeldia das letras dos roqueiros dos anos 80, recém-saídos do período de ditadura militar, e “Shy Moon”, cantada em parceria com Ritchie, cantor de sucesso na época. Indagado sobre o tema, à época do lançamento de “Velô”, o próprio Caetano admitia que o rock não era sua especialidade, embora fosse uma influência em sua música:

Eu gosto de rock desde o meio dos anos 60, quando eu comecei a me interessar por Roberto Carlos e os Beatles. Eu sou uma dessas pessoas em quem o rock’n’roll bateu (risos). É uma coisa que começou nos anos 50, que eu tenho conhecimento desde menino, mas que no meio dos anos 60 bateu pra mim. Agora, é evidente que não é a base do que eu faço. Minha base vem da música tradicional brasileira e da Bossa Nova. (VELOSO, 2014c)

Se a “trilogia do rock” com a Banda Cê é rock ou não, é algo que cabe aos críticos musicais discutirem. Para fins do presente trabalho, basta observar que a banda buscou experimentar uma mistura de diversos elementos sonoros e gêneros musicais, dialogando com o cenário musical de sua época, os anos 2000, tão permeados que foram pelas influências do rock indie, e da tradução desse movimento pelos artistas brasileiros, dentre os quais os próprios integrantes da Banda Cê. Estes elementos até então não estavam presentes na obra musical de Caetano. Porém, desde que o artista passou a tocar com a banda, passaram a ter grande peso nas canções que ele veio a compor naquele período.

A essa influência, agregou-se a vontade do artista em explorar novas sonoridades conjugadas com elementos brasileiros, em uma mistura eclética que sempre foi uma de suas marcas registradas, e que se traduz em sua busca diletante por experimentar diferentes aspectos da própria identidade por meio da música. No encontro entre a singularidade do artista e a vivência de uma reafirmada coletividade, dá-se um desejo de reinvenção e de exercício de uma identidade diferente à expressada nos anos anteriores, de consagração quase inquestionável:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (HALL, 2014, p. 12)

Tais fatores, aliados à busca por novos rumos no âmbito pessoal e profissional, acabaram por configurar um projeto poético específico, com intenções e propósitos bem-definidos. Em realidade, esse projeto poético específico, que se relaciona à “trilogia do rock”, conversa com um projeto maior de Caetano, vez que “as diferentes materializações da criação são como grandes esboços que revelam concretizações parciais de um grande projeto poético” (SALLES, 2011).

Como se trata de um processo em movimento, essa nova direção permite exercitar as variadas possibilidades que tanto dizem do artista ao longo de sua trajetória:

19 Ver Anexo 3. 52

Há, portanto, traços inconfundivelmente singulares no seu modo de articular música e letra, que vão desenhando, ao longo do tempo, possibilidades imprevistas de encontro entre a sofisticada depuração bossa-novista e a agilidade pregnante das baladas oriundas do rock (de Beatles a Roberto Carlos). Mas não é só isso. Também é possível falar de uma predisposição à verve excessiva, inestancável (da prosódia barroca baiana), afiada pela incorporação criativa da imperfeição e do inacabamento. (WISNIK, 2005, p. 98-99)

2. Transamba como princípio direcionador do projeto

Após o lançamento de “Cê” em versões de estúdio e ao vivo, ambas as quais tiveram boa recepção pela crítica e agregaram novos públicos além dos que Caetano já costumava atrair, o artista e a Banda Cê dão início ao desenvolvimento do próximo álbum, cujo processo passa a ser revelado em primeira mão nos shows de Obra em Progresso e, mais tarde, no blog de mesmo nome. Novamente, o aspecto da coletividade aparece como algo intrínseco ao processo de criação, como revela Caetano no release de lançamento do álbum “Zii e Zie”, que surgiu como resultado desse processo (ver Anexo 3):

Zii e Zie é um disco feito com a banda Cê, concebido para ela. Ela tinha sido concebida para fazer o “Cê”. Por isso há mais unidade na partida do “Cê” do que na chegada, ao passo que há mais unidade na chegada do que na partida do “zii e zie”. Para nós quatro foi custoso reconhecer essa verdade (que pareceu óbvia a ouvintes não envolvidos na feitura). “Cê” foi concebido para criar uma banda. [...] Voltam os nomes próprios e o tom de comentário dos signos dos tempos que sempre fizeram presença em meu repertório. Tudo contribuiu para que este viesse a ser um disco mais de banda do que o anterior. Moreno e Daniel Carvalho ficaram mais felizes com o material sonoro que produzíamos. E nós nos sentíamos ainda mais relaxados no diálogo com eles dentro do estúdio. Pedro foi mais um produtor que dirige a feitura da música. Moreno, mais um produtor que dirige a feitura do som. Daniel era responsável pela técnica de captação. (grifo nosso)

O impulso inicial para as novas composições é o transamba, termo que Caetano passa a usar para denominar o conjunto de experimentações que faz com a banda para o novo álbum, trazendo mais elementos de samba para as composições. Essa é a tendência singular do processo criativo do novo álbum, isto é, a motivação concreta dentro do processo indefinido ao qual os artistas se propõem:

É interessante notar como, raramente, as tendências são desprovidas de materialidade: o meio de expressão já está inserido no desejo. Se olharmos sob o ponto de vista da produção de uma obra determinada, o percurso caminha, em um ambiente de imprecisão, em direção à construção de um objeto, com determinadas características. (SALLES, 2011, p. 43)

O transamba passa a ser amplamente discutido no blog, aparecendo também em diversas entrevistas sobre o novo álbum, nas quais Caetano tenta materializar em palavras o que o transamba significa para ele e como se relaciona com seu momento de criação. O prefixo “trans” não é escolhido ao acaso para designar o estilo que Caetano passa a experimentar e desenvolver com a Banda Cê: segundo o dicionário Houaiss, “trans” tem como significados possíveis “além”, “transposição” ou ainda “mudança e transformação”. Isso indica que o impulso propulsionador das pesquisas sonoras e

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arranjos que os músicos passam a desenvolver visa “ir além” do samba e transformá- lo:

transamba - de trans + samba; nome de um novo gênero de música criado artificialmente (mas nem Deus sabe quão orgânica e necessariamente) no Brasil. Trans, prefixo de origem latina, significa: além de, através, em troca de. Samba, possivelmente de origem quimbunda, é um tipo brasileiro de música de dança, lamento e sabedoria. O trans de transamba para mim é como o trans em transcendência, transfiguração, transvaloração, transformista; mas também como em trânsito, transação, transporte, transa; e ainda como em transparência, translúcido, translumbramento; ou em transbordar, transviado, transtorno, transpiração. Ou seja, transamba é palavra que já vem dançando entre os sentidos. Mas entre principalmente esses sentidos. É o samba além do samba. Um samba desencaminhado e excessivo, mas sublime e superior. Isso é o que a palavra me diz. As músicas que eu (ou outrem) fizer sob essa rubrica poderão chegar mais ou menos longe dessa meta. [...] (trecho do post “Transamba e Caserta!”, de 25/07/08, grifo nosso)

A palavra “transamba” aparece pela primeira vez como título do álbum dos artistas de samba rock Marcos Moran e Samba Som 7, datado de 1973. Porém, aparentemente, Caetano só descobre isso depois, por sugestão de um dos leitores e comentadores assíduos do blog, Gilliatt, que lhe envia a referência no dia 10 de julho de 2008:

Descobri na Internet um LP de Marcos Moran e Samba Som Sete, gravado em 1973, que se chama…. TRANSAMBA!!! No repertório, 12 de diversos autores, inclusive Partido Alto, já gravado por Caetano no disco com . Segue o link: http://www.brasilemvinil.com/disco.asp?id=1776 (comentário de Gilliatt ao post “Transorvetão - de Ferrara a Istambul”, de 09/07/08)

Mais à frente, Caetano faz menção à descoberta do internauta e celebra a coincidência:

Muito importante a existência do disco “Transamba” de Marcos Moran e Samba Sete. Entrei no site brasilemvinil e fiquei maravilhado de ver a palavra já escrita ali. Pena que não deu para eu ouvir as músicas. Por que será? Será que é porque estou no Algarve? Vou perguntar aqui e vou postar um comentário depois. Por agora é só relembrar que minha “inspiração poética” já tinha chegado a outro. E em 1973! Para mim a palavra “transamba” fica reafirmada com a existência do disco de Marcos Moran. Não ouvi mas deu pra gostar do repertório, com muito Antônio Carlos e Jocafi mais o Partido Alto do Chico e o Pagode do Paulinho da Viola. [...] (trecho do post “Transamba e Caserta!”, de 25/07/08)

Afora o nome, as pretensões musicais do novo experimento sonoro não têm ligação com o samba rock, vez que estão mais ligadas ao tratamento dos acordes de samba com elementos de rock, enquanto o samba rock surge da dança rodopiada, inspirada nos bailes de rock norte-americanos, e promove uma mistura com a gafieira, ritmo consagrado de samba para dançar em salão. Mesmo o internauta Gilliatt, o qual havia descoberto a referência, comenta em outro post que entende o transamba como algo mais abrangente que o ritmo tocado no álbum de Marcos Moran:

Samba-canção, samba-choro, samba-de-roda, samba-enredo, samba de meio-de-ano, samba-exaltação, samba de quadra, samba-rock, samba-jazz, 54

samba-rap, todas essas expressões e outros “samba-lembrem aí” que agora esqueço de mencionar (até sem o samba no nome, como é o caso de partido alto e pagode) tipificam estilos musicais do universo do samba. O disco Transamba de Marcos Moran, gravado em 73, é todo naquele estilo do Simonal, do Trio Mocotó, dos Originais do Samba – estilo que, pelo que me lembro, era chamado de sambão-jóia. São tantas classificações que até nem sei se há algum exemplo de samba que não tenha um complemento desses. Samba só. E agora temos o transamba. Mas eu acho que o transamba de que se fala aqui não é mais uma dessas definições. Afinal, todas elas se aplicam a modelos musicais rígidos, de modo que não se confunde um samba-choro com um samba-enredo. São definições usadas para ordenar as coisas, para separar, para distinguir. Transamba, não. Transamba é (dentre tantas coisas que poderíamos dele dizer) orgia. (comentário de Gilliatt ao post “Direto da edição: atrás do transamba”, de 22/08/08)

Ainda assim, o compositor faz referência ao álbum em um dos posts seguintes e segue tentando explicar o intricado universo de referências que, para ele, compõe o transamba:

Transamba é transcriação do samba em chave nova. Bossa nova, esquema novo, novos baianos. Marcos Moran e o Samba Som 7 já tinham o mais transamba dos sambas do Chico, o mais do Paulinho, Antonio Carlos e Jocafi, “O Lado Direito da Rua Direita” e Novos Baianos. Além de guitarra no samba (Novos Baianos já eram isso). Haroldo de Campos chamou de “transblanco” a tradução (“transcriação”) que fez do “Blanco” de Octavio Paz. Pedro Sá vive lendo Octavio Paz. Está apaixonado. Terá lido esse “Transblanco”? [...] (trecho do post “Preparando o retorno ao Brasil e ao canteiro da Obra”, de 27/07/08)

Em vez de simplesmente seguir aprofundando as experimentações roqueiras de “Cê”, o transamba revela o desejo de trazer um ângulo diferente para o samba, de forma a reinventar o consagrado ritmo nacional por meio dessas experimentações roqueiras:

[...] Nesse meu embrião de inspiração há algo dos títulos enigmáticos do rock dos anos 60 aos 80: “In-A-Gadda-Da-Vida”, “Regatta De Blanc”, o insuperável “Blonde on Blonde”... Enfim, alguma coisa que tire de esquadro toda a referência ao samba, ou aos transambas ou parasambas ou metasambas que a Banda Cê e eu vamos apresentar. [...] Quando propus o projeto a Pedro Sá formulei a pergunta: será que samba dá samba? Porque é assim: ou bem nos voltamos para o samba e o cultivamos (e aí somos vistos com carinho pelos que cuidam da nossa cultura) ou nos afastamos dele e de toda a carga de fracassos do Brasil que ele carrega (como nos afastamos do catolicismo ou da umbanda por descrença histórica e nos aproximamos dos cultos neo-pentecostais) e buscamos nos sentir integrados na mescla de estilo caipira norte-americano com estilo crioulo norte-americano que ganhou o nome de rock’n’roll nos anos 50. Isso e todos os desdobramentos disso (do reggae ao disco, do rap ao grunge, do house ao punk...) são magnetos, pólos de atração reais e vitais: servem no mínimo de referência obrigatória, mas na verdade de critério de julgamento. O samba não teria salvação. O mero reconhecimento do seu balanço amarra a imaginação e a sensibilidade, desanima a alma que quer ser livre e nova. Então foi e é um desafio enfrentar essa empreitada. Um aprofundamento da pesquisa com o rock independente (ambiente “nobre” da criação de música popular hoje) esboçada em “Cê”, sem contaminação de samba, seria mais estratégico, talvez mais saudável, no esforço de afirmação de uma produção brasileira de ponta que se imponha no mundo. [...] Então é transamba. Isso vai servir para engrossar o caldo.

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(trecho do post “Transamba e Caserta!”, de 25/07/08, grifo nosso)

Pode-se ler nas entrelinhas o desejo de Caetano ressignificar seu próprio entendimento sobre o Brasil, que passava por uma forte transformação no final dos anos 2000, com a ascensão das classes mais baixas e a inserção no mapa político-econômico mundial, e cujo cenário político ganha bastante destaque nas reflexões do artista durante esse período. Não surpreendentemente, o tema “Política”, analisado no capítulo anterior, aponta para reflexões do artista sobre o país – tanto no âmbito das transformações políticas nacionais quanto nas do cenário global:

Depois de contar a história da crise financeira mundial passo a passo, a Economist chega esta semana com a nova de que os “emergentes” – que pareciam livres do contágio de derretimento – e eram a esperança da economia mundial mesmo quando o problema das hipotecas imobiliárias americanas já estava avançado – não parecem mais imunes. A boa notícia [...] é que os países grandes se sairão melhor. Grandes territorialmente e possuidores de economia diversificada. O Brasil tá aí. Mas vai atravessar as dificuldades inevitáveis com a mesma euforia de festa de posse do Lula em que já estamos viciados? (trecho do post “Zambujo, Cicero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08)

Ainda dentro do mesmo tema de política, são também alvo da atenção de Caetano os Estados Unidos, país em que o rock se consagrou e se expandiu, e as transformações que estavam ocorrendo por lá. Isso se evidencia em diversos momentos do blog, como, por exemplo, nos comentários sobre as eleições de Obama aquele ano:

O discurso de McCain caracterizou a vitória de Obama como uma vitória dos “africanos-americanos”, como eles dizem lá. Foi um bom discurso. Elegante e, no todo, uma bela afirmação da energia histórica dos Estados Unidos. Mas as vaias que vinham da platéia (toda branca, até onde se podia ver na TV) terminavam soando como brados racistas. [...] Mas vi tudo isso depois de ver Jesse Jackson chorando. Chorei junto com ele. Nem gosto das coisas que ele diz – seja no caso da palavra “nigger” que um rapper queria pôr como título de seu CD, seja na própria campanha de Obama: Jackson soa como um velho lutador racialista; Obama é um presidente mulato. Jackson chorava como um homem velho que vê a grandeza de um fato consumado suplantar a dos seus maiores sonhos. (trecho do post “Li: você está publicando comentários rápido demais”, de 05/11/09)

A menção aos norte-americanos aparece também na letra de “A Base de Guantánamo”, que viria a estar em “Zii e Zie”, dessa vez em tom muito mais crítico que entusiasmado:

O fato dos americanos Desrespeitarem Os direitos humanos Em solo cubano É por demais forte Simbolicamente Para eu não me abalar

É como se o artista construísse um binômio bastante próprio entre samba e rock e traçasse um paralelo entre o que cada um significa em relação ao Brasil e aos Estados Unidos. Com isso, costura os estímulos dialéticos de sua inspiração para conceituar seu projeto, querendo a um só tempo ir além do rock e do samba, mas trazendo ambos, ora

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misturando-os, ora desconstruindo-os. Isso fica claro mais à frente no blog, quando Caetano propõe revisitar o termo e chamar a inspiração do novo álbum de transrock, invertendo a lógica, como se fosse o samba a reinventar o rock:

NÃO É TRANSAMBA: É TRANSROCK, STUPID. Será que é mesmo a economia que vai pôr as coisas no lugar? Antes eram os Marxistas que diziam isso, depois os neo-liberais. AGORA É NÓS. Transrock: novo passo dado pelo velho Caetano e os jovens Pedro, Ricardo e Marcelo da Banda Cê, depois do ousado e refinado CD “Cê”. Que tal? Uma boa chamada para a Downbeat20! (trecho do post “Notas de Caetano”, de 01/08/08)

Essa discussão acende o interesse de muitos internautas e passa a ser um dos grandes tópicos de discussão e aprofundamento no blog, levando as pessoas a investigarem o que seria a diferença entre transamba e transrock. Caetano embarca nesse diálogo e passa a explicar o porquê do transrock, reforçando que a discussão deva partir do comparativo entre Brasil e Estados Unidos:

[...] A história é que uma autoridade americana disse a outra autoridade americana: “it’s the economy, stupid!” (“é a economia, estúpido!”) e a frase é repetida na imprensa mundial toda vez que se quer mostrar que o que decide a cabeça do eleitorado é a economia. A graça das notas que mandei está na velocidade: dizer “é transrock, estúpido” – e emendar uma frase sobre a economia sendo a razão de tudo – tem a ver com esta virada audaciosa: em vez de ser “transamba”, isto é, a transvaloração do samba por um tratamento rock, o nosso trabalho mesmo é fazer o rock se superar pela infusão nele do mistério do samba; o que, por sua vez, tem a ver com a crescente presença do Brasil na economia mundial. Uma língua é um dialeto com um exército. (comentário de Caetano ao post “Notas de Caetano”, de 01/08/08, grifo nosso)

Alguns, contudo, não se conformam com a excessiva teorização e criticam a discussão:

que viagem, que puxa-saquismo. eu também sou tarada ni caetano, mas me recuso a esse tipo de viagem. [...] (comentário de Carolina ao post “Notas de Caetano”, de 01/08/08)

[...] Essa coisa de transamba é querer estreitar as coisas e dar a elas uma explicação gramaticalmente bacana. Samba é samba, transamba virou transgênico (à base de farinha). Eu nunca concordei com essa virada que Caetano deu no disco Cê. Claro que ele tem todo o direito de modificar completamente os caminhos que sua obra segue. Mas logo na primeira faixa do disco Cê a guitarra faz uma linha tão repetitiva e que vai se conservando no decorrer da música de tal forma que eu não entendo [...] Eu concordo efusivamente com um texto que dizia que os fãs de Caetano teriam dificuldade pra encontrar algum samba nesse projeto e que foram raros os momentos de samba aí presente, como a participação da fantástica Teresa Cristina. (comentário de Lucas ao post “Notas de Caetano”, de 01/08/08)

No post seguinte, Caetano responde à crítica de Lucas, puxando novamente a discussão para o lado do transrock, mas reafirmando que seu projeto segue como híbrido:

20 Revista norte-americana especializada em jazz, blues e música alternativa. 57

Lucas, é transrock, Lucas. Não precisa ser transamba. Transamba é o disco do Marcos Moran. Eu gosto quando os defensores do samba dizem que nem “Desde que o samba é samba” é samba. E quando os defensores do rock dizem que nem “Rocks” é rock. Eu sou o Falanjo e estou num lugar, meio incômodo, meio sublime, de onde se olha essas eleições de gênero com certa distância. [...] (trecho do post “De volta ao Rio”, de 05/08/08)

Ao longo do blog, os internautas também passam a contribuir com suas próprias definições e conclusões, como no exemplo do comentário abaixo:

Transsamba [sic] e transrock são as novas invenções de Obra em Progresso, era para ser um disco de samba que se difundiu com uma banda de rock. (comentário em 30/09/09 ao post “Capa”, de 28/09/08)

Esse contraponto – que é, ao mesmo tempo, uma justaposição – é tão marcante que mais tarde, no álbum “Zii e Zie”, aparece materializado na capa e na contracapa: a primeira traz a palavra “transambas”, praticamente consistindo num subtítulo do álbum, e a segunda, “transrock”, como se tratasse de um texto explicativo para as músicas.

Figura 7 – Capa do álbum “Zii e Zie”, com destaque para transamba

Fonte: Site de Caetano Veloso21

Figura 8 – Contracapa do álbum “Zii e Zie”, com destaque para transrock

Fonte: Site de Caetano Veloso

21 Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2016. 58

Também é de se notar que a capa traz o nome de Caetano junto ao transamba, enquanto a contracapa traz o nome da Banda Cê junto ao transrock: a mistura do velho-novo Caetano com a nova-velha Banda Cê é o que faz o transamba e o transrock existirem e coexistirem. Os artistas escolhem explicitar que seja essa a proposta do projeto conjunto: Caetano representando a tradição da música brasileira, e a Banda Cê, a vanguarda.

Enquanto toda a conceituação teórica do transamba é idealizada por Caetano, na prática é Pedro Sá quem dá vida a ele. Apesar de tocar violão, Caetano não é um virtuose da guitarra como Pedro e, provavelmente, não teria a técnica necessária para tornar tangível seu ousado projeto experimental de tocar samba com tratamento sonoro de rock underground, como ele próprio admite no blog:

[...] Mesmo porque eu tradicionalmente sou mais de sugerir do que de realizar: minhas limitações muiscais [sic] não permitiriam mesmo que fosse eu próprio a perfazer o que sonho para o criador de música brasileira. [...] (trecho do post “Transamba e Caserta!”, de 25/07/08)

Quando do início dos shows de Obra em Progresso, que compõe a aba “Sobre” do blog (ver Anexo 2), Caetano deixa claro que essa parceria consiste no eixo que movimenta o impulso criador das composições do novo álbum:

O ponto de partida foi desenvolver os tratamentos do ritmo de samba na guitarra elétrica, sugerido pelo modo como Pedro Sá cria “riffs” com sonoridades refinadas. As novas composições, em que comecei a trabalhar no verão em Salvador, serão concebidas tendo em vista esses experimentos rítmicos.

A guitarra de Pedro Sá é, portanto, a característica essencial da sonoridade do transamba/transrock e, já nos shows de Obra em Progresso, aparece com destaque, conferindo ao futuro álbum a personalidade experimental que mescla elementos de rock e música brasileira. Surge de um riff de Pedro a canção “Sem Cais”, revelando que suas pesquisas sonoras incitam a um aspecto pouco presente na obra de Caetano, o de compor em cima de uma melodia de um parceiro, vez que, normalmente, ele compõe tanto a letra quanto a melodia de suas canções. Sobre esse processo, Pedro comenta22:

Quando a gente estava fazendo o “Cê”, o Caetano pediu para cada um da banda um pedaço de música ou uma música ou um pedaço de letra ou uma poesia, enfim, ele queria compor com a gente. E eu levei um teminha que eu tinha gravado há muito tempo, mas que eu achava bonito. Aí mostrei pra ele, ele gostou, falou “é interessante, é bonito, mas acho que para agora não é esse trabalho”. Logo antes da gente começar a ensaiar para esse show, ele me perguntou: “E aquela música, Pedrinho, como é mesmo aquela música?” Aí eu toquei um pouquinho e senti que ele estava a fim de retomar isso. Aí eu ofereci a ele, falei: “ah então põe uma letra”. (SÁ, 2008)

A enunciação do transamba não se encerra, porém, em Caetano e Pedro. O blog vira um espaço para aprofundar o conceito e expandir a compreensão ao redor do tema. Para tanto, Hermano convida Alberto Mussa23, escritor especializado em cultura afro no Brasil, a opinar sobre o que é o transamba:

22 Transcrição do vídeo “Pedro Sá comenta ‘Sem Cais’”, no canal do YouTube “Obra em Progresso”. 23 Entre outras obras, Alberto Mussa publicou, em parceria com o historiador Luiz Antonio Simas, a obra “Samba de enredo: história e arte”, um estudo sobre a evolução estética do samba de enredo. 59

O samba, portanto, já nasceu trans. Não é apenas um gênero musical, definido por uma batida particular. É uma atitude existencial, nasceu como atitude existencial, uma atitude de radicalização da irreverência num contexto histórico de extrema opressão [...] Precisamente por ser mais uma atitude que uma forma musical, tão logo surgiu se ramificou em diversos subgêneros: passou a ser também samba- choro, samba de partido-alto, samba de enredo. Por não estar reduzido a um mero padrão rítmico, o samba sempre teve capacidade de se adaptar e de se inserir em novos contextos e ambientes. [...] É um gênero em transcurso. Me parece que o transamba é um ponto desse transcurso, mais um galho dessa grande árvore. Mas vai continuar a ser samba se mantiver a atitude existencial primitiva, que eu não consigo ainda definir muito objetivamente, mas que a gente sente o que é. (trecho do post “O transronco da cuíca, segundo Alberto Mussa”, de 11/08/08, grifo nosso)

Hermano também chama Quito Ribeiro, músico e editor de vídeo, que estava a cargo da edição do documentário em vídeo que Toni Vanzolini estava fazendo com base nos shows de Obra em Progresso. Quito tenta desvendar de que forma a banda traduzia, na prática, o conceito de transamba, e chega à conclusão de que esta foi apenas uma forma de denominar aquilo que já estavam fazendo:

Estou aqui vendo a entrevista de Ricardo e chego a mais uma conclusão. Transamba é um apelido, a elaboração de algo que surgiu naturalmente. Surgiu a partir da coincidência de gostos estéticos testados pelo tempo, pelos ensaios, pelas passagens de som, pelas turnês. Essa coincidência na concepção dos arranjos gerou o que se costuma chamar “soar como banda”. Essa maneira como a banda soou e os músicos começaram a querer que ela continuasse a soar a partir daí, gerou o transamba. Desde o momento primeiro de preparação, quando Caetano tomou a decisão de compor para esta banda. Será? É a procura deste tipo de material que estou indo atrás: a banda Cê elaborando o transamba. (trecho do post “Direto da Edição: atrás do transamba”, 22/08/08)

Em verdade, o conceito é múltiplo e variado, em conformidade com a expansão de fronteiras buscada pelos artistas dentro do projeto. É por isso que, ainda na concepção de Caetano, o transamba é eclético e se expande para uma experiência multicultural que abarca influências diversas, como vemos nesse post:

António Zambujo, Indie Rock, Cool Jazz, Minimal, Bossa Nova, The New Yorker, Michelangelo Antonioni e Mondrian contra Axé Music dentro de mim? Nã-não. “A Cor Amarela” é Brown Ivete e Daniela. É o samba do recôncavo em transe no Psirico, no Harmonia, no Tchan: é transamba já construído por esses baianos geniais. (trecho do post “Zambujo, Cicero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08)

Mais que um conceito ou um termo, a tentativa de explicar o transamba de tantas formas denota o esforço criativo em operação contínua, na busca de produzir algo inédito e próprio da expressão daqueles artistas. Um vaivém entre racionalidade e sensibilidade, entre palavras e sonoridades, entre a experimentação e os acertos, entre as vontades de ir por aqui e não por lá, entre o que Caetano propõe e os músicos respondem, entre as múltiplas possibilidades e os fatores de decisão, entre o samba e o rock.

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3. A trajetória das canções em diferentes tempos de criação

Tendo o transamba/transrock como princípio direcionador, Caetano e a Banda Cê embarcam em uma jornada de rumo vago e incerto. Desde o processo das composições, passando pelos shows até os relatos da gravação em estúdio, são muitas as idas e vindas até que as canções tomem seu formato final – ou, pelo menos, o formato no qual serão registradas em álbum, vez que sempre podem ser modificadas novamente em execuções ao vivo. Os rastros desse percurso de experimentação são revelados no blog e permitem identificar aspectos do caminho tensivo dos artistas até a obra final, em que se revelam as angústias e contradições inerentes ao processo, mas também as pequenas satisfações e celebrações ao longo do caminho, as quais vão aos poucos moldando a criação:

À medida que o artista vai se relacionando com a obra, ele constrói e apreende as características que passam a regê-la e, assim, conhece o sistema em formação. Modificações são feitas, muitas vezes, de acordo com critérios internos e singulares daquele processo. O artista conhece, neste momento, o que a obra deseja e necessita. Em virtude dessas tendências internas que ganham consistência, ouvimos falar de escritores, por exemplo, rejeitarem certas palavras que não cabem no vocabulário de um livro. São alterações feitas em nome de uma coerência interna, que se dá ao longo do processo de construção da obra. Observar a criação sob esta perspectiva, por um lado, ao conhecimento que o artista adquire sobre sua própria obra. [...] Não se pode negar que a nova realidade em formação adquire energia e força ao ganhar organicidade. E por outro lado, isso nos remete à discussão sobre a verdade contida na obra de arte. (SALLES, 2011, p. 135)

Pela análise do blog e dos shows, é possível identificar três tempos de criação distintos nesse processo: a composição das canções, os arranjos que surgem no momento em que as canções passam a ser tocadas com a banda para a plateia, e a produção em estúdio.

A composição das canções é, em geral, conduzida por Caetano de maneira mais isolada, tanto é que, das treze faixas do álbum “Zii e Zie”, dez são de sua autoria; somente uma é realizada em parceria com Pedro Sá e duas se tratam de regravações de outros artistas. O processo de composição é retratado em onze posts, que vão do período de junho a agosto de 2008: alguns são vídeos que falam de canções específicas, enquanto outros retratam, de maneira mais geral, os acontecimentos que permearam o processo.

