MÚSICA E LITERATURA UNINDO BRASIL E ÍNDIA: MULTICULTURALISMO E INTERTEXTUALIDADE

Dra Maria do Rosário Abreu e Sousa Professora do Curso de Direito Unaerp – Universidade de Ribeirão Preto - Câmpus Guarujá [email protected]

Esp Robson Guia Chepkassof Chaves Unimes – Universidade Metropolitana de Santos

Resumo: A intertextualidade, por estabelecer um diálogo entre dois ou mais textos, serve naturalmente como recurso didático para o conhecimento de outras culturas. Dada a dificuldade de se introduzir os temas transversais na matriz curricular, o objetivo deste artigo é apresentar uma maneira agradável de combinar intertextualidade e multiculturalismo. Mediante uma análise intertextual da canção Gita, de autoria de e , famosa na voz do primeiro, mostraremos uma possibilidade de trabalho pedagógico, com a finalidade de introduzir o educando no estudo da cultura indiana. Nesse artigo, utilizou-se como fundamento teórico sobre intertextualidade as obras O texto sem mistério de Gosdstein e Intertextualidade: Diálogos possíveis de Koch, Bentes e Cavalcante. Sobre pluralidade cultural, pesquisou-se o livro Ideologias: Do feminismo ao multiculturalismo de Heywood. Conclui, que através da música de Paulo Coelho e Raul Seixas, Gitá, é possível abordar os temas transversais em sala de aula, em especial, o multiculturalismo.

Palavras-chave: música, literatura, intertextualidade, multiculturalismo.

Área de Conhecimento: Humanas

1. Introdução Este artigo tem como tema o ensino/aprendizagem de intertextualidade como ferramenta para o conhecimento de outras culturas, com ênfase em sua aplicação didática em sala de aula para alunos do ensino médio. Afinal, como é possível discorrer sobre temas transversais no transcurso do ensino das matérias curriculares?

O objetivo deste artigo, portanto, é demonstrar, por intermédio de um exemplo prático de análise intertextual, como apresentar ao aluno o multiculturalismo, um dos temas transversais estabelecidos nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação no Brasil, haja vista a dificuldade do docente em abordar os temas transversais em sala de aula como parte integrante da matéria. Para isso, será analisada a letra da canção Gita (pronuncia-se ‘guitá’), composta por Raul Seixas e Paulo Coelho. Essa canção traz uma intertextualidade inusitada entre dois textos, distantes no tempo por milhares de anos e compostos por autores pertencentes a povos aparentemente díspares – Brasil e Índia – de línguas e crenças diferentes, os quais se encontram separados no planeta por milhares de quilômetros. No entanto, acima de tantas diferenças, encontram-se seres humanos em sua perpétua busca pelas respostas das questões essenciais da existência.

Esse tema se justifica porque, embora o homem do século XXI viva no mundo globalizado, interconectado em tempo real por todas as formas de mídia e com fácil acesso a qualquer lugar por meio de rápidas viagens aéreas, ainda se presenciam a ignorância, o preconceito e até o terrorismo diante do diferente. Portanto, conhecer, entender e respeitar outras culturas é uma necessidade premente mais do que nunca. Assim, o ensino/aprendizagem da intertextualidade, que sempre esteve presente na linguagem humana como ponte para o conhecimento do outro, serve de elemento natural para quebrar as barreiras que segregam os povos e integrá-los nessa aldeia global.

Do ponto de vista pedagógico, a escolha foi feita por vários motivos.Primeiro, porque a música é um excelente recurso didático no ensino de língua portuguesa. Ela é uma arte encantadora e popular, que atrai a atenção da mente e deleita os sentidos. Segundo, porque a canção Gita é um clássico do cancioneiro popular brasileiro, consagrado mesmo entre o público jovem contemporâneo. Terceiro, porque o texto-fonte, chamado Bhagavad-gita, é considerado a obra-prima da literatura milenar indiana e apreciado por milhões de pessoas tanto dentro quanto fora da Índia. E por último, porque Brasil e Índia agora fazem parte do BRICS, uma aliança de países formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que fazem parte de um dos blocos mais importantes do mundo sob o aspecto econômico e populacional.

