MEMÌRIAS E ORALIDADE NO ACESSO E USO DA TERRA EM COMUM NO PLANALTO DE

Marlon Brandt 1

RESUMO No planalto de Santa Catarina se estabeleceu a partir do final do século XVIII uma significativa parcela de pequenos e médio sitiantes, na maioria posseiros, que se interiorizavam nos —sertões“ planaltinos, às margens das grandes propriedades pastoris das áreas de campos naturais. Ao se instalarem nestas terras, possuíam como fonte básica de subsistência a agricultura e a criação de animais, principalmente porcos. Atividades que poderiam ser complementadas, em algumas áreas, com a extração de recursos naturais, como a erva-mate. O acesso e mesmo o uso da terra por esta população estava vinculado, em muitos casos, a sua exploração em comum, sejam dos campos, ervais ou pinheirais. Estes, da mesma maneira que o acesso e posse da terra, eram regulados por um conjunto de práticas, normas e costumes, transmitidos de geração a geração, porém jamais registrados por algum regulamento, onde a oralidade exercia uma importância fundamental, e que, para aquela população, de certa forma —afastada“ das instâncias de poder do Estado, poderia adquirir caráter de lei.

Palavras-chave : uso comum da terra, apropriação, memória

—Ih tinha pinhalão de toda parte em toda a parte, me lembro tão bem, pinhalão véio escuro [...]“. É assim que Sebastião Alves dos Santos tem na memória a paisagem da região onde se localiza atualmente o município de Fraiburgo na época em que passou a trabalhar para a serraria René Frey & Irmão, uma das maiores empresas madeireiras que passaram a atuar naquele espaço a partir da década de 1930 2. Esta serraria, como tantas outras, foi uma das responsáveis pelo declínio de uma prática até então muito comum em todo o planalto catarinense: a criação em comum de animais soltos. Povoado inicialmente a partir dos primeiros caminhos de tropas que varavam a região ligando o Sul ao Sudeste transportando gado, o planalto passa, a partir de então, a ter seus espaços marginais a estes caminhos, então conhecidos como —sertões“, ocupados por diversas famílias, muitas compostas por antigos peões, agregados, ex-escravos, negros libertos ou fugitivos, que abandonaram as antigas fazendas de criação onde viviam, tornando-se independentes, passando a viver —sobre si“ 3. Condição tentadora, porém arriscada, já que teria

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina ([email protected]) 2 SANTOS, Sebastião Alves dos. 71 anos. Depoimento concedido em 25 de setembro de 2004. Autor: Marlon Brandt. Acervo do autor. 3 QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social : a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). 3. ed. São Paulo: Êtica, 1981. Coleção Ensaios, n. 23, p. 30-31. que conviver com a existência de tensões e conflitos com a população indígena, em uma clara disputa de espaço. Compunham estas frentes levas populacionais que partiam principalmente dos campos de Lages e , assim como dos campos de Guarapuava, rumo a Palmas e campos do 4, além de fugitivos e remanescentes de conflitos como a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Revolução Federalista (1893-1895) 5. Estas levas passaram a se interiorizar principalmente em espaços onde dominavam grandes florestas de araucárias entremeadas por manchas de campos naturais, formando pequenas e médias posses de terra, em áreas que não despertavam, ao menos no início, o interesse dos grandes fazendeiros da região, interessados mais nas áreas onde abundavam os campos naturais, destinados ao apascentamento do gado bovino. Instalando-se nestas terras, quase sempre sobre o regime de posse, eventualmente legalizando-as mais tarde, esta população possuía na agricultura, na extração de recursos naturais œ principalmente a erva- mate œ e na criação de animais a base de seu sustento. Praticavam nestas o que Arlene Renk denomina como —roça cabocla“, onde exerciam a agricultura e a criação de animais, dividindo espacialmente as áreas para a criação e para a agricultura através de uma prática costumeira, em terras de plantar e terras de criar 6. Nas áreas destinadas ao cultivo, ocorria a rotação da terra, a qual o geógrafo alemão Léo Waibel, em seu estudo sobre a colonização européia no Sul do Brasil a denomina como agricultura nômade ou intinerante. Porém o colono, da mesma forma que o antigo habitante planaltino, conhece este sistema simplesmente como roça ou capoeira. Esta separação, segundo o autor, acarretou tanto na criação extensiva do gado, quanto na instauração de uma extensiva lavoura. Cultivavam desmatando e queimando a floresta, herdando a prática indígena da coivara, para em seguida instalar a roça7. Comumente uma imagem associada a estes habitantes planaltinos é a de que estes viviam em relativo isolamento, tanto uns dos outros quanto do mundo. Estes, porém, se encontravam integrados à vizinhança em escalas diferentes, vislumbrando-se entre as famílias uma espécie de vínculo, exposto por Antônio Cândido, —pelo sentimento de localidade, pela convivência, pelas práticas de auxílio mútuo e pelas atividades lúdico-religiosas“, mesmo que suas feições se constituíssem num tipo de povoamento disperso, visto que o modo de uso costumeiro da terra exigia uma ampla faixa de terras para a —roça cabocla“, o que fazia com que as casas estivessem —de tal modo afastadas que o observador muitas vezes não discerne,