Quando se inicia Obra em Progresso, em junho de 2008, cinco das canções inéditas já estão compostas (“A Cor Amarela”, “Tarado ni Você”, “Por Quem”, “A Base de Guantánamo” e “Perdeu”) e já foi feita a escolha de regravar “Incompatibilidade de Gênios”, de João Bosco e Aldir Blanc, de modo que pouco menos da metade do álbum (seis faixas) estava definida neste momento. A essa altura, as canções ainda estão em estágio embrionário, uma vez que atravessam o processo de serem tocadas e arranjadas pela Banda Cê, bem como pela produção no estúdio. Ainda assim, são estas as canções inéditas que passam a ser apresentadas nos shows e são misturadas a outras do repertório de Caetano e de outros músicos, com o objetivo de compor um show completo com aproximadamente 20 músicas.

Cinco destas canções iniciais ganham descrição mais detalhada de Caetano em vídeos capturados por Toni Vanzolini como registro de processo dos shows de Obra em

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Progresso24, os quais viram posts no blog e compõem também o canal de YouTube. São elas as cinco canções citadas acima. As três primeiras são definidas pelo autor como “documentais”, ou seja, têm inspiração em experiências e sensações do próprio artista: a menina preta de biquíni amarelo na praia do Leblon, a alegria sexual na intensidade dos ritmos carnavalescos, e as aventuras amorosas permeadas de uma recém-descoberta solidão. Já as duas últimas apresentam um contorno mais social e político: a violação da convenção de Genebra na prisão naval em que os norte- americanos mantiveram islâmicos considerados terroristas, e a realidade do crime organizado do Rio no retrato de vida de um menino traficante.

Caetano também relata que, na maior parte destas canções, a melodia surgiu antes da letra, e que, em algumas delas, teve certa dificuldade em encaixar as palavras. Novamente, é de se destacar o reavivado interesse em compor melodias, considerando que, nos anos anteriores, Caetano havia se dedicado à palavra escrita muito mais que à música, tendo inclusive lançado dois livros. A única exceção é “A Base de Guantánamo”, em que a frase que compõe a letra foi escrita primeiro, após troca de correspondências com uma amiga, nas quais criticava o uso feito pelos Estados Unidos da base naval localizada em solo cubano. A música surge como um acompanhamento para a frase e, segundo o autor, ganha sua roupagem final já em conjunto com a Banda Cê.

A escolha por regravar o samba “Incompatibilidade de Gênios”, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc, também é explicada nessa série inicial de posts. Fica explícita a admiração pela batida acelerada e marcante, bem como pela letra de dissílabos lacônicos. Caetano a define como a verdadeira tradução do transamba, em um vídeo que comenta a música: “Um samba que toma conta do mundo, não é só carioca, como um reduto, é a raiz do que eu desejo fazer, é transamba”. Em post do blog, esse entendimento é reforçado ao destacar paralelos dessa batida de Bosco com a canção “Perdeu”, e com uma forma muito particular de Gilberto Gil tocar violão:

Como tudo o que faço em música, a inspiração prática, técnica, tangível, material do meu “transamba” veio de Gilberto Gil. A batida que fiz tocando “Minha flor, meu bebê” – e que está em “Perdeu” e é a base por trás do tratamento das outras canções, inclusive a de Bosco/Blanc – vem de um jeito que Gil inventou para estilizar o samba no violão, nos anos 70. (trecho do post “Preparando o retorno ao Brasil e ao canteiro da Obra”, de 27/07/08)

As outras sete faixas – compostas por seis inéditas (“Lobão Tem Razão”, “Sem Cais”, “Falso Leblon”, “Menina da Ria”, “Lapa” e “Diferentemente”), além da escolha por gravar “Ingenuidade”, do sambista Serafim Adriano da Silva, da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel – são decididas durante o período em que o blog está no ar. Isso mostra que algumas das composições inéditas vão evoluindo ao longo do caminho, ou seja, são compostas em paralelo aos shows e ao álbum, já sob influência da experiência transmídia Obra em Progresso.

Vale destacar que, nesse momento, não são mais captados vídeos de Caetano explicando como as músicas foram feitas. Os relatos sobre o processo de criação passam a surgir em posts de autoria do próprio artista, nos quais escreve sobre as novas

24 Mais tarde passam a fazer parte do DVD “Zii e Zie”. 62

canções em meio a reflexões sobre outros temas. Essa nova sequência de canções é chamada por Hermano de “segunda fase de Obra em Progresso”25.

Considerando a simultaneidade entre o processo de composição do artista e a experiência transmídia Obra em Progresso, o quanto é possível identificar de materialidade dessa experiência na obra – isto é, uma possível influência, nas composições, das discussões do blog e interação durante os shows? Não é possível traçar ligações diretas, vez que o processo de composição não foi colocado como um elemento de colaboração no blog, no qual os internautas poderiam interagir diretamente. Porém, é possível analisar os posts do período que mencionam as canções e traçar um paralelo com as letras e melodias daquelas que foram gravadas em disco, na busca de alguns vestígios de materialidade.

A primeira – e única – canção da nova leva que tem um post inteiramente dedicado a descrever sua feitura é “Falso Leblon”, no qual Caetano narra que a melodia surgiu primeiro e foi sendo aperfeiçoada junto à Banda Cê:

A primeira coisa que fiz em “Falso Leblon” foi a levada da bateria. Eu queria construir uma linha de baixo e, por fim, uma melodia em cima daquela levada. E de fato fiz as coisas nessa ordem. Sugeri algumas divisões rítmicas para o baixo, Ricardo as desenvolveu e multiplicou, disse a Pedrinho que encontrasse o lugar (e os timbres) dele entre esses dois elementos, e só então compus a melodia. Não que tivéssemos armado uma base completa a que eu somei a melodia depois. Isso tudo foi apenas uma série de breves exemplos de combinações possíveis. Feitos num ensaio. Eu cantava a batida do contratempo e do bumbo. Quando Marcelo experimentou na bateria de verdade, passei a cantar (praticamente sem notas) as frases do baixo. Quando voltei pra casa, depois do ensaio, esbocei a melodia. (trecho do post “Caetano comenta ‘Falso Leblon’”, de 18/07/08)

A letra surge pensando em “Perdeu” e no paradoxo da vida do personagem que criou nesta música (um “chefete do tráfico”), assim como no cotidiano da vida no bairro carioca do Leblon, com toda sua ode às celebridades e reduto de paparazzi em busca de flagras:

Vi que ela tinha uma semelhança com a de “Perdeu”. [...] São dois mundos. O do garoto favelado e o meu, isto é, o dos que compram as drogas que ele vende e têm opiniões cool sobre a violência no Rio. [...] Mas as clarinadas de “Falso Leblon” anunciam uma manhã onde o sexo não perdeu o gosto pelo excesso (de atividade e, sobretudo, de poder) como em “Perdeu”, mas pelo clima de desesperança. Mal comparando, “Falso Leblon” está para “Perdeu” assim como os filmes de Antonioni estão para o neo-realismo. É uma crônica fragmentária sobre o Leblon Big Brother e o retrato de alguma menina tão bonita quanto auto-destrutiva. É também sobre o mundo das celebridades, o meu – e isso não vai sem uma expressão de alegria talvez para alguns injustificável. [...] Depois há os fotógrafos (que ganharam, por causa do personagem de Fellini, esse nome de paparazzi). Eles por vezes irritam (embora se diga que muitas vezes eles são chamados indiretamente pelas próprias vítimas) mas não deixam de compor o clima de charme sinistro das esquinas de Ataulfo de Paiva com Aristides Espínola e principalmente da rua Dias Ferreira no trecho correspondente. Sinistro porque às vezes é assustador ver um cara surgir da sombra de uma parede, com um gorro preto e uma câmera preta. Charme porque é parte do folclore

25 No post “Caetano apresenta a música nova ‘Lobão tem razão’”, de 21/08/08, Hermano o descreve como “Caetano Veloso canta a música que fez para Lobão na segunda fase do Obra em Progresso”. 63

do Leblon de hoje. [...] Espero que algo dessas decisões internas apareça nos versos, nas notas e nos tempos de “Falso Leblon”. (trecho do post “Caetano comenta ‘Falso Leblon’”, de 18/07/08)

Novamente, ficar no Rio durante o desenvolvimento do novo álbum e realizar os shows para as plateias cariocas aparece como uma decisão-chave no processo criativo do artista. Caetano já havia declarado ter sido isso o que o levou a realizar os shows de Obra em Progresso e, mais tarde, transformar esse processo em blog, conforme conta no vídeo “Isso era tudo o que eu queria”, captado nos bastidores dos shows: “O que eu realmente queria era ficar no Rio de Janeiro o ano todo e não parar de trabalhar, ficar aqui trabalhando, fazendo um show toda semana. Eu estava antes em excursão muito tempo”.

Essa escolha marca uma importante diferença em relação a uma experiência similar que o artista havia feito décadas antes, em 1984, ocasião em que estava desenvolvendo o álbum “Velô”. De modo semelhante a Obra em Progresso, Caetano optou por tocar as músicas que estava compondo em shows, praticando-as com a recém-formada Banda Nova antes de registrá-las em disco. Porém, o artista optou por fazê-lo em uma excursão: “Veio o Velô, em que eu parti para uma outra solução: fazer uma excursão com o show antes de gravar o disco e gravá-lo com os arranjos amadurecidos” (FERRAZ, 2005, p. 186).

Em “Falso Leblon”, a influência que a permanência no Rio, enquanto fazia os shows, exercia sobre Caetano não poderia ser mais explícita: o Leblon é, justamente, o local da segunda fase dos shows de Obra em Progresso, os quais ocorreram no Oi Casa Grande. Houve grande interação com a plateia não só durante os shows, mas também em relatos que Caetano publicou nos posts, assim como em comentários no blog de pessoas que foram assisti-lo:

O Casa Grande era A Casa Grande, no meio dos anos 60, quando era ainda um lugar de MPB (com mesas, comida e bebida, mas pequeno e com ar de lugar de encontros, não uma cervejaria que virou Las Vegas, como o nosso também amado Canecão). Depois virou teatrinho. Vi muito teatro lá. E muitas vezes vi Bethânia, acho que fazendo “A Cena Muda”, no seu palco. Hoje, com grana da Oi mas com o mesmo grupo tocando o lance, é um teatrão, muito bem equipado e com uma acústica excelente. Fico emocionado de me apresentar lá. (trecho do post “Casa Grande”, de 19/08/08)

[...] Espero ansioso o lançamento do cd e dvd (fui assistir a gravação no OI Casagrande, e riiii muuuito com a música de abertura, “Lobão tem Razão”... sensacional!) (comentário de Rodrigo Bitti, em 19/03/09, ao post “Casa Grande”, de 19/08/08)

De fato, não só a canção “Falso Leblon” como também “Lapa”, “Sem Cais”, “Perdeu” e “A Cor Amarela” fazem referências explícitas à capital fluminense, e também aparecem em diversas referências nos posts que Caetano escreve ao longo do blog. Nomes de bairros como a Gávea, lugares como o Cinemathèque e o Sushi Leblon, ou personagens como o traficante e a menina da zona sul passam a ser temas do álbum. Isso ocorre de forma muito mais evidente do que em outras obras de Caetano que citam múltiplas cidades, sem necessariamente se focarem em uma só. O microcosmo carioca

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é tão evidente que não só inspira canções, como é também capa do álbum “Zii e Zie”. Esse movimento é captado imediatamente pelos leitores do blog:

lendo seus comentarios [sic] novos só ficou mais forte ainda minha impressão de seu novo disco mais do que sambas (ou transambas, como queira?) é sobre o Rio. [...] (comentário de Marcio Junqueira ao post “Caetano comenta Falso Leblon”, de 18/07/08)

Também se pode argumentar que “Ingenuidade”, uma das canções regravadas no álbum, é uma forma de homenagear o caldeirão musical carioca, em especial as diversas “facções” do samba que tanto se veem na raiz do transamba. Principalmente levando em conta tratar-se de uma canção de autoria de Serafim Adriano da Silva, o compositor da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel e um dos grandes ícones do samba-enredo. A inclusão da canção no repertório se deu por influência de Marcelo Callado:

[...] Gravamos doze bases (a última a ser gravada até agora foi a de “Ingenuidade”, samba que nem tinha pensado em gravar mas que a batida trans de Marcelo puxou para dentro do disco). (trecho do post “Estúdio”, de 10/09/08, grifo nosso)

Afora “Falso Leblon”, as demais canções não são objeto de posts exclusivos e são comentadas de forma mais geral, porém, frequentemente, incluindo pistas de como surgiram.

É o caso de “Menina da Ria”, uma homenagem à cidade de Aveiro, que surgiu após a pequena turnê realizada na Europa durante o mês de julho de 2008, em um breve intervalo nos shows de Obra em Progresso26. Caetano não sabe ainda àquele momento – ou ao menos afirma não saber – que a temporada europeia, mais precisamente sua estadia em Portugal, iria render uma nova canção:

Mas será que visões de Moscou, de Luxemburgo, de Istambul – ou a volta à Itália, à Áustria, à Espanha ou a Portugal – contribuirão com alguma coisa para as canções que tento continuar compondo para o repertório de “transambas”? Não sei. Sinto saudades dos shows no Vivo Rio. [...] (trecho do post “Transorvetão - de Ferrara a Istambul”, de 09/07/08)

“Menina da Ria” ganha muitos comentários de internautas que estavam no show que Caetano fez na cidade de Aveiro e testemunharam o momento que teria dado origem à canção. Uma destas pessoas até posta um registro em vídeo no blog:

A 23 de Julho de 2008 em Aveiro, Portugal, Caetano Veloso mostrou-se diria “maravilhado” pelo facto de Aveiro ter um “Ria”, pois no Brasil só havia rio e não ria (no feminino). E assim, com um sorriso rasgado, prometeu compor uma musica [sic] dedicada à “Menina da Ria” da Ria de Aveiro. Embora não sendo de Aveiro, senti que também me iria pertencer aquela musica [sic], pois estava ali e aquelas palavras também me foram dirigidas... Hoje resolvi procurar pela menina da Ria, qual o meu espanto ao encontrar este “cantinho” do Caetano Veloso... com a letra da tão esperada musica [sic]. (comentário de Cátia Cruz ao post “Eleições”, de 10/10/08)

26 A primeira fase dos shows de Obra em Progresso acontece em junho, no Vivo Rio, e a segunda em agosto, no Oi Casa Grande. 65

De Luna Pena a Rodrigo Leão, através de “Passion” é um pequeno passo que o entendimento que Caetano tem de Portugal abarca com toda a certeza – basta ler aqui a letra de “Menina da Ria” (que eu esperava desde o show em Aveiro) para o perceber. [...] (comentário de José Cláudio Vital, de Aveiro, Portugal, em 12/02/09, ao post “Eleições”, de 10/10/08)

Caetano comenta a possibilidade de compor a “Menina da Ria”, fala de Ary Barroso e canta “Por Quem” (voz e violão) – Praça Marquês do Pombal, Aveiro, 23-07-08 [...] (comentário de Rafael Rodrigues, em 15/10/08, ao post “Eleições”, de 10/10/08)

No vídeo do show, o artista comenta o quanto gosta de Aveiro e de sua “ria”27, que, para ele, é o feminino de “rio”, que não se usa no Brasil. Em contraposição à sua composição “Menino do Rio”, ele declara que é preciso que se faça uma canção chamada Menina da Ria. E de fato acaba por fazê-la, inclusive citando a “ria” da cidade:

Arte Nova, um prédio art-nouveau numa margem Em frente à marina-miragem: Os barcos na Ria.

Já outros dois posts antecipam a canção “Lapa”, que cita os ex-presidentes Lula e FHC:

Obra em Progresso: fiz duas músicas na Europa (até agora). Uma cita nominalmente Lobão, a outra diz os nomes de Lula e FH. Tudo com amor. (trecho do post “Notas de Caetano”, de 01/08/08)

[...] Não sei julgar as letras novas (fiz tudo a partir da música, sobretudo das levadas de bateria), mas sei que são mais palavrosas, mais caetânicas num certo menos bom sentido, do que as do Cê. Mas há coisas que só apareceriam depois do Cê. Na verdade, tudo só apareceria como aparece por causa de termos feito o Cê antes. O modo como vêm os nomes de Lula e FH, sem comentários mas com grande riqueza de significado, na música Lapa (que vou apresentar no Casa Grande, junto com Lobão tem Razão e as outras nova todas – que com Diferentemente já são dez) só me surgiria com essa liberdade porque há Odeio e Homem e Rocks. Não me arrependo. (trecho do post “Aqui Caetano voltando a falar”, de 14/08/08)

Na letra, além de exaltar o boêmio bairro carioca e homenagear Pedro Sá, Caetano afirma: “amo nosso tempo”. O tempo a que se refere é tanto o seu próprio momento de vida, quanto o novo período que vivia o país. Vale lembrar que o final dos anos 2000 foi uma época de extremo otimismo no Brasil, inclusive tendo sido reconhecido internacionalmente pela capa da revista “The Economist”, com a famosa arte que retratava o Cristo Redentor decolando. Esse cenário político e econômico já vinha sendo objeto de muitas das reflexões de Caetano naquele momento, aparecendo com destaque no blog, conforme descrito no capítulo anterior, em diversos posts que elogiavam as gestões da nova democracia exemplificada pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso (o “FH”) e Lula. Este último, aliás, em 2008 gozava de uma das mais altas taxas de popularidade de um presidente no Brasil. Essas reflexões seguiram e orientaram uma série de discussões que Caetano passou a ter com o público, como no

27 A “ria” de Aveiro é um recuo entre o mar que resulta em uma pequena laguna, com embarcações características que se tornaram ponto turístico da cidade. 66

relato do encontro que teve com um garoto na plateia, em um de seus shows, ou nos posts em que comenta suas descobertas políticas nesse novo momento:

Um garoto que vi todas as noites na platéia do Obra em Progresso me contou que Arenas, o escritor cubano, disse serem o comunismo e o capitalismo equivalentes, uma vez que ambos nos dão com o pé na bunda, mas que no comunismo você leva o pé na bunda e é obrigado a aplaudir, no capitalismo você pode gritar – e Arenas, que tinha “fugido” de Cuba para os Estados Unidos, concluiu: “eu vim aqui para gritar”. Não lembro de ter ouvido isso no filme de Julian Schnabel adaptado do livro dele. Mas a história é boa. O Brasil não tem um capitalismo plenamente desenvolvido. Isso é insatisfatório. Mas, já que também não se pode mais dizer que não temos uma economia capitalista consistente, vemos uma oportunidade de experimentar algo novo com a combinação capitalismo / democracia / liberalismo. Algo novo incluiria algum socialismo? Talvez algo além disso. (trecho do post “Recados de Caetano, agora em Luxemburgo”, de 29/06/08)

Acho que todo o mundo devia ler o livro “O Que a Esquerda Deve Propor”, de Roberto Mangabeira Unger. É um livro pequeno, denso mas muito claro, que faz renascer o sentimento de “ser de esquerda” em nós. Há propostas concretas interessantes e sobretudo uma visão do mundo hoje que nos liberta para pensar. De minha parte, vejo ali formuladas muitas das idéias que tentei eu próprio encontrar dentro de mim. [...] (trecho do post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08)

Esse debate político gera muitos comentários no blog, sempre num clima ameno e sem discussões ofensivas, mesmo entre pessoas que não concordam com a visão de Caetano. Isso é, possivelmente, fruto da moderação de Hermano, ou mesmo reflexo do clima otimista que o país vivia, sem tantos embates políticos.

Cae, deixa o velho Fidel!! Apesar de eu achar que nem existe mais socialismo, tenho uma certa simpatia por fidel. Acredito que vc foi infeliz no seu posicionamento, pois se lembrarmos as bombas no japao [sic], as desumanidades de Castro ficam no chinelo. (comentário de Fe Maddu, em 07/03/09, ao post “De volta à Revolução Cubana”, de 21/07/08)

[...] Sabe Caetano, na época da ditadura era duro, mas o adversário era claro: militares. Agora o adversário é o capital – e vc no que pode colaborar nesta luta difusa, que necessita de cabeças pensantes como a sua? (comentário de Gil Marçal, em 01/09/08, ao post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08)

O intenso diálogo com o cenário político chega a ser, inclusive, motivo de dúvidas de Caetano em relação à longevidade das letras, as quais, segundo seu julgamento, correm o risco de soarem muito específicas do momento e, portanto, pouco universais:

As letras de Zii e Zie soarão bem datadas quando o disco sair. Digo, aquelas que falam de fatos políticos pontuais, como a Base de Guantánamo (como alguém já notou aqui), assim como aquelas que têm uma versão muito peculiar minha da euforia afirmativa que nasce dessa nossa fase FH-Lula. Lygia Clark dizia que o tropicalismo era romântico: dependia das informações da hora: falar em Coca-Cola, Paulinho da Viola, passeatas, Brigitte Bardot era atrelar-se ao tempo – e preparar a própria obsolecência [sic]; enquanto ela, trabalhando na área de decisões formais e expressivas em princípio atemporais, tinha ambição clássica. Ela não o dizia

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com ar de superioridade sobre nós. Dizia com carinho e com uma rosa de plástico enfiada numa garrafa de Coca-Cola no meio da toalha de mesa que estendeu no chão de sua casa em Paris, para que nosso jantar parecesse um piquenique. Mas a Brigitte e as Cardinales não impedem que “Alegria, alegria” seja ainda minha canção mais querida por brasileiros. E o que é dito em “Diferentemente” sobre Osama e Condoleezza poderá ter uma graça futura que não podemos apreciar hoje. Sem falar nas profecias ultra otimistas que se ouvem em “Falso Leblon” e “Lapa”. Eu, na verdade, acho essas afirmações desaforadas mais interessantes em face da crise do que seriam se soassem meramente como reafirmação de uma aprovação ao governo de 80%. (trecho do post “Zambujo, Cicero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08, grifo nosso)

Os paralelos entre o processo de composição, a dinâmica de Obra em Progresso e as letras das canções evidencia o momento em que o artista passa a compartilhar seu processo de criação junto ao público, ao mesmo tempo em que compõe novas canções na esfera individual. Diante deste processo, Caetano vai se movimentando livremente pelo mundo, de forma a exercitar novas facetas identitárias, constituindo um ser ambivalente que Grant McCracken definiu como swift self (em uma tradução livre significa “eu mutante”). Segundo o autor, os swift selves usam a mobilidade como uma oportunidade de se libertar de formas previamente definidas e passam a determinar suas identidades pelos próprios esforços (MCCRACKEN, 2008, p. 133).

Esse processo de experimentação é reforçado e retroalimentado pela experiência de tocar as novas canções com a banda: este é o segundo tempo da criação. Ao executar as novas canções à sua maneira e incorporar arranjos, a Banda Cê contribui decisivamente para que passem a tomar forma:

[...] Entrei nesse transe de samba e nessa nova transa de rock com samba que me apaixonou. O incrível é que a Banda Cê se mostra igualmente rápida na percepção desse lance quanto no das músicas de poucas palavras. (trecho do post “Aqui Caetano voltando a falar”, de 14/08/08, grifo nosso)

Isto é intensificado à medida que as canções são tocadas nos shows e postadas no blog, dando o termômetro da receptividade (ou falta de) por parte do público. Conforme as novas canções são apresentadas ao vivo, também são captadas em vídeo e publicadas no blog. Hermano passa a inserir as letras em uma aba específica do blog, incentivando as pessoas a tomarem contato com as novas músicas e, eventualmente, até a cantá-las nos shows. Este processo acaba por dar resultado, como atesta um internauta:

Atendendo a muitos pedidos, finalmente publicamos aqui as letras de todas as canções novas, que serão gravadas no próximo disco de Caetano Veloso. É só clicar em LETRAS, na faixa cinza do cabeçalho do blog, para ler todas elas (publicaremos por lá as próximas letras também). Já dá para todo mundo cantar junto nos shows do Casa Grande! (trecho do post “Letras da Obra”, de 11/08/08, grifo nosso)

Vou cantar duas músicas novas (“Lapa” e “Lobão tem razão”); vou cantar todas as outras que fiz para o novo CD e que já cantava no Vivo Rio do MAM; vou cantar Kassin; vou cantar Dé e Cazuza; vou cantar Lupicínio; vou cantar Carlos Lyra; vou cantar “Cê”; vou cantar Caymmi... (trecho do post “Casa Grande”, de 19/08/08, grifo nosso)

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Toda vez que passo pela Lapa, quase todo dia, soa dentro de minha caixola [sic] a nova música… cool e popular cool e popular cool e popular Sem rasgação, pura sinceridade, fui tomado por todas as novas músicas. [...] (comentário de rafael rodriguez ao post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08, grifo nosso)

As canções também vão sendo cada vez mais apropriadas pelo artista e, de certa forma, revelam-se ainda mais a ele durante este processo, demonstrando que o percurso criativo acontece de modo errático e que, muitas vezes, nem o próprio autor está certo do valor artístico daquilo que produz. O momento em que essa incerteza vai dando lugar a contornos mais definidos é celebrado por Caetano neste post, como se essa sensação lhe trouxesse mais segurança de que está no caminho correto:

Chega de verdade. “Lobão tem razão” vai ficando muito bonita dentro de mim. Cada vez que a canto ela parece melhor. Fui cantar um trechinho no Jô e fiquei emocionado. “Lapa” nos pareceu – a mim e aos caras da Banda Cê – boa de cara. “Lobão tem razão” cresce com o tempo (em nós, pelo menos). [...] (trecho do post “Marginal Pinheiros”, de 30/08/08, grifo nosso)

[...] Não estou preparado para mostrar um trabalho muito limpo e acabado como seria de se exigir para a gravação de um DVD: é ainda obra em progresso. O limpo e acabado fica para o CD de estúdio. Mas acho que estamos mais ajustados do que na fase pré-Europa. A Banda Cê me apaixona. Muitos sons celestiais pintaram no ensaio geral que acabou faz poucas horas. Estou cansado mas estou animado. (trecho do post “Casa Grande”, de 19/08/08, grifo nosso)

O blog também aparece como parte integrante dessa evolução, dada a possibilidade de expor as canções para o público enquanto são feitas, ao mesmo tempo em que dá visibilidade de como elas vão crescendo junto à banda. Essa troca parece estimular o artista, assim como a intenção de fazer algo inédito e que lhe dê espaço para se expor.

Hermano me chamou a atenção para o fato de que ninguém fez até agora o que estamos fazendo: exibindo um repertório novo em shows e na internet, antes de gravá-lo no estúdio, em riqueza de detalhes do seu desenvolvimento. Uma das forças do Cê foi o segredo sobre o que viria. Agora é o compartilhar com ouvintes obscenamente as intimidades da feitura. Quando o disco estiver pronto (espero que até outubro) os interessados já terão versões ao vivo, em etapas diferentes, das canções. E ainda essa minha falação indiscreta. Sou leonino falador. (trecho do post “Aqui Caetano voltando a falar”, de 14/08/08, grifo nosso)

Por fim, o terceiro tempo da criação acontece nas gravações em estúdio. A derradeira fase do processo criativo oferece novas camadas de entendimento e apropriação das canções, que vão ganhando cada vez mais impulso material e reforçam a ligação entre os membros da banda:

[...] Agora vamos começar o trabalho de estúdio: três dias de ensaio e, na segunda, começa a gravação do CD. O DVD, feito de números em

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construção, tirados das apresentações no Vivo Rio e no Oi Casa Grande, vai ser um documento da Obra em Progresso. Mas o CD será a prova dos noves (é dos noves, sim: a gente parece que tem medo de pôr os numerais no plural! – até o Oswald de Andrade, naquela grande frase de um dos seus manifestos, escreveu “a alegria é a prova dos nove”; bem, não está errado, mas a própria prova é sempre feita com o uso da expressão “noves fora…”; e como eu já gosto de nove, essa idéia de noves – muitos, múltiplos noves – me dá enlevo). Muito aprenderemos sobre essas canções e suas concepções sonoras quando as ouvirmos gravadas em estúdio. De minha parte, estou curioso e um tanto impaciente. Suponho que a gente vai lançar o CD ainda este ano. O DVD, como recordação do processo que chegou até ele, fica para um pouco depois. (trecho do post “Marginal Pinheiros”, de 30/08/08, grifo nosso)

[...] Pedro Sá levou uma câmera que parecia um objeto soviético. Era. Diz que é máquina vintage russa que dá imagens fantásticas. Tomara que ele apresente fotos boas de nós no estúdio. Gravamos também os coros de “Base de Guantânamo” e as palmas de “A cor amarela”: foi festa no estúdio pois Ricardo e Marcelo vieram para isso. (trecho do post “Rei, Reis”, de 04/10/08, grifo nosso)

Enquanto o primeiro tempo de criação é comandado pela composição por Caetano e o segundo é marcado pela contribuição da Banda Cê, nesse terceiro tempo são os produtores que ganham relevância, vez que o artista admite não entender tanto da parte técnica.

