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Intersexualidade: uma clínica da singularidade Ana Amélia Oliveira Reis de Paula 1, Márcia Maria Rosa Vieira 2

Resumo A intersexualidade é considerada um problema médico. A má-formação do genital pode impedir a definição do sexo ao nascer, o que exige cuidado por parte dos responsáveis pela criança. Como acontece no humano a definição do sexo? É importante a definição do sexo ao nascer ou pode-se deixá-la para mais tarde? De- pendendo do referencial teórico, as intervenções, a condução e o tratamento podem acontecer de maneira diversa e contraditória. O presente trabalho faz um breve relato dos diversos modos de leitura realizados por diferentes campos do conhecimento sobre a intersexualidade e aborda o tema mediante a teoria psicanalítica. Palavras-chave: Ambiguidade genital. Ambiguidade sexual. Intersexualidade. Identidade sexual. Psicanálise.

Resumen Intersexualidad: una clínica de la singularidad La intersexualidad es considerada un problema médico. La malformación de los genitales puede impedir la definición del sexo al nacer, lo que requiere el cuidado de aquellos que son responsables por el niño. ¿Como

Artigos de atualização Artigos ocurre la definición del sexo en el humano? ¿Es importante la definición del sexo en el nacimiento o se puede dejar para más tarde? En función del marco teórico, las intervenciones, la conducta y el tratamiento puede acontecer de manera diversa y contradictoria. El presente artículo ofrece una breve reseña de los distintos modos de lectura realizados por los diferentes campos de conocimiento acerca de la intersexualidad y aborda el tema mediante la teoría psicoanalítica. Palabras-clave: Ambigüedad genital. Ambigüedad sexual. Intersexualidad. Identidad sexual. Psicoanálisis.

Abstract Intersexuality: a clinical singularity The intersexuality is considered a medical problem. Genital malformation can impede the definition of at birth and requires special care on the part of those responsible for the child. How does sexual definition occur among ? Is it important to define gender at birth, or can this be postponed? Depending on the theoretical framework, intervention, conduct and treatment can occur in diverse and contradictory ways. We briefly summarize the diferent interpretations of intersexuaity in different fields of knowledge, and addresses the theme through . Keywords: Genital ambiguity. Sexual ambiguity. Intersexuality. Sexual identification. .

1. Mestre [email protected] 2. Pós-doutora [email protected] – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/ MG, Brasil.

Correspondência Ana Amélia Oliveira Reis de Paula – Unidade Multiprofissional de Atenção à Saúde. Coordenadoria de Psicologia do Hospital das Clínicas da UFMG. Av. Alfredo Balena, 110, 7º andar, Ala Sul CEP 30130-100. Belo Horizonte/MG, Brasil.

Declaram não haver conflito de interesse.

70 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Intersexualidade: uma clínica da singularidade