4 PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina : sua história. Florianópolis: Ufsc/Lunardelli, 1983, p. 585. 5 AURAS, Marli. Guerra do Contestado : a organização da irmandade cabocla. 4. ed. Florianópolis: Ufsc, 2001, p. 25. 6 RENK, Arlene Anélia. A luta da erva : um ofício étnico no Oeste catarinense. Chapecó: Grifos, 1997, p. 96 7 WAIBEL, Léo. Capítulos de Geografia tropical do Brasil . 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 1979, p. 245. nas casas isoladas que topa, a certos intervalos, a unidade que as congrega“. Na formação de laços de sociabilidade e solidariedade nestes espaços, o autor apresenta um ponto muito importante: o sentimento de uma consciência da construção por eles mesmos do lugar 8. O espaço, a medida que adquiria familiaridade, que era cada vez mais conhecido, definido e significado pela população, transformava-se em um lugar, como aponta João Baptista Mello, —cheio de objetos comuns“, onde estes se sentiam seguros e à vontade, emergindo assim experiências cotidianas, de trabalho, lazer e sobrevivência 9. Lugar cuja formação, segundo Antônio Cândido, —depende não apenas da posição geográfica, mas também do intercâmbio entre as famílias e as pessoas“, onde a —convivência entre eles decorre da proximidade física e a necessidade de cooperação“ 10 . Nesse sentido decorre entre a comunidade um forte sentimento do coletivo, conjugando-se a elementos característicos das ações, usos e direitos de caráter privado, onde observa-se um controle dos recursos básicos pela população, que se efetiva, nas palavras de de Almeida,

através de normas estabelecidas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas entre vários grupos familiares que compõem uma unidade social“ 11 .

Estas podem expressar o acesso a terra, dentro dos costumes praticados desde seus antepassados entre aquela população. Fundamentados no —direito que vem do costume, da tradição, da memória“ 12 e transmitidos de geração em geração, constituiam-se, de acordo com E. P. Thompson, em —crenças não escritas, normas sociológicas e usos asseverados na prática, mas jamais registrados por qualquer regulamento“ 13 , onde a oralidade exercia uma grande importância, e que, para aquela população, de certa forma —afastada“ das instâncias de poder do Estado, poderia adquirir caráter de lei. Neste sentido, o mesmo autor alerta para o fato que —o emprego do direito comum e as tradições orais em torno desses direitos são tão específicos e tão locais quanto as características geográficas“ 14 .

