Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT

A influência da tecnologia na concepção da histeria: os serviços de fotografia, a invenção do eletroencefalograma e o surgimento das unidades de monitorização por vídeo-eletroencefalograma.

Daniela Kurcgant*

Introdução O termo “histeria” é ainda hoje bastante utilizado, embora na década de 1980 o termo tenha sido retirado dos manuais de diagnóstico médico (APA, 1980; OMS, 1983). As várias manifestações clínicas associadas à histeria instigam médicos desde tempo remotos, e ainda hoje, são objeto de investigação (Veith, 1965). A história da histeria aponta que este conceito passou por várias transformações, constituindo uma categoria médica, por volta do século XVIII, quando das emergentes preocupações com as nosografias e nosologias vigentes (Arnaud, 2007). Entretanto deve ficar claro que muito do que, em outras épocas, foi denominado histeria, não o é mais e, por outro lado, muitos dos sintomas que, atualmente, entende-se por histeria, antes eram atribuídos a outras doenças (Arnaud, 2007). No final do séc. XIX e a partir do séc. XX será a psicanálise, desenvolvida por (1856-1939), que reorientará a disseminação da noção de histeria e proporá uma explicação psicológica para a mesma (Trillat, 1991). Dessa forma, atualmente, existe uma forte relação entre a histeria e a psicanálise que, por sua vez, contrasta com a diminuição do interesse médico pela histeria. Do ponto de vista médico, a descrição “clássica” da histeria, que remete ao final do século XIX, inclui manifestações agudas, tais como as crises histéricas completas, que podem ter semelhanças com ataques epilépticos ou convulsões (Ávila e Terra, 2010). O objetivo deste trabalho é demonstrar a relação entre o surgimento de novas tecnologias e a concepção da histeria, mais precisamente das crises histéricas, principalmente, na sua diferenciação da epilepsia. Nesta direção, três acontecimentos são marcantes, a institucionalização dos serviços de fotografia nos hospitais, no fim do século XIX, a invenção do eletroencefalograma no início do século XX, e o surgimento das unidades de vídeo-eletroencefalograma nos hospitais, na década de 1980. Para alcançar tal objetivo, pretende-se fazer uso de duas abordagens metodológicas, que serão, aqui, brevemente, delineadas. Em primeiro lugar, será realizado um levantamento bibliográfico que lance luz a essa estreita interdependência, entre o desenvolvimento das referidas tecnologias e a emergência histórica da concepção de histeria. Em segundo lugar, será utilizado um

* Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP; Doutora em Ciências. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT extenso levantamento de artigos em seis periódicos, especializados de neurologia e psiquiatria no período entre 1910 e 2006 (Kurcgant, 2010). Foram escolhidos três periódicos da área de neurologia, a saber, Neurology, Epilepsia, e três de psiquiatria, a saber, British Journal of Psychiatry, American Journal of Psychiatry e The Journal of Nervous and Mental Disease que abordam o tema das crises histéricas, assim como seus sinônimos, pseudoseizures, non-epileptic , psychogenic seizures, hysterical seizures, psychogenic attacks, hysterical attacks, non- epileptic attack disorder, functional seizures, hysteroepilepsy, pseudoepilepsy, hysterical epilepsy, pseudoepileptic attacks. A escolha desses periódicos deu-se em função da sua relevância no meio acadêmico e da especificidade na abordagem das crises histéricas e epiléticas. Privilegiou-se a produção acadêmica norte-americana e inglesa em função da vigorosa influência que exercem no meio científico da psiquiatria mundial. Foram levantados 158 artigos que, de alguma forma, discutem a crise histérica. O presente trabalho será dividido em três partes. Na primeira parte pretende-se enfatizar a, já bem investigada, relação entre a fotografia e a histeria, no final do século XIX. Na segunda parte, discutem-se as desconhecidas consequências da invenção do eletroencefalograma sobre as crises histéricas, no início do século XIX, e, finalmente, na terceira parte, estabelece-se uma associação entre o surgimento do vídeo-eletroencefalograma e uma retomada de interesse pela crise histérica por parte da medicina.