Quero contar tudo sobre as gravações. Mas não entendo muito sobre a parte técnica. Houve aí quem peguntasse [sic] se fizemos muitos overdubs. Bem, isso eu posso responder. Não fizemos muitos overdubs. Quase não fizemos overdub nenhum. Pedro Sá gravou detalhes rítmicos de guitarra sobre uma das bases que fizemos para “A cor amarela” (fizemos duas). (trecho do post “Estúdio”, de 10/09/08, grifo nosso)

Talvez por isso os posts que se referem ao processo de estúdio, apesar da vontade do artista, não são tão numerosos quanto os escritos durante os estágios anteriores de criação. Caetano chega a pedir a Moreno Veloso e Daniel Carvalho, produtores do álbum e personagens centrais desta fase, que escrevam sobre o tema. Porém, ele aparentemente não tem sucesso:

Pedi a Moreno e Daniel que escrevessem sobre a parte técnica. Eles estão muito ocupados, todos os dias armando o set de gravação – além dos outros trabalhos que têm. (trecho do post “Estúdio”, de 10/09/08, grifo nosso)

Diante da falta de posts mais técnicos por parte dos produtores, Caetano segue, então, comentando o processo em estúdio com base nas suas próprias percepções e oferece relatos sobre as decisões que vão sendo tomadas que impactam a materialidade do álbum “Zii e Zie”:

“Zii e Zie” (ou “zii e zie”) ia ficar só com 12 faixas. Mas, pelo poder dos meus filhos Moreno e Tom, voltou a ter 13: ambos querem “Diferentemente” na tracklist (track, sim: faixa: gosto demais dessas palavras para designar as unidades que compõem um LP, um CD, um álbum). Quem acha enjoado disco longo resigne-se. Eu mesmo acho. Embora não ache chato canção (ou faixa) longa. (trecho do post “Post (mas a votação continua lá)”, de 16/12/08, grifo nosso)

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[...] No nosso disco, eles estão usando uma mesa EMI que era novidade na segunda metade dos anos 60 e hoje é tecnologia “vintage”. Contaram que “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” foi o primeiro disco gravado em uma dessas. Depois era numa igual que Jimi Hendrix trabalhava no Electric Ladyland. A daqui veio para o estúdio da Odeon, em Botafogo, depois ficou esquecida em algum lugar aonde fora para ser consertada. O dono do Estúdio AR, onde estamos gravando, a resgatou mas não a usou logo: precisava ainda de reparos. Ficou num depósito até não faz muito tempo. (trecho do post “Estúdio”, de 10/09/08)

Os percalços do processo também são revelados: a expectativa inicial era que o álbum ficasse pronto até o fim do ano, mas a intensidade dos shows e do processo de gravação fez com que esse prazo se estendesse até abril de 2009. Durante as gravações, Caetano relata que uma gripe se torna um empecilho para colocar as vozes em algumas canções, no que é amplamente acolhido por “conselhos” dos internautas para curá-la e conseguir finalizar o álbum, reforçando mais uma vez a intimidade adquirida entre eles e o artista:

Continuo sem poder pôr as vozes nas faixas do disco. Fui lá ontem, pensando que, por estar me sentindo bem (relativamente: é sempre assim) eu ia poder gravar voz. Ledo engano. O som de nariz tapado ficou horrível nos auto- falantes. (trecho do post “Gabeira e Gabeira”, de 01/10/08)

Já estava bom da gripe quando fui gravar e notei que a seqüela do som de nariz tapado só aparecia quando ouvíamos a voz gravada. Adiamos e, em duas noites, botei voz em “A cor amarela”, “Base de Guantánamo”, “Perdeu” e “Tarado ni você”. (trecho do post “Rei, Reis”, de 04/10/08)

Caetano. Um resfriado prolongado, mais de uma semana, com piora lenta e progressiva, deve ser avaliado por um médico. Há infecções pulmonares que iniciam de forma insidiosa e devem ser abortadas no início. (comentário de Paulo Boschetti, em 04/10/08, ao post “Gabeira e Gabeira”, de 01/10/08)

Durante as gravações, algumas canções vão se mostrando mais emblemáticas do transamba do que outras, como se os artistas tivessem “acertado” mais na composição e arranjo destas, o que também se reflete no momento de gravá-las:

“Perdeu” é muito mais a cara musical do disco novo do que “A cor amarela” ou “Sem cais”. Adoro estas duas, mas “redondo” é tudo o que procurei evitar quando trabalhei nas novas composições. Confesso que tenho de fazer esforço para não me entregar a soluções composicionais que fazem a peça parecer “redonda”. [...] “Perdeu”, “Lobão tem razão”, “Falso Leblon”, “Menina da Ria” – essas são as canções que iluminam a lembrança de “Incompatibilidade de gênios” – e põem em perspectiva a “redondeza” de “Sem cais” e que tais. (trecho do post “Gabeira e Mangabeira”, de 24/09/08, grifo nosso)

Na observação dessa trajetória, evidencia-se o ato criador:

[...] contínuo processo de formalizar a matéria-prima, com um determinado significado e de uma determinada maneira, no âmbito de um projeto estético e ético. Uma ação sensível e intelectual. Um processo que tende para a

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concretização desse grande projeto do artista e cujo produto é permanentemente experienciado e avaliado pelo artista e, um dia, por outros receptores. (SALLES, 2011, p. 91)

Presente desde seu impulso inicial, esse movimento segue contínuo, porém em determinado momento (mais precisamente em abril de 2009) entende-se que, para fins daquele objetivo, já há suficiente maturidade na materialização para que seja considerado pronto e colocado para consumo como tal.

4. A influência da oralidade e da performance no processo de criação

É curioso notar que todos os álbuns da chamada “trilogia do rock” foram acompanhados de versões dos shows, reforçando a importância que Caetano dá à performance ao vivo da banda. Certamente, isso teve também um importante papel na retomada de sua inspiração para a composição musical. Não por acaso, todo o impulso que dá início à Obra em Progresso são os shows que foram realizados para mostrar a evolução do repertório do novo álbum. Isso provoca um movimento de construção musical ao vivo, dentro de uma coletividade. É como se o artista estivesse experimentando uma nova versão de si mesmo no contato com a banda e a plateia, e, principalmente, no contato com a novidade do mundo.

A modernidade trouxe consigo, quando encorajou e possibilitou a emergência de uma vida privada mais pública, a intensificação desses comportamentos performativos, os quais criam tanto o social como o individual e permitem ao performer não só apresentar-se para o outro, mas revelar-se a si mesmo. (SILVERSTONE, 2011, p. 133)

Reconhecemos essas características presentes nos shows por meio de um depoimento do próprio Caetano:

[...] minha fala no show é entretenimento, comédia (um jovem espectador disse a um jornalista que Obra em Progresso era legal porque, além de cantar, eu fazia “stand up comedy”). Como um comediante, além de divertir posso querer provocar discussão em outros níveis, mas ali é um número, espetáculo. (trecho do post “Recados de Caetano, agora em Luxemburgo”, de 29/06/08, grifo nosso)

Essa experimentação ocorre justamente aos olhos de todos, como se necessária para burilar o processo de criação. Nesse sentido, a performance se constitui como mais um elemento criativo na medida em que propicia um diferente tipo de estímulo sensível e evoca sensações bastante características, as quais só se dão na unicidade daquele momento, formando um todo singular que mobiliza aquele que a pratica:

O que quer que, por meios linguísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama, emanação do nosso ser. [...] A partir desse sim primordial, tudo se colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou aquilo com que o homem os representa). A poesia não mais se liga às categorias do fazer, mas às do processo: o objeto a ser fabricado não basta mais, trata-se de suscitar um sujeito outro, externo, observando e julgando aquele que age aqui e agora. É por isso que a performance é também instância de simbolização: de integração de nossa

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relatividade corporal na harmonia cósmica significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na unicidade de uma presença. (ZUMTHOR, 2010, p. 166)

Isso acontece durante os shows de Obra em Progresso, num enlevo entre músicos, plateia e convidados. É possível observar esse trajeto lançando um olhar mais aprofundado no encontro com a cantora de samba de raiz Teresa Cristina. A cantora havia gravado a música “Gema”28, o que chamou a atenção de Caetano, que a convida para participar de um dos shows iniciais de Obra em Progresso, em junho de 2008:

A Teresa Cristina é uma menina que apareceu de dentro do mundo do samba carioca, que é uma espécie de reserva indígena que criaram dos anos 60/70 para cá. Eu não gosto muito do aspecto reserva indígena, mas felizmente o Rio é o Rio e o samba é o samba, e tudo fica acima disso. Ela vem dessa pureza do contato direto desde sempre com o samba, com os sambistas autênticos das escolas, do próprio ambiente do samba carioca. Ela gravou uma canção minha, “Gema”, que é um samba que eu fiz para a Bethânia cantar. [...] Esse samba tem um jeito de transamba, tem já uma pegada das músicas que estou fazendo agora com a banda. (transcrição do vídeo “Caetano convida Teresa Cristina”, postado no blog em 04/06/08, grifo nosso)

O encontro com Teresa Cristina trouxe a influência do samba de raiz para as pesquisas sonoras da banda ao redor do transamba: a versão que havia sido gravada por Teresa Cristina tinha um arranjo bem mais puxado para o samba que a versão original de Caetano. A Banda Cê usou essa influência, porém explorando – já ao vivo e com a presença do público – uma sonoridade diferente das duas versões (tanto a de Teresa como a original de Caetano). Ao tocar com ela – e para ela cantar –, a banda experimentou o transamba na prática, com batidas mais aceleradas e com guitarras de rock, as quais ainda soavam, porém, como samba. Ou seja: a própria performance durante o show auxiliou a pesquisa sonora da banda. Essa mesma batida, inclusive com a mesma base harmônica, é bastante similar à introdução de “Incompatibilidade de Gênios”, uma versão da canção de João Bosco que viria mais tarde a compor o álbum.

Os elementos sensíveis que se apresentaram neste encontro – alegria, êxtase, emoção – foram tão marcantes e aparentemente tão relevantes para o processo, que são posteriormente manifestados no blog por Caetano em tom entusiasmado:

Encontrei Teresa Cristina no aeroporto de Paris. Que alegria! Ela e eu ainda celebrávamos nosso encontro no Obra em Progresso. Nunca esquecerei de Teresa cantando “Nu com a minha música”. (trecho do post “De volta ao Rio”, de 05/08/08)

Em paralelo às transformações que a performance aporta no processo de criação, os shows revelam também a posição de Caetano, que se manifesta em sua intenção de compartilhar o processo de evolução das músicas para o próximo álbum com a Banda Cê. Isto denota que algo da obra estava pronto o suficiente para ser compartilhado, nesse caso, segundo o próprio julgamento do artista. Caetano é contundente em afirmar que os shows de Obra em Progresso não são ensaios abertos, mas shows de fato29. Ou seja, são obras em si: “A obra não é o resultado de um processo de elaboração superado por uma finalização, ela é o próprio processo de criação” (BERNARDET, 2003).

28 “Gema” é a primeira faixa do álbum “Outras Palavras”, de 1981. 29 Na aba “Sobre” do blog, Caetano afirma: “Meu desejo é ir mostrando semanalmente o progresso desse trabalho. Não se trata, porém, de ensaios abertos. São shows”. Ver Anexo 2. 73

Isso revela que, em algum grau, o artista entende que há um objeto razoavelmente materializado, já em condições de ser dividido com a plateia, mesmo estando em meio a um processo de desenvolvimento:

O artista lida com sua obra em estado de constante inacabamento. No entanto, o inacabado tem um valor dinâmico na medida em que gera esse processo aproximativo na construção de uma obra específica e gera outras obras em uma cadeia infinita. O artista dedica-se à construção de um objeto que, para ser entregue ao público, precisa ter feições que lhe agradem, mas que se revela sempre incompleto. O objeto “acabado” pertence, portanto, a um processo inacabado. Quando se acompanha processos, percebe-se que cada forma contém, potencialmente, um objeto acabado. (SALLES, 2011, p. 84)

Há, portanto, um misto entre um objeto que é avaliado no mínimo como semipronto e um processo poroso, que ainda pode ser modificado pela dinâmica de interferências da plateia, à medida em que a performance vai tomando lugar. Isto é revelado pelo depoimento de um participante do blog que esteve em um dos shows de Obra em Progresso:

Penúltimo show da série Obra em Progresso: ao contrário do VivoRio, a acústica do OI CASA GRANDE é 100%. Mas como é um teatro, tem-se ali um “vibe” de peça-de-teatro. Ou seja, as pessoas, de modo geral, se comportam ou tentam se comportar como público compenetrado de teatro – o que para a idéia do show foi certeiro. [...] Depois vieram “Perdeu” e “Base de Guantánamo”. Duas inéditas super aplaudidas durante o show, e que já eram sucesso no VivoRio, e ainda serão mais comentadas quando o disco sair. [...] a pessoa adora e memoriza no momento em que é apresentada. Já em “Perdeu” Caetano faz uso de muitas palavras, e na cabeça do ouvinte que não conhece a letra passam-se figuras, cenas, meio clipe fotojornalistico. [...] Outra inédita que teve presença impactante já no VivoRio é “Falso Leblon” – embora a letra enumere “ecstasy, bala, balada…” [...] Volta a banda Cê. A inédita “Lapa” rolou depois, o arranjo é um dos melhores do show, e a letra tem citações de alguns lugares do bairro que é híbrido e boêmio. Do disco “Cê” as empolgantes “Homem” e “Odeio” – sempre que a banda Cê faz essa canção é injetado um novo barulhinho, soando mais “pau dentro” que no “Cê Multishow Ao Vivo”. Caetano gravou duas vezes em sua carreira “Nosso estranho amor”, as duas com voz e violão. Já na “Obra” a música surge num arranjo com banda, que é o momento mais participativo do público, depois de “O Leãozinho” (sempre cantada no bis com novo arranjo que lembra a gravação que o Dadi fez em 1992, do disco “Circuladô Vivo”. Teve um rapaz da poltrona do meu lado que manifestou sobre “Leãozinho”: “nossa, essa música é tão circo”.) “A Cor Amarela” é uma homenagem à Axé Music, bem cara de festa e fim de show, e é a canção que pode tocar no rádio a nível de “Luz de Tieta”. Com “Todo errado” e a dançante e debochada “Manjar de Reis”. (trecho do post “A Obra de ontem segundo um fã”, de 20/08/08)

Com o fim dos shows, os diálogos com o público acabam se concentrando quase que exclusivamente no blog, o qual se torna, para Caetano, um ambiente de confluência entre diferentes pessoas que provavelmente ele não teria chance de encontrar

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pessoalmente, fosse por limitações geográficas ou da própria ordem que sua condição olimpiana lhe impõe. Apesar de ter natureza bastante distinta de uma performance oral – e com limitações importantes, principalmente na manifestação de elementos sensíveis –, o blog acaba resguardando alguns elementos de oralidade que permitem ao artista continuar esse diálogo intermitente com o público que tanto parecia lhe interessar no momento. Isso se dá, particularmente, porque as interações do blog são extremamente informais e seguem muito mais o padrão oral que o escrito: menos rigor na pontuação e nas regras gramaticais, utilização de abreviações e gírias, diálogo com outros nas respostas aos posts e aos comentários. Embora o registro escrito leve a uma certa ordenação do pensamento, notamos que a dinâmica que se forma entre os participantes é de natureza mais ágil e acelerada, assim como na linguagem oral, e normalmente se destacam os nomes, como Caetano faz questão de fazer nos posts em que responde aos internautas:

A Ricardo Tabone: Pasquale nunca ensinou – muito menos impôs – a norma lusitana aos leitores brasileiros (eu adorei o lance sobre “deletar” – palavra que uso muito e a que pensei que “deletério” também se aparentava: olhei no dicionário e vi que não). A Rogério: obrigado pela lembrança do inteligentíssimo (e, como sempre, meio suspeito) texto de Adorno – como ele consegue encantar a esquerda pondo-se à direita da direita! Jaquleine Lé: obrigadíssimo por tudo. Sônia Benites: sei que “num” e “numa” são tão corretos quanto “em um” e “em uma”; mas você admite que há correto e incorreto? Maira: adorei o show de português “medieval”. A Edmilson: que saudade! E: sempre ouvi e ouço “num” e “numa”, mas “dum” e “duma” já estava antiquado desde a minha infância; será que “num” vai cair, puxado pelos jornais????? (trecho do post “Samba Transexual”, de 06/09/08)

Para manter esse diálogo quente com a plateia, Caetano segue alimentando o blog com detalhes sobre a evolução do álbum em estúdio e chega a oferecer, sob sugestão de Hermano, duas versões da canção “Incompatibilidade de Gênios” para que os internautas escolham qual irá compor o álbum. As duas versões são quase idênticas, contendo apenas solos de guitarra diferentes, mas isso não é esclarecido em um primeiro momento. O post gera 424 comentários (número alto mesmo para os padrões do blog) e inúmeras reflexões acerca das possíveis diferenças entre ambas, além das razões da preferência de cada um. Ao final, a segunda versão é aclamada vencedora na contagem de uma internauta, que obtém o aval de Caetano. De fato, pode-se ouvir na versão final encontrada no álbum um solo bastante próximo ao da versão mais votada no blog.

Contei os votos e fiz ate [sic] um arquivo do excel que enviei ao e-mail do Salem para que se ele se interessar conferir a contagem TOTAL DE VOTOS: 265 VERSAO 1 = 73 VERSAO 2 = 163 INDEFINIDOS = 29 VENCEDORA = VERSAO 2 COM 163 VOTOS COM UMA DIFERENÇA DE 90 VOTOS ENTRE A 1 E A 2

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VENCEDORA VERSAO 2 = 61,5% DOS VOTOS VERSAO 1 = 27,5% DOS VOTOS INDEFINIDOS = 11,0% DOS VOTOS Esta foi a minha apuração (comentário de Miriam Lucia, em 26/12/08, ao post “A Votação da Incompatibilidade”, de 10/12/08)

Por fim, assim como na oralidade, as mediações no blog se mostram essenciais para se manter vivo o processo de interação. Só fica aquilo que tem reconhecimento do grupo que acolhe. O blog tem uma dinâmica parecida às que observamos nas manifestações dos artistas de ruas: o próprio público vai saindo de leve se não quer participar daquilo ou se não lhe agrada. Ou seja: é um público que consome e interfere. Alguns se mantêm firmes em uma sequência de discussões e voltam a surgir de quando em quando em manifestações posteriores. Outros vão se afastando, desistem de comentar e, pouco a pouco, vão deixando de habitar aquele ambiente.

Essa errância típica da oralidade e que se apresenta tanto no blog quanto nos shows acaba por favorecer o calor cultural, termo cunhado por Morin (2012) para definir as múltiplas e intensas trocas de ideias e opiniões que tornam o processo de inovação mais profícuo. No embate entre diferentes e no choque entre os complementares vão surgindo novas possibilidades que se adicionam ao já agitado ambiente de criação.

5. A dinâmica amalgamada do blog como termômetro da cultura

O blog revela ainda um outro aspecto do processo criativo: a relação com a cultura, isto é, a rede cultural da qual faz parte e, ao mesmo tempo, é responsável por sua efervescência. Todos os acontecimentos externos e internos às discussões ali presentes revelam a cultura, vez que “o self como falante nunca é simplesmente um falante; em qualquer elocução produzida pelo self, há ecos do discurso de outros” (COLAPIETRO, 2014, p. 79).

Ao colocar a obra para discussão enquanto é realizada, Caetano e a banda deixam mais evidentes as diversas influências e interferências no processo criativo e sua relação indissociável com os ecos da cultura em que estão inseridos, dentro e fora do blog, estando inclusive sujeitos a críticas no caminho. Na verdade, este não é um aspecto separado dos itens analisados neste capítulo, e sim mais uma camada que se sobrepõe aos elementos já identificados no processo de criação. Por isso mesmo, ocorre de maneira mais errática, isto é, não observa um padrão específico como os itens anteriores e não se esgota em temas, visto que está baseado em fragmentos da realidade da época, os quais se podem apreender pela análise dos posts. Serão trazidos exemplos de como a influência da cultura aparece durante o processo de criação, sem a pretensão de esgotar todos os posts e comentários que tratam desse aspecto. Para meros fins de organização didática, iremos dividir esses exemplos em quatro facetas principais: momento histórico, efervescência cultural, influência da internet e críticas.

Por momento histórico, tratamos de episódios específicos relatados no blog que se referem aos acontecimentos passados e presentes que influenciam a obra de Caetano e da banda, vez que:

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Os procedimentos criativos estão, igualmente, ligados ao momento histórico no qual o artista vive: seus diálogos sociais, artísticos e científicos. Trata-se de um dos momentos em que a interação com a tradição torna-se mais explícito. As opções, aparentemente individuais, estão inseridas na coletividade de precursores e contemporâneos. Nesta perspectiva, as inovações ou rupturas surgem em meio à continuidade. (SALLES, 2011, p. 112)

Reforçando a tendência já identificada em tópicos anteriores sobre a grande influência do cenário cultural do Rio no álbum, nota-se que boa parte dos posts traz referências às experiências de Caetano com novas bandas que fazem shows na cidade ou que, de alguma forma, dialogam com a cena indie carioca, inclusive a Do Amor, da qual participavam Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes.

É fato que fui ver Chelpa Ferro no Casa Grande e Ava Rocha na Cinemathèque. Mas vou começar comentando o show do Do Amor. Também na Cinemathèque, o Do Amor fez um show animadaço. Além de grandes covers do Devo, do Ween e de Pinduca, a banda tocou seu repertório próprio, sempre muito bem, e trocou de figurino três vezes. [...] Mas “Pepeu baixou em mim”, a versão de “Lindo lago do amor” e a “Bicha” de Pinduca seriam exemplos perfeitos. Compadrio e amiguismo à parte, Benjão, Ricardo, Marcelo e Bubu tocam muito. Marcelo estava pra lá de Marraquexe. Ricardo lançou uma voz de criança estrangulada que arrasou. As guitarras eram extremamente precisas. Em meio a uma confusão dos diabos, os caras tocavam com rigor. Tudo era para parecer travessura de garotos mas o show super bem preparado do Chelpa Ferro tinha mais o espírito de molequeira do que a bagunça do Do Amor. A primeira parte, com Jaques Morelenbaum regendo a colagem de trechos de peças clássicas feita pelos Chelpa não poderia ter parecido molecagem, mas quando os três componentes entraram, por trás de uma tela sobre a qual era projetado um vídeo de visual concretista, a decisão noise se explicitou. Os timbres, seus controles e a relação entre isso e as imagens de detalhes dos aparelhos eram chiques e bem combinados. O volume às vezes passava do suportável, sem nunca fazer dos ruídos musicais meros barulhos desprovidos de discernibilidade. Havia texturas ricas e intrigantes. Mas a reiterada repetição de uma estrutura que consistia em partir do quase vazio até chegar a clímaxes [sic] ensurdecedores desanimava o ouvinte de esperar surpresas maiores. Numa terceira ou quarta volta desse esquema, Barrão, Luiz e Serginho pareciam três meninos aprontando. Mas dava gosto ver o acabamento do espetáculo. A colaboração de dois artistas plásticos e um editor de cinema em favor da música tem resultado em arte livre e intensa, sem deixar de parecer a bricadeira [sic] de meninos que a deve ter inspirado. (trecho do post “Chelpa Ferro e Ava Rocha”, de 27/12/08, grifo nosso)

Hurtmold é muito bom. Texturas densas, contrastes bem criados, leveza clara, peso encorpado brilhante. Raramente a gente é levado a pensar tão exclusivamente no som. Contei aqui que gostei do disco de Marcelo Camelo, mas ontem no Canecão, com as muitas meninas bonitas e os alguns caras bacanas cantando tudo com ele – e o som do Hurtmold nunca sendo engolido, nítido que é – fiquei ainda mais bem impressionado do que já estava. [...] Ouvi de novo (e melhor) Little Joy – o projeto que Rodrigo Amarante vem tocando com Fabrizio Moretti e acho que aquela bonitinha que estava com eles em Los Angeles quando eu fiz o pior show da temporada do “Cê” – e depois fomos para o mais hilário restaurante “brasileiro” do mundo. O CD é fenomenal. As comparações que vi publicadas entre o trabalho de

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Amarante e o de Camelo são tão idiotas que a gente tende a querer evitar até pôr os nomes dos dois na mesma página. [...] O fato é que ambos, para nossa alegria e nosso orgulho, estão enriquecendo suas vidas e a história da música popular no Brasil. Esperemos Little Joy chegar até aqui. Vi e ouvi, na MTV, Karine Carvalho cantando “Tatuí” com 3 na Massa, banda pernambucana/paulistana, e achei sensacional. (trecho do post “Post (mas a votação continua lá)”, de 16/12/08, grifo nosso)

A influência do indie, que já havia sido afirmado como inspiração para a “trilogia do rock” e foi trazido por Pedro Sá a Caetano, é frequentemente reafirmada nos posts em comparações inusitadas com outras referências do artista, que traça comparativos das bandas com elementos da musicalidade brasileira:

Adoro Radiohead. Thom Yorke canta muito e a banda é boníssima. Não creio que Milton se entusiasmasse com eles, mas há algo de Minas ali sim. Como sou baiano, muitas vezes prefiro até Arctic Monkeys, pela linhagem mais seca, que vem de Sex Pistols, Nirvana, Strokes – e o eterno disco dos Pixies na BBC. Radiohead é muito líquido. O som é muita água e o texto é muito obscuro, muito “não quero que você me entenda”. Mas é um grupo refinado e caprichado. Lindo de se ouvir. Acho que não vou ao show da Madonna, mas ao do Radiohead eu quero ir. (trecho do post “Sifu?”, de 06/12/08, grifo nosso)

Além das experiências musicais e culturais que vão alimentando o processo criativo, ocorrem fatos que também impactam Caetano, como a morte do conterrâneo Dorival Caymmi30, cuja influência se faz presente em diversos aspectos de sua obra. O músico baiano também é lembrado em histórias do passado, que mostram como o fato de possuir determinadas referências acabou por aproximá-lo de outras pessoas, as quais acabaram tendo peso em sua trajetória, como o dramaturgo Álvaro Guimarães:

Caymmi completou sua vida luminosa. Saí do ensaio das músicas de Jobim com Roberto Carlos e fui à Câmara Municipal ver a cara dele pela última vez. Beijei Nana. Rimos. Não pode haver um jingle turístico mais perfeito do que “Você já foi à Bahia?”. [...] A voz de Caymmi é uma Gruta Azul com cantos napolitanos de barqueiros dentro, barqueiros que pensam que enganam os turistas. Caymmi era uma rocha e um anjo. Demasiado material, demasiado espiritual. Caymmi é um núcleo do Brasil. Caymmi será o Mundo. Quem disse melhor sobre suas canções foi Arnaldo Antunes: Não parece coisa feita por gente. (trecho do post “Bahia”, de 17/08/08, grifo nosso)

[...] Logo Alvinho conversava comigo e, sem sequer ter me ouvido cantar, me chamou para fazer a trilha sonora do filme dele: confiava nas minhas conversas sobre João Gilberto, Miles Davis e Caymmi. Depois me fez compor trilhas para as peças “O primo da Califórnia” e “A exceção e a regra”. Fiz tudo, embora protestando. Isso mudou minha vida. Alvinho montou “O Boca de Ouro” e chamou Bethânia para cantar “Na batida do samba”, no escuro, na abertura do espetáculo. [...] E Alvinho desapareceu. Fui reecontrá-lo [sic] no sul da Bahia, vivendo no Arraial da Ajuda. Foi um reencontro muito amoroso e comovente para nós dois. Hoje choro com saudade dele e com fascínio diante do mistério das amizades que desenham a vida da gente. (trecho do post “Erasmo, Glauco, Alvaro Guimarães”, de 18/10/08, grifo nosso)

30 Dorival Caymmi morreu no dia 16 de agosto de 2008. 78

Por fim, há ainda momentos em que presente e passado se misturam, ativando memórias que são trazidas para o cotidiano, entrecruzando aspectos do novo e do velho, numa mistura temporal que se soma às experiências atuais e às possibilidades futuras:

Fui com Tom e Cezar Mendes ao cinema ontem. [...] Mas o importante é que foi no Espaço de Cinema Glauber Rocha, projeto de recuperação do Cine Guarani, sonhado por Cláudio Marques (acho que foi esse o nome que me disseram) e tornado realidade com a participação do Unibanco. Entrar no saguão e ver que os painéis de Carybé estão lá intactos foi comovedor. Quase todos os filmes que mais amo foram vistos pela primeira vez nesse cinema. Ele se chamava Guarani e, quando Glauber morreu, Antônio Carlos Magalhães mudou-lhe o nome para Cine Glauber Rocha – e pôs uma reprodução do grafismo de Rogério Duarte para o cartaz de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” na frente. A homenagem era mais do que merecida: quando eu ia às matinais dominicais do Guarani, Glauber excitava a inteligência da cidade para o cinema e desprovincianizava Salvador. [...] E a Praça Castro Alves é o ponto de vista ideal para a Baía de Todos os Santos e para o Carnaval. O Guarani se transformou agora num Centro Unibanco de Cinema Glauber Rocha com vista para a baía. Tem café, livraria, quatro salas com equipamento de som e imagem de primeiríssima e decoração elegante. Vou voltar lá na primeira semana de 2009, sem Tom, para ver “Gomorra”, que está na sala 1. (trecho do post “O Guarani”, de 30/12/08, grifo nosso)

Também é possível identificar no blog o que Morin define como efervescência cultural:

A conjunção da pluralidade, do comércio, do conflito, do diálogo, do calor constitui uma alta complexidade cultural. Em consequência, a plena utilização de uma enorme diversidade, em uma dialógica em que ideias antagônicas e concorrentes se tornam ao mesmo tempo complementares, a intensidade e a riqueza do próprio debate criam condições de autonomia para o espírito. (MORIN, 2011b, p. 36)

Isso surge nos posts em que Caetano expõe seu universo de referências quase infinito e, muitas vezes, bastante particular. Os temas são dos mais variados e não encontram aparente conexão, mas o músico nem tem a pretensão de seguir algum tipo de coerência lógica: um assunto puxa outro e o texto não segue uma linearidade, uma sequência lógica com começo, meio e fim. É o exemplo deste post em que emenda suas reflexões sobre o pagode baiano, com citações e alfinetadas ao escritor argentino Jorge Luis Borges:

A melhor coisa do mundo é pagode baiano. Eu sempre achei que o Tchan ia dar em riquezas. Harmonia do Samba. O ensaio do Psirico. Um ensaio do Psirico é sempre o bicho. Colagem de performances com percussão preciosa. Aquela música do “cabelo fica massa, êta, fica massa”, do Pretubom é o que há de bom. Kuduros de Fantasmão e Márcio Vítor: sempra [sic] a volta à chula. Quem diria que a chula do Recôncavo seria revitalizada pelo carnaval criticamente desprezado das ruas da Bahia? [...] Jorge Luis Borges escreveu que a piedade que o padre Bartolomeu de las Casas teve dos índios levou à escravização de negros africanos, o que nos deu os blues, Louis Armstrong, a habanera (avó do tango) e “a deplorável rumba ‘El manicero’”. Sem sequer referir-se ao Brasil na sua lista do legado africano às Américas (o que é, em si mesmo, um escândalo), Borges exibe seu ódio pela canção que inspirou Caymmi em “O que é que a baiana tem” (onde Dorival mais expõe o parentesco com a música cubana que ele sempre

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disse que o samba da Bahia tem). Eu, que sempre adorei “El manicero” (mesmo antes de ouvi-la com Bola de Nieve), gozo ao ouvir as chulas estilizadas dos novos grupos de transpagode soteropolitano. (trecho do post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé”, de 29/01/09, grifo nosso)

Assim se segue em outros tantos recortes expressos em dezenas de posts. Cinema, literatura, linguística, artes plásticas, intervenções urbanas: o artista parece manter um encantamento por expressões contemporâneas da criatividade no mundo e querer dialogar com todas elas a um só tempo, permeando suas interações no blog com encontros e traduções de tudo o que absorve do que o cerca. Essa combinatória de elementos revela uma necessidade intensa de estar em contato com o que está sendo produzido em todos os cantos, pelas mais diferentes pessoas. Caetano mistura todos esses assuntos e os traz à tona para embarcar em discussões com os internautas, que também lhe devolvem opiniões e referências, retroalimentando o processo:

“Gomorra” é um Cidade de Deus sem Hollywood. Bem, dito assim parece que não fica nada. Mas fica a magnífica tradição visual do cinema italiano. Os atores são o bicho. O filme é belamente fotografado e dirigido. Os ambientes desolados, o conjunto residencial que parece uma prisão, a feiúra e vulgaridade das pessoas, a amargura da vida humana – tudo captado de modo a resultar num belo filme. A última frase escrita sobre a imagem do trator que, como um carro alegórico (que aqui mereceria o nome), levanta para os céus os corpos dos dois garotos mortos, diz que a Camorra ajudou a financiar a construção das Torres Gêmeas. Informação relevante. Mas me senti mal ao pensar nisso em casa. Quanto ressentimento dos Estados Unidos tem a esquerda européia! Será que é paranóia minha ver aí um desejo de veladamente louvar (ou ao menos justificar) os fanáticos que enfiaram os aviões no World Trade Center? (trecho do post “Transtudo”, de 22/01/09, grifo nosso)

Gomorra é muito bom filme, embora tenha gente que diga que não entendeu as cinco histórias que giram em torno da máfia. Os atores surpreendem. As legendas finais não tem [sic] conteúdo ideológico tipo (de esquerda, ou de direita): são fatos que nos são revelados. A máfia também tem o lado “bom” (a fachada tem que parecer boa (rs)). Os Bancos também patrocinam as artes e até mesmo cinemas, ajudam a recuperar obras de arte e pouca gente sabe que por detrás de boas ações pode estar uma organização mafiosa. Os grandes mafiosos tem [sic] acesso até ao Vaticano (veja Poderoso Chefão III). Até lojas maçônicas podem sofrer infiltrações e este filme citado mostra isso. Nada contra os EEUU, que tem à frente Barack Obama que já fez um grande bem a humanidade mandando fechar Guantanamo (a prisão). O lado humano do americano é sempre bem aceito pelas esquerdas, até a esquerda mais radical aplaude ele. Então esqueça isso de se fixar nesse ressentimento (parece ressentimento) com as esquerdas. (comentário de Francisco Teixeira, em 22/01/09, ao post “Transtudo”, de 22/01/09, grifo nosso)

As misturas, colagens e justaposições do blog também revelam a predominância do pensamento dialógico, com constantes colocações de elementos opostos, contraditórios ou estranhos uns aos outros: velho e novo, brega e clássico, Brasil e EUA, entre muitos outros. Por exemplo, ao lado de referências respeitadas no mundo acadêmico como Saussure e Adorno, aparece o fascínio pela cultura popular baiana em frases como “queria muito fazer uma antologia de axé music”. O artista parece demonstrar uma necessidade muito particular em relacionar mundos ditos inconciliáveis, o que se

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mostra ainda mais evidente nos longos posts que tudo misturam31 e tudo amalgamam: da música de Noel Rosa às leituras de Žižek, do famigerado axé da Bahia à Edith dos Pratos, de Obama a Gabeira.