8 C‰NDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito : estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 2. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971, p. 58-62. 9 MELLO, João Baptista Ferreira de. A humanização da natureza œ uma odisséia para a (re)conquista do paraíso. In: MESQUITA, Olindina Vianna; Silva, Solange Tietzmann (org). Geografia e questão ambiental . Rio de Janeiro: IBGE, 1993, p. 32; TUAN, Yi Fu. Espaço e lugar : a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983, p. 184. 10 C‰NDIDO, Antônio. Op. Cit ., p. 64-65. 11 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista de Estudos Urbanos e Regionais . v. 6, n. 1, p. 9-32, maio 2004, p. 10. 12 CAMPOS, Nazareno José de. Usos e formas de apropriação da terra na Ilha de Santa Catarina. In: Geosul , Florianópolis, n.34, p. 113-135, jul/dez. 2002, p. 128. 13 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum . São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.88. 14 Ibidem , p, 120. Costumes, fundamentados na memória oral, que expressavam não apenas o seu acesso, na forma de posse, mas seu próprio usufruto, em comum, com a população vizinha. As terras onde ocorriam estas práticas poderiam ser tanto devolutas como particulares, onde, conhecendo ou não quem era o proprietário, este não se importava com tal uso. Como não existiam divisas entre as propriedades ou posses, sendo estas delimitadas apenas por marcos naturais, uma vez que a divisão das terras —era por butieiro, por imbuia, era por rio“ 15 , a criação dos animais era —tudo em comum“, como afirmam Sebastião Pires 16 e Miguel Lara Sobrinho 17 , antigos moradores da região de Fraiburgo. Nas terras compreendidas por campos, matas e butiazais, percorriam livremente porcos, bois e cabritos. Estes animais percorriam livremente não apenas as terras de seus proprietários, mas também as florestas, campos e butiazais de vizinhos e terras devolutas. Tal forma de criação possibilitava o livre acesso à água, aos pastos, faxinais e pinheirais. Estes últimos desempenhavam uma importante função, fornecendo alimento aos animais no inverno. Nas florestas era possível também caçar e recolher erva-mate, pinhão, nó-de-pinho, lenha, cipós para o tingimento de lãs, mel silvestre, etc. Nesta forma de criação dos animais em aberto, as roças eram cercadas para impedir a invasão dos animais criados e até mesmo de alguns veados que existiam na região. Como as lavouras eram destinadas à subsistência e não à comercialização, estas ocupavam pouco espaço, se comparadas às terras de criar. Utilizavam-se, em muitos casos, para cercar as roças, os chamados —rachões“, que consistiam em tábuas feitas a partir do pinheiro lascado. Cercas que poderiam ser também construídas com outros tipos de madeira e com toras de pinheiros ou árvores como o , as quais também poderiam ser utilizadas na construção de encerras, onde era plantado um milharal para a engorda dos porcos, estes sim, destinados não apenas ao consumo próprio, mas também à comercialização. Nas áreas onde ocorria esta forma de uso da terra, vislumbrava-se uma baixa ocupação demográfica, e em algumas áreas, ao menos quando a colonização ainda se mostrava incipiente, a presença do homem, em uma área relativamente extensa, era identificada apenas pela existência de um estreito carreiro, sua casa e a área onde se situava a roça.

15 PRADO, Nair Ribeiro do. 63 anos. Depoimento concedido em 27 de setembro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor. 16 PIRES, Sebastião. 73 anos. Depoimentos concedidos em 13 agosto e 2 de outubro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor. 17 LARA SOBRINHO, Miguel. 77 anos. Depoimentos concedidos em 27 de setembro de 2004, 26 de abril de 2005 e 3 de janeiro de 2006. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

Assim comenta um antigo morador da região de Fraiburgo, José Lindolfo Cordeiro Leite, a respeito desta forma de criação em comum dos animais:

[...] naquele tempo [...] não era agricultura, porque quase ninguém lidava, era tipo criador, naquele tempo criava, nem tinha cerca, era aberto, só fazia uma marca onde eram as divisas, marcavam uma madeira assim, não tinham cerca, nada que não existia arame. E daí ali era a divisa de terreno, mas a criação criava tudo junto, uns criavam porco outros criavam animal, criavam gado. E era tudo misturado. Diz que era um espaço muito grande. Então a criação vivia solta, às vezes extraviava os animais, meu Deus do céu. Então da nossa fazenda nós vínhamos, para pegar animal [...] ali na Liberata, e às vezes noutras partes [...]. Naquele tempo por causa dos baguás que avançavam nos cavalos e os cavalos se assustava se desnorteava que nem sabia por onde andava. s vezes levava mês para a gente achar. Naquele tempo tinha tudo que era criação 18 .