A intersexualidade interroga de que maneira Veremos, a partir dos conceitos da psicanálise e da acontece a definição sexual humana, e sua principal casuística, que a constituição psíquica corresponde causa é a hiperplasia congênita da suprarrenal, res- à entrada do sujeito na linguagem. A linguagem é ponsável por cerca de 90% dos casos. Ao nascer, um transmitida à criança pelo que Lacan denominou o bebê é designado menino ou menina a partir da ob- Outro. servação dos genitais. A simplicidade para designar Esse Outro primordial é encarnado por aquele o sexo desaparece quando, ao observar o genital, que pode cumprir a função de transmitir a lingua- sua conformação não é evidente. O genital é am- gem, ou seja, a mãe. Ela tem a função de introduzir, bíguo quando sua aparência impõe dificuldade, ou a partir de seu desejo, a criança na linguagem. É por mesmo impossibilidade, de designar a criança como essa razão que, ao tratarmos da questão da definição menino ou menina. sexual da criança, logo no início da vida, encontra- Essa é a situação das crianças que nascem com mos não a criança propriamente (porque ela está alguma deformidade ou distúrbio da diferenciação em constituição), mas um sujeito privilegiado: a sexual (DDS). A complexidade do problema exige mãe. Ela é aquele Outro fundamental que inicia o que a criança seja acompanhada por equipe inter- texto do sujeito. O caso apresentado demonstra cla- disciplinar, composta por pediatra, endocrinologista, ramente a presença da mãe nesse momento crucial cirurgião, psicólogo, além de equipe especializada para o surgimento do sujeito infantil. Artigos de atualização Artigos no apoio diagnóstico. Uma pesquisa é empreendi- A descoberta da ambiguidade do genital pode da para compreender o que causou a ambiguidade acontecer em dois momentos: no nascimento, genital (AG) e, assim, tornar possível a definição do caso o genital apresente uma modificação eviden- sexo. te e o médico possa fazer o diagnóstico. A segunda Desde a investigação freudiana, sabe-se da possibilidade é a descoberta tardia, quando, por importância dos pais no processo da constituição exemplo, as modificações da puberdade não apa- psíquica e da identificação sexual da criança. Quan- recem. A temporalidade é importante nesses casos, do o diagnóstico de DDS é feito no início da vida, uma vez que as intervenções médicas serão distintas esse fato pode mobilizar intensa angústia nos pais, e dependerão do momento em que a descoberta da ou mesmo estender-se aos demais familiares. Cabe ambiguidade genital é feita. O tempo da descoberta aos pais a escolha do nome e o registro civil da crian- faz toda diferença na condução dos casos. ça. Eles terão de fazer uma escolha. Nesse momento, A experiência clínica mostra que a definição do é preciso decidir se irão promover uma investigação sexo da criança pode acontecer a partir da aparência médica com o objetivo de definir seu sexo biológico. que o genital apresenta. Os pais buscam orientação Tal definição orienta a escolha do nome e a entrada médica, mas a impressão do genital passa a ser uma do bebê na cultura, na vida social. referência importante na relação com a criança; A alternativa seria aguardar que a criança cres- chegando mesmo a nomeá-la antes da definição ça para que ela mesma defina seu sexo, conforme médica. Por isso a importância da investigação diag- o pensamento naturalista segundo o qual a própria nóstica logo no início da vida. natureza poderá decidir o rumo da definição sexual. Uma vez assumida a identidade sexual, a reve- Embora possível, tal opção é considerada uma via lação de uma patologia que difere do sexo assumido temerária, pois a biologia já deu indícios de que algo pela criança deve ser discutida pela equipe, para aconteceu e impediu a definição do sexo ao nascer. avaliar de que maneira o caso pode beneficiar-se Essa teoria desconhece o fato de que, nos seres hu- com as intervenções médicas. A decisão é tomada, manos, a linguagem rompe com os limites naturais e caso a caso, com a participação determinante do passa a comandar o comportamento humano e suas paciente, considerando sua história e o percurso escolhas sexuais, tornando-os assim um processo por ele realizado até ali na construção de sua iden- singular, e não mais universal. tidade. A avaliação da equipe é feita a posteriori, O sexo biológico não é o único fator que deter- em dois eixos de avaliação: o biológico e o psíqui- mina ou decide o sexo na espécie humana. Isso se co. O sujeito é examinado pelo endocrinologista e deve ao fato de que, para os seres falantes, a defini- escutado pelo psicanalista. Os exames físicos e de ção sexual não depende apenas das características laboratório revelarão o sexo biológico. A escuta psi- biológicas. A definição sexual está relacionada com canalítica permitirá compreender o que se passou a entrada do infans (termo do latim que significa no percurso de constituição psíquica, que poderá aquele que ainda não fala) na linguagem, na cultura. incluir, ou não, a escolha subjetiva do sexo.

http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 71 Intersexualidade: uma clínica da singularidade