A fotografia e a histeria O interesse do neurologista francês Jean Martin Charcot (1825-1896) pela histeria deu-se ao acaso. O velho hospital Sainte-Laure, do tradicional complexo hospitalar La Salpêtrière, em Paris, na França, cujos pavilhões abrigavam os histéricos, os epilépticos e os insanos, precisava passar por uma reforma e a administração da La Salpêtrière decidiu transferir todos os pacientes com “ataques”, conjuntamente, para um único novo pavilhão que, por direito, foi oferecido ao médico decano da casa, Dr. Charcot. Inicia-se, assim, o interesse de Charcot pelos aspectos clínicos e pelas causas da crise histérica e da crise epiléptica, nomeando-as de crise histero-epiléptica (Trillat, 1991). Para tanto, Charcot preocupou-se em realizar uma observação pormenorizada e detalhada dos sintomas das pacientes, mulheres na sua imensa maioria. As crises histéricas, por exemplo, foram descritas e divididas em fases. O livro Clinical Lectures on Diseases of the Nervous System (1889) é ilustrado com desenhos que mostram as fases das crises, as contorções, as contraturas e as áreas anestesiadas. Com o advento da fotografia, Charcot e seus colaboradores passam a registrar as crises e suas fases, em grande número de pacientes, constituindo, assim, um extenso volume de registros. A Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT fotografia se torna um instrumento de evidência clínica e científica diante da ausência de causas anátomo-patológicas da histeria (Ortega e Zorzanelli, 2010). O surgimento dos instrumentos de visualização do corpo, no século XIX, tais como o oftalmoscópio, o laringoscópio e outras ferramentas, permitiram visualizar diversos órgãos e lesões internas sem ter que recorrer à cirurgia ou à dissecação (Porter, 1993). Estes instrumentos colocavam ênfase especial na visão, em detrimento do uso dos outros sentidos, especialmente, a audição e o tato (Ortega, 2005). Segundo Saurí (1984), foi justamente, neste contexto que a histeria começou a ser, cientificamente, estudada. Influenciada pelo Iluminismo, privilegiou-se o modo visual de conhecimento. Neste referencial teórico postula-se que os objetos estão inseridos em um espaço, o que torna necessário “vê-los” de forma clara e distinta. Cabe ao olhar treinado do médico observar e ordenar o mórbido (Saurí, 1984). Para Didi-Huberman (2007), Charcot não só descreveu e sistematizou os diferentes ataques histéricos, relacionando-os a uma iconografia, mas, principalmente, ao conceituar um tipo geral de crise histérica, o “grande ataque histérico”, criou o seu próprio conceito nosológico de histeria, atribuindo-lhe, assim, uma identidade visual. Dessa forma, Charcot não só torna La Salpêtrière um centro destacado de assistência e ensino, mas também cria um serviço de fotografia que contava com a colaboração de seus discípulos médicos e de fotógrafos, com o objetivo de aprimorar o olhar médico. As fotografias das crises histéricas contemplavam os diferentes projetos científicos da época. Em primeiro lugar, a fotografia garantia a legitimidade científica à observação clínica das crises, pois possibilitava sua objetivação. Em segundo lugar, as fotografias das crises podiam ser arquivadas e, desta forma, contribuir para o diagnóstico dos pacientes. Finalmente, em terceiro lugar, a fotografia facilitava a transmissão dos conhecimentos sobre a histeria, o que por sua vez uniformizava o olhar médico sobre a histeria (Didi-Huberman, 2007). Estabelece-se, assim, a relação entre a emergência histórica do conceito de histeria, na época de Charcot, e a possibilidade da sua representação visual através da fotografia. Didi-Huberman (2007) levanta também alguns aspectos interessantes sobre essa relação. Se por um lado, para Charcot, a fotografia legitima, cientificamente, suas observações sobre a histeria, por outro lado, este procedimento exige recursos cênicos das pacientes para a sua realização. O autor indaga quais seriam as motivações das pacientes para os seus gestos e poses diante da máquina fotográfica. Trata-se, por exemplo, de uma paciente que deseja colocar uma personagem em cena; outra paciente que busca, sim, através do recurso fotográfico um esclarecimento sobre o seu diagnóstico e, assim, alcançar algum tratamento; ou ainda uma outra paciente que deseja ter contato com a novidade tecnológica representada pela máquina fotográfica.