Esta forma de criação de animais em comum pode ser analisada sobre o viés de uma prática onde a integração com a vizinhança se fazia necessária, pois o arrebanhamento dos animais, sejam bois, cabras ou porcos, tanto para consumo quanto para a venda, era facilitado pelo contato entre os moradores, que tinham o hábito de avisar ao proprietário se alguns deles encontravam-se percorrendo suas terras, prática assim descrita por Sebastião Pires, morador do município de Fraiburgo:

é, tinha boi para tudo quanto era lado. Quando ele queria requisitar a boiada, lá em tal lugar tem dois três bois que tá lá no terreno do fulano, mais três quatro no outro terreno, ele buscava. Criava em aberto 19 .

O acesso e uso em comum da terra, contudo, torna-se mais precário a medida que avançam novas relações sócio-econômicas naquele espaço, onde a apropriação privada das terras, o cercamento, a colonização e a exploração madeireira se fazem sentir, dando início a desagregação da prática do usufruto em comum da terra, o que passa a ocorrer com maior intensidade a partir das primeiras décadas do século XX. Terras que em muitos casos eram habitadas por posseiros há mais de uma geração ou consistiam em áreas de usufruto comum na criação de animais e coleta de recursos naturais como o mel e a caça. Ao se apropriarem destas terras, muitos dos novos proprietários, que em muitos casos desconheciam a área, passavam a expulsar a população posseira, tida como intrusa, da mesma forma que impediam o uso em comum daquelas terras. Em municípios como Curitibanos e Campos Novos diversos editais eram publicados avisando aos moradores da região que era proibida a ocupação, posse e uso da terra para criação e extração de recursos naturais, como é o exemplo de um edital publicado no ano de

18 LEITE, José Lindolfo Cordeiro. 64 anos. Depoimento, 2 de outubro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor. 19 PIRES, Sebastião. 73 anos. Entrevista citada. 1913 no jornal —O Trabalho“, de Curitibanos a respeito de uma propriedade situada —nas zonas Timbó e Tamanduá“:

Carlos Walter Schmid, por si e como procurador do sr. Otto Kaesemodel, faz público e especialmente para que chegue ao conhecimento dos habitantes das zonas do Timbó e do Tamanduá, nesta comarca que compraram, do sr. João Ignácio Baptista dos Santos e sua mulher, os terrenos legitimados por este naquellas zonas. E, para que ninguém alegue ignorância, vem por este meio, fazer sciente os habitantes das mesmas zonas, que não consente, seja quem fôr, criações de qualquer especie nos referidos terrenos, que outr‘ora eram invadidos com criações de outros. Caso queiram continuar abusando, procederei judicialmente contra o infractor ou infractores, que pagarão todos os dannos e prejuizos que causarem. Coritybanos, 12 de Março de 1913 20 .

A partir de então este processo de apropriação/expropriação, acompanhada da desagregação de antigos hábitos e costumes da população sertaneja, como a posse da terra, juntamente com outros fatores, como a existência de grandes latifúndios, o coronelismo, a religiosidade da população sertaneja e a questão de limites entre o Paraná e Santa Catarina, provocaram a eclosão da Guerra do Contestado, que assolou a região entre os anos de 1912 até 1916. Após a destruição da resistência sertaneja e o Acordo de Limites entre os Estados do Paraná e Santa Catarina em 1916, intensifica-se a colonização na região. Tem-se a partir de então a criação de várias empresas colonizadoras, que são as principais responsáveis pelo povoamento do ex-Contestado. É possível traçar um paralelo da situação apresentada na região com o estudo de Octávio Ianni em relação ao município de Conceição do Araguaia na década de 1960, no que cabe ao processo de transformação da terra em mercadoria. Da mesma forma que naquela região, vislumbrou-se, em um período de não superior a quatro décadas a modificação dos —ritmos e os andamentos, os arranjos e as articulações sociais“ 21 , em diferentes tempos, a diferentes espaços. Se no início eram os campos nativos o principal objeto de açambarcamento privado, as áreas de florestas, como os ervais, a medida que a demanda da erva-mate crescia, tornaram-se também alvo de interesse privado, da mesma forma que as terras onde abundavam as araucárias e outras madeiras de importância, antes consideradas um empecilho a economia pastoril passam também, a partir da construção da estrada de ferro,

a ser objeto e meio de produção de valores de troca. [...] Pouco a pouco, ou de súbito, conforme o caso, a terra deixa de ser apenas, ou principalmente objeto e meio de produção de valores de uso. O poder estatal aparece, de forma cada vez mais ostensiva e permanente, como um poder maior destinado a favorecer e acelerar o processo de privatização da terra, nos moldes exigidos pela empresa privada de grande porte22 .