A metodologia utilizada será a pesquisa bibliográfica de textos científicos da literatura da área, tais como: livros, artigos e material disponibilizado na internet. No que diz respeito à intertextualidade, o artigo se fundamenta, sobretudo, na obra O texto sem mistério de Norma Gosdstein (2009) e na obra Intertextualidade: Diálogos possíveis de Kock, Bentes e Cavalcante (2008). Nesses livros, os autores esclarecem o que é intertextualidade e também suas características e divisões. Para alicerçar o tema multiculturalismo utilizou-se o livro Ideologias políticas: do feminismo ao multiculturalismo (2010), no qual o autor Andrew Heywood explica a importância do ensino desse assunto, bem como sua definição e desenvolvimento histórico.

O artigo se subdivide em três seções.

Na primeira, serão explicados o significado, definição, conceito e origem do termo intertextualidade.

Na segunda, o multiculturalismo será abordado no âmbito da aprendizagem dos temas transversais na escola.

E na última seção, será apresentado um exemplo de como combinar o ensino de intertextualidade e multiculturalismo para alunos do ensino médio. Para isso será utilizada a canção Gita como ponto de partida e será feita uma análise dessa canção e do texto-fonte, seus respectivos autores e uma comparação entre os dois textos.

2. Desenvolvimento 2.1 Intertextualidade: Definição, histórico e classificação De origem latina, a palavra intertextualidade etimologicamente é formada pelo prefixo inter, que nesse caso transmite a ideia de ‘sobre, superposição’; pelo substantivo textus, proveniente da raiz verbal ‘tecer, construir entrelaçando’, donde o sentido nominal ‘narrativa’; e do sufixo dade, formador de substantivos abstratos. Logo, intertextualidade vem a ser um diálogo, superposição ou influência, de forma implícita ou explícita, de um texto sobre outro texto precedente, que em geral é um clássico basilar de uma cultura. (Dicionário Houaiss, 2001)

Quem primeiro desenvolveu o conceito de intertextualidade, sob a denominação de “dialogismo”, foi o linguista russo Mikhail Bakhtin. Pela constatação de Bakhtin ninguém é o enunciador original, ou seja, todo enunciado trava um diálogo contínuo com outras obras literárias e outros autores. E isso não se restringe apenas ao gênero literário. Pode ocorrer entre dois ou mais textos do mesmo gênero ou de gêneros diferentes.

Posteriormente, a semioticista búlgaro-francesa Julia Kristeva, em meados da década de sessenta, por fim cunhou o termo intertextualidade como se entende hoje. Segundo a pesquisadora, a intertextualidade só acontece de fato quando o interlocutor depreende a presença do texto-fonte ou de partes dele no texto lido.

Para ser percebida e apreciada, portanto, a intertextualidade exige mais do que o mero conhecimento do código linguístico. Ela requer que o leitor tenha um cabedal de conhecimento desses textos clássicos. Para além das relações meramente estruturais, o conceito de intertextualidade explica que para a compreensão profunda de um texto é necessário que os interlocutores tenham gravado em sua memória discursiva um conhecimento do mundo.

Segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2008), a intertextualidade pode ser classificada em intertextualidade lato sensu, quando estabelece qualquer relação de diálogo entre um texto-fonte e outro; e intertextualidade strictu sensu, quando o intertexto se apresenta no outro texto. Nas palavras precisas de Gosdstein: Num sentido amplo, a intertextualidade pode ser considerada uma característica de todos os textos. Em sentido restrito, compreende um conjunto de procedimentos textuais que indicam a existência de um diálogo com outro texto. Localizados em algumas passagens textuais, esses procedimentos funcionam como pistas que remetem o leitor para outro texto com o qual o autor estabelece diálogo. (Gosdstein, 2009, p.47)

Essa intertextualidade strictu sensu por sua vez, pode-se subdividir em temática, estilística, implícita e explícita. Resumidamente, a intertextualidade temática ocorre quando os textos compartilham o mesmo tema. A intertextualidade estilística se fundamenta, sobretudo, na forma, mas também em parte no conteúdo dos textos. A intertextualidade explícita “ocorre quando há citação da fonte do intertexto” (Koch; Elias, 2008, p. 87). A intertextualidade implícita, segundo Koch e Elias (2008, p. 92), “ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto”.