Curiosamente, são justamente esses os posts que causam maior quantidade de interações, conforme foi explicitado no capítulo anterior. Estariam as pessoas mais propensas às discussões dialógicas, inerentes ao pensamento complexo no mundo contemporâneo? Ou é simplesmente o aspecto polêmico de tais colocações o que desperta a vontade de interagir? Seja qual for a razão, dá-se uma luta entre o lado apolíneo e dionisíaco das interações. Ambos inevitavelmente geram um interesse contínuo pelo blog, avolumando mais e mais comentários.

Ao pensamento dialógico que se observa nestas justaposições, podemos acrescentar outra lente, esta mais próxima às realidades latino-americanas: a da mestiçagem cultural. Os elementos contrastantes e exagerados do barroco tardio que se vê tão presente no Brasil criam inusitadas possibilidades, que só uma junção tão particular de elementos poderia propiciar:

Dado o caráter súbito e excessivo das combinações e contaminações entre códigos, séries e linguagens, os processos dinâmicos de produção de informação só dependem episódica e tangencialmente do respeito às fronteiras que separam centro e periferia, alto e baixo, antigo e novo: o encaixe de elementos e materiais díspares e diversos, barrocamente em dobra-e-curva-e-redobra. (PINHEIRO, 2004, p. 122, grifo nosso)

É possível observar alguns efeitos desse encaixe materializados em canções que Caetano viria a compor mais à frente, alguns anos após o encerramento do blog, como “A Bossa Nova é Foda”, parte de seu último álbum com a Banda Cê, “Abraçaço”:

O bruxo de Juazeiro numa caverna do louro francês Quem terá tido essa fazenda de areais? Fitas cassete, uma ergométrica, uns restos de rabada Lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação Pura invenção dança da moda A bossa nova é foda

Fato é que esse recurso de justaposição de elementos sempre ocorreu na obra do artista. Porém, é inegável que a ebulição compartilhada e retroalimentada pela dinâmica do blog contribuiu para aquecer o “calor cultural” que tanto favorece a inventividade artística.

Ainda, um aspecto que salta no blog são as referências ao próprio universo da internet, que àquela época viu surgir um bom número de memes em vídeos compartilhados no YouTube. Caetano destaca dois deles, relacionados a aspectos da música que já vinha discutindo no blog, como a cena indie e a música popular da Bahia – axé e pagode.

A primeira referência é à dupla Hermes e Renato, que se popularizou em um programa humorístico na MTV Brasil no final dos anos 2000. Uma das especialidades do programa era a sátira às bandas do momento, em especial ao que acreditavam ser manifestações pretensiosas e de pouco valor artístico, como julgavam ser o caso da cena indie paulistana, que na época consagrava bandas como Cansei de Ser Sexy.

31 Caetano os denomina no blog como “posts-anaconda”. 81

Criaram, então, uma banda paródia chamada “Também sou Hype”, em que zombavam das misturas de sonoridades de rock indie (“a gente canta em inglês”) com elementos brasileiros (“mas tem um tiquinho bem pequenininho de carimbó”).

Figura 9 – Frame do vídeo “Também sou Hype”, de Hermes e Renato

Fonte: Site “Rraurl”32

Caetano, apesar de estar, na época, assumidamente frequentando o universo do indie graças aos companheiros da Banda Cê, acha graça do vídeo e usa a referência em um post em que o compara à espontaneidade da banda Do Amor:

[...] Eu ia escrever que, para quem pensa que em banda “indie” os caras ficam parados e sérios (aquela marra de “indie”), o Do Amor era um desmentido, mas vi hoje no Youtube uma sátira de Hermes e Renato (muito boa) sobre bandas indies que cantam em inglês e tocam carimbó: deixei pra lá. (trecho do post “Chelpa Ferro e Ava Rocha”, de 27/12/08, grifo nosso)

Outra referência citada em um dos posts é à música “Pó pará com o pó”, da cantora gospel Jake, que canta temas religiosos em ritmo de axé music. Sua performance na TV Aparecida viralizou rapidamente no YouTube naquele ano de 2008, por conta do contraste – que muitos julgaram divertido – entre o ritmo tão frenético da música baiana e os conselhos da letra, que se dirigia a usuários de cocaína33 para que parassem com o uso da droga.

Figura 10 – Frame do vídeo “Pó pará com o Pó”, da cantora gospel Jake

32 Disponível em: . Acesso em: 05 out. 2016. 33 A droga é conhecida na gíria por “pó”, a que faz referência o título da música. O outro “pó” do título é a contração inculta de “pode”, assim como “pará” é contração de “parar”. “Pó pará” é uma expressão muito usada popularmente no Brasil para denotar algo como “chega”, em tom imperativo. 82

Fonte: Canal “TV Aparecida” no YouTube34

Caetano parece gostar tanto da mistura, que clama para que a música seja cantada por ícones da axé music na Bahia:

QUERO “PÓ PARÁ COM O PÓ” CANTADO POR IVETE, DANIELA, CHICLETE, ASA, JAMIL E QUEM MAIS (trecho do post “Sifu?”, de 06/12/08)

Como último aspecto de termômetro da cultura, vale destacar as críticas negativas à Obra em Progresso dentro e fora do blog. Um dos riscos inerentes em se trazer a público uma obra em processo é ter as composições julgadas ainda em estágio embrionário. Porém, o quanto isso pode interferir no processo? Isto é, será que, de alguma forma, esta influência dos detratores foi absorvida pelos artistas à medida que desenvolviam a obra, seja para ignorá-los ou, eventualmente, para aperfeiçoar a obra?

Dentro do blog, as críticas na maioria das vezes se referem a trechos de textos do artista e, mais amiúde, à sua inabilidade em se manifestar sobre temas que desconhece ou conhece pouco, como a linguística. Algumas pessoas, como já destacamos em trechos anteriores, criticam o projeto em si, como a excessiva teorização sobre o transamba. Porém, são poucas as críticas que falam especificamente de aspectos musicais – letra ou melodia –, as quais poderiam, eventualmente, ter algum impacto à medida que os artistas evoluíssem com a obra. Isso acontece mesmo nos posts iniciais do blog, em que Caetano apresenta as novas canções: estes, normalmente, possuem pouca quantidade de interações, conforme foi já destacado em capítulo anterior, e os comentários são quase inteiramente elogiosos, revelando a pouca disposição do público em entrar nesse mérito. Ou, talvez, isto se dê porque o blog começou a ficar mais movimentado quando os artistas já estavam em estúdio e, portanto, havia menos espaço para sugestões relacionadas às canções.

Exceção feita ao momento em que se abre a votação entre as duas versões gravadas em estúdio de “Incompatibilidade de Gênios”, para que o público escolha a que mais lhe agrada. Além dos inúmeros comentários elogiosos, foi uma das raras vezes no blog em que os comentários trataram de aspectos específicos da canção, surgindo, dentro destes, diversas críticas. Ou seja, quando foi oferecido um estímulo bastante específico e se perguntou a opinião das pessoas, houve interação quanto à musicalidade.

Achei monótono o arranjo das duas. A música é longa e um arranjamento mais rico com uma cuíca chorando e um violão tipo aquela coisa de Baden caía bem. Uma flauta transversal... (comentário de Julio Vellame, em 10/12/08, ao post “A votação da incompatibilidade”, de 10/12/08)

Hermano, suponho que a versão a sair no disco, ainda passe por uma mixagem definitiva, né? Porque, eu estranhei a marcação da guitarra-base parar na hora do solo. Ficou um buraco. Há um problema de ajuste de volumes, que faz a bateria ficar encolhida, e a voz e a base sumirem depois do solo, pra reaparecerem de repente. (comentário de Luiz Castello, em 12/12/08, ao post “A votação da incompatibilidade”, de 10/12/08)

34 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 83

Novamente, é provável que o formato do blog, em que impera a palavra escrita, não seja o mais propício para a interação sobre temas musicais, os quais representam signos de sentimentos, como afirma Vincent Colapietro:

A música enquanto tocada é um signo das “ideias” do compositor para os sentimentos do ouvinte, sendo essas “ideias” o objeto da música-como-signo e os sentimentos os interpretantes. A música é um mediador entre o artista e a plateia de tal maneira que coloca o insight artístico do primeiro em contato com as sensibilidades estéticas do segundo. (COLAPIETRO, 2014, p. 48)

Já fora do blog, inversamente, as críticas tendem a ser dirigidas ao aspecto artístico: muitos elogiam a iniciativa e a nova fase musical de Caetano, porém alguns o acusam de querer soar “moderno” sem estar fazendo nada de relevante musicalmente ou de estar se autoplagiando, repetindo o que já havia feito em “Velô” ao apresentar-se com a banda antes de ter o repertório pronto: “Remete a Velô, mas é obra ‘sem’ progresso. Faltam canções com a força de O Quereres, do LP de 1984” (GARCIA, 2009)35.

Outros, sem entrarem no mérito musical, acreditam que toda a experiência transmídia Obra em Progresso tem muito pouco de experimentação autêntica e seria apenas mais uma forma de divulgar o próximo álbum, ou seja, apenas uma campanha publicitária:

Caetano Veloso anda dizendo por aí que está em uma temporada no Rio de Janeiro de preparação para o seu próximo trabalho. Mentira, papinho, isca. Esse já é o seu próximo trabalho. O clima de making-of que se vê na apresentação do cantor é o grande atrativo. Um “making of ao vivo”, real time. O produto final disso tudo pouco importa. Será que vai ter produto final? E se tiver, esse produto será o “making of ao quadrado”, o making of do making of. Não dá pra ser mais moderno do que isso. [...] Para potencializar essa história toda, foi criado o site Obra em Progresso, para que se possa acompanhar tudo bem de perto e rápido em qualquer lugar do planeta. Na verdade não é um site, é um blog. Lógico. Este blog já é uma versão beta (que, claro, nunca vira alfa) do “making-of do making-of da obra”. É a própria continuidade da obra, uma parte intrínsseca [sic] da mesma. (MAIA, 2008)36

Vale destacar que nenhum destes aspectos de crítica à musicalidade ganhou atenção mais destacada no blog: os embates, quando existiram, davam-se com mais ênfase em temas conceituais, nas ideias defendidas por Caetano, as quais eram criticadas ou simplesmente debatidas por alguns. Nestes casos, Caetano dedicava longos posts e discutia também nos comentários. As críticas feitas a Obra em Progresso fora do blog também não ganharam atenção e não foram mencionadas abertamente em nenhum post.

Curiosamente, porém, as críticas aos shows que Caetano Veloso fez com Roberto Carlos em homenagem a Tom Jobim, em agosto de 2008, causaram fúria no artista, que dedicou nada menos do que três posts ao tema37, em tom bastante irritado e incluindo críticas ferozes aos jornalistas de música no Brasil:

Sempre penso em como a crítica de cinema tem sido mais bem servida do que a de música popular. Não quero desmerecer os críticos de música, mas em toda parte há maior seriedade cercando o crítico de cinema. Seriedade editorial, para começar. Embora o cinema seja arte novíssima – e tenha começado como mera atração de feira de novidades –, ele ganhou

35 Ver Anexo 3. 36 Ver Anexo 3. 37 São eles: “Imprensa” e “Mais Imprensa”, de 30/08/08 e “Liberdade de Imprensa”, de 11/09/08. 84

status de assunto respeitável. Suponho que isso aconteça porque o público de cinema é mais adulto, melhor de vida e mais letrado do que o público da canção. Mas acho gostoso esse desequilíbrio que veio com o upgrade britânico para o rock nos anos 60: os críticos de cinema mantêm seu ambiente tradicionalmente sério, mas os de música misturam ignorância com hiper-erudição e petulância nos julgamentos. Só não deixo passar o uso que se faz disso para manter o mito de que somos cronicamente inviáveis. [...] É raro alguém escrever de modo inteligente e equilibrado sobre música popular. Mas a maluquice desproporcional da crítica de rock, feita de elogios extravagantes e desaforos, excita. É sinal de que samba (etc.) não é resguardado, não é coisa de classes dominantes. Me sinto bem nesse lugar. Vai aí abaixo uma leitura/piada do artigo do cara do Estadão. É só para divertimento. Eu mesmo, antes de reler o que escrevi, vi que tinha grafado “trexo” em vez de “trecho” numa das veses [sic] em que usei a palavra. Quando, por causa de um bate-boca ridículo sobre um outro show-tributo a Tom Jobim, mandei um texto pro JB chiando com o Xexéo e chamando-o de ignorante, a primeira frase da resposta dele era uma denúncia de que eu escrevera um “z” onde deveria ter escrito um “s”. [...] O Jotabê e a Colombo só receberam tanta atenção (de quem não tem tempo para quase nada além da Obra em Progresso para preparar o novo CD) porque sou obsessivo com a afirmação das glórias nacionais. (trecho do post “Mais Imprensa”, de 30/08/08, grifo nosso)

Inversamente à dinâmica normalmente colaborativa do blog, que tende a congregar comentários em que um constrói em cima do outro, o uso do blog para polemizar causou uma pontual revolta em alguns internautas:

Caetano é um ótimo polemista e tem gosto pela coisa, como se sabe. Só isso explica os ataques que ele desfere contra os dois jornalistas, um impulso iconoclasta que teria sido mais frutífero se canalizado para o show, onde o grande compositor e cantor baiano esteve intimidado pelo carisma do Rei e apresentou versões muito aquém do seu talento. O show foi uma merda? Não, impossível, em se tratando de dois dos nossos maiores ídolos musicais. Foi deslumbrante? Também não. Me emocionei somente em dois momentos do show, ambas com Caetano: nas belíssimas Por Toda a Minha Vida e O Que Tinha Que Ser. Mais pelo que elas têm de Tom do que pelo que Caetano fez por elas. Vamos esperar para ver se um comentário distoante [sic] como o meu será respeitado ou defenestrado. (comentário de Rachel, em 29/08/09, ao post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08)

Por que uma crítica desfavorável parece tão inaceitável e absurda? Todos tem [sic] o dever de admirar Caetano incondicionalmente para evitar a condição de “bobos” ou “burros”? (comentário de Leonardo, em 29/08/09, ao post “Marginal Pinheiros”, de 28/08/08)

Considerando todos os aspectos analisados acima, confirma-se a ideia de que os ecos da cultura e de toda a dinâmica em que estava inserido Caetano no momento do blog ficam registrados na palavra escrita. Isso revela que o processo de criação é um constante ir e vir de experiências e pensamentos que se relacionam à realidade tal qual esta é absorvida e interpretada pelo artista no transcorrer do desenvolvimento da obra.

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6. O que Obra em Progresso revelou sobre o processo de criação

A experiência transmídia Obra em Progresso funcionou como um grande documento de processo, sobre o qual pudemos nos debruçar para entendermos um dos princípios direcionadores do processo de criação identificados no capítulo anterior: o projeto poético. Foi possível traçar o percurso do desenvolvimento das novas canções, tanto em letras como melodias, observando os fatos, depoimentos, textos e experiências na obra inacabada que apontaram para a busca singular da criação artística:

Em toda prática criadora há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista; estamos, portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. (SALLES, 2011, p. 44)

Por meio da análise dos shows e do blog, bem como de reportagens e artigos relacionados ao projeto e ao seu contexto na trajetória do artista, foi possível identificar: os fatores motivadores por trás da obra; em que contexto isso ocorreu; os personagens- chave e o papel da coletividade no processo; a importância da performance e da interação com o público como combustível para a criação; e os elementos constitutivos do universo simbólico e também factual do artista.

Observamos que o percurso de Obra em Progresso reflete a ebulição de todos esses elementos e as escolhas que vão sendo feitas ao longo do caminho: algumas totalmente em linha com a trajetória do artista, outras, ao contrário, tentando romper com caminhos já percorridos antes, na busca de algo inédito. Essa ambição, muitas vezes criticada por diversas pessoas, é o que movimenta o processo criativo e lhe dá as forças necessárias para que se caminhe rumo à materialização da obra. Vale lembrar que este processo é permeado de idas e vindas, decisões nem sempre fáceis e elementos de ordem subjetiva:

Quanto mais se focaliza nos descobridores ou criadores, seja qual for o domínio, mais se percebe que foram necessários muitos acasos, possibilidades, felicidades, infelicidades para que se reunissem as condições que permitirão a um espírito individual reconhecer a sua vocação e exprimir a nova concepção. (MORIN, 2011b, p. 60)

Conclui-se que o projeto poético envolvido em Obra em Progresso, apesar de inserido em um projeto poético maior de Caetano e de estar em um processo contínuo, partiu da motivação de se estar em um ambiente de coletividade e experimentação de um novo tipo de sonoridade, marcada pelo que se chamou de transamba/transrock. O que se seguiu a partir daí foram diferentes experimentações, inclusive nos shows e blog, tendo o álbum “Zii e Zie” encerrado e retratado um momento bastante específico da trajetória do artista, o qual não se repetiu novamente, ao menos até o momento.

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CAPÍTULO III: AS VOZES DE COLABORAÇÃO E SEUS ECOS NA OBRA

1. Elementos de identificação e atração à experiência Obra em Progresso

O segundo princípio direcionador identificado no Capítulo I, e que passa a ser analisado em profundidade neste capítulo, é o Aspecto Comunicativo, isto é, as interações que ocorrem em Obra em Progresso entre as pessoas e Caetano Veloso, e entre as próprias pessoas, de forma a propiciar um ambiente de estímulo ao processo de criação.

Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura, na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca. A criação alimenta-se e troca informações com seu entorno em sentido bastante amplo. Damos destaque, desse modo, aos aspectos comunicativos da criação artística. (SALLES, 2008, p. 32)

Estas vozes vão moldando a trajetória do blog, por vezes interferindo nos shows e aos poucos ocupando um espaço próprio, ao qual o artista se dirige em busca de diálogo. São incontáveis as pessoas que participaram do blog durante os meses em que este esteve no ar – certamente mais de uma centena –, assim como são igualmente numerosas e variadas as discussões provocadas por cada uma delas. Muitos se fizeram presentes de forma mais ativa e recorrente, enquanto outros atuaram de forma esporádica. Alguns chegaram a confessar que preferiam apenas ler a comentar, e deixaram para manifestar sua opinião somente diante de algum estímulo específico, como a votação entre as duas versões da canção “Incompatibilidade de Gênios”.

O que mobilizou tantas pessoas ao redor da proposta de Obra em Progresso? Em um primeiro momento, a chegada delas ao blog se deu por curiosidade, valendo de sua conexão aos shows no Vivo Rio, em junho de 2008, os quais haviam sido amplamente divulgados pelos principais veículos de mídia impressa em todo o Brasil, inclusive com referências ao projeto do blog38. Muito embora a participação nos comentários ainda fosse pequena, como destacado no Capítulo I, as pessoas reagiram de forma positiva e viam o blog como uma maneira de acompanhar os shows através dos quais a próxima obra de Caetano estaria se desenvolvendo:

Como já foi pontuado por outros aqui mesmo, acho a idéia incrível. Para mim, que estou na Bahia, e não tenho disponibilidade para ver esses shows, curtir “Obra em Progresso” pelos meios digitais é uma forma, mesmo que virtual, de acompanhá-la em sua construção... (comentário de Nico Telles, em 12/06/08, ao post “Obra em progresso também no mundo digital”)

Idéias de gênios, a obra em progresso e o blog. Se eu estivesse no Rio provavelmente iria a vários shows/ensaios... Agora com o blog me sinto acompanhando o progresso!

38 Os cadernos e seções de cultura dos principais jornais e revistas brasileiros, como “Folha de São Paulo”, “Estadão”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “Correio Brasiliense”, “Veja”, entre outros, noticiaram os shows de Obra em Progresso no Rio de Janeiro e citavam o blog como uma extensão do projeto. 87

(comentário de Márcia Lancellotti, em 08/06/08, ao post “Caetano, Obama e o mulato”)

Esse desejo de acompanhar uma obra em movimento, que ainda não solidificou uma determinada manifestação criativa, é o que Jean-Claude Bernardet denomina como estética do inacabado, e que, segundo o autor, tem uma grande força de atração cultural:

O não-ver, o evocar, o sugerir, o aludir podem ser mais expressivos que o visto, o representado. A evocação fornece elementos ao espectador e, por não concluir a representação, o deixa trabalhar e estimula sua imaginação. A evocação abre um além do mostrado que, justamente por estar indefinido, pode proporcionar indagações e emoções mais intensas que a representação completa. (BERNARDET, 2003)

Diante de uma obra inacabada, o público é convidado a juntar as peças do quebra- cabeça e a tentar imaginar como será o seu formato final. No blog Obra em Progresso, este aspecto se manifestou inicialmente diante dos trechos do show e entrevistas em que Caetano explicava o processo de composição. Mais à frente, foi intensificado diante das músicas novas que eram criadas em paralelo ao blog – como vimos no Capítulo II – e, também, pelas experiências nos shows e no estúdio. Foram diversos posts e comentários do artista que ofereceram pistas sobre a evolução do álbum até tomar sua forma final, no final de março, momento em que foi revelada a capa do disco. Muitos internautas se comovem diante da obra final, como se estivessem diante de um “velho conhecido”, algo do qual testemunharam o nascimento e evolução, onde podem reconhecer os elementos que marcaram todo o processo:

Linda! Linda! Linda! Gosto desse azul; não se sabe se está amanhecendo ou anoitecendo ou se é noite de lua cheia. olha o “transrock” ali atrás! (comentário de rafael rodriguez, em 29/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

bravo!!! simplesmente perfeita. [...] tem um clima “morro dos ventos uivantes”, romantismo, mas com um toque século 21. adorei o triângulo formado por “zii e zie”, “caetano” e “transambas”. e o “transrock” atrás, jóia. [...] (comentário de glauber guimarães, em 29/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Apesar de ter sido um aspecto importante, em especial no início do blog, a estética do inacabado se revelou apenas um fator de atração inicial. O que realmente iria se destacar como verdadeira vocação do blog e fortíssimo elemento de engajamento para as pessoas que participaram é a transformação do blog em um espaço de discussão e diálogo.

Esta dinâmica partiu dos internautas, vez que não estava inicialmente prevista na proposta do blog, o qual se propunha a servir como uma extensão virtual dos shows. Porém, certamente se encaixou perfeitamente nas intenções de Hermano Vianna, entusiasta declarado das possibilidades do mundo digital e que já havia explicitado no post inaugural o quanto gostaria de ser “surpreendido com muito mais” pelos internautas.

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Já nos comentários dos primeiros posts, que ainda eram meros vídeos replicados dos shows e dos bastidores, as pessoas espontaneamente começaram a se manifestar e a trocar opiniões entre si, como no exemplo abaixo, retirado dos comentários ao post “Caetano, Obama e o mulato”, de 6 de junho de 2008, em que uma internauta passa a responder a outro internauta, deixando de apenas comentar o post:

Beni Borja disse: Junho 8th, 2008 at 2:48 am Barack quer ser brasileiro. Faz muito bem. Parece de fato que todos os pretos norte-americanos, subitamente, estão querendo ser brasileiros. Senão o que explicaria o desfile de pretos altos e fortes, vestidos de hip-hop, que eu vejo por Copacabana? Dizem que eles desfilam também por Salvador, com a mesma vontade de serem pretos brasileiros. É verdade?

Marina disse: Junho 9th, 2008 at 3:57 pm Beni, hoje mesmo, vi no caminho para o trabalho, em Salvador um grupo de jovens, todos pretos, com bonés de times de basquete e camisas largas a la hip-hop norte americano. mas acho que eles são, ao contrário, baianos e cariocas querendo ser americanos “pré-barack obama”. (grifo nosso)

A discussão sobre o tema do “mulato”, ou melhor dizendo, sobre a figura do negro nas sociedades brasileira e norte-americana, ainda ganharia muito espaço ao longo dos meses, repetindo-se em pelo menos mais seis posts e inúmeros comentários; o que aponta que o embrião do que viria a se tornar a característica principal do blog já estava se formando logo em seus primórdios, mesmo sem qualquer estímulo específico para que esse diálogo acontecesse.

É possível supor que, diante dessa primeira faísca de diálogo entre os internautas, Hermano tenha optado de forma consciente por disponibilizar mais dois conteúdos que aprofundassem o tema. Coincidentemente, os dois posts seguintes contêm vídeos de Caetano discorrendo sobre o assunto, primeiro na música de Noel Rosa e depois na política nacional. Os títulos, curiosamente, são lançados sob forma de pergunta, como se fossem pensados a fim de estimular uma resposta por parte do público do blog: “Feitiço da Vila é uma canção racista?” e “O Brasil já teve um presidente branco?”.

Também já é explicitada logo nos primórdios do blog a vontade dos internautas em dialogarem diretamente com Caetano Veloso, em um momento em que o artista ainda não participava ativamente dele:

Caê, apesar de muito ocupado, sabemos que vc curte o notebook e as madrugadas (samba e amor, como vc parafraseia o Chico), logo; arranja um tempinho e solte algum comentário por aqui acerca dos nossos comentários, seria um feed-back muito legal e evitaria também os MIL CAETANOS-FAKES de orkut, messenger, que ludibriam seus fãs. Tê-lo em pesssoa [sic] por aqui, digitando vc mesmo, seria uma grande prova de gratidão e carinho à [sic] nós que temos um amor imenso por vc! (comentário de Bruno, em 24/06/08, ao post “Canção inédita: ‘A COR AMARELA’”, grifo nosso)

Aos poucos Caetano vai entrando no blog, mas ainda não da forma como os internautas pediam, isto é, respondendo aos comentários. O primeiro post que contém um texto seu se trata de um esclarecimento acerca de uma matéria do jornal “O Globo”, sobre uma

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polêmica com Fidel Castro após a divulgação da nova canção “A Base de Guantánamo”. Esse padrão se segue em mais alguns posts, nos quais ele envia textos a Hermano sobre assuntos diversos, como Violeta Arraes e sua turnê pela Europa. Hermano, por sua vez, segue postando os vídeos e entrevistas retirados do show, além de incluir textos elaborados por alguns convidados.