A diversidade conceitual Percurso histórico

A diversidade de teorias na abordagem da “Distúrbios da diferenciação sexual” (DDS) é a intersexualidade explicita o aspecto ético e episte- nomenclatura atualmente adotada para designar os mológico da questão. Ético, por exigir daqueles que problemas encontrados na clínica da intersexualida- lidam com o problema uma tomada de decisão. Tal de. O termo (...) refere-se a toda doença congênita decisão é balizada por uma determinada compreen- na qual a constituição cromossômica, gonadal, 1 são do fenômeno. Assim, o modo de compreender sexual ou anatômica é atípica . “Intersexo” era a o tema da sexualidade, a explicação de como ocor- terminologia utilizada para nomear tais casos. re a definição do sexo nos seres humanos, remete Ao longo dos séculos em diferentes civiliza- à perspectiva epistemológica. O encaminhamento a ções, o termo “hermafrodita” foi empregado de ser dado depende dessa compreensão. maneira genérica para referir-se aos intersexuais 2. Na atualidade, essa definição vem sendo questiona- A investigação e a discussão clínica revelaram da por ser considerada pejorativa e estigmatizante3 . a existência de uma variedade de concepções sobre Algumas sociedades não ocidentais adotam o ter- a definição do sexo nos seres humanos. A concepção mo “androginia” para se referir ao fenômeno. Nessa biológica, baseada em pesquisas com ratos e suas perspectiva, o hermafrodita é considerado andrógi- Artigos de atualização Artigos respostas aos hormônios, apoiada no conceito de no ou aquele que engloba a unidade dos opostos. imprinting, que pode ser traduzido por impressão, Nos séculos XVII e XVIII, registros apontam o uso do modelagem, aprendizagem. Oriundo da etologia, termo “hermafroditismo” para designar os desvios advoga a definição do sexo a partir dos órgãos vin- homossexuais. culados à reprodução e aos efeitos dos hormônios O termo “intersexualidade” surge na metade no cérebro. do século XIX como sinônimo de “hermafrodita”, A noção de imprinting surge das pesquisas ainda relacionado à orientação sexual. Foucault, realizadas por estudiosos do comportamento indi- ao abordar o domínio das anomalias, afirma que vidual e social dos animais (etólogos) que buscavam o hermafrodita figura como um tipo de monstro, o comprovar a relação existente entre a escolha de qual revela o princípio de inteligibilidade: a noção objeto em animais e a influência do ambiente (das de monstro permanece, desde a Idade Média até imagens) nas funções cognitivas ou cerebrais. Acre- o século XVIII, relacionada com a ideia de misto. O dita-se que o comportamento sexual desses animais hermafrodita é o misto de dois sexos: (...) quem é 4 poderia ser modelado ou aprendido. Tal conceito ao mesmo tempo homem e mulher é um monstro . está relacionado com as teorias de base biológica, Foucault esclarece que o termo não é noção médica segundo as quais o que não é inato pode ter sido e sim jurídica: (...) quando a desordem da natureza 5 adquirido pelo imprinting. abala a ordem jurídica, aí aparece o monstro . As teorias antropológicas, sociológicas e psi- O tratamento dispensado aos hermafroditas modifica-se de acordo com o tempo e as socieda- cológicas, também passaram a interessar-se pelos des. No Ocidente, da Idade Média até o século XVI, intersexuais nos últimos anos, influenciadas pela eram considerados monstros e deviam ser executa- corrente feminista – que ao longo das últimas dé- dos, queimados e suas cinzas jogadas ao vento 6. A cadas vem discutindo e problematizando a relação partir do século XVII, surge jurisprudência de outro homem-mulher e a militância pela igualdade en- tipo: o hermafrodita não era mais condenado por tre os sexos, entre outros. Questões cruciais se ter dois sexos, e, uma vez reconhecido como tal, de- formulam: de que maneira os diferentes discursos veria escolher o sexo dominante e comportar-se de abordam e intervêm na clínica da intersexualidade? acordo com esse sexo. Seria condenado se usasse o Quais os desdobramentos na condução e no tra- sexo preterido, incorria nas leis penais e merecia ser tamento? As respostas para essas questões foram condenado por sodomia 7. No início do século XX, no delineadas a partir de um breve percurso histórico Ocidente, sob o olhar da Medicina, a intersexualida- das diferentes concepções que trataram do tema e de passa a ser considerada má-formação, patologia pela investigação psicanalítica sobre a sexualidade que deve receber a atenção, os cuidados e as inter- humana. venções médicas.