Há diferentes processos de intertextualidade, a saber: alusão, citação, paráfrase e paródia. Conforme a definição de Gosdstein sobre esses processos, A alusão consiste na menção a outro texto que seja conhecido pelos interlocutores. Diante de uma palavra ou expressão que evoca o texto aludido, fica sugerida a hipótese de diálogo entre este e o que estiver sendo lido no momento... A citação entre aspas reproduz fielmente o texto citado, transcrevendo passagens dele na íntegra. Desse modo, a indicação do diálogo com outro texto é nitidamente explicitada... A paráfrase decorre da retomada de outro texto de modo parcial ou total, por meio da transcrição fiel ou aproximada do texto retomado, conservando o mesmo ponto de vista. Ela apresenta uma visão próxima do texto que serve de inspiração... A paródia ocorre quando se retoma um texto em outro com distanciamento, novo ponto de vista e, por vezes, espírito crítico, ironia. (Gosdstein, 2009, p.47-56)

Existe ainda na intertextualidade o processo de détournement, que se utiliza como intertexto de características linguísticas de provérbios conhecidos para criar novos enunciados, em geral ironizando ou subvertendo sua ideia original.

Em suma, todo texto traz em si uma multiplicidade de vozes, ora consoantes, ora dissonantes, fazendo da linguagem humana uma rede infinita de trocas e influências mútuas, e tal conhecimento é fundamental na formação do leitor reflexivo.

2.2 Multiculturalismo: Contexto, importância e definição O multiculturalismo, ou pluralidade cultural, é um dos temas transversais a ser tratado hoje na escola. Todavia, antes de entrar no tema multiculturalismo propriamente dito, faz-se mister esclarecer o que é transversalidade, sua importância e contexto.

Pela definição do dicionário Houaiss (2001), o termo transversalidade quer dizer “o caráter ou qualidade do que cruza, atravessa, passa por determinado referente”. Em educação, especificamente, transversalidade significa a implantação de certos temas relevantes em todas as matérias convencionais. Ela tem por objetivo trazer temas da vida cotidiana para o ambiente escolar e foi introduzida nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) em 1996.

Fundamentado no compromisso maior da educação com a construção da cidadania e da democracia, os PCNs adotaram como seus princípios norteadores a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos, a participação e a co-responsabilidade pela vida social. Por se constatar que as matérias convencionais aprendidas na escola não são suficientes para cumprir esse objetivo supracitado, foram eleitos uma série de temas chamados transversais, a saber, Ética, Meio ambiente, Educação Sexual, Pluralidade Cultural, Saúde, Trabalho e Consumo, que devem perpassar a educação como um todo de forma contínua e integrada.

Segundo Rafael Yus (1998, p. 17): “Temas transversais são um conjunto de conteúdos educativos e eixos condutores da atividade escolar que, não estando ligados a nenhuma matéria particular, pode se considerar que são comuns a todas, de forma que, mais do que criar novas disciplinas, acha-se conveniente que seu tratamento seja transversal num currículo global da escola.”

Conforme esclarecem os PCNs, “a contribuição da escola, portanto, é a de desenvolver um projeto de educação comprometida com o desenvolvimento de capacidades que permitam intervir na realidade para transformá-la”.

O intuito do ensino de temas transversais não é que o professor deva abordá-los separadamente. Muito pelo contrário, ele deve integrá-los em sua programação regular, de forma que o aluno possa aplicar o conhecimento aprendido na escola no ambiente fora da escola.

Agora tratando especificamente do multiculturalismo, em certo sentido, este não é um fenômeno novo no mundo, porém a utilização do termo surgiu pela primeira vez em 1965, no Canadá, “para descrever uma forma específica de se lidar com a questão da diversidade cultural” (Heywood, 2010). Posteriormente outros países foram adotando esse conceito em suas políticas públicas, até que nos anos noventa, em virtude de fatores, tais como: o gigantesco aumento da migração especialmente de refugiados, a globalização econômica e o terrorismo mundial, o debate sobre o assunto foi implantado em âmbito mundial.