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Em outras palavras, o autor revela os aspectos subjetivos envolvidos com o procedimento objetivante da fotografia das crises. Assim, Didi-Huberman (2007), em consonância com o pensamento de Saurí (1984), apontam que a imagem fotográfica acabou por “cristalizar” a crise histérica, inclusive tornando-a vulgar, em função das características mais ostensivas e dramáticas. Certamente esta condição contribuiu para dificultar a aproximação e a compreensão do sofrimento destas pacientes. Por outro lado, houve uma “estetização” da histeria, garantindo, assim, a sua própria existência como doença.

O eletroencefalograma (EEG) Na segunda metade do século XIX, o interesse pela histeria alcançou seu auge, na França (Lennox, 1955), entretanto, apesar das primeiras décadas do século XX terem sido promissoras para a medicina, de maneira geral, o mesmo não ocorreu, com a histeria e a epilepsia. Se nas décadas anteriores a histeria e a epilepsia ocupavam um papel central para a neurologia, isto mudou, e outras doenças neurológicas se tornaram mais importantes. Esta situação pode ser ilustrada pelo fato do periódico inglês , o mais importante periódico especializado em neurologia da Europa, na época, não fazer menção alguma à epilepsia, ou à histeria (Shorvon, 2007). A única exceção foi a publicação, no Epilepsia em 1910, do artigo The borderline of epilepsy, escrito pelo proeminente neurologista inglês William Turner (1910), que discute os limites entre as crises epilépticas e as crises histéricas. No início do século XX, com exceção de um círculo muito restrito de conhecedores das teorias de Freud, pouco se falava em histeria. Até mesmo o próprio termo passou a ser visto com desconfiança e o diagnóstico tornou-se raro. As teorias de Freud foram rejeitadas pelas sociedades científicas, em função da sua conotação sexual, inclusive encontrando forte resistência para a publicação de artigos a respeito, nos periódicos especializados em psiquiatria e neurologia. A histeria ficou submersa e uma série de doenças funcionais1 (Trillat, 1995). Depois do estabelecimento do eletroencefalograma na La Salpêtrière, a prevalência da histeria não mais alcançava a proporção “epidêmica” de antes e os médicos, principalmente os ingleses, não registravam mais tantos casos de crises (Lennox, 1955). As pacientes histéricas, que antes eram encontradas nos corredores dos manicômios, não mais existiam (Trillat, 1995). Vale a pena lembrar que a crise epiléptica é causada por descargas elétricas anormais excessivas e transitórias das células nervosas, resultantes de correntes elétricas (Guerreiro et al., 2000). O eletroencefalograma, por sua vez, registra a atividade elétrica espontânea do cérebro a partir das oscilações de potencial elétrico em determinadas regiões do escalpo, captadas por pares