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Essas concepções, no entanto, não podem cia para tratar pacientes com AG. A era cirúrgica ser tomadas de maneira determinista. Estudos an- demonstrou algo fundamental na clínica da interse- tropológicos encontraram em certos povos tribais xualidade: a compreensão da sexualidade humana concepções culturais autóctones de intersexualida- e, mais especificamente, a influência direta da ma- de, que conotam a característica como algo natural. neira de caracterizar a diferenciação entre os sexos Imperato McGinley e colaboradores 8 descreveram, sobre a forma de abordar, intervir e tratar a AG. As com base em estudos antropológicos, casos de in- intervenções ocorrem orientadas pela explicação te- divíduos com pseudo-hermafroditismo masculino órica eleita. A mudança no modo de compreender que são criados como meninas e que assumem a o processo de definição sexual nos seres humanos identidade masculina na juventude. Os estudos de modificou os critérios para indicar e realizar as ci- Gilbert e Davidson 9 realizados na Nova Guiné rela- rurgias de transgenitalização, ou de correção dos tam, igualmente, casos de pseudo-hermafroditismo genitais. Posteriormente, esse novo modo de con- masculino designados como o terceiro sexo. Nessa ceber a sexualidade promoveu o declínio do período cultura, admite-se a possibilidade de existirem três cirúrgico, por volta dos anos de 1980. gêneros: homem, mulher e turning-men. Disso se A emergência do paradigma de identidade de depreende que a cultura de cada grupo social en- gênero, do sexólogo John Money, foi decisiva para contra respostas diversas para lidar com a questão a indicação das cirurgias de bebês intersexuados. 10 biológica da ambiguidade genital . Segundo Money e Ehrhardt 13, a identidade de gê- de atualização Artigos Na medicina ocidental, a história da interse­ nero refere-se aos processos mentais nos quais está xualidade é descrita em três grandes fases ou “era”: implicada a capacidade do indivíduo de reconhecer- a das gônadas, a cirúrgica e a do consenso. A pri- -se pertencente ao sexo masculino ou feminino. O meira delas, a era das gônadas, vai desde o final do papel do gênero (gender role) abrange, além das ati- século XIX até os anos 1920 11. Nesse período, foram vidades eróticas, atividades não genitais, definidas criadas as primeiras classificações médicas, ainda pelas convenções sociais e atribuídas distintamente usadas nos dias atuais, como o “hermafroditismo”. a homens e mulheres. O conceito de gênero não Na definição gonadal do sexo, não importava a fun- inclui apenas um estado biológico, como homem ção dos tecidos, ovariano ou testicular, o aspecto do e mulher, mas também remete à questão do re- genital, o tamanho do pênis, a presença de conhecimento íntimo, à atribuição social, ou legal. ou de mamas, a aparência ou o papel sexual 12. Portanto, não está apoiado exclusivamente nas dis- Essa forma de pensar começa a modificar-se tinções genitais, abrangendo o corpo e os critérios com o avanço da ciência e da técnica. Por um lado, de comportamento. os exames de biópsia possibilitaram o conhecimen- A neutralidade psicossexual foi outro concei- to da existência de hermafroditas verdadeiros; por to introduzido por Money que o ajudou a embasar outro, a designação masculina e feminina, baseada suas ideias. Segundo Pino, o sexólogo defendia que somente no critério da presença de suas respecti- a constituição sexual dos seres humanos podia ser vas gônadas, mostra-se insuficiente para resolver tratada em termos de comportamento (sexual), a questão de como a definição do sexo é realizada. como algo que poderia ser apreendido, ensinado, Esses questionamentos dão início à reavaliação da modelado. Tal sexualidade era considerada tema pe- definição gonadal do sexo. dagógico: Entendia-se que a condição de ser homem A era cirúrgica surge com o desenvolvimen- ou mulher não seria inata, mas apreendida e sujeita 11 to científico da década de 1950. Nessa época, são a influências culturais e ambientais . Pino ressalta realizadas as primeiras cirurgias de “correção” dos que, para Money, o comportamento sexual não viria genitais: o avanço das técnicas operatórias, como totalmente de um instinto natural e sim da educação 11 a anestesia e a assepsia, contribuiu para o início e dos processos de socialização . Ainda de acordo dessas intervenções 11. Nessa fase, que durou até o com Money, conforme Pino, as crianças intersexua- início de 1990, a definição do sexo era feita pelo clí- das não deveriam ser informadas sobre a cirurgia, 11 nico, e cabia ao cirurgião “corrigir” o genital. nem mesmo sobre sua condição . Conforme afian- çava, tais informações poderiam interferir em sua Tal prática recebeu influência determinante identidade de gênero ou na identidade de gênero na dos trabalhos de John Money, na década de 1960. qual se pretendia modelá-las. Portanto, as cirurgias Seus pressupostos foram tomados como referên- realizadas eram fundamentadas na teoria da neutra-