20 O Trabalho . Curitibanos, ano 6, n. 174, 23 de março de 1913, p. 3; O Trabalho . Curitibanos, ano 6, n. 175, 6 de abril de 1913, p. 2. 21 IANNI, Octávio. A luta pela terra : história social da terra e da luta pela terra numa área da amazônia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. Coleção Sociologia Brasileira, V. 3, p. 153. 22 Ibidem , p. 154.

Se antes a terra —parecia larga, farta, sem fim, de súbito ganha outra fisionomia social. Ganha outra dimensão histórica“. Antes era a —ocupação, a posse, a morada, a roça, a criação, o conhecimento no lugar, a vizinhança“ que garantia a sua posse 23 . A palavra, a memória daqueles antigos moradores, que garantia tanto a posse quanto o uso da terra paulatinamente cedia espaço para a —escritura“, o registro no —papel“ 24 . Além da ocupação das terras, os colonizadores depararam-se com as diferentes formas de uso da terra então realizada pela população local. O costume de se criar à solta, com as lavouras cercadas formadas a partir de capoeiras fez com que surgissem os primeiros atritos entre colonizadores e caboclos, como aponta Arlene Renk:

os conflitos se originariam por duas razões. A primeira, pela desvalorização, no mercado imobiliário, das terras próximas às dos intrusos, com a criação sem cerca [...]. Interessava à companhia o fim desta prática. A segunda razão, em nível de atitudes, seria a utilização das terras, isto é, com a agricultura rotativa. Uma utilização mais —racional“ permitiria que diversas famílias, em exploração familiar, se valessem da área com resultados que, do ponto de vista do colonizador, seriam, seguramente, melhores 25 .

A relação do ponto de vista do colonizador, tanto em relação ao uso da terra e outras práticas sociais pela população que antecedia a colonização, quanto pela existência de posseiros, pode muito bem ser observada através do olhar de Wenceslao de Souza Breves, que atuou ao longo da década de 1920 na demarcação de terras no Oeste de Santa Catarina. Breves forneceu um importante documento sobre os primeiros anos da colonização da região na forma de um artigo denominado —O Chapecó que eu conheci“ 26 . Nele, é possível encontrar algumas passagens que tratam de sua relação com os posseiros que residiam na região, dentro daquilo que Arlene Renk menciona como sendo o —olhar etnocêntrico do colonizador“, que