Somente a partir de agosto de 2008, quase dois meses após o lançamento do blog, é que Caetano assume plenamente a autoria dos posts. Hermano deixa de incluir nos posts as aspas de Caetano ou a sinalização explícita de que aquele texto é dele, como vinha fazendo até então. É exatamente nessa virada que Caetano finalmente passa a dialogar diretamente com os internautas, aparentemente atraído pelas discussões que estes levantavam. Ele começa citando nominalmente, no post “Notas de Caetano”, uma internauta que havia criticado as canções novas em um comentário ao post anterior:

Vi uma ótima Joana nos dando adeus porque acha que perdemos o gume do “Cê”. Vamos ver o que o repertório posto junto (em CD?) nos dirá. (trecho do post “Notas de Caetano”, de 01/08/08)

É nesse post também a primeira vez que Caetano se manifesta nos comentários. Neste primeiro momento, ele o faz via Hermano, e não ainda em seu próprio perfil:

comentário de Caetano com respostas para o Nelson: “É tudo comedy. Estou em Toulouse, indo para Mônaco. A história é que uma autoridade americana disse a outra autoridade americana: ‘it’s the economy, stupid!’ (‘é a economia, estúpido!’) e a frase é repetida na imprensa mundial toda vez que se quer mostrar que o que decide a cabeça do eleitorado é a economia. A graça das notas que mandei está na velocidade: dizer ‘é transrock, estúpido’ – e emendar uma frase sobre a economia sendo a razão de tudo – tem a ver com esta virada audaciosa: em vez de ser ‘transamba’, isto é, a transvaloração do samba por um tratamento rock, o nosso trabalho mesmo é fazer o rock se superar pela infusão nele do mistério do samba; o que, por sua vez, tem a ver com a crescente presença do Brasil na economia mundial. Uma língua é um dialeto com um exército.” (comentário de Obra Em Progresso, em 01/08/08, ao post “Notas de Caetano”)

Indiscutivelmente, essa possibilidade de interação direta com o músico passa a ser o grande motor do blog, uma vez que as pessoas se sentem recompensadas ao terem seus nomes citados em respostas, ou ao verem os assuntos que trouxeram comentados por Caetano:

me sinto honrado em ter um post do cae dirigido a mim... só a web como uma rede de comunicação global capaz de conectar pessoas ideias e emoções... sem querer ser piegas apenas devo dizer obrigado hermano por esta possibilidade de dialogo [sic] “muito chique” entre um brasileiro que esta [sic] a caminho de monaco e que responde a um outro brasileiro e carioca de botafogo... (comentário de nelson, em 02/08/08, ao post “Notas de Caetano”, grifo nosso)

Q luxo… Caê respondendo quase que online aos comentários!!! (comentário de Luisa Capurro, em 04/08/08, ao post “Notas de Caetano”, grifo nosso)

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Caetano disse: MIRIAM MAKEBA merece homenagem especial. Nunca a esqueceremos. Isso para mim já teve um significado muito especial. Obrigada. (comentário de Miriam Lucia, em 12/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Que coisa legal cara! Esse blog veio em boa hora, e, tratando-se de Caetano Veloso, é memorável. Coloquei o celular para despertar quando iniciasse o programa do Jô e a felicidade foi tamanha, quando você disse que lia e escrevia constantemente para o Blog. Puxa! Fiquei numa felicidade, e pensei: – agora posso ao menos me comunicar com o “Camaleão Caetano” [...] (comentário de Suely Almeida, em 31/08/08, ao post “Marginal Pinheiros”, grifo nosso)

A vontade de serem “citadas” e “comentadas” pelo ídolo faz com que as pessoas se engajem no blog, não se atendo apenas a comentar o que Caetano trouxe à discussão. Passam a pesquisar outras referências e a aprofundar os assuntos levantados com base em seu próprio repertório, seja este intelectual ou mesmo a partir de experiências próprias. Os textos dos comentários vão ficando cada vez mais longos e buscam agregar informações e descobertas para além do que foi abordado nos textos de Caetano. Hermano reconhece que essa dinâmica acabou por dominar o blog e fazê-lo crescer para além do propósito inicial de simplesmente acompanhar a evolução do novo álbum:

Caetano escreveu (em comentário acima) que eu sou fogo… – nem sei exatamente do que ele estava falando (não há plano detalhado, ainda…) – ele que fez o blog (que seria morno) ferver, possibilitando uma real troca de boas idéias sempre em progresso [...] (comentário de Hermano Vianna, em 14/04/09, ao post “OeP (SAUDADES) ZeZ”, grifo nosso)

Vale notar que a possibilidade de interferir na obra em si é manifestada em menor grau pelos internautas. Alguns chegam a expressar em comentários sua vontade de se verem no resultado final da obra, enquanto outros esboçam sugestões de como blog e disco poderiam estar mais conectados:

Que história é essa de que o disco já está todo gravado e só não está mixado? Eu pensei que este blog fosse influenciar na composição das músicas. Afinal o trem tava em progresso uai… (comentário de Labi Barrô, em 11/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

legal, gostei muito da ideia mas eu esperava algo mais interativo que os vídeos. sem querer colocar o carro a frente dos bois. a galera quer baixar de graca [sic] antes de mais nada. parta desse princípio. porque as coisas ja vao [sic] podendo ser mixadas em casa. eh como se o caetano fosse programando e fosse tudo open. aih eu acredito que as ideias iam aparecer mais ainda. (comentário de Fabio, em 08/06/08, ao post “Obra em progresso também no mundo digital”, grifo nosso)

Porém, são comentários mais esporádicos e não representam a maioria do blog. Muito provavelmente essa não expectativa em interferir na obra se deu em linha com a proposta de Hermano desde o início: o objetivo era documentar o processo de criação e estar aberto ao que pudesse surgir, mas em nenhum momento foi prometido que o

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desenvolvimento da obra seria feito de modo colaborativo. Ou seja: para a maioria dos que participaram, influir na obra não constituía um fator de atração tão forte quanto o diálogo direto com o artista em temas diversos.

Esse fator de atração é tão forte que, uma vez estabelecida esta dinâmica em que Caetano comenta as respostas dos internautas, sua falta no blog é imediatamente sentida, mesmo que seja apenas por alguns dias, como demonstram os comentários inquietos ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, de 10 de novembro de 2008. Caetano havia postado no dia 15 daquele mês, mas sua ausência passa a ser sentida já no dia seguinte, com uma brincadeira lançada por um dos internautas mais participativos, Fernando Salem, a qual passa a ser seguida por vários usuários para passar o tempo enquanto o artista não volta:

Fernando Salem disse: Novembro 16th, 2008 at 6:48 am CAETANO NÃO POSTA. GOSTA. Gravataí Merengue disse: Novembro 16th, 2008 at 8:51 am (à moda Salem) CAETANO NÃO POSTA. GHOST? Fernando Salem disse: Novembro 16th, 2008 at 6:26 pm CAETANO NÃO COMENTA. ATENTA. Evangelina Maffei disse: Novembro 17th, 2008 at 10:23 pm [seguindo a idéia de teteco (397!), va outra à moda Salem] - CAETANO NÃO APARECE. MERECE.

Ainda nesse mesmo post, outros internautas começam a conclamar sua volta e a fazer suposições (nem sempre sérias) sobre as razões do desaparecimento repentino:

Qualé [sic] gente boa! Cadê Velô? Tipassim véi, sem Velô num rola não pô... Todo mundo aqui afim de caetanear e Velô nesse ritmo bainao [sic] aê... Não tem votação, não tem comentário, não tem Caetano. Veloso, que é que tu quer tu que é tão rei? Já sei o que aconteceu. Alguém aqui ousou usar a expressão “ou não” aqui no blog. Minha gente! “Ou não” é o nome de um disco de Walter Franco. Caetano não gosta que liguem essa expressão a ele. [...] (comentário de Labi Barrô, em 17/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

creio que devemos resgatar o Caetano. ele pode ter sido abduzido pelo silêncio, pela reflexão, pela não-reflexão, pela preguiça (nunca pejorativa, eu amo a preguiça), pelas atribulações (não creio), pela poesia do estar ausente, pelo seu olhar poético de campana frente as loucuras que postamos aqui, como uma guirlanda de idéias e palavras ao vento. (comentário de teteco dos anjos, em 18/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Caetano reaparece no dia 18 com longo texto respondendo a vários dos comentários, e não tardam a aparecer diversas reações de alívio:

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Leãozinho, que felicidade que você voltou! Já estava pensando que você precisava ser resgatado e eu ia me oferecer para fazer isso. [...]39 (comentário de Exequiela, em 18/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

Contudo, apesar da interação com Caetano ser tão relevante, o blog não para diante dessa ausência. A conversa continua para além de ele estar lá ou não. Os comentários dos internautas não diminuem nem em frequência nem em tamanho. Pelo contrário: seguem se avolumando de forma significativa em diálogos intensos em que os próprios internautas citam uns aos outros, copiam trechos de outros comentários e aprofundam a discussão iniciada. Neste mesmo post, é possível observar como essa dinâmica ocorre nos comentários, novamente com o tema do negro na sociedade sendo discutido em profundidade pelos internautas, sem estímulo adicional de Caetano:

Helô não me referi a espelhos por querer algo de vcs. mas só pra demonstrar. e me referi a “espelhos uns do outros” não só pela relação virtual que estamos vendo ser construída entre vocês, mas como uma simbologia pra todas as relações. daqui e fora daqui. [...] Quito “Muito pelo contrário, acredito que a reparação do prejuízo passa pela afirmação da ascendência negra na nossa mestiçagem. Isto parecem favas contadas. Mas não é bem assim.” sim!!! agora te entendi se afirmando claramente. entendi melhor suas colocações. acho que por isso eu ficava pensando coisas do tipo: sim, mas pra essa afirmação acontecer a história precisa ser lembrada. acho que isso que vc diz com “Acho que os não-pobres no Brasil precisam assumir a sua mulatice mais do que o fazem.” e acho que muitas vezes não lidamos as claras com essa mulatice!!! (eu acho essa palavra linda) não penso na história nem apenas como conhecimento teórico. [...] enfim, mais idéias a respeito, mas como não gosto de tudo de uma vez só, outro momento dou mais pitaco nesse chá da tarde da Patricia… (acho que foi ela que deu essa intençâo [sic] alguns coments atrás…) bom sábado amiguinhos! (comentário de joana, em 15/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Também se nota ao longo do blog que, quanto mais Caetano se aproxima dos internautas por meio do diálogo, a identificação fica ainda mais forte do que era antes da experiência, frente a um ídolo distante, admirado de forma mais fria. Isso fica claro diante da defesa que um internauta faz a outro que afirma que o blog é “chato”:

Caetano é humano, demasiado humano. este blog é uma das evidências disso. é a ponte viva entre a estrela e seu público. claro que não concordamos com tudo dele e vice-versa. isso é democrático e saudável, como a visão de Heráclito; “da força dos contrários, nasce a mais bela harmonia”. e eu nucna [sic] vi, em tal fluência, outro bamba da música fazer algo similar. o baiano inovou novamente. e chatice, meu caro, todo mundo tem, como as virtudes. e Caetano-Humano não poderia ser diferente da raça.

39 No original, em espanhol: “Leaozinho: Qué felicidad que volviste! ya estaba pensando que necesitabas ser rescatado y me iba a ofrecer para hacerlo”. 93

(comentário de teteco, em 15/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

Esse fator de aproximação é intensificado nos posts em que Caetano conta histórias da sua própria vida, em especial aquelas que remetem à infância e narram memórias do passado como experiências marcantes na sua trajetória. Isso permite às pessoas também se manifestarem de forma muito aberta e íntima no blog, compartilhando com completos estranhos momentos-chave em suas trajetórias de vida ou mesmo suas próprias experiências diante do artista:

Quando eu pequeno, no posto de saúde, a recepcionista perguntou a minha mãe a cor do menino (EU). dai levantou-se, para me olhar atravez [sic] da janela e colocou na ficha PARDO. Eu pensei em que eu tivesse cor de passarinho. (Pensei: Credo, cor de Pardal?) Dai cresci pensando que eu era Branco, agora de repente virei Preto… Aff que rolo... Sera [sic] que importa? (comentário de Kakuleh, em 09/04/09, ao post “Caetano, Obama e o mulato”)

Vi o show Ce no [sic] Costa Rica. Ainda hoje fico emocionada com o que vivi naquela noite. [...] Meu ultimo [sic] encontro com Caetano foi no show Circulado. Eu entao [sic] gravida. Depois de 15 anos morando fora do Brasil cheguei no [sic] Costa Rica pra viver com minha família, e no trajeto do aeroporto ao hotel vi um cartaz com a foto de Caetano sem conseguir ler do que se tratava. Era algo tao [sic] maravilhoso eu me encontrar de novo com ele, justo na minha chegada ali, com minha filha Veridiana ja [sic] com 15 anos e meu marido que a essas alturas ja [sic] havia aprendido a Caetanear. Quando ele – aquele Velho Homem – entrou no palco pra cantar e tocar junto com aqueles meninos senti que algo de importante estava se passando. Era como se nunca tivéssemos nos separado e ao mesmo tempo tudo novo... Outro Caetano. Eu, orgulhosa, apresentando Caetano e sua musica [sic] à minha filha, aqueles meninos confiando no homem velho, o homen [sic] se renovando e ensinando tambem [sic], tudo diferente nele. [...] (comentário de Fatima, em 20/06/08, ao post “Caetano canta Cajuína em homenagem à Violeta Arraes”)

Essa dinâmica é interessante, pois antecipa em alguns anos um movimento que hoje é bastante consolidado na internet: o fenômeno dos youtubers, isto é, pessoas que têm canais no YouTube e atraem uma legião de seguidores dispostos a interagir com eles, principalmente adolescentes. O grande fator de sucesso desses novos ídolos é justamente a imagem que transmitem de pessoas reais e próximas, e não celebridades distantes que só se conhecem por meio de revistas. Muitos youtubers relatam receber mensagens e comentários de pessoas como se fossem amigos íntimos, aos quais confidenciam segredos e pedem opinião sobre os mais diversos assuntos.

Por fim, um dos fatores que atrai as pessoas ao blog é a possibilidade de poderem participar dele como autores de alguns posts, espaço que Hermano concedeu a alguns ao longo do blog, como no post “Blog na International”, de 17/09/08. O internauta Claudio Dirani envia um artigo que havia escrito para uma revista online sobre Obra

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em Progresso e tem seu texto publicado na íntegra no próprio blog, no qual revela exatamente o que lhe faz participar da experiência transmídia:

Artista inova e escancara processo criativo em blog Claudio Dirani Webcams no estúdio de gravação? Não é mais novidade. Download gratuito de inéditas? Já faz parte do passado no mundo virtual. Experimentar novas composições ao vivo? Também. Agora, que tal um artista usar seu blog para expor idéias e discutir com os fãs o repertório que integrará seu próximo disco? Boa idéia. Tudo isso com o direito de expor ao público a metamorfose das canções ao longo do percurso em vídeos, como no You Tube. Isso mesmo: esta é mais recente empreitada de Caetano Veloso inaugurada em maio deste ano com a turnê-laboratório “Obra em Progresso”, que culminou com o registro em DVD dos shows na casa de espetáculos carioca Oi Casa Grande. O mais fascinante dessa cyber aventura de Caetano talvez seja o desafio imposto a si próprio: usar freqüentemente o www.obraemprogresso.com.br, com o apoio do redator e moderador, Hermano Vianna, para relatar suas impressões, sentimentos e idéias sobre novas criações pop. [...] (grifo nosso)

É justamente nessa dinâmica própria que os internautas formam no blog, em busca de diálogo e de se tornarem relevantes naquele ambiente, que podemos observar o efeito do acaso, o qual, segundo Salles (2011), constitui um aspecto envolvido nos percursos de criação. Acolher ou não acolher a dinâmica do acaso faz com que os rumos de um projeto mudem completamente, não sendo mais possível retornar ao ponto em que se estava antes disso.

Isso fica claro na constatação de que o blog começa com uma intenção – a de ser uma extensão ao desenvolvimento do novo álbum de Caetano – e acaba se desenvolvendo em outra direção: de mero replique dos shows a um ambiente com força própria, que ganha atenção ativa do artista e de Hermano, e amplia a discussão para muito além do álbum. Os próprios participantes percebem isso, e fica evidente a diferença entre os comentários ao primeiro – em que se pede mais do blog – e ao último post, em que se afirma que a experiência superou as expectativas:

a função da midia eletronica é a velocidade da resposta e acessibilidade quase que just in time da produção cultural... não ha nada de paralelo no mundo cibernético... há sim convergencias [sic], sincronicidade, disponibilidade e complementariedade... exemplo simples. fui ao show ontem, quis assitir [sic] a canção que mencionei, não achei nada, compraria certamente a canção avulsa ou o video avulso ou ainda um pay per view do show que assiti [sic] ontem ou ainda adoraria ter no meu i pod todo o conteudo do show de ontem ou ainda a transmissão ao vivo do show com o humaita pra peixe fez. (comentário de nelson, em 19/06/08, ao post “Obra em Progresso também no mundo Digital”, o primeiro do blog)

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Caetano: ainda não estou totalmente certa do que você queria tirar dessa experiência, mas espero que você tenha conseguido. Talvez você tenha alcançado algo que não esperava. Algo ainda melhor.40 (comentário de Barbara, em 13/04/09, ao post “OeP Saudades ZeZ”, o último do blog)

Importante frisar que isto se dá porque foi aberta essa possibilidade de intervenção. Apesar da intenção inicial de Hermano em replicar os shows e falar sobre o desenvolvimento da obra, desde o começo ele deixou propositalmente uma brecha ao acaso, como declara no post inaugural do blog:

É uma aventura: ninguém pode saber onde isto aqui vai terminar. (trecho do post “Obra em Progresso também no mundo Digital”, de 04/06/08)

O elemento-surpresa almejado por Hermano veio a aparecer no propósito de compartilhar ideias originado pelos próprios internautas, os quais, juntos a ele e Caetano, determinam o modus operandi do blog. Hermano reconhece esse movimento em um comentário ao último post do blog:

quando sugeri este obraemprogresso.com.br para o Caetano, a idéia era bem simples: nem seria bem um blog, apenas um local de acompanhamento da obra, com entrevistas em vídeo explicando os rumos que as coisas iam tomando – mas no caminho, tudo mudou e ficou MUITO mais interessante [...] (comentário de Hermano Vianna, em 14/04/09, ao post “OeP Saudades ZeZ”, grifo nosso)

Portanto, temos que os principais motores de atração, identificação e engajamento ao blog ocorrem no movimento das pessoas em direção ao diálogo, seja com Caetano, seja entre elas próprias.

2. Regras do jogo ditas e não ditas: acolhimento e rejeição dentro do blog

Alguns dos fatores determinantes para o desenvolvimento das conversas dentro do blog são os acolhimentos e rejeições, isto é, aquilo que passa a ser selecionado para figurar dentro do espaço – e até ganhar destaque –, enquanto outros elementos são ignorados ou mesmo retirados do blog. Claramente, existem regras do jogo para a participação no blog, e quem quiser entrar já percebe isso logo que começa a interagir. Algumas são declaradas de forma explícita, outras, formadas a partir da própria dinâmica de interação no blog. De qualquer forma, fica evidente que o blog é aberto a todos participarem, porém é necessária uma aceitação tácita a essas regras.

Dentre as regras “ditas”, é transparente para todos que apenas um tem o poder do “sim e do não” dentro do blog: Hermano Vianna. A mão de Hermano é fator determinante nos rumos das discussões, e sua influência é declarada desde o início. É até provável que, nos bastidores, Caetano tenha manifestado suas opiniões a ele em relação ao que gostaria e não gostaria que houvesse no blog; porém, quem de fato determina as regras do jogo no dia a dia é Hermano. É ele quem descreve no campo “Regras” de Obra em

40 No original, em inglês: “Caetano: I’m still not completely sure what you were hoping to get out of this experience, but I hope that you got it. Perhaps you got something you were not expecting. Even better”. 96

Progresso (ver Anexo 2) como devem ocorrer as manifestações dentro do blog, o que aparentemente foi feito a posteriori, vez que faz menção a fatos já ocorridos:

ESCLARECIMENTOS UM TANTO ANTIPÁTICOS, MAS NECESSÁRIOS: 1 - Obviamente este blog modera os comentários. Queremos manter uma conversa civilizada por aqui. Não nos interessa o bate-boca- baixaria que atravanca alguns outros sites da internet, onde pessoas usam o anonimato (ou ausência de contato não-virtual) para agressões violentas umas contra as outras (já tentaram fazer o mesmo nesta Obra em Progresso). Nosso objetivo: manter trocas de idéias interessantes, com algum foco, aprofundando/discutindo os temas abordados por Caetano Veloso no trabalho de preparação de seu próximo disco. 2 - Importante: este não é o blog do Caetano Veloso. É o blog da Obra em Progresso, que acompanha o desenvolvimento deste projeto específico. [...] 3 - Além disso: só uma equipe de moderação gigantesca conseguiria ficar avaliando 24hs todos os comentários que chegam por aqui cotidianamente. Não podemos prometer rapidez na publicação e nem ao menos que tudo será publicado, mesmo textos interessantíssimos. [...] 5 - Claro que podemos aprovar com louvor comentários “do contra”, anti-Caetano-Veloso ou anti-Obra-em-Progresso (e já os publicamos, inclusive com respostas do próprio Caetano). Mas é preciso que tenham substância, que não apresentem apenas (como muita coisa que chega por aqui) xingamentos bobos ou um “volte para a Bahia”. Não admitimos também acusações obscuras e raivosas contra terceiros. [...] 6 - Comentários que apenas repetem argumentos já enunciados em vários comentários anteriores também terão mais dificuldade para serem aprovados. Tudo em nome de uma maior fluidez na conversa. Enganos podem ser cometidos nessas avaliações (inclusive podemos publicar comentários “nada a ver” – não lemos atentamente tudo que é aprovado por aqui). Pedimos desculpas por esses enganos. [...] (grifos nossos)

No entanto, Hermano assume um papel maior que o de mero moderador das discussões. É sua motivação frente às possibilidades de inovar a produção musical na era digital, em especial com o contato mais direto entre artista e fãs, que faz com que o blog exista, conforme manifestado no primeiro post. Não à toa, sua influência é decisiva para o desenvolvimento do blog e dá impulso à experiência transmidiática, afinal, sem o blog, esta seria apenas uma série de shows a ser encerrada em si mesma. É ele quem traz convidados, estimula Caetano a publicar textos e responde às dúvidas dos internautas:

ESTIVE NO SHOW DO DIA 11/06/08 [...] NO DIA ELE CANTOU UMA MUSICA SOMENTE VOZ E VIOLÃO MUITO BONITA… FALAVA DE UMA MULHER BEM MAIS NOVA QUE ELE QUE O TINHA DECEPICIONADO... [sic] GOSTARIA DE SABER O NOME DA MUSICA? SE EH NOVA? [...] (comentário de VICENTE CONI JR, em 15/06/08, ao post “Caetano canta ‘Amor mais que discreto’”)

O nome da música é Ingenuidade, composição de Serafim Adriano, gravada por Clementina de Jesus. (comentário de Hermano Vianna, em 16/06/08, ao post “Caetano canta ‘Amor mais que discreto’”)

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É ele também quem traz para o blog a participação de fãs e intelectuais para comentar as questões que permeiam a obra, como o mulato na música de Noel Rosa, o qual ganha um post de Carlos Sandroni discorrendo sobre o tema, ou o próprio conceito de transamba, que é debatido em posts específicos com convidados e participação dos internautas. São elementos escolhidos por Hermano ao observar os assuntos que mais geram interesses e comentários, e que agregam mais textura à discussão iniciada por Caetano e aprofundada pelos internautas. É Hermano quem incentiva Caetano a experimentar formas estruturadas de intervenção do público no desenvolvimento da obra, como no caso da votação entre a melhor versão da canção “Incompatiblidade de Gênios”. Aparentemente, pela vontade de Hermano, haveria participação mais direta do público na obra final.

A leitura atenta do blog revela também que, mesmo quando deixa de escrever os posts, cedendo o lugar a Caetano, Hermano segue manifestando sua opinião em comentários e estimulando a interação, por exemplo ao comemorar o número de comentários:

pensando no futuro, já que “o tempo não pára” (nem o Hal41 pode parar o tempo…): muito interessante esta reflexão do Trent Reznor, do Nine Inch Nails (que teve o disco mais vendido pela loja de MP3 da Amazon no ano passado: http://creativecommons.org/weblog/entry/11947), sobre suas experiências com novos modelos de negócios musicais (e a própria construção da entrevista, feita colaborativamente, já é parte do que é muito interessante…) (comentário de Hermano Vianna, em 10/04/09, ao post “Ricardo, Marcelo, Release e P.S.”)

mais de 500 comentários! (comentário de Hermano Vianna, em 07/02/09, ao post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé”)

Como consequência, seu status junto aos participantes não é de coadjuvante, mas de coautor, alguém tão respeitado no blog quanto Caetano. As pessoas buscam sua opinião e querem interagir com ele, enviando referências e compartilhando experiências, tal qual fazem com Caetano, muito embora em número menor:

minha gata, que é muito mais esperta que eu, descobriu este blog sensacional. hermano vai curtir, se já não conhece. chama-se “paleofuture”: http://www.paleofuture.com/ (comentário de glauber guimarães, em 12/04/09, ao post “Ricardo, Marcelo, Release e P.S.”, grifo nosso)

Hermano Vianna é uma pessoa incrível, com uma sensibilidade que quase se pode tocar, um senso de observação muito preciso [...] soube contornar as situações mais diversas, algumas creio ate [sic] bizarras, deu um show a [sic] parte. (comentário de Miriam Lucia, em 30/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Porém, o fato de ser tão essencial ao funcionamento do blog acarreta também o ônus de se ver criticado. Não são poucos os que desferem comentários pouco elogiosos à sua moderação, sugerindo que ele poderia ter abusado de seu poder e “pesado a mão” ao cortar comentários de cunho mais crítico:

41 Hal, referência ao filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, é o apelido que os internautas dão ao contador do blog que mede o percentual de “progresso” da obra. No último post, a barra indica 100%. 98

escrevi dois comentários sexta passada sobre o post de caetano chamando a imprensa paulista de provinciana. hj entrei no blog pra ver como andava a polêmica e para a minha surpresa meus comentários foram APAGADOS. eu, fã confesso do caetano q independente ousei discordar de uma coisa ali e outra aqui daquilo q ele falou acabei sendo censurado. censuarado [sic] no blog do caetano veloso!!! então é assim vc pode achar o caetano genial – até aqui estava achando – e fazer elogios – como fiz – mas criticar de jeito nenhum. devo ser mesmo muiiiiito provinciano, feito aqueles caras do jornal provinciano paulista. pq, veja bem, somente provinciano paulista é que discorda do caetano. o certo é mesmo concordar, e ainda dizer “sim, senhor”. (comentário de Marcos Ribeiro, em 01/09/08, ao post “Mais Imprensa”, grifo nosso)

Outras pessoas defendem Hermano, declarando que não há abusos e que a moderação é democrática. Os comentários que eventualmente não são publicados são atribuídos a um possível engano do moderador, o qual pode ser contornado ao se comentar novamente:

taí, pesquei o lance da moderação! isso que vc entende como desmoderado, pra mim é moderado. não conseguiria imaginar esse espaço sem essa liberdade pra todos, pra mim isso é o normal. eu também bateria um papo com o Hermano se achasse que isso aqui fosse muito controlado. moderação pra mim, implica só não permitir avacalhamentos com faltas de respeito e baixarias infrutíferas. eu tive dois coments deglutidos, mas isso não me faz cósquinha [sic], nem questiono se foi moderação ou pq passou batido. teimei, escrevi tudo de novo e aumentei o assunto, e eles foram regurgitados. (comentário de Joana, em 14/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

O conjunto de regras de Hermano faz parte dos mecanismos de moderação explícitos no blog, isto é, as regras “ditas”. Porém, existem também as regras “não ditas”, e estas são primordialmente realizadas por Caetano, o qual, intencionalmente ou não, acaba determinando o que e quem ganha destaque no blog.

Como não são todos os comentários que Caetano consegue responder, essa “seleção” passa pelo critério dele próprio, que escolhe abordar assuntos que lhe interessam mais que outros. Por exemplo: o artista em nenhum momento explica a possível influência do blog na evolução do álbum, apesar de algumas pessoas o solicitarem abertamente:

[...] Me diga Belo Velô, como foi e está sendo a influência do blog no disco? Tem que ter pelo menos alguma coisinha de Labi no som né. Você ouviu Divine? Por que C não grava Shake it up no disco assim só com voz e violão? Vai ficar legal. (comentário de Labi Barrô, em 11/11/2008, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

É possível que, diante de tantos comentários, alguns não sejam lidos atentamente pelo artista. Porém, o mais provável é que Caetano escolha quais assuntos quer fazer reverberar, em detrimento de outros. Notamos que o músico optou por concentrar as discussões do blog dentro do universo de referências que mais lhe estimulavam àquele momento e que, como vimos no capítulo anterior, estavam mais próximas de seu projeto poético.