http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 73 Intersexualidade: uma clínica da singularidade

lidade psicossexual, concepção que mantinha elidida nalítica para explicar a constituição sexual humana. Os tanto a subjetividade em constituição das crianças procedimentos médicos respaldados nas teorias de quanto a importância dos pais no processo. Money foram questionados e modificados. Tais mu- Segundo a teoria psicanalítica, Money levou danças concorreram para o declínio da era da cirurgia. em consideração apenas os aspectos da consciência O fim desse período, na década de 1990, é ligados ao comportamento, àquilo que pode ser ob- marcado pela manifestação de pacientes interse- servado nas atitudes e manifestações do indivíduo, xuados que começaram a prestar depoimentos e a ou seja, os processos imaginários relacionados com introduzir a dimensão da subjetividade, com a pu- o eu; além do que, manteve seus conceitos vincu- blicação de suas biografias. Desse modo, propõem lados aos processos biológicos. Os elementos do questões sobre a incidência das intervenções médi- registro imaginário não dão conta de outros, tam- cas e da própria condição intersexual, incluindo-as bém fundamentais, tratados pela teoria psicanalítica como elementos em sua constituição psíquica e lacaniana, como aqueles referentes aos registros do sexual. A comunidade dos indivíduos intersexuais real e do simbólico. O real, para a psicanálise, é o surge, nesse momento, pressionando para que a que não pode ser apreendido pela linguagem. O história pessoal, ou a singularidade da experiência simbólico está ligado ao que é do domínio da lingua- de cada um, fosse considerada fator importante na gem, e o imaginário refere-se à imagem, é o registro determinação do sexo.