O multiculturalismo propõe a convivência de diferentes culturas numa mesma região ou país. É um fenômeno característico do mundo contemporâneo, pois, devido ao enorme desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação e da facilidade de interligação entre os países, todos os povos têm acesso à informação em tempo real. Isso leva a um intercâmbio natural entre culturas e sociedades, o qual por sua vez gera a criação de uma nova manifestação cultural.

O multiculturalismo advoga o respeito a todas as culturas, com a convicção de que todas elas podem colaborar igualmente para a compreensão do mundo. Ainda segundo Heywood (2010), “o multiculturalismo é mais uma arena para o debate ideológico do que uma ideologia em si” e “seu ponto central é a diversidade dentro da unidade”.

Na onda do movimento multiculturalista surgiu o conceito do orientalismo, muito pertinente para nossa abordagem sobre a cultura indiana, visto que a corrente orientalista apresentou uma forte crítica ao eurocentrismo, “que ressalta o quanto a hegemonia cultural e política do Ocidente foi imposta ao restante do mundo – em particular ao Oriente – por meio de estereótipos ilusórios, cuidadosamente planejados que menosprezam e degradam os povos e a cultura não ocidentais” (Heywood, 2010).

Há prós e contras em relação ao multiculturalismo, porém ele se tornou indiscutivelmente irreversível. Seus proponentes defendem que a convivência com a pluralidade cultural e o respeito às diferenças e aos grupos minoritários podem evitar o radicalismo político.

2.3 Uma aplicação prática Dentre os vários componentes curriculares, a língua portuguesa é aquele que proporciona a maior possibilidade de se trabalhar os temas transversais. Basta que para isso, o docente utilize textos sobre esses temas.

Tendo como pivô a canção Gita na abordagem do multiculturalismo, é possível levantar questões referentes a diversos aspectos da cultura indiana, tais como: geografia, história, economia, política, língua, literatura, música, filosofia, religião etc., e ainda fazer uma comparação entre as culturas indiana e brasileira.

Pelo fato de a música ser atraente ao jovem e também por ser uma forma agradável e suave de introduzir um assunto, a exposição da matéria começa por uma audição da canção. Para isso, basta um aparelho de som, que é facilmente obtido, mesmo em escolas públicas. A partir deste ponto, o professor pode sugerir a busca do texto-fonte, o resumo das obras, a biografia de seus autores, a pesquisa intertextual e cultural.

A proposta abaixo é um exemplo de aplicação prática em sala de aula para alunos do ensino médio de como abordar intertextualidade e pluralidade cultural simultaneamente, visto que, como preceituam os PCNs, o professor não deve tratar os temas transversais separadamente.

Para começar, segue abaixo a letra da música na íntegra e uma sinopse de ambos os textos: (1)Eu, que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando / Foi justamente num sonho que Ele me falou / (2) Às vezes você me pergunta / por que é que eu sou tão calado, / Não falo de amor quase nada, / nem fico sorrindo ao seu lado. / (3) Você pensa em mim toda hora, / me come, me cospe, me deixa, / Talvez você não entenda / mas hoje eu vou lhe mostrar. (4) Que eu sou a luz das estrelas, / eu sou a cor do luar, / Eu sou as coisas da vida, / eu sou o medo de amar. / (5) Eu sou o medo do fraco, / a força da imaginação, / O blefe do jogador, / eu sou, eu fui, eu vou. / Gita gita gita gita! / (6) Eu sou o seu sacrifício, / a placa de contra-mão, / O sangue no olhar do vampiro / e as juras de maldição. / (7) Eu sou a vela que acende, / eu sou a luz que se apaga, / Eu sou a beira do abismo, / eu sou o tudo e o nada. / (8) Por que você me pergunta? / perguntas não vão lhe mostrar, / Que eu sou feito da terra, / do fogo, da água e do ar. / (9) Você me tem todo o dia / mas não sabe se é bom ou ruim, / Mas saiba que eu estou em você / mas você não está em mim. / (10) Das telhas eu sou o telhado, / a pesca do pescador, / A letra "a" tem meu nome, / dos sonhos eu sou o amor. / (11) Eu sou a dona de casa, / nos "pegue-pagues" do mundo, / Eu sou a mão do carrasco, / sou raso, largo, profundo. / (12) Eu sou a mosca da sopa / e o dente do tubarão, / Eu sou os olhos do cego, / e a cegueira da visão. / (13) É, mas eu sou o amargo da língua, / a mãe, o pai e o avô, / O filho que ainda não veio, / o início, o fim e o meio. * (Raul Seixas e Paulo Coelho) A enumeração das estrofes servirá para posterior análise do conteúdo do texto.