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Nesse sentido, ganharam destaque os internautas que comentaram sobre transamba, rock, novas bandas, a vida no Rio, o cenário político-econômico, o papel do negro na sociedade; além dos que trouxeram um apanhado de referências intelectuais e artísticas com o qual o artista se identificou. Isso é natural dentro de uma obra em processo e faz parte dos mecanismos de seleção do próprio artista:

Quando deparamos com uma obra em processo, enfrentamos necessariamente os momentos de opções ou escolhas que são feitas pelo artista. As seleções desta ou aquela forma são acompanhadas por avaliações e julgamentos. (SALLES, 2011, p. 112)

Mesmo as críticas, tão temidas por alguns internautas como motivo para terem um comentário removido, ganham espaço quando o assunto interessa a Caetano debater. É o caso da discussão com Heloisa, especialista em língua portuguesa, que se estendeu por muitos posts. Caetano, inclusive, chama-a de volta para a conversa ao notar que a internauta havia deixado de responder:

Heloísa, você ficou de mal comigo. Minha resposta sobre o “aleijão” foi pura e doce, mesmo que parecesse teimosa e cruel. Justamente por não haver nada mau em mim em relação ao erre retroflexo é que nem lembrei do que você falava quando voltou ao assunto. Sabia que tinha lido algo assim da primeira vez mas, entre tantos comments, não me liguei em “Verdade tropical” (embora ali estivesse explícita a referência). Creio ser o único artista de fora da região do erre líqüido a usá-lo na composição (e gravação) de uma música não cômica nem folclórica, com profundo amor de identificação. [...] (trecho do post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Ao qual a participante responde, sem deixar de lado sua convicção, e nem por isso é “editada”, isto é, deixa de ter seu comentário publicado:

Caetano, Você pode não ter tido intenção consciente de ofender ninguém, mas na minha opinião foi o que aconteceu. Estranho ao espírito do português? Como assim? Você, que conhece tão bem nossa língua, sabe que ela não é uma só. E ainda diz que o erre “soa para nós, brasileiros, como algo ridículo.” Que feio, Caetano. Os falantes do “aleijão” devem se considerar, de acordo com seu comentário, não só ridículos, mas também não brasileiros? Sei que você fala de algo real – ah, como sei! Passei a maior parte da vida em um grande centro, e também sentia esse mesmo preconceito contra os falantes do erre retroflexo. [...] Bonito não acho – mas é um sotaque tão válido quanto os outros, e como tal deve ser respeitado. [...] Desculpe-me responder tão asperamente as suas palavras tão doces. Você não me convence, por mais delicado e encantador que seja. Mas não estou magoada. Afinal, ninguém pode ser tão perfeito assim – nem você, que quase é. [...] (comentário de Heloisa, em 12/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Como parece ser uma discussão que interessa a Caetano, ele responde novamente, deixando claro que tem preferência por algumas das pessoas que comentam:

Heloísa, que bom que não foi por raiva de mim que você demorou a reaparecer. [...] E não vejo nenhuma incompatibilidade entre o que ali disse (ou a

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explicação que esbocei aqui) e o fato de grandes inteligências e obras se desenvolverem em falantes do erre retroflexo. É preciso separar duas coisas: em “Verdade tropical” narro o que se passou e o que pensei a respeito. Aqui somei à afirmação de que amo o erre retroflexo e odeio quem deseja humilhar os outros à confissão de que não creio ser possível, nem benéfico, querer-se dizer que os sotaques todos se equivalem. Ou que todos os aspectos de todos os sotaques têm peso idêntico. O mesmo para as variações gramaticais. Amo o sotaque nordestino e sei que ele não é empecilho para o desenvolvimento de um Suassuna, de um Gilberto Freyre, de um João Cabral. Mas a diferença real que ele representa não se nega. [...] Gosto muito do pessoal que escreve aqui. Alguns às vezes mais que muitos. Você, Heloísa, eu adoro. Adoro sua clareza, seu cuidado, sua inteligência calma, tudo. (Amei o modo como você se referiu ao comment de Marcelo Porciúncula sobre axé music.) [...] (comentário de Caetano Veloso, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, grifo nosso)

Tamanho é o espaço que essa discussão ganha no blog que vira até alvo de comentários de outros internautas, talvez no intuito de se agregarem a ela e ganharem visibilidade também:

Esse debate de Heloisa com Caetano podia muito bem terminar no divâ [sic]: Um trabalho de psicologia voltado ao significado latente das palavras e reações a sotaques no inconsciente. Tipo associação livre Freudiana... Deve ser bem mais importante para o desenvolvimento da civilização o significado oculto (e portanto verdadeiro) (comentário de Julio Vellame, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

As regras, sejam ditas ou não ditas, acabam sendo absorvidas por todos que seguem participando ativamente do blog, naturalmente afastando aqueles que não se sentem à vontade com essa dinâmica e, ao mesmo tempo, fomentando ainda mais os laços entre aqueles que se adequam a elas. Estes passam a ser membros de uma comunidade.

3. A formação de uma comunidade

Ao ultrapassarem a fronteira de meros observadores de um processo artístico para proporem pró-ativamente discussões que vão além do álbum em si, os internautas passam a formar uma comunidade ao redor de um interesse comum.

Uma comunidade musical, seja qual for sua localização no tempo e no espaço, é uma coletividade construída e sustentada por processo musicais e/ou performances. Uma comunidade musical pode ser socialmente e/ou simbolicamente constituída [...]. Em verdade, uma comunidade musical é uma entidade social, um resultado de uma combinação de processos sociais e musicais, que traz para aqueles que dela participam [...] um senso mútuo de conexão. (SHELEMAY, 2012, p. 364-365)

Se, no início, esse interesse se estabelece pelo acompanhamento da nova obra de Caetano, rapidamente as trocas entre as pessoas e o próprio artista passam a ser os elementos aglutinadores dessa comunidade.

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Obviamente, Caetano é o grande catalisador desse processo e se constitui num “atrator cultural”, termo cunhado por Jenkins (2009) para definir a figura que mobiliza as pessoas ao redor de um propósito em comum. O termo aparece em oposição ao conceito de “ativador cultural”, que normalmente é quem oferece atividades para as pessoas dentro de uma comunidade. Hermano se aproximaria mais desse papel no começo do blog, mas, depois, são os próprios internautas que coletivamente dividem a tarefa de dar e receber estímulos concomitantes de modo a continuarem orbitando ao redor do blog.

De fato, como observa Kay Kaufman Shelemay (2012), músicos carismáticos estão frequentemente no epicentro dos processos de formação de comunidades musicais. Isso porque a música tem o poder de evocar forte significado emocional nas pessoas, o que acaba por gerar um sentimento de união entre todos aqueles que se identificam com uma música ou com um músico. É como se o fato de aquelas pessoas poderem extrair o mesmo significado emocional diante de uma canção tivesse o poder de identificá-las para sempre como parte de uma mesma tribo.

É por isso que Obra em Progresso acaba oferecendo um ambiente tão propício à formação dessa comunidade: quem está lá já tem uma característica em comum aos outros, o interesse pela obra de Caetano Veloso. Salvo as raras exceções – pessoas que se dirigem ao blog apenas para criticar –, o que se vê nos participantes mais ativos é o apreço pelo músico e um interesse geral por todos os assuntos relativos à música brasileira. Esse interesse já é suficiente para aproximar as pessoas e fazê-las se sentirem à vontade dentro do blog, e este é um primeiro passo para a troca de experiências e discussões que irão, aos poucos, fomentar o processo de formação da comunidade.

Esse elo se dá em função da afinidade entre os participantes, sentimento que aproxima as pessoas que estão vibrando na mesma proposição na comunidade por afinidade que:

[...] emerge primordialmente das preferências individuais, bem como por um desejo de proximidade social ou associação com outros que se encontram igualmente enamorados. A música se mostra como um mecanismo particularmente poderoso para catalisar comunidades por afinidade [...]. Em última análise, as comunidades por afinidade têm sua força derivada da presença e da proximidade de um grupo considerável e pelo sentimento de pertencimento e prestígio que essa afiliação traz. (SHELEMAY, 2012, p. 373)

De fato, essa sensação de pertencimento é o que ocorre com os participantes do grupo, a começar por Hermano, o qual se entusiasma ao ver que seu projeto ganhou muito mais força do que ele imaginara inicialmente, por conta da força da comunidade que se criou ao seu redor e o prazer de interagir com essas pessoas todos os dias, mesmo sendo algo bastante trabalhoso:

[...] a principal transformação, e a que me deixou mais animado, foi a formação de uma comunidade de reflexão superbacana (tanto a comunidade quanto a reflexão) por aqui, pautada pela obra, mas indo muito além da obra (e tudo com progresso transparentemente transnacional, transcultural, transexual, transrock etc. etc.) […] há vários meses modero o blog sozinho, praticamente 24 horas por dia, todos os dias – nunca foi chato […]: na maior parte do tempo (estou sendo absolutamente sincero) estar junto com todo mundo que comentou por aqui (e o pessoal

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que comentou o que falamos por aqui em seus próprios blogs/sites) foi motivo para grandes alegrias [...] (comentário de Hermano Vianna, em 14/04/09, ao post “OeP Saudades ZeZ”, grifo nosso)

A partir dessa forte afinidade, laços genuínos de afeto se formam entre alguns participantes, os quais, mesmo sem se conhecerem pessoalmente, sentem que compartilharam de um momento muito especial juntos, do qual sempre se lembrarão:

Quando leio aqui estes comentários do Caetano sobre o contado pessoal com o Glauber, Luedy, Roberto Joaldo, Rafael e não sei mais com que outras pessoas que estão aqui no blog, me convenço de que todo trabalho desenvolvido aqui na Obra supera a própria Obra, e que Caetano Veloso, o musico, é muito maior que as próprias musicas [sic], todas lindas, que ele sempre cantou. Existe uma coisa nesse contato humano que a gente provou por aqui durante todo o tempo que é difícil de se traduzir em palavras, dado a profundeza em que me sinto tocada. Esta troca de carinho, de afeto e respeito talvez seja o maior aprendizado que tive nesses últimos tempos, isso fora todo o resto que também aprendi por aqui. Sou extremamente feliz de ter tido esta oportunidade de participar deste blog, de ter conhecido todas estas pessoas maravilhosas, de ter tido esta oportunidade de ver de tão perto Caetano sendo Caetano em toda sua essência, na sua existência pessoal, sem medo de errar, de se corrigir, de se posicionar, de se desculpar, de ser amigo das pessoas. Puxa vida, nunca pensei em ver nada parecido com isso, muito menos de fazer parte disso. Sem duvida [sic] alguma uma experiência única na vida. (comentário de Miriam Lucia, em 30/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Obrigada por convidar a nós, estranhos, para entrar na sua vida virtual por um tempo. Sempre terei uma afeição especial por “Zii e Zie” por conta desse blog. Você foi muito gentil em responder às minhas mensagens.42 (comentário de Barbara, em 13/04/09, ao post “Ricardo Marcelo Release e P.S.”)

Os internautas entendem que esse afeto aparece naturalmente e não representa, de forma alguma, um “fã-clube” de pessoas que simplesmente idolatram Caetano:

Amiguismo Confraria Brodagem Vocês imaginam pessoas convivendo durante mais 6 meses no mesmo espaço sem nenhum sinal de afeto? [...] Agora, imaginar, que isso é uma confraria no sentido católico da palavra, onde pessoas se reúnem para fazer um culto a um santo, é exagero. No geral, o que há é um grande amor por Caetano e pelo que ele produz como artista e pensador. Natural, né? Mas é muito bonito saber que pessoas estão se encontrando graças a esse blog. Joaldo foi o primeiro a conectar o espaço virtual ao mundo físico. O primeiro a não ter vergonha do afeto e do elogio. O único santo cultuado por aqui foi Santo Amaro. [...] (comentário de Fernando Salem, em 04/02/09, ao post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé”)

42 No original, em inglês: “Thank you for inviting us strangers into your virtual life for a while. I will always have a special affection for ‘Zii e Zie’ because of this blog. You have been so kind to respond to my messages”. 103

Outro aspecto notável das comunidades por afinidade é a rápida adesão às novas tecnologias e a consequente quebra de barreiras geográficas, e até de língua:

Comunidades musicais formadas por afinidade podem ser bastante dinâmicas, rapidamente viajando por entre grandes distâncias e adquirindo novos e heterogêneos conteúdos e adeptos. O processo de afinidade acompanha bem as novas tecnologias [...] e ativamente busca expansão além das fronteiras, assim como o engajamento de grandes grupos. [...] A tecnologia se estendeu em grandes redes globais que conseguem atingir o que antes eram consideradas comunidades isoladas. À medida em que tecnologias de comunicação são compartilhadas, evidencia-se a construção de símbolos como websites e conteúdos de vídeo representando a comunidade para um público maior. Ou seja: os fatores tecnológicos formam as comunidades musicais de dentro para fora e nas suas relações com os outros. (SHELEMAY, 2012, p. 375-378)

Em Obra em Progresso, é possível visualizar esse aspecto de quebra de barreiras geográficas e de uso das tecnologias que surge de dentro do blog, seja em diversas regiões do Brasil ou mesmo fora do país. Diversas pessoas se manifestam em línguas diferentes ou até mesmo tentam escrever em português, com ajuda das precárias ferramentas de tradução disponíveis em 2008 e 2009:

Como já foi pontuado por outros aqui mesmo, acho a idéia incrível. Para mim, que estou na Bahia, e não tenho disponibilidade para ver esses shows, curtir “Obra em Progresso” pelos meios digitais é uma forma, mesmo que virtual, de acompanhá-la em sua construção… [...] (comentário de Nico Telles, em 12/06/08, ao post “Caetano e Arnaldo Barnão cantam ‘Totalmente demais’”)

“mesmo que à distância…!” eu moro na [sic] frança, sou fâ [sic] de caetano, (acontece); para vêlo [sic] na estréia de “obra em progresso” mudéi mia [sic] viagem e fiz 350 kms nessa maldita quarta feira de maio… mais [sic] quando cheguei no aterro do flamengo… a produçâo tenhia [sic] cancelado o show. [...] Eu só quería [sic] ouvir Caetano no Brasil! Gostaría [sic] tanto de saber o que ele va [sic] fazer em Marciac. (comentário de Graciela, em 26/06/08, ao post “Lista de Músicas até agora”)

Queria muito estar no Rio para poder assistir!! Se nota uma combinação genial de talentos nesta canção. E a banda Cê soa muito boa como sempre... Já tive o prazer de ouvi-los pela primeira vez em Buenos Aires.43 (comentário de Exequiela, em 16/11/08, ao post “Caetano e Arnaldo Barnão cantam ‘Totalmente demais’”)

Olá Caetano. Estou em Moçambique coordenando a implementação de um programa de educação e tecnologia entre escolas brasileiras e moçambicanas. Este é um país verdadeiramente incrível, porque atravessas o Atlântico durante 8 horas e, ao final, tens a impressão de que chegastes ao Brasil, ou pelo menos a um certo Brasil.

43 No original, em espanhol: “Me encantaria estar en RIO para poder asistir!! Se nota una combinacion genial de talentos en esta cancion. Ademas… la banda CE suena muy bien como siempre… ya tuve el placer de escucharlos por primera vez en Bs As”. 104

(comentário de André, em 18/07/08, ao post “Transorvetão – de Ferrara a Istambul”)

A participação dos estrangeiros é um caso à parte, vez que muitas referências de um blog que fala de música brasileira não são compreensíveis por quem não tem as mesmas vivências culturais – ou, no mínimo, requerem maiores explicações. Porém, o fato de nem sempre entenderem totalmente o que é escrito não os impede de participar. É o exemplo de um comentário em que Caetano afirma amar São Paulo por ser baiano, ao qual a internauta Barbara, norte-americana assídua no blog, confessa não saber responder:

Não consegui entender a última coisa que você me escreveu, então não soube como responder. Você disse: “A única coisa que posso te garantir é que eu amo São Paulo. Mas, você sabe, eu sou da Bahia”. Pensei que tinha perdido algo nos seus posts sobre São Paulo – o link entre ser da Bahia e amar São Paulo. Então voltei e li todos os posts de novo, mas ainda assim não consegui enxergar a conexão. Me senti envergonhada que meu português não fosse bom o suficiente. [...]44 (comentário de Barbara, em 13/04/09, ao post “Ricardo Marcelo Release e P.S.”)

É curioso notar que, apesar de se admitir envergonhada, a cumplicidade adquirida com Caetano e com os demais membros do blog é tamanha que a internauta se sente absolutamente à vontade para falar de suas fragilidades sem se sentir exposta ou potencialmente atacada. Novamente, nota-se aqui um forte laço de afinidade entre os membros da comunidade que se forma ao redor do blog. Se comparado à dinâmica de discussões em redes sociais na atualidade, em que qualquer comentário é motivo para que desconhecidos passem a atacar as pessoas que o escreveram, vemos que o blog carece de qualquer tipo de desrespeito entre os participantes. Há, sim, diversas discussões e discordâncias, mas nenhuma feita de forma violenta; o que reforça tanto o peso da moderação quanto a intimidade que os participantes desenvolvem uns com os outros.

Essa intimidade é desenvolvida através de pessoas que vão citando umas às outras nos comentários, especialmente entre os internautas que comentam no blog de forma mais assídua. Esta dinâmica entre os participantes certamente não foi idealizada e estimulada por Hermano, tendo ocorrido naturalmente logo no início do blog. Um dos prováveis motivos para que isso tenha acontecido é a ausência de Caetano nos comentários durante os primeiros meses. Diante da impossibilidade de interagir com o músico, as pessoas passaram a interagir entre si e também com Hermano.

Já se nota nos primeiros posts de junho de 2008 que as pessoas não apenas comentam, mas usam os comentários para interagirem entre si, seja concordando ou discordando:

Roberto disse: Junho 25th, 2008 at 8:46 pm Gente, eu sei que teria comentários realmente relevantes a fazer diante desse tema, mas eu só quero dizer o seguinte: “O fato dos americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano, é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar.”

44 No original, em inglês: “I didn’t understand the last thing that you wrote to me, so I didn’t know how to respond. You wrote, ‘The only thing I can assure you is I love São Paulo. But, you know, I am from Bahia.’ I thought that I had missed something in your posts about São Paulo – the link between being from Bahia and loving São Paulo. So I went back and read the posts again, and I still couldn’t see the link. I was embarrassed that my Portuguese wasn’t good enough”. 105

Essa vírgula depois de “cubano” não existe, porque não se separa sujeito de verbo em ordem direta numa oração.

Paulo Tabatinga disse: Junho 27th, 2008 at 12:58 pm Roberto, eu entendo que não é obrigado o cara saber as regras gramaticais para poder falar com caetano. eu acho que a maior intenção é o gesto e o sentimento de querer mudar alguma coisa pra melhor, e não só os letrados ou intelectuais são capazes de tais proezas. (grifo nosso)

Em outras vezes, o comentário de um internauta tem a intenção de reforçar a importância do comentário do outro. Tal dinâmica tende a criar um laço entre pessoas que não se conhecem, pois já começam a desenhar um espírito de compartilhamento de interesses que, mais tarde, resulta em sentimento de afinidade entre os membros da comunidade. É o caso de Tyrone Medeiros e Exequiela, como vemos abaixo:

tyrone medeiros disse: Junho 16th, 2008 at 10:45 am Excelente versão com a Karina! Coloque vídeo das canções inéditas também! e as letras novas! [...]

Exequiela Goldini disse: Junho 16th, 2008 at 10:11 pm De acordo com tyrone – seria bom que fossem colocados os vídeos das canções inéditas. [...]45 (grifo nosso)

Não coincidentemente, mais à frente Tyrone e Exequiela se tornam personagens recorrentes no blog, junto a outros tantos como Labi Barrô, Miriam, Barbara, Heloísa, Glauber e Fernando Salem. São justamente pessoas que, desde o início, já se mostram bastante interessadas e que naturalmente vão se unindo em meio aos comentários. Tanto é que, quando Caetano começa a interagir mais no blog, ele próprio replica essa dinâmica de citar os participantes nos comentários, e isso também faz com que as pessoas que já participavam passem a interagir ainda mais, tanto com o artista quanto com os outros.

Se a semente dessas interações começa de forma tímida, circunstancial, quase distante, mais à frente os participantes ficam tão íntimos entre si que dirigem piadas uns aos outros. Isto, às vezes, é destacado pelo próprio Caetano em comentários:

Nando disse: Abril 11th, 2009 at 2:55 pm Vamos por partes como no cozido hahaaaaaa, esse mulato Glaubeleza é foda, me mata de rir aqui.

glauber guimarães disse: Abril 11th, 2009 at 1:48 pm “mulato glaubeleza” hahahahahaha

Caetano Veloso disse: Abril 11th, 2009 at 2:16 pm Mulato Glaubeleza. Adorei essa, Nando. (grifos nossos)

45 No original, em espanhol: “De acuerdo con tyrone- Estaria bueno que coloquen los videos de las canciones inéditas”. 106

Não são só as piadas internas, porém, que denotam essa intimidade. Em verdade, são as discussões entre eles que vão fortalecendo os vínculos: ao exporem suas ideias e encontrarem interlocutores dispostos a interagir, os participantes começam a se enxergar como pessoas que conhecem umas às outras, mesmo que nunca tenham se visto pessoalmente. O vínculo é formado sem fotos ou vídeos, apenas com textos e muitas trocas de referências. Estas discussões ganham bastante protagonismo no blog e, como consequência, as pessoas que mais participam ganham mais visibilidade dentro desse ambiente e também interagem mais entre si, retroalimentando o ciclo.

Esta troca descentralizada de informações e formação de vínculos – os quais podem surgir de qualquer lugar – é característica das dinâmicas em rede, que se propagam no blog de forma não previsível e mutante a cada momento:

Graças à rede, tudo é vínculo, transição e passagem, a ponto de confundirem-se os níveis que ela conecta: que se trate da interação entre elementos, da engendração de uma estrutura por uma outra ou ainda do funcionamento de um sistema complexo. A rede é mobilizável nos três registros que ela engloba: ela é “metaligação”. O conceito da rede define a passagem e a transição. É um – ou mesmo “o” – conceito de passe-partout: ele pode dar conta de toda técnica, teoria ou prática da passagem e da ligação. (MUSSO, 2013, p. 33)

Portanto, a comunidade que se forma em Obra em Progresso se dá na troca de ideias entre os participantes, tendo como estímulo os posts e temas propostos por Caetano, mas comportando-se de modo próprio. As discussões ultrapassam o que o músico e Hermano propõem e criam um ritmo próprio, impulsionadas pela própria vontade dos participantes em interagirem cada vez mais.

Diante de uma comunidade tão participativa e ávida por diálogo, o blog Obra em Progresso foi se transformando em um espaço não apenas para a interação, mas para o surgimento de novas ideias. Ao contrapor discussões entre pessoas com pensamentos diferentes, complementares ou simplesmente análogos, o blog impulsionou o pensamento dialógico, no qual novas ideias surgem da justaposição de elementos diversos.

Essa dinâmica dialógica se dá como resultado da interação entre os diversos membros da comunidade e sua afinidade em torno das temáticas discutidas no blog. Muitas delas citam o fato de que participam do blog como estímulo para conseguirem se expressar mais, tanto dentro como fora do blog. O detonador parece vir sempre da contribuição de outras pessoas, como se isso fizesse com que as pessoas tomassem coragem para dizer o que pensam. Um acaba incentivando o outro, conforme o exemplo do post abaixo, em que uma internauta assume que decidiu falar por conta do comentário que outra despertou:

Leni. Você não passou despercebida não. Também li seu comentário, visitei seu site, instalei o corretor conforme você explica e adorei passar por lá. Foi Vellame quem falou a respeito do corretor. Se não me dirigi a você é porque escrevo pouco. Aqui estou destravando um pouquinho. Caetano é genial. Não deve existir no mundo alguém assim. Além de tantas “iluminações”, mais esta de reunir pessoas maravilhosas, cristalinas e apaixonantes. Estamos aqui pelo que você cita juntas, eu tomei coragem e agora escrevo um pouquinho. O que quero lhe dizer é que aqui é um

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lugar lindo e acolhedor. Gostei de você também e espero que participe mais. [...] (comentário de Réa Silvia, em 08/02/09, ao post “David Byrne & Cindy Sherman”, de 02/02/09, grifo nosso)

Nesse encontro de diferentes perspectivas em que pessoas se estimulam mutuamente, ocorre o que Morin (2011b) denomina “calor cultural”. Uma agitação de ideias que favorece o surgimento de outras ideias, sejam estas sob forma de uma opinião, um pensamento original ou até mesmo inspiração para um poema. Não por acaso, muitas pessoas passam a compartilhar com os outros internautas suas próprias criações, como no caso de Silas, que divide um poema, seu livro, contatos e o endereço de seu blog:

AS LETRAS DE CAETANO VELOSO Poema-Homenagem [...] As Letras de Caetano Veloso tem a subtração Do que desdizem na exato mosaico de fragmentação E nas entrelinhas dizem coisas claras como sumo em pó Criando pêlo em ovo e sol maior sem dó As Letras de Caetano Veloso precisam ser lidas E divulgadas como mensagens de santos suicidas Pois trazem sapiências que só compreenderemos quando Descobrirmos que Caetano Veloso não é um só – mas um bando E diz exatamente um bando loquaz quando Atrás de si, todo elétrico sempre sai soando… [...] Silas Corrêa Leite, Poeta, Educador, Jornalista Autor do e-book (livro virtual) de sucesso O RINCERONTE DE LARICE, pioneiro, único no gênero, de vanguarda, no site http://www.hotbook.com.br/int01scl.htm E-mail para contatos: [email protected] Dados sobre o autor: http://www.itarare.com.br/silas.htm (comentário de Poeta Silas Correa Leite, em 22/06/08, ao post “Caetano canta Cajuína em homenagem a Violeta Arraes”)

É válido questionar se, de alguma forma, esse calor cultural também é detonador de novas possibilidades para Caetano. Observando boa parte de seus comentários em relação aos internautas, notamos que alguns o tocam mais que outros. Dentre aqueles que o tocam, por sua vez, observa-se que provocam no artista uma vontade de dialogar mais e mais, como se para somar suas referências às das demais pessoas. Ou seja: no mínimo, o calor cultural detona novas reflexões sobre temas dos quais Caetano já parece mais disposto a tratar. É o caso do rock, o qual, conforme foi identificado no capítulo anterior, era um dos grandes motores do projeto poético do artista naquele momento. Isto aparece em vários diálogos de Caetano com internautas com maior conhecimento de rock, os quais parecem suscitar no artista um desejo de saber ainda mais sobre o tema, a fim de melhor incorporá-lo em sua obra:

nando, seu conhecimento de rock me entusiasma. eu nunca fui assim. por passar a dar atenção a roberto carlos (e erasmo e wanderléia) e, depois, aos beatles, passei a gostar do rock. ouvi jimmi hendrix, pink floyd, janis joplin, em são paulo 1967/8. vi os stones na inglaterra e passei a achá-los geniais (eles eram, no palco, e têm alguma canções/gravações bacanas). [...] mas minha atenção à tradição brasileira e ao que era criado no brasil tornou- se ainda mais concentrada depois que voltei de londres. fico impressionado com a freqüência de cópias que você aponta no rock brasileiro. sempre achei o cascadura muito rolling stones. e sempre ouvi dizer que o legião era joy division à beça. mas não conheço joy division. ouvi muito the smiths, 108

mas joy division não. notei o desejo de raul de fazer coisas à dylan. amo o disco do sex pistols. vi o clash em paris. mas não conheço bem os discos. dé, do barão vermelho, me mostrou (me deu de presente) “sincronicity” do police e eu adorei. tanto que ainda amei vê-los pela tv no show do reencontro agora. muito musical, unido e energético. tão bom quanto joão bosco cantando “incompatibilidade de gênios” com aquela banda samberklee. e olha que em geral não sou de jazz-fusion: não gostava nem do weather report. [...] mas dou voltas em torno do assunto porque me assustou o tanto de plágio e cópia que há no rock brasuca. sinto-me, em parte, do rock brasuca. mas acho que se deve criar coisas que se destaquem no mundo. o que você listou me faz pensar na mera vontade feladaputa de ser americano. por outro lado, temos de pensar em quanto o simples desejo de imitar pode levar a soluções originais – e a pretensão de ser original pode levar à redundância. [...] em suma, meu desejo seria saber de tudo, mas cultivo relativa ignorância em relação ao rock por economia de tempo [...] e porque minha relação oblíqua com algo tão hegemônico me é vital [...] dos mutantes ao sepultura. conversemos mais. (comentário de Caetano Veloso, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, de 11/11/08, grifo nosso)

É interessante notar que os assuntos que ganham mais vida ao longo do blog não dependem só de Caetano. O que fica e o que se destaca no blog é decidido de forma natural pelos próprios internautas, que escolhem, de um longo post cheio de diversos assuntos, os temas sobre os quais mais querem comentar e interagir. Isso faz com que outros participantes também interajam mais sobre o mesmo assunto, fazendo-o ganhar mais visibilidade, em um movimento exponencial.