1 O conceito de “doença funcional” foi proposto por Gowers (1893) apud Trillat (1995) para classificar as doenças sem lesões evidentes, e transitórias. Gowers WR. A manual of the diseases of the nervous system. London: Churchill; 1893. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT de eletrodos acoplados a sistemas amplificadores e registrados por oscilógrafos com sistemas inscritores a tinta ou, mais recentemente, por sistemas computacionais (Ragazzo, 2000). Nessa direção, com o advento do eletroencefalograma tornou-se possível, até certo ponto, uma diferenciação entre as crises epilépticas e as crises histéricas, o que deve ter contribuído para a descrita redução de histeria nos ambientes hospitalares. A atividade elétrica cerebral dos mamíferos foi demonstrada pela primeira vez pelo fisiologista Richard Caton, em 1870, em Liverpool, na Inglaterra, e por estudos subsequentes realizadas por Napoleon Cybulski, Adolf Beck, Fleischl von Marxow, e outros. Entretanto, segundo pesquisadores, o desenvolvimento do eletroencefalograma humano pode ser atribuído a uma única pessoa, o psiquiatra germânico, Hans Berger (1873-1941) (Collura, 1993; Millett, 2001). Após quase 40 anos de pesquisas em fisiologia, na década de 1920, Berger fez o primeiro registro eletroencefalográfico, na Universidade de Jena, Alemanha, onde era professor (Millett, 2001). Segundo o diário de um assistente do próprio Berger, em função da excentricidade de suas pesquisas, das suas obrigações como professor de psiquiatria, e da sua personalidade introvertida, Berger era um sujeito retraído e isolado, divulgando pouco os seus estudos (Millett, 2001). No início da década de 1930, quando Berger, após muita pesquisa e dedicação, constrói um novo eletroencefalograma este se torna um sucesso óbvio e ele passa a contar com um maior número de colaborações, inclusive com eletrodos mais sensíveis, o que garantiu um eletroencefalograma de alta qualidade, que, por sua vez, permitia um início da padronização das descargas elétricas cerebrais (Millett, 2001). A partir do eletroencefalograma de Berger, iniciaram- se as pesquisas de sua aplicação clínica no Canadá, EUA e Europa (Collura, 1993).

A unidade de monitorização vídeo-eletroencefalográfica Com a proximidade da I Guerra Mundial, as doenças mentais e neurológicas tornaram-se, cada vez mais importantes e a histeria, que se pensava desaparecida, ressurgiu. A teoria psicanalítica justificava-se ao explicar as causas psicológicas envolvidas com os sintomas histéricos que surgiam com a guerra. Para a maior parte das autoridades, os sintomas histéricos eram a expressão neurológica do “choque” emocional, e o tratamento proposto era a psicoterapia, por vezes mais persuasiva, através do uso de choques elétricos (Trillat, 1995). De acordo com Palmer (2001), o termo “shell-shock”, como nenhum outro termo, anterior ou posterior a ele, conseguiu “encapsular os custos psicológicos da guerra”. A psicopatologia do “shell-shock” incluía um “trauma emocional” que produzia um “choque mental” que variava entre uma leve sensação de tontura até um estado de estupor que, por sua vez, poderia acarretar um quadro de amnésia, dissociação da personalidade e sintomas histéricos, como as crises histéricas.

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Este diagnóstico, e suas variações, rapidamente espalharam-se entre os soldados, os oficiais médicos, alcançando, inclusive, a sociedade civil. Indivíduos que nunca estiveram na guerra, passaram a receber este diagnóstico. O “shell-shock” foi o diagnóstico psiquiátrico mais desejado entre os soldados da ativa. Entretanto, em função da sua imprecisão diagnóstica e das custosas pensões dele decorrentes, este diagnóstico foi desencorajado pelos militares ingleses e americanos durante a II Guerra Mundial (Palmer, 2001). Strecker (1944), presidente da Associação de Psiquiatria Americana, observou que, durante a II Grande Guerra Mundial, houve um aumento da epilepsia e da histeria entre os soldados, quando comparado à primeira I Guerra Mundial. De fato, no American Journal of Psychiatry ocorre um aumento no número de estudos sobre hipnose, inclusive os relacionados à diferenciação das crises epilépticas e histéricas (Peterson et al., 1950; Schwartz et al., 1955). Desta forma, estabelece-se uma relação entre as guerras e o ressurgimento das crises histéricas. Para compreender as décadas que seguiram a II Guerra Mundial, vale a pena apresentar o Gráfico 1 que demonstra o número de artigos levantados relacionados à crise histérica, e seus sinônimos, que totalizam 154 artigos, e sua distribuição ao longo das décadas, conforme metodologia previamente apresentada. Chama a atenção que, após um artigo publicado, em 1910, e um outro, em 1955, de Turner e Lennox, respectivamente, e que foram acima citados, somente em 1964 voltou a ser publicado um artigo sobre o assunto relacionado à crise histérica.