Composta por Raul Seixas (1945 – 1989) e Paulo Coelho (1947), a canção Gita foi lançada primeiro sob a forma de um compacto simples em 1974 e vendeu mais de seiscentas mil cópias, ganhou o disco de ouro e até hoje é considerado o maior sucesso da carreira de Raul Seixas.

O sucesso da música foi tão grande, que Seixas, exilado do Brasil por causa da ditadura, foi convidado a voltar ao país imediatamente. Ele então gravou um videoclipe em cores para ser exibido no programa Fantástico da TV Globo, que foi um grande sucesso. A música foi trilha sonora de muitas novelas e foi gravada por muitos cantores famosos. Em 2009, a revista Rolling Stones a elegeu como uma das cem melhores músicas brasileiras.

O título da canção, Gita, é uma referência explícita à Bhagavad-gita, obra-prima da literatura hindu, e faz menção especialmente à revelação de Krishna descrita no décimo primeiro capítulo do texto. Foi composta num período muito místico da carreira de Raul Seixas e Paulo Coelho, quando juntos ingressaram numa sociedade esotérica ligada ao ocultista inglês Aleister Crowley (1875 – 1947).

O que é a Bhagavad-gita?

Em sânscrito Gita quer dizer “canção”, e bhagavad refere-se a “Deus”. Bhagavad-gita, portanto, significa literalmente “A Canção do Senhor”. Composta de dezoito capítulos com setecentas estrofes, a Bhagavad-gita vem a ser o sexagésimo terceiro capítulo do gigantesco texto épico hindu Mahabhárata. Toda narrada em sânscrito sob a forma de um diálogo entre o mestre Krishna e seu discípulo guerreiro Arjuna, essa conversação imortal é o clímax da epopeia e trata das questões mais importantes e perenes da vida humana. Por incrível que pareça, em seu contexto maior, esse famoso tratado filosófico e teológico foi escrito na iminência de uma grande guerra entre dois grupos de primos beligerantes, pelo domínio do império da Índia antiga.

A Bhagavad-gita é a obra literária que com mais clareza expressa o espírito do hinduísmo e deve ser considerada o primeiro texto a tratar explicitamente dos princípios do yoga. É também o documento mais antigo do vaishnavismo, a tradição religiosa centrada na adoração a Vishnu, especificamente em sua encarnação como Krishna.

Do ponto de vista histórico, a Bhagavad-gita é tida como uma grande tentativa de integrar as diversas linhas de pensamento espiritual que predominavam dentro do hinduísmo na época. Especificamente ela faz uma conciliação entre duas visões de mundo antagônicas: a primeira voltada para a realização de rituais, a inserção na vida social e a observância de boas ações para elevação religiosa; e a segunda focada na prática de yoga, no afastamento da vida social e na busca espiritual introspectiva.

O cerne dos ensinamentos da Bhagavad-gita é o equilíbrio entre a atividade religiosa e ética vigentes no mundo e as metas transcendentais. Segundo Krishna não é necessário abandonar os diversos compromissos e deveres que o indivíduo tem na sociedade para alcançar a iluminação. Melhor é cumprir suas responsabilidades no mundo, mas com um espírito de desapego pelos frutos das ações. Para isso, a pessoa deve tornar todas as suas ações um ato de devoção ao Senhor, vendo a presença de Deus por trás de tudo, e não fugir da batalha da vida. Por ser uma doutrina ativista, pragmática e acessível a todos, a Bhagavad-gita transformou-se no mais importante texto norteador da vida de milhões de hindus e até mesmo não hindus ao redor do mundo.

Especialmente pertinente para a nossa análise é a revelação de Krishna apresentada nos capítulos intermediários da obra. Ali, Arjuna pede a Krishna que revele a sua divindade. Em resposta este se manifesta numa forma nunca antes vista e explica como é simultaneamente imanente na criação e transcendente a ela.