São os internautas que intensificam e prolongam determinadas discussões a partir de seus comentários, os quais, por vezes, desencadeiam em Caetano e nos participantes uma vontade de se estenderem sobre o assunto. É o caso da discussão sobre o tema “mulato”, que a internauta norte-americana Barbara conseguiu trazer de volta com força. Muito presente no início do blog (cinco posts no mês de junho de 2008) por conta da canção “Incompatibilidade de Gênios” e dos sambas de Noel Rosa, o tema do “negro” volta rapidamente em 10 de novembro daquele ano no post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, em que Caetano reúne diversos assuntos e acaba citando a origem da palavra mulato. O assunto teria tudo para ficar por ali mesmo, não fosse o comentário de Barbara ao post explicando o que a palavra “mulato” representa nos Estados Unidos, o que incitou uma longa resposta de Caetano no post seguinte:

É interessante notar o número de palavras que há no Brasil para designar combinações raciais. Se tivéssemos algo assim nos EUA, seu uso já teria caído em desuso. Não penso que “mulato” irá voltar um dia, o que é uma coisa boa. Nos EUA, era usada para designar a quantidade de ancestralidade africana ou europeia que um indivíduo possui, o que acredito ser bastante ofensivo.46 (comentário de Barbara, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

Barbara,

46 No original, em inglês: “It’s interesting to note the number of words you have in Brazil for racial combinations. If we have had them in the US, their usage has mostly died out. I don’t think that ‘mulatto’ will ever come back, which is a good thing. In the US, it was used to specify the amount of African or European ancestry that an individual had, which I think is pretty offensive”. 109

gostei da sua explicação de porque “mulato” não lhe agrada. [...] Mas queria te perguntar uma coisa: quais as razões que seu amigo deu para dizer que Obama não se qualificaria como um afro-americano? [...] Este é um tema muito importante para mim, porque há algumas décadas a tendência das pessoas quando pensam em “raça” é imitar as fórmulas norte- americanas. Sociólogos, tanto brasileiros quanto norte-americanos, escreveram sobre os aspectos perversos da “democracia racial” brasileira. [...] Penso diferente. Mas talvez eles tenham um ponto. De qualquer forma, o que mais me interessa são as reais diferenças entre a história do seu povo e do nosso. [...]47 (trecho do post “Tom Zé, Mariana, Barbara & David Byrne”, de 19/11/08)

O assunto ganha força em inúmeros comentários, que vão agregando outros aspectos à discussão que não haviam sido levantados nem por Caetano, nem por Barbara:

A noção de raças humanas tem sido usada não só para estudar e sistematizar as populações humanas, mas também para criar um esquema classificatório que parece justificar a ordem social e a dominação de alguns grupos por outros. Assim, a persistência da crença na existência de raças está ligada à hierarquização dos grupos humanos em uma escala de valor. Nesse sentido, tal persistência é “tóxica”, contamina e enfraquece a sociedade como um todo. [...] nós queremos defender o ponto de vista de que a classificação em raças não tem um papel útil na avaliação clínica do paciente individual e que a medicina brasileira só teria a ganhar banindo-a de seus cânones. (comentário de Miriam Lucia, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

[...] Vocês estão se referindo a uma conotação desta expressão preto de alma branca como um elogio branco a um preto que seria quase um branco, e a conotação que eu sugeri é diferente: um preto não aceito pelo movimento negro como seu representante por ter alma branca (um traço negativo), algo como um preto sem suingue só pra apimentar os preconceitos. Se não me engano Lucia chegou a fazer uma classificação semelhante chamando Obama de mulato mauricinho. A primeira conotação sendo inclusiva porque quer dizer “você é um dos nossos” é cordialmente racista; a segunda, num re-uso da expressão, sendo exclusiva porque diz “você não me representa, não é negão” para mim apenas politiza a situação, traz o que para mim é a ação afirmativa em essência. [...] (comentário de quito ribeiro, em 13/11/08, ao post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”)

Notamos, por fim, que algumas pessoas acabam detonando determinadas reflexões no artista, as quais, talvez, não ganhassem tanto espaço se não houvesse alguém tão disposto a travar uma batalha de palavras com ele. O caso mais notável do blog é o da professora Heloísa. Ela se embrenha por meses e meses em discussões acerca de questões linguísticas com Caetano, o qual assume que, se não fosse por ela, não dedicaria tanto tempo a esse tema:

[...] eu mesmo não sei dizer qual o tom do meu diálogo com Heloísa. Creio que nem mesmo ela saberia, apesar da habitual clareza. Posso apenas

47 No original, em inglês: “I liked your explaining why ‘mulatto’ wouldn’t please you. [...] But I’d like to ask you a question: What were the reasons given by your colleague for not feeling that Obama qualified to be called African-American? [...] This is a theme that’s very important to me, as for some decades now it’s been the tendency of people who think about ‘race’ in Brazil to emulate American formulas. Sociologists, both Brazilian and American, have written about the perverse aspects of Brazilian ‘racial democracy’. [...] I feel differently. But they may have a point. Still what interest me most are the actual differences between your people’s historic experience and our own”. 110

rememorar vaga e provisoriamente as sutis diferenças de opinião em relação aos lingüistas que agridem os divulgadores da gramática. [...] Em geral encrespo pela determinação de me fazer entender: o motivo é o argumento, não a pessoa. Nem mesmo desejo convencer o interlocutor de uma opinião fechada: apenas me debato para que se entenda bem o que minha argumentação, sempre parcialidades de um pensamento em progresso, quer instaurar. No caso de Heloísa, a pessoa só me inspira afeição e respeito. Hoje, por exemplo, lembrei-me de falar que estou estudando com meu filho de 16 anos, ajudando-o como posso nos estudos para as provas de português e literatura – mas também ouvindo-o (a pedido dele) sobre biologia e química, coisas de que não entendo, só para animá-lo a articular as idéias – porque me senti bem lendo de Heloísa que ela queria dizer à filha algo gozado que leu sobre armários desarrumados. Suely tem razão quando diz que Heloísa me leva a pensar e escrever coisas. Isso é afeto espontâneo. [...] (trecho do post “Mulato, Maçã, Candé, 80%, Aleijão, RC e CV CD DVD ACJ”, de 11/11/08, grifo nosso)

Pela análise dessas interações, temos que o blog Obra em Progresso fez surgir uma comunidade organizada em rede. Seus membros formam fortes vínculos entre si e estabelecem uma dinâmica descentralizada, na qual todos podem ter voz e expressar opiniões igualmente e a qualquer momento, sem uma ordem previamente estabelecida. Isso reforça o aspecto de comunidade unida por afinidade, cujos vínculos se fortalecem a partir de um objeto em comum, sem se restringir ao mesmo. Esta comunidade favorece o calor e a efervescência culturais necessárias para a ebulição do pensamento dialógico, o qual permeia as diversas manifestações das pessoas no blog, e até com o próprio artista.

4. Vestígios do processo de criação musical: o que restou das interações na obra artística?

O que se pode depreender de um processo tão numeroso em diálogos e discussões naquilo que Caetano veio a tangibilizar a posteriori, isto é, de que forma o público interferiu naquilo que o artista produziu? Estas são perguntas que envolvem diversos aspectos: o mais óbvio é o da obra que estava sendo apresentada no blog, o novo álbum que viria a se chamar “Zii e Zie”. Há, contudo, outras possibilidades de verificação de materialidades: vestígios dentro do próprio projeto Obra em Progresso (blog e shows) e em manifestações do artista após “Zii e Zie”, vez que se trata de uma criação em processo.

Referente a “Zii e Zie”, destacam-se ao menos três aspectos em que a interferência do público se reflete na materialidade na obra. O primeiro é o arranjo de “Incompatibilidade de Gênios”; o segundo, o nome do disco; e o terceiro, a capa do disco.

O caso de “Incompatibilidade de Gênios” é o único, dentro do blog, em que se pode afirmar que houve interferência direta do público na parte musical do álbum. Conforme já foi explicado no capítulo anterior, durante o processo de gravação em estúdio Caetano e a Banda Cê passaram por várias experimentações no arranjo desta canção, em busca de uma sonoridade transamba/transrock. Estas resultaram em duas opções de arranjo diferentes que foram selecionadas por Caetano em estúdio. Ele anuncia no blog sua intenção de consultar a opinião dos internautas através de votação.

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[...] fui ao estúdio e trouxe todas as faixas do Zii e Zie gravadas – nem todas mixadas: já tenho as duas versões de “Incompatibilidade de gênios” para upload e votação. [...] (comentário de Caetano Veloso, em 04/11/08, ao post “Pedro e sua câmera soviética”)

Pouco mais de um mês depois, Hermano Vianna transforma o que Caetano trouxe do estúdio em dois links no YouTube, e os oferece aos participantes para que manifestem qual arranjo deveria estar na versão final do álbum:

Queridos(as) obreiros(as)-progressistas: Está aberta aqui, em sessão soleníssima, a tão aguardada votação: qual das duas versões de Incompatibilidade de Gênios, esta obra-prima de João Bosco e Aldir Blanc, deve ser lançada em Zii e Zie? A compressão sonora é a do YouTube, sobre a qual não temos controle. Garanto (aqui quem fala é o Hermano) que o som é bem melhor. Mas dá para ter uma boa idéia para fundamentar bons votos (já dei meu voto pro Caetano, não digo aqui qual foi para não ser acusado de manipulador ou abuso de poder...) Estou me sentindo como aquele ministro do Tribunal Eleitoral em cadeia nacional vésperas de eleições! rsrsrsrsrs. Felizes votos conscientes para todos! (trecho do post “A votação da Incompatibilidade”, de 10/12/08, grifo nosso)

Após a escolha da segunda versão, a materialidade é reconhecida pelos internautas mesmo antes do lançamento de “Zii e Zie”. Há a certeza de que a versão ganhadora poderá ser ouvida no álbum, o que revela o elo de confiança que se formou entre o público do blog e Caetano durante o processo:

O que uniu todo mundo foi a votação, é sempre assim, nada como o sufrágil [sic]. Votamsos [sic] e ganhou a 2, vamos ouvi-la no Zizi. [...] (comentário de gil, em 08/09/09, ao post “Papo com Pedro”)

Em relação ao título do álbum, Caetano admite no blog que este surgiu a partir de um livro que ganhou de presente de uma fã, neste caso, alguém de fora do blog:

[...] Mas vocês todos deviam saber o que é Zii e Zie em italiano. Escolhi o nome pela impressão curiosa (e bela) que essas palavras simples causam quando escritas juntas. As encontrei assim na tradução italiana de Istambul, de Orhan Pamuk, que li na ida à Turquia, presente de uma italiana espectadora assídua dos meus shows. É um modo livre, misterioso e revelador de coisas que não sei, de nomear um disco tão lançado à aventura. (trecho do post “Zambujo, Cicero, Augusto, Adorno, Papo à Beça”, de 30/10/08, grifo nosso)

Meses antes desta decisão, durante a excursão internacional citada no post, Caetano já admitia a vontade de ter palavras em italiano como título do álbum, embora não soubesse ainda quais seriam, e já apontava o livro como provável interação:

O título do disco que resultará da obra em progresso não será “Transamba”. Diferentemente de alguns, adoro a palavra. Ela me veio de repente, e logo ligada à lembrança da palavra “transvanguarda”, que ouvi e li tanto nos anos 80 e que designava um movimento italiano na área das artes plásticas. Por causa disso – e por causa de minhas passagens pela Itália nos últimos

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anos – tenho vontade de pôr no disco um título em italiano. Embora não pretenda cantar nada em italiano. Também estou lendo a tradução italiana do “Istambul” de Orhan Pamuk, o que faz o livro ficar duplamente curioso, e lá encontro palavras ou conjuntos de palavras que (sobretudo essas expressões italianas feitas de fonemas repetidos, como “ben bene” ou “pian piano”, “a poco a poco”, “man mano” – embora já saiba que não será nenhuma dessas a escolhida) parecem não ter nada a ver com as canções do disco. [...] (trecho do post “Transamba e Caserta!”, de 25/07/08, grifo nosso)

Apesar de, neste caso, não ter sido o blog a influenciar diretamente Caetano, mas sim uma pessoa fora do mundo “virtual”, os internautas se arriscaram a dar sugestões de palavras em italiano, na intenção de que alguma delas fosse selecionada pelo artista:

sobre o título do disco, poderia ser a palavra italiana “AUGURI”. (comentário de tyrone medeiros, em 04/08/08, ao post “Notas de Caetano”)

Caetanino, aínda [sic] tem a idéia de pôr alguma palavra italiana no título do disco? Nào [sic] é como “man mano” mais [sic] acho que “e cosi via” sería [sic] muito legal. [...] (comentário de alotroladode(l)río, em 24/11/08, ao post “Tom Zé, Mariana, Barbara & David Byrne”)

Em relação à capa do disco, a influência do blog é mais sutil e menos direta, sendo possível identificar alguns sinais de como as discussões do blog estavam relacionadas ao que viria aparecer.

Primeiramente, a fotografia que ilustra a capa é um olhar muito particular sobre a cidade do Rio de Janeiro48: as ondas da praia do Leblon são retratadas sob uma atmosfera mais escura, em um azul mais acinzentado, como se revelasse o outro lado da cidade que sempre se apresenta em sua forma “solar” de cartão-postal. Já foi apontado no Capítulo 2 que o Rio é um dos principais temas do projeto poético do artista no momento de desenvolvimento de “Zii e Zie”, e o quanto essa discussão foi amplamente promovida no blog, inclusive no âmbito político. Nesse sentido, há muitos comentários que contêm uma visão menos fascinada e mais realista da cidade, levando em conta os desafios e as virtudes com a perspectiva de ampliar a visão clichê que se projeta sobre ela:

Atentados contra Salvador e Rio de Janeiro são realizados insistentemente há bastante tempo, e podem ser um dos inúmeros símbolos e razões da decadência que atinge essas duas cidades (e atingindo essas cidades atinge em cheio o Brasil). (comentário de Marcelo, em 17/08/08, ao post “Tipo Typo no Fubá”)

[...] E as canções desse novo disco, sobretudo as que tem como cenário e personagens a capital carioca, são a expressão do que há de melhor nesta feliz cidade, justamente aquilo que se perde por conta dos folclorismos nacionalistas e regionalismos exegerados [sic]. Em outras palavras, o que se vê é a expressão do Rio cosmopolita, cidade-mundo, e cidade do mundo, talvez a nossa cidade mais cosmopolita (que me perdoem os paulistas, mas esta é uma reflexão de um paulista!!!). É como a prosa romanceada de Chico Buarque, ali também se vê a presença do Rio de Janeiro cosmopolita, cidade com diversos gostos e desejos. (comentário de Marcos Aurélio, em 06/08/08, ao post “Samba Transexual”)

48 Ver Figuras 7 e 8, no Capítulo 2. 113

Esta visão é corroborada por Caetano, o qual parece querer demonstrar que há muito mais por trás da cidade onde mora do que os lugares-comuns normalmente usados para descrevê-la, tal como “cidade maravilhosa”. Daí a escolha de um ângulo menos óbvio e mais sugestivo sobre um dos símbolos mais reluzentes da cidade: a praia do Leblon.

Também no blog, aparece a primeira pista de como surgiria esta foto: um post retrata Pedro Sá com uma câmera Lomo, inspirada em antigas máquinas fotográficas fabricadas na extinta União Soviética. Câmeras como essa buscavam trazer um estilo de volta às origens da fotografia manual, a um tempo em que havia menos recursos, oposto à fotografia digital. Tal estilo se tornou febre mundial entre alguns jovens no final dos anos 2000.

Figura 12 – “Pedro e sua câmera soviética”, publicado em novembro de 2008

Fonte: Blog “Obra em Progresso”

Um dos comentários a esse post explica justamente que as máquinas Lomo, como a usada por Pedro, não são mais russas, e sim chinesas, corrigindo Caetano:

Aham. Na realidade a câmera pendurada no pescoço do Sr. Pedro é uma Holga, uma câmera para filme 120 feita em plástico, criada e fabricada na China. Ela nasceu para ocupar o lugar de outra câmera de plástico querida do mundo das artes e não mais fabricada, a Diana, não tendo assim nada de soviética, russa ou “lomo”. As câmeras que podem ser consideradas Lomo são unicamente as fabricadas na planta localizada em São Petersburgo, sendo os modelos Lomo Lc-a, Smena e Smena 8m, Lubitel e outras menos conhecidas. A fábrica Lomo não mais produz nenhuma câmera das mencionadas aqui. São todas feitas na China atualmente, sob licença ou acordo. A Sociedade Lomográfica Internacional “criou” um estilo fotográfico que se apropria de outros estilos realmente criados no passado para servir de marketing para uma “revolução analógica” ou venda de muitos gadgets relacionados a fotografia com filme. Criou e/ou copiou diversas câmeras de plástico e antigas relançando as mesmas sob a asa da dita “lomografia”, sendo as câmeras “lomográficas” as vendidas no site. Então uma holga pode ser considerada lomográfica mas nunca uma Lomo.

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(comentário de Lomógrafo Experiente, em 24/11/08, ao post “Pedro e sua câmera soviética”, grifo nosso)

Meses depois, Caetano revela que a foto da capa surgiu dos retratos tirados por Pedro com essa máquina, a qual passa a chamar de “falsa Lomo”, sob a influência do internauta:

Bem, choveu muito no de setembro a dezembro Rio e havia chuva em “Falso Leblon”, “Lobão tem razão” e que mais sei eu. Pedro Sá, que, como eu contei aqui durante as gravações, tinha aparecido com essa câmera soviética (imitação de um modelo soviético), tirou fotos da gente no estúdio. Além de ser essa falsa Lomo, ele comprou um filme vencido e as imagens saíam bem estranhas e interessantes. Pedi a ele que tirasse fotos do Rio, especialmente do Leblon, num dia de chuva. Ele avisou que dali a dois dias o tempo seria fechadíssimo. Nnao [sic] deu outra. E ele voltou com essa série de fotos do litoral carioca numa tarde muito escura de chuva. Escolhi a que seria a capa imediatamente. Essa com a onda quebrando no Pontão do Leblon (“chuva num canto de praia no fim da manhã”…). Fiz um layout no computador, com as letras nessas posições e nessas cores. Chamei Pedro Einloft para artifinalizar [sic]. E terminamos usando apenas fotos de Pedro Sá tiradas com essa “Lomo”. [...] (comentário de Caetano Veloso, em 29/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Diante da publicação da capa e ao saberem que ela surgiu de temas tão amplamente discutidos no blog, como a visão sobre o Rio, as pessoas exultam e se sentem parte dessa representação, finalmente materializada:

[...] Estou eufórico como muitos de vocês devem estar depois de meses acompanhando aqui a gestação deste disco e de repente a cara dele nos é revelada. A gente se sente participante da empreitada, cúmplice da criação. Quem não está louco para agarrar com as mãos este CD, violentar sua embalagem plástica e botá-lo logo pra tocar e ficar viajando, viajando, viajando?... Comadres, compadres, meus conterrâneos – somos todos habitantes desta mesma nação, a Caetanave Obra em Progresso [...] (comentário de Jary Cardoso, em 29/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Capa espetacular! Rio de Janeiro dos meus sonhos: frio, denso e escuro. (comentário de Marcos Lacerda, em 29/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Contemplando a capa enquanto seu disco não vem. [...] Rii e Rie. Rrr. Zzz. Rrr. O nome da cidade. Qual é mesmo? Seria um murmúrio pré-parto? A cidade vista pelos estrangeiros olhos de um baiano em italiano. [...] (comentário de Renato Pedrecal, em 31/03/09, ao post “Capa”, grifo nosso)

Para além de “Zii e Zie”, a obra em progresso que motivou inicialmente o blog, nota- se que outras possibilidades para interferência do público se abriram diante da dinâmica formada pelos internautas, comprovando que as ideias muitas vezes podem ter uma vida própria para além do que imaginavam seus autores:

Uma vez formadas as construções intelectuais vivem uma vida própria, engajam-se em relações dialéticas com outras “construções" e espíritos humanos. Geram consequências por vezes imprevistas para seus autores... (MORIN, 2011b, p. 137)

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É possível traçar interferências com efeitos materiais no próprio blog e nos shows realizados durante o período em que o blog esteve no ar.

As interferências no blog são mais explícitas e numerosas: tratam-se dos pedidos e sugestões dos blogueiros sobre temas e conteúdos que gostariam de ver publicados no blog. Normalmente estes são atendidos com certa agilidade por Hermano, o qual, mais uma vez, comprova-se como o grande entusiasta da interação desde o início do blog, em junho.

hermano, irmão, brother! estive no show de ontem e ultimo [sic] desta temporada… engraçado mas acho que obra em progresso é linda na medida em que está fincada nas raízes do samba e mbp mas ao mesmo tempo com releituras por vezes interessantes… mas toda a tecnologia ainda não é capaz de um momento de emoção como tive quando caetano e moreno cantaram uma canção que a letra é de caetano e a musica [sic] é de moreno... não sei o nome da canção, não achei a letra, não consegui assitir [sic] o vídeo you tube ou my space, não sei o que motivou a canção só sei que chorei pacas quando eles cantaram… tai trabalho pra ti, work in progress rsrsr. [...] (comentário de nelson, em 19/06/08, ao post “Obra em progresso também no mundo digital”)

valeu pelas sugestões Nelson – todas bacanas – é por aí mesmo que queremos seguir – enquanto Caetano estiver na Europa a Obra continua aqui em pleno vapor – temos muito material para colocar por aqui – inclusive a versão de Sertão com Caetano e Moreno – não conseguimos ainda colocar tudo tão rápido quanto gostaríamos, mas aos poucos vamos progredindo! (comentário de Hermano Vianna, em 19/06/08, ao post “Obra em progresso também no mundo digital”)

Alguns dias depois, em 25 de junho, Hermano atende ao pedido do internauta:

Figura 13 – Frame do vídeo “Caetano canta com seu filho Moreno Veloso”

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Fonte: Canal “Obra em Progresso” no YouTube49

São também inúmeros os pedidos, durante o início do blog, para que Caetano e Hermano falem mais sobre o conceito de transamba que direciona o projeto:

Hermano, não sei se essa pergunta é extemporânea [sic], ou até tola, mas seu escarecimento [sic] é essencial pra mim, no sentido de entender mais profundamente a obra que está em progresso: o que é “transamba”? Há uma definição pra “transamba”? [...] (comentário de Lucy, em 29/06/08, ao post “Obra em progresso também no mundo digital”)

É um dos primeiros temas sobre o qual Caetano se manifesta no blog, provavelmente após Hermano solicitar-lhe que falasse mais, não deixando apenas a cargo dos internautas que “adivinhassem” sobre o que se tratava o mote do novo álbum. Ao todo, foram nada menos que onze posts predominantemente dedicados ao assunto. Obviamente – como tudo no blog – esta dinâmica não se estabeleceu simplesmente por conta de um pedido de uma internauta, mas de uma vontade mútua de debater sobre o tema, o que também conta com a disposição do artista.

As influências dos internautas não ficaram só no blog: ganharam também o mundo dos shows, como no exemplo abaixo, em que uma internauta pede que Caetano e Moreno cantem uma canção específica no show:

Para semana que vem sugiro que Moreno cante “How Beautiful Could a Being Be” que eu adoroooo! Ele deve fazer alguma coisa do Cê… afinal produziu o CD… quem sabe não acompanha o pai em “Rocks”? Música que até agora não entrou em nenhum show, mas devia e já que esse será o último… ah garanto que Davi arrasaria nas guitarras! (comentário de Luisa Capurro, em 13/06/08, ao post “Próximos convidados de Obra em Progresso”)

A sugestão foi atendida em um dos shows em que Davi Moraes e Moreno Veloso atuavam como convidados especiais e publicada no canal Obra em Progresso no YouTube, no dia 30 de julho de 2008:

Figura 14 – Frame do vídeo “Caetano toca ‘How Beautiful could a being be’”

49 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 117

Fonte: Canal “Obra em Progresso” no YouTube50

Houve também ao menos um momento em que o público assíduo do blog influenciou diretamente os comentários feitos pelo artista no show Obra em Progresso. Um casal de internautas fez chegar a Caetano uma entrevista com Lobão no “Jornal do Brasil”, em que ele o citava, conforme relatou Hermano:

[...] Desta vez Marcelo Roselli, marido de Giovana Chanley (musa deste blog), teve papel fundamental. [...] Foi ele quem descobriu a entrevista do JB com Lobão e mandou o texto para o Caetano. O jornal chegou no camarim momentos antes do início do show, mas acabou “costurando” seu roteiro, desencadeando novas situações provocantes (em vários níveis, e referentes a múltiplas discussões) de “stand-up comedy”. Tudo vai aparecer em vídeo e em breve por aqui. (trecho do post “Letras e Shows atualizads”, de 20/08/08, grifo nosso)

Alguns dias depois, Hermano publica no canal de Obra em Progresso no YouTube o vídeo “Caetano sobre Lobão”, que retrata o artista lendo o jornal e comentando suas impressões, cujo texto transcrevemos abaixo:

Essa canção que eu acabei de cantar chama-se “Lobão tem razão”. Curiosamente hoje saiu uma entrevista do Lobão na primeira página do caderno B do Jornal do Brasil, que é um jornal que existia aqui no Rio de Janeiro e ainda existe. E é muito curioso: eu fiz essa música e gostei pra caramba dela. Mas aí justamente hoje no dia da estreia do show, que eu abri com essa música que eu já tinha ensaiado para abrir com ela, e peguei aqui e tinha assim (abre o jornal): “Estou de saco cheio da zona sul do Rio”. É o título. Aí pensei: pô, tou estreando no Leblon com uma música que o título é “Lobão tem razão”. Aí o cara pergunta assim: “por que você se mudou para São Paulo?” “Cara, eu adoro o carioca da zona norte, mas o da zona sul eu tou de saco cheio”. Eu fiquei meio desconfiado, porque já morei na Zona Norte, mas o Lobão não. “Fui criado em Ipanema, ia ao píer nos anos 70, conheço meu pessoal. Eu não tenho assunto com ninguém do Rio, nem gosto desse modelo do cara bombado com a orelha parecendo uma couve-flor”. Parece que os cariocas todos são assim, mas não são não. Curiosamente a canção fala “Lobão tem razão” e é uma canção muito sentida, como vocês devem ter notado e responde a uma canção dele, uma canção que ele fez pra mim, e o negócio dele falar mal de mim muitas vezes e tal. Mas aí ao mesmo tempo sair uma entrevista no mesmo dia achei que era uma ironia muito grande em cima da minha ironia, porque pode ficar parecendo que dou razão a qualquer coisa que ele diz, mas não é. Ele diz assim: “No Rio você vê advogados falando igual a idiotas, dizendo merreca ao invés de falar em dinheiro”. Parece que em São Paulo os advogados não erram plural, não fazem nada. E ele fala que o João Gilberto cortou até “nem sempre se vê lágrimas no escuro” da minha música – dele. Mas o João Gilberto não cortou essa frase, ele canta essa frase, o João Gilberto cortou “nem sempre se vê mágica no absurdo”, porque ele achou meio estranho cantar mágica no absurdo, mas lágrimas no escuro ele gravou. Então o Lobão nem sempre tem razão. Ele fala por exemplo assim: “tem que dessacralizar essa coisa da bossa nova, que não passa de uma punheta que se toca de pau mole”. Aí o cara pergunta: “mas você não gosta da Bossa Nova?” E ele diz: “Bossa Nova é uma língua morta, assim como essas bandas de choro e samba que existem hoje, que ficam tocando naquele lugar sujo que é a Lapa”. As duas músicas novas que eu fiz uma se chama Lobão tem razão e a outra chama-se Lapa, que é uma exaltação à Lapa. Ele fala assim: “Tem que parar com essa coisa de ficar lambendo o saco de universotário [sic] marxista branquelo. Essa

50 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 118

coisa loser manos. Petista que virou maioria no Brasil. Porque o Brasil é o país da culpa católica, um país em que se valoriza as pessoas feias”. E aí tem uma foto do Lobão aqui... Mas o negócio interessante, o sujeito fala assim: “E o Gilberto Gil, o que você achou da saída dele do ministério?” Ele fala: “Gil fala muito embolado”, não sei o que lá, “o Caetano é que é legal”. Pô, aí achei que eu tinha pelo menos que comentar isso aqui, não ia nem comentar logo de cara, mas acabou a canção. Poxa, essa canção saiu tão clara, todo mundo ouviu perfeitamente bem o que eu queria dizer... Então eu vou ler logo trechos da entrevista com o Lobão. As partes mais fortes eu saltei. (VELOSO, 2008)

Cabe observar que essa interferência não seria possível se não houvesse uma ligação entre o mundo virtual e o material, isto é, se estes internautas não vivessem no Rio e não tivessem formas de fazer a reportagem chegar a Caetano no mesmo dia. Ainda assim, é valido destacar que as interferências saíram do digital e influenciaram a performance do artista justamente porque, ao se comunicar com as pessoas no blog, Caetano abriu uma brecha entre ele e sua audiência. Neste caso em específico, os internautas souberam pelo blog que uma das novas músicas se chamava “Lobão tem razão” e que ela seria apresentada no show. Daí a ideia de levar o jornal até ele.

Este é o fenômeno que Johnson (2011) denomina serendipidade, isto é, as coincidências fortuitas que impulsionam o surgimento de novas ideias. Segundo o autor, não há nada de místico ou mágico: simplesmente, quando um indivíduo está buscando criar algo inovador, ele acaba se abrindo mais a olhar para fatos e informações que em outros momentos não chamariam sua atenção. No caso de Caetano, ao divulgar a obra em andamento no blog, fomentou a serendipidade, abrindo a possibilidade de que pessoas fora de sua convivência habitual trouxessem suas referências.

Por fim, é possível encontrar vários vestígios de materialidade na obra e em outras expressões de Caetano após “Zii e Zie”. Isto é possível porque se entende o processo de criação dentro do princípio peirceano da continuidade:

A natureza inferencial do processo significa a destruição do ideal de começo e fim absolutos. Para essa discussão, a ênfase recai com maior força na impossibilidade de se determinar um primeiro elo na cadeia; no entanto a constatação de que o ato criador é uma cadeia implica, necessariamente, em igual indeterminação de últimos elos. É sempre possível identificar um elemento no processo contínuo como sendo mais próximo do ponto inicial e toda parada é, potencialmente, uma nova partida. (SALLES, 2011, p. 94)

Dentro do álbum seguinte, “Abraçaço”, há inúmeros temas discutidos no blog que se repetem. São tanto uma prova do aspecto processual da criação e do projeto poético em que o artista estava envolvido, quanto dos efeitos que as discussões lhe provocaram.

A sonoridade do álbum parece seguir a direção iniciada em “Cê” e intensificada em “Zii e Zie”. O projeto de transamba/transrock se manifesta novamente na mistura sonora que promove as notas de samba mais aceleradas com riffs de guitarra de rock indie. A temática do transamba pode ser identificada na letra de “Funk Melódico”:

Mulher indigesta você só merece mesmo o céu Como está no samba de Noel.

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A canção cita versos de Noel Rosa, o qual havia sido muito citado no blog em posts como “Feitiço da Vila é uma canção racista?”, gerando uma discussão ao redor do tema do “negro”.