Artigos de atualização Artigos 14 vinculado à constituição do eu. Segundo Lacan , Assim, tem início a era do consenso, marcada estádio do espelho no , o eu se forma mediante o pela revisão das condutas na clínica da intersexuali- processo identificatório, no qual estão implicados: a dade. Esse momento foi considerado o período do Gestalt prematuridade do bebê humano, a da ima- consenso, porque propõe uma conduta individualiza- gem especular e o reconhecimento vindo do Outro. da, com base nas características de cada caso(…) além A corrente biológica parece ter concluído da de uma ampla discussão sobre as futuras condutas a experiência de Money que a sexualidade humana serem estabelecidas para esses pacientes 16. A deter- só pode ser determinada pelos fatores biológicos minação sexual humana, nesse período, deixa de ser (cerebrais, genéticos, hormonais etc.) e/ou sociais. assunto restrito aos fatores orgânicos ou biológicos, Diamond 15 critica as teorias de Money, defenden- bem como aos estímulos e influências ambientais. do uma concepção biológica do sexo. Para ele, a Contudo, tais fatores – aqueles biológicos e sociais sexualidade é determinada pelo cérebro. Sua teo- – participam agora como elementos integrantes do ria apresenta a discussão circunscrita a uma lógica processo de subjetivação, caminho que o pequeno dualista que, sem responder às dúvidas, mantém o bebê percorre rumo à assunção de sua sexualidade. impasse. Segundo o binômio, o que não é biológico Tal modo de compreender a sexualidade é aprendido, ou, de outro modo, o sexual, ou é ina- aproxima-se daquele desenvolvido pela teoria psi- to, ou é adquirido. canalítica segundo a qual a constituição psíquica é Freud ultrapassa a questão do discurso dual. essencialmente determinada pela entrada do bebê Ele afirma que a sexualidade humana não é nem na linguagem, a qual decorre da relação com o inata e nem adquirida. O ser humano não está sub- Outro. O Outro, segundo a teoria psicanalítica laca- metido ao instintual, mas ao pulsional. A linguagem niana, faz referência à linguagem, o Outro da cultura. é o que vem subverter a condição biológica. Ser Os pais são os seres privilegiados na transmissão da macho ou fêmea não coincide com ser homem ou linguagem. A estruturação psíquica, portanto, in- mulher, porque podemos nascer determinados bio- clui elementos ligados à identidade sexual, que se logicamente, macho ou fêmea, mas essa condição realiza nos seres humanos mediante a linguagem será traduzida em o que é ser homem ou mulher. transmitida pelos pais. Uma construção singular, particular, e que, por isso mesmo, não pode ser aprendida, mas construída. O início dessa construção passa pela transmissão que Constituição da sexualidade na teoria o Outro faz ao pequeno bebê por via da linguagem. psicanalítica Nos estudos sobre a sexualidade, a psicaná- lise apresenta outros fatores que fazem parte do O acompanhamento psicológico dos casos de processo de definição sexual infantil e que ficaram DDS revelou a importância de identificar, em cada desconhecidos no trabalho de Money. A subjetividade, caso, os dilemas enfrentados pelo responsável pela a participação subjetiva dos pais, a sexualidade infantil criança e as questões que a própria criança é capaz são alguns dos temas desenvolvidos pela teoria psica- de formular. Observou-se que é fundamental escla-

74 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Intersexualidade: uma clínica da singularidade recer e definir teoricamente os fatores que fazem Contudo, mesmo diante da impossibilidade de parte do processo de constituição subjetiva. tomar seu bebê como menina, a criança é registrada As investigações sobre a constituição sexual com um nome feminino, conforme a orientação mé- humana preconizadas pela teoria psicanalítica fo- dica. A questão da perda de seu filho impõe-se de ram retomadas a fim de subsidiar as discussões que várias maneiras. A primeira, com o anúncio do sexo permeiam a questão da diferenciação entre os sexos feminino. Depois, com o afastamento dos cuidados maternos, a criança adoece e passa a receber os cui- em crianças com ambiguidade genital. Essa pesquisa dados da instituição hospitalar. Mais tarde, a mãe pode ser demonstrada a partir da casuística. O caso recebe o aviso de que poderia perder o direito de relatado a seguir foi acompanhado em dois períodos cuidar de seu filho. Finalmente, ela percebe que a da vida do paciente – do nascimento aos 4 anos e própria vida da criança estaria ameaçada, caso per- dos 8 aos 16 anos – pelo Ambulatório da Divisão de manecesse afastada. Endocrinologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O reinvestimento da mãe interrompe a série de internações. Claramente, o problema do sexo da Uma mãe, logo após o parto de seu tercei- criança estava em questão. A mãe relata que, diante ro filho, recebe a notícia de que não seria possível da ameaça de morte, faz uma promessa de que cui- identificar, a partir do genital, o sexo do bebê. Toma- daria da criança, independentemente do sexo que