Sob a ótica da datação, é difícil afirmar categoricamente quando surgiu essa obra, pois antes mesmo de sua escrita, ela era transmitida oralmente. Toda a tradição hindu, entretanto, assevera que o diálogo ocorreu no ano de 3.102 a.C.

Depois que a Bhagavad-gita foi traduzida para as línguas ocidentais, sua popularidade começou a crescer fora da Índia e influenciou e intrigou intelectuais de muitas nacionalidades. Entre eles, destacamos: os alemães Schelegel e Schopenhauer; os americanos Emerson e Thoreau; os ingleses Max Muller e Aldous Huxley; o francês Romain Rolland; o russo Tolstoy; dentre muitos outros.

Em seguida, será feito um breve resumo tanto da biografia de Raul Seixas e Paulo Coelho, os autores da canção popular brasileira, quanto da vida de Krishna, o orador da poesia Bhagavad-gita.

Raul Santos Seixas nasceu em 28 de junho de 1945 em Salvador numa família de classe média. Estudou em colégio de padres. Ainda muito jovem, em 1968, formou uma banda com amigos chamada “Os Panteras” e gravou seu primeiro disco. Seu reconhecimento musical só aconteceu a partir de 1972 com sua participação no Festival Internacional da Canção.

Durante sua trajetória profissional de vinte e seis anos, ele foi cantor, compositor, produtor musical e gravou dezessete discos. Considerado o precursor do rock brasileiro, com sua personalidade contestadora, cética e agnóstica, tem influenciado muitas gerações de cantores e jovens até hoje. Morreu em 22 de agosto de 1989, no , vítima de parada cardíaca.

Paulo Coelho de Souza nasceu no Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1947. De família de classe alta, estudou nas melhores escolas da cidade. Desde muito cedo, revelou seu dom literário. Na década de setenta, entrou no movimento hippie e envolveu-se com drogas e o ocultismo. Em 1972 conheceu Raul Seixas e escreveram diversas músicas em parceria.

Em 1982 lançou seu primeiro livro, sem muita repercussão. Seu reconhecimento só veio a acontecer a partir do lançamento do livro O Alquimista, em 1988, que se tornou o livro brasileiro mais vendido da história, com 83 milhões de exemplares. Desde então, escreveu dezenas de outros livros. Suas obras já foram traduzidas para 66 idiomas e vendidas em mais de 150 países.

Escritor, letrista e jornalista, Paulo Coelho é o autor mais vendido em língua portuguesa de todos os tempos e em 2002, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras.

Krishna é uma das figuras mais conhecidas do hinduísmo no Ocidente, muito provavelmente por ser o protagonista da Bhagavad-gita. Para a tradição hindu, porém, Krishna é um personagem real, grande mestre e encarnação divina, que nasceu no ano de 3.228 a.C. e morreu em 3.102 a.C. Embora essa datação seja fonte de controvérsia e muitos duvidem até da existência histórica de Krishna, renomados indólogos como Georg Feuerstein, afirmam que “esse ceticismo é provavelmente sem fundamento” (Feuerstein, 2005), visto que há muitas referências sobre ele nas escrituras védicas milenares e muitas pesquisas científicas que corroboram essa datação.

Sua biografia e ensinamentos são narrados em textos clássicos da literatura indiana como o Mahabhárata e Bhagavata Purana. Segundo essa literatura, a vida de Krishna é marcada por três períodos distintos, a saber: sua infância como um travesso menino realizador de muitos milagres numa aldeia pastoril; sua adolescência como um jovem amante e exímio tocador de flauta; e sua maturidade como um rei sábio e o próprio Deus encarnado.

Krishna tem influenciado o pensamento, religião, filosofia, misticismo, literatura, pintura, escultura, dança, música, folclore, enfim toda a vida e cultura de milhões de hindus há milhares de anos.