As letras são um pouco menos intimistas, têm um olhar voltado um pouco mais para o mundo, e não só para o Rio, mas trazem de volta temas que haviam aparecido no blog.

Na letra de “A Bossa Nova é foda”, primeira canção do álbum, surge a palavra “neocarnaval”. Trata-se de um tema que havia sido bastante discutido no blog. A volta do carnaval de rua no Rio esteve presente em diversos posts do artista, e também em comentários dos internautas:

Na canção “Lapa” há muito do que penso sobre o Rio hoje. Como vejo sua força, sua potência. O renascimento dos blocos no carnaval é outro sintoma. [...] (trecho do post “Déjà vu”, de 24/03/09)

O Rio, enquanto isso tratou de se redescobrir. Samba, choro, Lapa e espetáculos recuperado marchinhas de carnaval. É bem interessante esse momento. [...] (comentário de Fernando Salem, em 13/04/07, ao post “Ricardo, Marcelo, Release e P.S.”)

Há também referências explícitas à linguagem da internet – com a qual o artista ganhou bastante intimidade após a experiência com o blog – em três canções do álbum. Em “Parabéns”, a frase “tudo mega bom giga bom tera bom” reflete diretamente a métrica usada para o tamanho dos dados na rede (megabytes, gigabytes, terabytes). O solo de “Funk Melódico” imita o som do acesso discado, comum nos primórdios da internet. A letra de “Abraçaço” menciona os “computadores-luz”, no contexto de abarcar um pedaço do universo com um laço, ou seja, de aspirar a algo da universalidade por meio dos computadores, conforme o próprio artista explica no Twitter:

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Figura 15 – Caetano Veloso explica a origem da palavra “Abraçaço”

Fonte: Twitter de Caetano Veloso51

A temática sobre o Rio volta a aparecer, embora com menor intensidade que no álbum anterior. Apenas a canção “Estou Triste” fala diretamente sobre a cidade, no verso:

O lugar mais frio do Rio é o meu quarto

Já na letra de “Quando o galo cantou”, há a frase “deixa o pagode romântico soar”, referência direta a declarações de Caetano no blog como “a melhor coisa do mundo é pagode baiano”, ou ao post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé”, em que o artista analisa o fenômeno dos grupos que tocam esse estilo:

[...] Há a virtude geral do neo-pagode: as variações sobre a célula da chula (“Psirico bate madeira, é viola: então cole na corda”). Essa característica, que vem desde o Gerasamba é um acontecimento importante em si. [...] (trecho do post “Pretubom Psirico Fantasmão Parangolé”, de 08/02/09)

A discussão sobre o negro na sociedade contemporânea aparece novamente na canção “Um Comunista”, em homenagem a Carlos Marighella, retratado como “um mulato baiano”. Esta canção, junto a “O Império da Lei”, retoma também a questão política, agora em outro contexto que o das eleições cariocas e americanas: as letras falam da ditadura militar brasileira iniciada em 1964 e dos assassinos de aluguel do Pará, respectivamente.

A canção “Vinco” brinca com a sonoridade das palavras em castelhano: “palavras castelhanas lhanas lhanas”. A questão das línguas estrangeiras foi bastante comentada pelo artista no blog, dada a presença de internautas de fora do Brasil, dos quais se destaca a argentina Exequiela, a quem Caetano sempre respondia os comentários em espanhol.

51 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 121

Para além da obra musical, há diversas evidências de que a empreitada de Caetano em dialogar com o público na experiência transmídia Obra em Progresso se traduziu em uma nova fase para o músico. Além de se reinventar musicalmente com a Banda Cê, o fato de o artista se colocar mais próximo às pessoas e dialogar mais diretamente com elas por meio do blog lhe ajudou a ganhar passe livre em cenas culturais consagradas apenas a artistas mais jovens.

Nomes consagrados da MPB, como Chico Buarque ou mesmo Gilberto Gil, embora muitas vezes sejam respeitados pelas gerações mais jovens, costumam ambientar seus shows em um determinado tipo de local mais propício a audiências maduras, com mesas, cadeiras e serviços de garçom, em detrimento de pistas em que todos se aglomeram em pé. Caetano, após a “trilogia do rock”, passa a subverter esse rótulo.

Uma forte evidência disto é que o show de lançamento de “Abraçaço” aconteceu no Circo Voador, espaço do bairro carioca da Lapa conhecido por atrações para jovens, especialmente de rock. Ou seja: em vez de palcos tradicionais como o Vivo Rio ou o Oi Casa Grande – os quais hospedaram Obra em Progresso – em que a plateia normalmente fica sentada, Caetano e a Banda Cê passaram a tocar em redutos roqueiros, normalmente frequentados por uma plateia mais jovem, que assiste aos shows em pé. Pessoas mais jovens passaram também a produzir e a vender produtos relacionados às letras de “Abraçaço”, como “A Bossa Nova é Foda”, manifestando um forte elemento de identificação:

Figura 16 – Camiseta “A Bossa Nova é foda”

Fonte: Camiseteria52

Outra decorrência interessante é o fato de uma das canções de “Zii e Zie”, “Tarado ni Você”, virar inspiração para um bloco de carnaval paulistano, fundado em 2014, mesmo ano em que começa a despontar o fenômeno do carnaval de rua em São Paulo, também dentro da cena jovem. Ressalta-se novamente que o tema do carnaval, em especial quanto aos blocos de rua, foi amplamente discutido no blog.

52 Disponível em: . Acesso em: 18 out 2016. 122

Figura 17 – Bloco de carnaval paulistano “Tarado ni Você”

Fonte: Portal R753

“Tarado ni Você” foi a primeira música composta para “Zii e Zie” durante o carnaval de Salvador em 2008. A batida de carnaval inspirou a música, cujo ritmo inspirou a letra que fala:

tarado ni você ni mim no Carnaval

Faz ainda referência à marchinha de carnaval “deixa eu gostar de você” que é parte da letra de “Nosso Estranho Amor”, tocada no primeiro show de Obra em Progresso. Caetano ressaltou no blog que, para ele, essas coisas estão todas interligadas. Ao explicar essas ligações, ele declara não saber se a plateia nos shows vai entender o porquê de tais conexões. Mesmo que indiretamente, de fato isto inspirou uma manifestação concreta no próprio carnaval.

Finalmente, chega-se à questão da política, tão discutida no blog Obra em Progresso. Este tema nunca representou um universo tão óbvio para Caetano quanto para os chamados artistas engajados, como, por exemplo, Chico Buarque. Mesmo tendo enfrentado alguns problemas durante a Ditadura Militar nos anos 70, o artista era frequentemente tachado de “alienado” e expressava opiniões tão amalgamadas quanto suas referências, tornando difícil rotulá-lo como de direita ou esquerda – algo tão essencial à época.

Isto muda bastante a partir do final dos anos 2000. Já vimos que Caetano assumiu no blog uma posição política mais declarada ao apoiar Gabeira e manifestar sua admiração por Lula, FHC e Obama. Esse movimento de explicitar mais claramente sua posição política, o qual já se anunciava no blog, passa a ser ainda mais presente de uns anos para cá. Em uma foto que causou bastante polêmica, no auge das manifestações de 2013, Caetano aparece vestido como um representante do movimento Black Bloc. Ele a publica em seus perfis no Twitter e no Instagram, com a seguinte mensagem:

Em favor da paz, no dia 7 de setembro, todos deveriam sair mascarados como no carnaval, respondendo à violência simbólica, sem usar a violência.

53 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 123

Proibir o uso de máscaras numa cidade como o Rio de Janeiro é uma violência simbólica.

Em artigo de “O Globo”, Caetano declara também ter se reunido com o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro em favor de manifestações pacíficas e um tratamento menos truculento por parte da polícia aos manifestantes (DE ROSTO..., 2013).

Figura 18 – Caetano se veste de Black Bloc

Fonte: Portal G154

Mais recentemente, em meados de maio de 2016, diante da intenção do governo de Michel Temer em extinguir o Ministério da Cultura, Caetano se juntou a outros artistas, manifestantes e políticos no movimento “Ocupa MinC”, que ocupou durante quase um mês o Palácio Gustavo Capanema em protesto. Caetano foi uma das grandes atrações da ocupação e aparece em foto ao lado de integrantes do PSOL como Marcelo Freixo e Jean Wyllys:

Figura 19 – Caetano durante o “Ocupa Minc” com Marcelo Freixo e Jean Wyllys

Fonte: YouTube55

No entanto, mesmo em meio a tantas manifestações diretas e indiretas de que o blog gerou efeitos materiais em seu processo criativo e lhe possibilitou o diálogo com pessoas de universos distintos aos quais estava inserido, Caetano não parece dar tanta

54 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 55 Disponível em: . Acesso em: 18 out. 2016. 124

importância ao que aconteceu ali, nem a como essas experiências lhe afetaram. Em entrevista ao jornal “O Globo”, alguns anos após o término do blog, o artista compara, ironicamente, a sua experiência em escrever para o jornal à que teve em Obra em Progresso:

Postava textos longos e cheios de temas de debate no blog e muitos escreviam discutindo. Mas nunca encontrei uma pessoa sequer que, nas ruas, me falassem do que era dito ali. Depois do primeiro artigo que escrevi para O GLOBO (sobre o Pelourinho, que Xexéo pensava que só interessaria a baianos), as pessoas me paravam no estacionamento no Leblon ou na fila do aeroporto para falar da coluna. Fiquei com a impressão de que só acompanham blogs pessoas que não vão à rua. (VELOSO, 2014b, grifo nosso)56

Pela análise do blog, é possível perceber seu tão propagado gosto por afirmações contraditórias. Talvez não se lembre, porém ele mesmo relata no blog ter se encontrado com uma internauta pessoalmente:

Encontrei Luedy pessoalmente. Ele veio com uma professora de linguística irresistível. Ela falava bem e era paciente quando eu a interrompia. Luedy quase não falava. Paquito, o amigo músico que nos apresentou, às vezes puxava o assunto para longe do tema central. [...] (trecho do post “Carnaval”, de 21/02/09)

Ao mesmo tempo, isto levanta a questão sobre a quantidade de leitores em blogs e em jornais, sejam eles digitais ou não.

Outro internauta comenta no blog que encontrou Caetano e ouviu o álbum “Zii e Zie” em primeira mão, fato que não foi contestado em nenhum momento pelo artista:

moçada, ouvir o disco lá com caetano foi maravilhoso, comentando partes, falando outras coisas… eu tava no lugar certo na hora certa, nunca vou esquecer. mas foi um teaser, um aperitivo. daí tô até agora só querendo ouvir esse disco e nada me satisfaz plenamente, hahahaha. sério mesmo, uma tortura. nem tenho ouvido muito som… e não me contento mais com os videos do ytube, hahaha (comentário de glauber guimarães, em 29/03/09, ao post “Capa”)

Já Hermano Vianna parece ter uma visão mais otimista em relação ao processo de diálogo formado no blog, ainda que não enxergue qualquer efeito disto anos depois:

Mais uma de nossas aventuras sólidas que se desmancharam no ar foi o blog “Obra em progresso”, que acompanhou a criação do disco “Zii e zie”, e formou uma comunidade (ainda recebo email de Labi Barrô) com conversa de consistência poucas vezes ouvida na internet (talvez por causa de minha moderação antipática, que nem pestanejava ao apagar qualquer trollagem). Procurei mas não encontrei nem vestígio online do que produzimos por ali. Talvez esteja armazenado em algum hard drive desligado da nuvem. Mas decidi cessar as buscas. Foi bom enquanto durou.57 (VIANNA, 2012)58

Em que podemos concluir que, muitas vezes, o impacto de um processo de diálogo e discussão como o que ocorreu em Obra em Progresso não acontece de forma

56 Ver Anexo 3. 57 Certamente após esta data Hermano encontrou o blog, vez que foi ele mesmo quem nos direcionou ao “Arquivo Web da Língua Portuguesa”, que hospeda o backup do blog até a presente data, 22 out. 2016. 58 Ver Anexo 3. 125

consciente para os envolvidos. Ainda assim, a correlação entre os temas discutidos no blog e diversos elementos criativos observáveis, durante e após o seu término, deixa evidente que é possível mapear vestígios de materialidade que surgiram e impactaram a obra de Caetano Veloso a posteriori.

Porém, mais uma vez, observamos que o ponto principal da dinâmica estabelecida no blog foi a observação da intensidade de interações estabelecidas por um determinado período de tempo. Este foi o motor principal da formação e ampliação da comunidade que se constituiu em torno da experiência transmídia Obra em Progresso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao tomarmos em perspectiva toda a análise desenvolvida ao longo destes três capítulos, o primeiro ponto a se destacar é que houve uma evolução do problema de pesquisa, o qual havia sido formulado da seguinte forma: como a materialidade de uma obra artística transmidiática reage ante os processos de interação com o público?

Esta pergunta tinha por objetivo investigar de que maneira a interação entre pessoas e o artista durante o desenvolvimento de uma obra poderia interferir, direta ou indiretamente, na materialidade da mesma. Porém, conforme a pesquisa evoluiu, percebemos que esta era apenas uma das possíveis decorrências de um rico processo de interações entre pessoas, o qual rendeu frutos próprios, muito além daqueles imaginados inicialmente pelo criador do blog, Hermano Vianna, e pelo artista Caetano Veloso, seu protagonista.

De um mero espaço em que eram disponibilizados em primeira mão trechos da obra que estava sendo desenvolvida, replicando o que acontecia nos shows, o blog se revelou um local de efervescência cultural, propício ao surgimento do pensamento dialógico que favorece a inovação. Ocorreram intensas e profundas discussões acerca de música, arte, cultura, política e sociedade, incluindo comparativos entre o Brasil e outros países, os quais foram enriquecidos por participantes estrangeiros.

Partindo das discussões que observamos no blog, foi possível encontrar vestígios de materialidade na obra “Zii e Zie” e em obras posteriores, conforme nos propusemos no início da pesquisa. Contudo, ao nos debruçarmos sobre o objeto, outras facetas foram reveladas, e isto nos permitiu observar múltiplos aspectos do processo de criação do artista, não somente da obra que estava sendo desenvolvida. A pergunta naturalmente evoluiu para: em uma experiência transmídia, o que os processos de interação com o público podem oferecer de informação sobre o processo de criação de um artista? Trata- se de uma pergunta mais abrangente, capaz de abarcar a multiplicidade de manifestações que encontramos no blog e que foram muito além de aspectos relativos ao desenvolvimento de obras musicais.

Em relação às hipóteses iniciais formuladas, foi possível verificar se eram válidas ou não.

A primeira hipótese era: “O processo de interação do público com o artista em Obra em Progresso interferiu de forma contundente na criação transmidiática, de modo que é possível traçar uma genealogia precisa do que foi aportado pelo público na materialidade dessa obra”. Esta hipótese se revelou falsa: muito embora tenha sido possível identificar, em determinados aspectos da obra artística, elementos que haviam sido levantados nas discussões, essa interação não ocorreu de forma contundente e raramente foi precisa. Poderíamos dizer que é bastante provável que o álbum fosse bastante similar ao que se tem hoje mesmo sem a interação do público. Isto porque a experiência transmidiática, a qual se deu nos shows e no blog, acabou se revelando menos produtiva para discussões sobre aspectos da obra e mais profícua para a aproximação do artista ao público, estabelecendo um diálogo próximo para com o mesmo. Essa interação gerou efeitos no artista, como pudemos verificar em diversos momentos da pesquisa. Ao se colocar em um processo favorável à serendipidade, o

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artista está sujeito a ser transformado, e é de se supor que isto tenha consequências em seu processo criativo e em sua obra. Este aspecto de transformação do artista junto a seu público foi possível de ser observado não só nas obras artísticas, mas principalmente na forma como Caetano passou a se relacionar com o público após a experiência no blog. Porém, isto é menos visível na obra em si, ou seja, no álbum “Zii e Zie”.

A segunda hipótese foi formulada como: “O processo de interação do público com o artista tem efeitos que se fazem sentir para além de uma dada obra, vez que a criação ocorre enquanto processo e, portanto, tem continuidade em outras obras”. Esta hipótese pode ser considerada verdadeira: em quase todas as canções do álbum “Abraçaço”, posterior a “Zii e Zie”, foi possível identificar elementos similares aos que surgiram nas discussões do blog. Foi possível verificar consistência temática entre as letras do álbum e as interações de Caetano com o público no blog (o papel do negro na sociedade, a política brasileira e internacional, etc.). A própria internet, palco principal das conversas entre o artista e as pessoas, passou a ser retratada no álbum, seja em vocabulário (bytes) ou sonoridade (solo que imita a internet discada).

Para além destas hipóteses, porém, a pesquisa pôde revelar aspectos que não havíamos imaginado de início e que se manifestaram como determinantes para a experiência transmidiática, quais sejam, o projeto poético e os aspectos comunicativos.

Constatamos que o projeto poético de Caetano Veloso é marcado pela inquietude. Se isso muitas vezes se manifesta na já caricata persona polêmica que o artista assume publicamente, em outras, de forma mais sutil, é o que o impulsiona em direção a sucessivas tentativas de reinvenção. Um dos grandes propulsores de renovação para o artista é a coletividade. Neste ciclo, denominado por alguns de “trilogia de rock”, isto foi representado por meio da formação da Banda Cê e pelo próprio modo de produção do álbum “Zii e Zie”, que agregou as experiências nos shows e no blog. O artista se colocou disponível a experiências nunca vividas antes justamente para pôr fim a um processo de certo fastio criativo. Com isso, aproximou-se de novas gerações de músicos e também conquistou públicos diferentes, mais jovens.

Vimos, ainda, que houve um interessante contraponto entre a classificação temática do blog e os posts que tiveram maior quantidade de interações. Podemos afirmar que os nove temas recorrentes encontrados traduzem os assuntos que Hermano e Caetano trouxeram para discussão, enquanto a quantidade de interações em cada tema nos oferece o termômetro do que o público pretendia discutir.

A partir deste mapeamento, foi possível traçar a dinâmica dos aspectos comunicativos entre artista e público. Esta dinâmica foi manifestada explicitamente entre duas forças no blog: autores e participantes do blog. Nem tudo o que os autores trouxeram rendeu discussões, como foi o caso dos temas “Processo de Criação” e “Participação Especial”, os quais ganharam menos comentários e não geraram grande profundidade de discussão. Por outro lado, temas que não representaram a maior quantidade de posts, como “Negro” e “Cidades”, tiveram proporcionalmente uma quantidade maior de interações. Isto demonstra que, apesar de o blog ter uma direção determinada por Hermano e Caetano, a repercussão dos assuntos trazidos se transformava naturalmente em um balizador a favor ou contra determinados temas, pelo simples fato de gerarem menos ou mais interações.

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Observamos também que nem todas as solicitações do público foram atendidas pelos autores: muitos comentários não eram respondidos, e Caetano escolhia os comentários e as pessoas com as quais quis interagir mais, de acordo com seu interesse naquele momento. Em contrapartida, muitas pessoas começaram a estabelecer diálogos entre si sobre temas que lhes interessavam, independentemente de serem respondidas pelo artista.

Este contínuo equilíbrio de forças foi o que deu vida ao blog e manteve o público engajado durante seus quase onze meses de existência. Uma dinâmica que propiciou também fortes ligações afetivas entre pessoas que sequer se conheciam pessoalmente, unidas ao redor de um propósito em comum, o qual culminou na formação de uma ativa comunidade regida por uma mesma afinidade musical.

O tempo da criação não se limitou ao que era a proposta original do blog e nem mesmo ao álbum que o inspirou. Em realidade, o tempo da criação, por não ser exato e tampouco linear, pode se estender para além de uma obra específica. É o que observamos ao traçar as materialidades passíveis de observação a partir das discussões do blog: um bom número delas ocorreu após o lançamento do álbum “Zii e Zie”. Dado que o tempo de criação possui ritmo próprio, idas e vindas, e percurso errante, é possível que os efeitos das interações geradas no blog ainda se façam notar em outras manifestações do artista daqui para a frente.

Portanto, temos que o maior legado dessa experiência para o artista não se traduziu na especificidade da obra, mas em um conjunto de reflexões e diálogos que o aproximou de seu público e impulsionou sua trajetória artística em direção a novos rumos. Isto só foi possível, contudo, porque houve uma clara predisposição do artista em buscar esta renovação, algo que observamos ser um traço característico de sua personalidade e de seu projeto poético de então. Nesse sentido, Obra em Progresso, tanto os shows como o blog, foi apenas uma das novas experiências buscadas pelo artista. Concomitantemente, ele também se dispôs a formar uma nova banda, circular em ambientes da nova cena musical carioca, buscar outras referências musicais como o rock, apresentar-se em locais diferentes dos consagrados aos medalhões da MPB, dialogar com movimentos políticos e de expressão popular, entre outros, como observamos ao longo desta pesquisa.

Ou seja, ao entendermos que a pergunta da pesquisa era mais abrangente do que a obra “Zii e Zie”, pudemos abarcar informações para além do álbum e observar o que a experiência transmídia Obra em Progresso ofereceu de informação sobre o processo de criação de Caetano Veloso, inclusive antes e depois da obra em questão.

Além desta importante evolução na trajetória da pesquisa, a segunda conclusão que pudemos chegar foi relativa às mudanças observáveis nos modos de produção transmidiáticos em relação aos tradicionais. De fato, logo de início pontuamos que os processos de interação de autores com terceiros durante o processo de criação não constituíam novidade e nem eram exclusivos ao advento da internet. Portanto, o que realmente pode ser considerado um modus operandi próprio aos meios digitais na colaboração de pessoas com artistas?

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Um dos aspectos mais facilmente observáveis é a exposição do artista diante de pessoas fora do seu círculo habitual de convívio. Isto, obviamente, não é exclusivo à internet, afinal há artistas que se propõem a interagirem com desconhecidos como um modo de produção artística, como é o caso de Marina Abramović, por exemplo. Porém, na internet isso ocorre de maneira mais fluida e natural, além de multiplicar as possibilidades de pessoas com as quais o artista pode conviver ao mesmo tempo. Sem os meios digitais haveria uma certa limitação física para que a mesma dinâmica acontecesse.

Na mesma linha, a quebra das barreiras geográficas e de idioma é intensificada nos meios digitais. Por não depender de um ambiente físico, pessoas de diferentes lugares conseguem se encontrar com facilidade em um ambiente virtual e dialogar entre si. Mesmo a questão de línguas diferentes é facilmente resolvida diante das ferramentas de tradução – apesar de não serem perfeitas do ponto de vista gramatical, cumprem a função de fazer pessoas que não falam o mesmo idioma se entenderem minimamente. Novamente, já era possível aproximar pessoas de estados e países diferentes antes da internet; elas poderiam ser trazidas de avião, poderia haver um tradutor simultâneo, etc. Porém, seria bem mais difícil conseguir a mesma disponibilidade de tempo e comprometimento para tais interações, ao passo que, com o blog, basta que se dedique um determinado tempo do dia, sem que ao menos se tenha que sair de casa.

Do ponto de vista da interação com o artista, alguns aspectos se destacam: o ambiente da internet, para o bem e para o mal, dispõe de menos filtros. Por não estarem fisicamente na presença um do outro, as pessoas muitas vezes expressam pensamentos e sentimentos que jamais teriam coragem de fazer em outro ambiente. Isto coloca o artista em contato com as pessoas de forma mais crua e direta, permitindo que receba estímulos quentes e em estado bruto. No caso de Obra em Progresso, existia apenas um filtro: a moderação de Hermano Vianna. Mesmo diante disso, as pessoas se manifestavam de maneira bastante espontânea, exibindo elementos de oralidade, assim como faziam os próprios Hermano e Caetano.

Outro aspecto relevante é o estabelecimento de uma dinâmica de rede, em que a comunicação ocorre de forma não linear, sem obedecer a uma hierarquia. Se por um lado Caetano funciona como um forte “atrator cultural” e sua participação determina o engajamento no blog, por outro, os participantes também têm voz ativa e acabam determinando os rumos da discussão. Isso seria bastante difícil de acontecer em uma dinâmica fora do mundo virtual, visto que haveria limitações de ordem física, como a sobreposição de vozes que impediria as pessoas de se escutarem, conforme muitas falassem ao mesmo tempo. Basta comparar a dinâmica do blog aos shows de Obra em Progresso: apesar de muitas das temáticas serem parecidas e de Caetano também se colocar próximo à plateia, é muito mais difícil para o público interagir nestes últimos. Mesmo quando o fazem, não é da forma concomitante entre muitas pessoas, como no blog.

Ainda, nota-se a aproximação entre pessoas que não se conhecem e nunca se viram pessoalmente. Por meio de discussões frequentes e intensas dentro de um tema pelo qual são apaixonadas, elas se tornam próximas e passam a nutrir um sentimento genuíno de afeição umas pelas outras. Esta é uma situação que dificilmente aconteceria entre estranhos em um local físico, por exemplo, muito embora pudesse ocorrer dentro de um fã-clube, com pessoas trocando cartas ou telefonemas. Neste caso, a diferença

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estaria na velocidade e na intensidade das interações. Talvez, dentro de alguns anos, poderia se estabelecer uma dinâmica de intimidade entre pessoas que nunca se viram, porém isso dificilmente seria conquistado em poucos meses, vez que a distância e a demora nas interações naturalmente tornariam o processo mais lento e gradual.

Por fim, há a recepção antecipada a uma obra: os meios digitais favorecem a disponibilização de trechos de uma obra ou de obras inacabadas, o que traz o receptor para dentro do processo antes mesmo que a obra exista como tal. O papel do receptor sempre existiu e foi importante para o processo criativo – um livro é escrito para ser lido, por exemplo –, e os artistas sempre o levam em consideração, seja consciente ou inconscientemente. Entretanto, antecipar a recepção modifica a forma como o artista percebe o retorno do público sobre sua obra. Seria possível antecipar a recepção por outros meios fora do digital (jornais, revistas, TV, etc.), porém sem a possibilidade tão imediata de receber uma devolutiva das pessoas sobre a obra. Em Obra em Progresso, observamos este aspecto tanto nos shows quanto no blog: algumas canções novas repercutiram mais que outras. Isto alimentou Caetano de expectativas e sensações, ao mesmo tempo em que ele seguia compondo canções para o álbum. É impossível determinar exatamente como a receptividade do público a algumas canções mais que a outras interferiu no processo de criação, visto que estamos diante de manifestações sensíveis. Ainda assim, é de se supor que haja um efeito imediato a cada show em que Caetano expunha uma nova canção e sentia a reação da plateia, bem como aos comentários no blog acerca de algumas letras e músicas. A boa receptividade das pessoas, tanto nos shows como no blog, conferiu a ele confiança para que prosseguisse em sua experimentação no transamba e se sentisse estimulado a seguir dividindo esse processo com elas, o que retroalimentava o ciclo.

Há de se argumentar que muitos dos aspectos identificados acima não constituem uma novidade absoluta na colaboração de artistas com o público. Porém, é fato que os meios digitais facilitam muito esta interação mais direta. Sem a internet, o artista poderia se colocar em contato com as pessoas, mas isso demandaria muito mais tempo e não se teria acesso a uma troca de informações tão rápida, com tantas pessoas diferentes, de tantos lugares distintos e ao mesmo tempo.

Façamos um exercício de pensamento: imaginemos um post do blog Obra em Progresso comentado por aproximadamente 200 pessoas, sendo elas de lugares completamente diferentes do Brasil e do mundo. Não seria impossível replicar essa dinâmica em um ambiente físico, mas provavelmente se chegaria até elas de outras formas, como em um concurso ou um recrutamento. Provavelmente seriam pessoas interessadas, mas será que ficariam tão intensamente ativas em diálogos como as que se manifestaram espontaneamente via internet? Mais: será que seria possível ao artista interagir com todas elas na profundidade e intensidade que se observou no blog? E ainda: seria possível as pessoas interagirem entre si ao mesmo tempo em que interagiam com o artista? Provavelmente não. Uma discussão mais profunda até poderia acontecer via carta, por exemplo, mas certamente se perderiam as conexões entre pessoas e haveria apenas um canal direto com o artista, o qual teria que responder a no mínimo 200 cartas. Ou seja: tudo isso dificultaria bastante a dinâmica de diálogo e as trocas que observamos na experiência transmídia em questão.

Os meios digitais continuam representando atos de indivíduos que estão inseridos na cultura, portanto qualquer experiência transmidiática é necessariamente transcultural, à

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medida que conecta diferentes elementos dispersos na cultura. Por se tratar de um fenômeno transcultural, poderia acontecer mesmo que a internet não existisse; porém, é fato que seria muito mais difícil, muito mais dispendioso e provavelmente bem menos diverso.

Portanto, nossa conclusão é que, apesar de a colaboração não ter nascido com a internet, os meios digitais conseguem catalisar de forma bastante significativa as interações de artistas com seu público. É um movimento que tem acontecido cada vez mais, justamente pela facilidade com a qual as tecnologias atuais promovem essa aproximação. Quando bem-sucedida – como foi o caso da experiência transmídia Obra em Progresso –, o que observamos é uma ampliação das possibilidades criativas para o artista, as quais podem se refletir tanto em aspectos específicos de uma obra em desenvolvimento, quanto em uma miríade de assuntos que favorecem o pensamento dialógico e a inovação de um processo artístico.

A colaboração é uma maneira de fomentar o calor cultural de um processo criativo, e produz um ambiente propício a novas possibilidades, as quais dependerão do artista para serem traduzidas em algo concreto. Estamos apenas no início da exploração destas possibilidades: ao passo em que a tecnologia avança, outras formas de interação vão surgindo e ampliando ainda mais as oportunidades para colaboração. Se estas possibilidades serão frutíferas ou não para os processos de criação, isto dependerá de um fator que nenhuma máquina ou tecnologia digital conseguiu mimetizar ainda: a inventividade humana.

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