Gráfico 1 – Distribuição dos artigos relacionados (n=154) ao conceito de crise não-epiléptica psicogênica selecionados nos periódicos Epilepsia, Neurology, Seizure, British Journal of

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Psychiatry, American Journal of Psychiatry e The Journal of Nervous and Mental Disease, entre 1910 e 2006.

Vejamos, então, como se traduz, nestes periódicos, a trajetória do desenvolvimento conceitual das crises histéricas. Nas décadas de 1960 e 1970 são publicados, nos periódicos de psiquiatria, oito artigos que tratam das crises relacionando-as a quadros de “histeria”, enquanto somente um único artigo sobre o assunto é publicado em um periódico de neurologia (Liske e Forster, 1964). O número reduzido de artigos aponta para um declínio de interesse sobre o assunto, no meio médico e uma redução de casos de histeria entre as mulheres (Stefanis et al., 1976). Alguns artigos enfatizam que “não se tratam de mulheres com um comportamento provocativo, infantil, ou sedutor, com uma tendência à teatralização” (Ziegler et al., 1960; Merskey e Trimble, 1979); e até defendiam que a histeria era marcada por pressões históricas e culturais (Chodoff, 1982). Inicia-se, assim, nesta década uma importante discussão sobre o feminino e a histeria. No ano de 1980 ocorre a publicação da terceira edição do manual de classificação dos distúrbios psiquiátricos da Associação de Psiquiatria Americana, o que acarretou mudanças profundas na psiquiatria americana e mundial. No Diagnostic and statistical manual of mental disorders – DSM III (APA, 1980) os termo “histeria” é retirado (Gunderson e Phillips, 1995) e o termo “crise histérica” não mais é utilizado. Na diferenciação das crises epilépticas, os neurologistas passam a utilizar muitos termos, tais como “crises pseudo-epilépticas”, “crises psicogênicas”, e muitos outros. A fim de evitar preconceitos e facilitar o raciocínio clínico, os neurologistas americanos passam a denominá-la “crise não-epiléptica psicogênica” (Gates, 2000). A partir da década de 80, o número de artigos sobre as crises não-epilépticas psicogênicas nos periódicos de psiquiatria reduz-se drasticamente (quatro artigos), a despeito do crescimento expressivo do número de artigos, nos periódicos de neurologia (14 artigos). Destaca-se, nesse período, o surgimento das unidades de monitorização vídeo-eletroencefalográficas (vídeo-EEG), recurso tecnológico de diagnóstico que impactou fortemente o diagnóstico de não-epilépticas psicogênicas e deslocou para a área da neurologia o interesse no assunto (Kurcgant, 2010). Na monitorização vídeo-eletroencefalográfica são realizados, simultaneamente, os registros do comportamento do paciente e da atividade eletroencefalográfica, com o objetivo de serem observadas e identificadas as crises apresentadas pelo paciente. Os registros acontecem durante a vigília, sono e durante as provas de indução para crises epilépticas (fotoestimulação e hiperventilação) e para crises não-epilépticas psicogênicas (Marchetti et al., 2007). Dessa forma, a partir do surgimento do vídeo-EEG, a partir da década de 1980 e ainda em 1990 e 2000, ocorre um aumento expressivo de publicações baseadas nas pesquisas de crises não- Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT epilépticas psicogênicas, principalmente, no contexto da neurologia. O interesse, neste ponto, é excluir o diagnóstico epilepsia, sem abordar as crises não-epilépticas psicogênicas. Dessa forma, a histeria, que por décadas, durante o século XX, deixou de ser diagnosticada e tratada, volta a surgir no cenário médico, e já invade o século XXI.

Conclusão Segundo Ortega (2005), no século XX ocorreu a hegemonia absoluta da visão e o declínio do tato e da audição, não apenas no campo estritamente biomédico, mas no âmbito sociocultural mais abrangente. No que concerne à histeria e a todas as suas manifestações, que incluem as crises não-epilépticas psicogênicas, a visão do corpo e de suas manifestações, através das tecnologias, influenciam significativamente o aparecimento e desaparecimento deste diagnóstico.

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