2.4 Análise literária e comparativa dos textos

A seguir, apresentaremos um paralelismo entre as duas obras. Na primeira estrofe da canção, o eu lírico encontra-se numa busca espiritual, e em meio a uma experiência onírica na qual Deus fala com ele. Na epopeia, o guerreiro Arjuna, em meio a um grande dilema interior, analogamente pede: “Como devo compreender-te enquanto medito em ti?” BG 10.17 “Mestre, se achas possível que eu veja, mostra-me teu Eu imperecível”. BG 11.4 (Goswami, 2015).

Na segunda e terceira estrofes da música, Deus, antes de se revelar, esclarece ao buscador que este precisa rever suas crenças estereotipadas sobre o divino. É necessário estar aberto ao novo. Na Bhagavad-gita, o mestre Krishna diz a seu discípulo que este fala palavras aparentemente sábias, mas se comporta como um tolo, e que para ver Deus, ele precisava de olhos divinos.

No restante da canção, Deus lhe responde como perceber Sua onipresença inconcebível e paradoxal, pois Ele está presente em absolutamente tudo, tanto em coisas boas como “a luz das estrelas, a cor do luar, o amor, a mãe, o pai e o avô”, quanto em coisas ruins como “o medo de amar, o blefe do jogador, as juras de maldição, a mão do carrasco, a mosca da sopa, o amargo da língua”. De forma similiar, na Bhagavad-gita se afirma que Deus é “a luz da Lua e do Sol, o amor puro dos amantes, a mãe, o pai e o avô, a primavera florida”, e por outro lado é “o jogo de dados enganador, a vara na mão do castigador, a morte que tudo devora”. (Goswami, 2015) Na verdade, nada existe sem a sanção de Deus. É o homem, com seu livre arbítrio, que age bem ou mal e com isso cria suas reações boas e más. Outra das características divinas é o não-dualismo, ou seja, num sentido não há diferença entre criador a criação. Por emanar do criador, a criação também deve ser sagrada.

Na oitava estrofe da canção, encontra-se outra semelhança, quando se diz: “Por que você me pergunta? perguntas não vão lhe mostrar”. No décimo capítulo do texto-fonte, ao final de sua exposição sobre como contemplar Deus em tudo, Krishna declara: “Qual a necessidade de todo esse conhecimento minucioso?” Em outras palavras, o homem jamais vai abarcar a compreensão completa sobre Deus por intermédio de sua inteligência diminuta.

Em aparentes contradições, ambos os textos afirmam: “eu sou o tudo e o nada”, “eu estou em você, mas você não está em mim”, “sou o início, o meio e o fim”. A utilização desses paradoxos serve de obstáculo no fluxo do pensamento linear para que o leitor seja obrigado a reavaliar seus conceitos e se aprofundar neles antes de prosseguir adiante.

Os dois textos, entretanto, guardam grandes diferenças. Ao passo que a Bhagavad-gita é composta de setecentas estrofes, a canção Gita consiste em apenas treze estrofes. Por conseguinte, a Bhagavad-gita trata de muitos temas. Na verdade, sua importância se deve, sobretudo, ao fato de ela apresentar um resumo completo e ao mesmo tempo profundo de toda a doutrina hindu. Já a Gita se restringe apenas ao tema da teofania, ou seja, a revelação da divindade de Krishna para o guerreiro Arjuna, a qual ocorre especificamente no décimo primeiro capítulo da obra e é considerada por muitos indólogos como seu clímax.

Do ponto de vista da forma poética, a Bhagavad-gita é predominantemente escrita numa espécie de estrofe típica das epopéias sânscritas, chamada shloka, a qual consiste rigidamente em quatro versos de oito sílabas cada. A canção brasileira, por sua vez, não mantém uniformidade métrica muito rigorosa, oscilando entre versos de sete e oito sílabas.