23 Ibidem , p. 154. 24 Na década de 1920, segundo o depoimento de antigos moradores da região de Fraiburgo, atuaram na região algumas pessoas destinadas a legalizarem suas posses de terra. Segundo estes depoentes, os responsáveis pela demarcação e os antigos proprietários ficavam com cada um com a metade das terras. Dois destes acordos foram registrados no Tabelionato de Curitibanos no ano de 1926, nas localidades de registraram um acordo de legalização de posses de localidades como Butiá Verde, Baía, Papuã, Taquaruçu, Passa Três e Faxinal dos Carvalhos. No entanto, segundo alega Pedro Felisbino, o acordo não logrou sucesso. É o que se pode contatar verificando o registro de imóveis referente ao mesmo ano, onde não se encontrou nenhuma menção as posses encontradas nos acordos. Segundo Pedro Felisbino e Miguel de Lara Sobrinho, muitas das posses, como a da família Lara, seriam registradas apenas na década de 1940. Escritura Pública de Contrato entre Artur Formighieri, Albano Burger e outros, com moradores da Baía, Papuã e Butiá Verde, no dia 23 de fevereiro de 1926. Livro de notas n. 69. Cartório Primeiro Tabelionato de Notas e Protestos Ortigari, Curitibanos, Santa Catarina; Escritura Pública de Contrato entre Artur Formighieri, Ernersto Formighieri, ‰ngelo Preto, Aníbal Formighieri e moradores de Taquaruçu, Passa Três e Faxinal dos Carvalhos. Livro de notas n. 69. Cartório Primeiro Tabelionato de Notas e Protestos Ortigari, Curitibanos, Santa Catarina. Os registros do ano de 1926 encontram-se no Livro número 3 do Registro de Imóveis do município de Curitibanos, Santa Catarina. FELISBINO, Pedro Aleixo. 61 anos. Depoimento, 07 de janeiro de 2006. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor. LARA SOBRINHO, Miguel. Entrevista citada. 25 RENK, Arlene Anélia. Op. Cit ., p. 107-108. 26 BREVES, Wenceslao de Souza. O Chapecó que eu conheci. In: Revista do IHGSC . Florianópolis, 3ª fase, n. 6, p. 7-73, 1985. —centrou-se na crítica aos ritmos temporais da população local, ao sistema brasileiro“ 27 . Breves adotava uma postura de desqualificar este —sistema brasileiro“, taxando-o de absurdo e atrasado, da mesma forma que faziam os colonizadores 28 . Este —sistema“ regulava, por exemplo, a posse, o trabalho e as formas de uso da terra, em muitos casos em comum, sobretudo no caso da criação de animais. Forma de uso e posse da terra que para Breves era visto como um entrave à civilização na região, sendo que esta ocorreria apenas com a colonização e sua pequena propriedade e trabalho familiar 29 . Arlene Renk comenta que o período, anterior a colonização, era visto pelos antigos moradores como um tempo de —fartura“, —folga“, —largueza“, cujo processo de colonização atuou como divisor de —um tempo que não volta mais“ 30 , e que expressa não apenas a perda da terra pela população posseira, mas a desagregação dos espaços costumeiramente usufruídos em comum. Os colonos, diferente dos antigos moradores, possuíam na agricultura a base do seu sustento. Ao se instalarem nos lotes, tratavam de abrir uma área para o plantio, especialmente de trigo e milho. Estas terras, que iam sendo ocupadas e devastadas para dar espaço as lavouras, reduzindo cada vez mais o espaço onde era possível a criação à solta dos animais. Antes existia mais espaço, pois as posses constituídas até então possuíam uma grande extensão se comparada aos lotes coloniais, cuja área era, em média, de 10 alqueires, ou 24,2 hectares, o que possibilitava à adoção, por estes, de uma certa mobilidade, ao menos na feitura das roças, dispondo também de amplos espaços por onde percorriam as criações. A partir de então cada vez mais lhes era imposta uma imobilidade, uma espécie de confinamento. Possivelmente muitos dos posseiros que conseguiram legalizar, ao menos uma parte de suas posses, ficaram isolados em áreas menos valorizadas, de reduzida dimensão, se comparadas a antiga —largueza“, tendo como confrontantes os colonos, que não possuíam a experiência da criação à solta, e cujo uso da terra era incompatível com o antigo sistema. Caso fossem criados soltos os animais poderiam invadir a plantação dos colonos que não possuíam o costume de cercá-las como faziam os —brasileiros“ ou —caboclos“, como eram chamados pelos colonos. Sem as cercas para a criação eram comuns as invasões dos animais soltos, principalmente porcos, nas roças dos colonos, como relembra Sebastião Pires, antigo morador de Fraiburgo: —era só o tempo de ponhar a semente na terra e os porco [...] iam lá, fuçavam e tiravam a sementeira“. Ocorriam reclamações nestas invasões, como comenta