No que diz respeito ao conteúdo, o texto clássico indiano, narrado dentro do contexto de uma civilização antiga e teocêntrica, é um tratado explicitamente teísta, que retrata Krishna como o próprio Deus Supremo encarnado. Pelo hinduísmo, embora a Verdade Absoluta seja única, Ela se manifesta primariamente em três formas: Brahman (Seu aspecto impessoal e onipresente), Bhagavan (Seu aspecto pessoal e individual) e Paramatma (Seu aspecto localizado no coração de todos os seres vivos). Esse conceito teológico se assemelha em muitos aspectos ao dogma trinitário do cristianismo, que “proclama a união de três pessoas distintas, Pai, Filho e Espírito Santo, formando um só Deus”. (Dicionário Houaiss. 2001). Por esse motivo muitos teólogos comparam Krishna a Jesus, e a Bhagavad-gita ao Sermão da Montanha. Por outro lado, na canção Gita o eu lírico é o próprio homem que se descobre Deus. Bastante cético em assuntos teológicos, o autor Raul Seixas, num comentário sobre a canção, deixa claro sua posição sobre essa questão: “Não existe outro Deus, senão o próprio homem”. (Passos, 2007, p. 108)

Em suma, os autores brasileiros fizeram uma transcriação livre do texto original, que manteve muitos elementos de sua forma poética e conteúdo conceitual. Mas sua principal diferença foi a contextualização do assunto para a sociedade brasileira da década de setenta, fortemente marcada pelo movimento contracultural dos hippies e influenciada por valores antropocêntricos e por vezes ateus. A grande contribuição da canção Gita é que ela popularizou a mensagem atemporal da obra hindu, pela primeira vez no Brasil.

3. Considerações finais Na correria do dia a dia do professor, que muitas vezes trabalha nos três períodos e vive sob a pressão de cumprir a agenda curricular, torna-se um desafio ainda ter que abordar os temas transversais como parte do componente curricular que ministra. Por isso, não é incomum que muitos releguem esses assuntos ou esperem que alguém mais faça esse papel. Então surge mais esta tensão e cobrança: de um lado, a vida real de professor e do outro lado, o preceito ideal dos PCNs. Considerando esse desafio, esse artigo se propôs a mostrar um método simples, prático e divertido de introduzir um tema transversal – o multiculturalismo – através do componente curricular Língua Portuguesa. O ponto de partida foi a utilização de uma música popular. A partir daí, desenrolaram-se uma série de assuntos correlacionados – língua, literatura, biografias, geografia, história, filosofia, religião etc. – a essa cultura estrangeira e sua relevância para o jovem estudante brasileiro.

Pelos vários motivos supracitados, optou-se aqui pelo uso de uma canção como elemento desencadeador estudo. O cancioneiro brasileiro, que é riquíssimo, pode servir de inspiração para tratar dos outros temas transversais. Há, além da música, muitos outros recursos nas diversas expressões artísticas, tais como: o cinema, a literatura e as artes plásticas, que são fontes inesgotáveis de pesquisa para se explorar esse assunto.

O estudante de hoje, além do aprendizado da escola, têm acesso a inúmeras informações facilmente disponíveis na internet. Cabe, portanto, à educação, às instituições de ensino e, sobretudo, ao professor, aceitar o desafio de criar novas formas de chamar a atenção desse aluno, inspirá-lo e instigá-lo na busca do conhecimento. Já não há mais espaço para o autoritarismo e a memorização. A educação não visa apenas à informação, mas principalmente à formação, com o objetivo de banir quaisquer formas de preconceitos racistas, sexistas, religiosos, culturais etc.

Pela observação prática, constata-se que o aluno, como qualquer ser humano, sempre busca o prazer e rejeita o desprazer. Portanto, para inspirar, instigar e encantar o estudante é necessário oferecer métodos de aprendizagem agradáveis. Não adianta insistir em processos obsoletos. Conforme ensina a Bhagavad-gita (2.59): “A única forma de abandonar algo inferior é pela experiência de um gosto superior.” Assim, é preciso transformar o saber em prazer.

4. Referências

FEUERSTEIN, Georg. A Tradição do Yoga. São Paulo: Pensamento, 2001. GOSDSTEIN, Norma. O texto sem mistério: leitura e escrita na universidade. São Paulo: Ática, 2009. p. 47-56. GOSWAMI, H.D. Guia Completa da Bhagavad-gita com tradução literal. Pindamonhangaba: Sankirtana Books, 2015. HEYWOOD, Andrew. Ideologias Políticas: Do feminismo ao multiculturalismo. São Paulo: Ática, 2010, pp. 95-115.

INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KOCH, I.V.; BENTES, A.C.; CAVALCANTE, M.M. Intertextualidade: Diálogos possíveis. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

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KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015.

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