27 RENK, Arlene Anélia. Op. Cit ., p. 102 28 BREVES, Wenceslao de Souza. Op. Cit ., p. 21. 29 RENK, Arlene Anélia. Op. Cit ., p. 104. 30 Ibidem , p. 112. Sebastião Pires: —É... teu porco tá na minha roça, arrancou toda a sementeira né, então quer dizer que daí o dono do porco tinha que ir lá e dar a sementeira novamente“ 31 . A consolidação deste processo, principalmente na faixa de disputas entre o Paraná e Santa Catarina, envolvendo o Vale do Rio do Peixe e Oeste, fez com que aquele espaço fosse bastante alterado pela ação dos colonos para a produção de lavouras que, diferentemente dos antigos moradores, cuja produção era em pequena escala e destinada principalmente à subsistência, passam agora a comercialização de produtos como o trigo e o milho, cercando e reduzindo os espaços de criação dos animais. A própria vegetação nativa, com árvores como a araucária e outras árvores de grande porte existentes na região, como a imbuia e o cedro, tornam-se objeto da cobiça dos recém instalados, dando início a exploração madeireira, tanto por empresas de grande porte como a Lumber , subsidiária da Railway , quanto por pequenas serrarias, voltadas à extração e beneficiamento da madeira. Tudo isso foi marcante no processo de desagregação dos espaços onde era possível o usufruto em comum da terra para a criação, como no caso dos porcos, que passariam a ter sua circulação restrita pela formação de lavouras e florestas devastadas, passando finalmente a ser criado fechado, em encerras, ao modo praticado pelos colonos. —Tinha bastante porco ali, e hoje não se vê um porco aqui na região [...]. A gente vê aí hoje, não pode ter uma galinha, não pode ter um porco, então a gente se sente um pouco desajeitado, o interesse da gente é criar“ 32 . Esta frase, proferida por Sebastião Pires expressa bem o sentimento de muitos dos antigos moradores, frente ao processo de inserção de novos empreendimentos econômicos naquele espaço, resultando não apenas na redução e gradual extinção de práticas consideradas costumeiras, sobretudo no que tange a posse e uso comum da terra e recursos naturais, mas também, como no próprio caso de Sebastião Pires, na expropriação de suas terras. O declínio das formas de uso comum da terra nestes espaços planaltinos não deve, contudo, servir como motivo para que abordagens sobre estas práticas, muitas vezes qualificadas como primitivas ou atrasadas, sejam deixadas de lado. Pelo contrário, como alerta Alfredo Wagner Berno de Almeida, romper com —a invisibilidade social, que historicamente caracterizou estas formas de apropriação dos recursos baseadas principalmente no uso comum“ 33 , implica também em dar voz a esta população, cujas memórias espaciais são, juntamente com suas práticas sociais, desqualificadas, vistas apenas como —formas

31 PIRES, Sebastião. Entrevista citada. 32 PIRES, Sebastião. Entrevista citada. 33 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. (2004). Op. Cit ., p. 10. atrasadas, inexoravelmente condenadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do passado, puramente medievais [...], formas residuais ou ”sobrevivências‘“. 34 , freqüentemente silenciadas nos estudos de natureza agrária no Brasil 35 .

REFERÂNCIAS

Fontes orais

FELISBINO, Pedro Aleixo. 61 anos. Depoimento, 07 de janeiro de 2006. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

LARA SOBRINHO, Miguel. 77 anos. Depoimentos concedidos em 27 de setembro de 2004, 26 de abril de 2005 e 3 de janeiro de 2006. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

LEITE, José Lindolfo Cordeiro. 64 anos. Depoimento, 2 de outubro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

PIRES, Sebastião. 73 anos. Depoimentos concedidos em 13 agosto e 2 de outubro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

PRADO, Nair Ribeiro do. 63 anos. Depoimento concedido em 27 de setembro de 2005. Fraiburgo. Entrevistador: Marlon Brandt. Acervo do autor.

SANTOS, Sebastião Alves dos. 71 anos. Depoimento concedido em 25 de setembro de 2004. Autor: Marlon Brandt. Acervo do autor.

Fontes oficiais

Escritura Pública de Contrato entre Artur Formighieri, Albano Burger e outros, com moradores da Baía, Papuã e Butiá Verde, no dia 23 de fevereiro de 1926. Livro de notas n. 69. Cartório Primeiro Tabelionato de Notas e Protestos Ortigari, Curitibanos, Santa Catarina.

Escritura Pública de Contrato entre Artur Formighieri, Ernersto Formighieri, ‰ngelo Preto, Aníbal Formighieri e moradores de Taquaruçu, Passa Três e Faxinal dos Carvalhos. Livro de notas n. 69. Cartório Primeiro Tabelionato de Notas e Protestos Ortigari, Curitibanos, Santa Catarina.

Livro número 3. Registro de Imóveis do município de Curitibanos, Santa Catarina.

34 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio œ uso comum e conflito. In: Cadernos Naea . Belém, n. 10, p. 163-195, 1989, p. 164-166. 35 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. (2004). Op. Cit ., p. 10. Fontes bibliográficas

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio œ uso comum e conflito. In: Cadernos Naea . Belém, n. 10, p. 163-195, 1989.

______. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista de Estudos Urbanos e Regionais . v. 6, n. 1, p. 9-32, maio 2004.

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