da de muita surpresa, sente-se despreparada para de atualização Artigos tivesse. Entretanto, não consegue cumprir sua pro- compreender a situação e se esforça para procu- messa. Não consegue acreditar que o menino havia rar uma solução, o mais breve possível. O médico deixado de existir. ginecologista orienta a mãe a procurar o serviço especializado no tratamento dos DDS. A mulher re- Aos olhos da mãe, a criança continuava sendo cebe também a orientação de aguardar o resultado a mesma, ou seja, um menino; isso apesar de seu dos exames, antes de fazer a escolha do nome e o nome ter sido mudado, de a cirurgia de correção registro da criança. O diagnóstico encontrado foi da genitália ter sido realizada e iniciado o uso do pseudo-hermafroditismo feminino, atual DDS 46, XX medicamento. A partir dos 8 meses, a mãe passou induzido por excesso de andrógenos. Ao observar o a vestir a criança como menina e a chamá-la pelo genital do bebê, a mãe acredita que, certamente, os nome de registro: o nome feminino. médicos concluiriam tratar-se de um menino. Além Mas essas ações não passaram de um disso, não podia admitir que a criança, com um ge- cumprimento pragmático das prescrições e pro- nital tão semelhante ao dos meninos, pudesse se cedimentos médicos. Vigorava no pensamento tornar uma menina. materno que aquela criança continuava a ser um Dividida entre o desejo de que a criança fosse “menino-homem”, conforme gostava de dizer. Ago- um menino e a obrigação de continuar a investigar o ra, somada à ambiguidade genital, eis que surge Antes que acontecia com o bebê, inicia os exames. No ser- outra ambiguidade: a sexual. A mãe afirma: “ do diagnóstico, era um menino. Depois, passou a viço especializado recebe, novamente, a orientação ser uma menina para os médicos e um menino para de aguardar o diagnóstico para que a criança fosse mim (…) nunca consegui acreditar que ele fosse registrada. É alertada da possibilidade de o bebê ser uma menina”. uma menina. A mãe faz essa declaração ao retornar ao Alguns meses se passaram, a espera prolon- tratamento, quando a criança contava 8 anos de ga-se. A mãe observa que a criança se desenvolve idade. Naquele momento, a mãe não sabia di- saudável, como seus outros filhos. Intimamente, já zer a qual sexo seu filho pertencia, nem a criança não tem mais dúvidas: com aquele genital, só podia tampouco. Desse modo, ela transitava entre os ser um menino. Dá um nome provisório ao bebê, dois sexos: formalmente, na escola e no consultó- mesmo sem registrá-lo. rio médico, era menina; na intimidade, em casa e A criança contava 8 meses, quando a mãe re- entre os amiguinhos da rua, a criança declarava-se cebe a notícia de que, de fato, se tratava de menina. menino. A escuta psicanalítica permitiu identificar e Fora encaminhada ao registro e orientada sobre a esclarecer uma contradição entre a demanda que a cirurgia para correção dos genitais. A criança deveria mãe e a criança trazem no momento do retorno ao fazer uso de medicamento para não voltar a virilizar. tratamento: “Não sei o que sou” e, mais tarde, a de- Longe de trazer a solução, o diagnóstico provocou claração de que a criança faz uma escolha subjetiva uma reação: a mãe sente que não pode cuidar da de seu sexo aos 4 anos, quando declara que é um criança, com esse sexo declarado pelos médicos. menino, momento que mãe e filho decidem aban- http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 75 Intersexualidade: uma clínica da singularidade

donar o tratamento, uma vez que o sexo designado situações de constrangimentos e embaraços, que pela biologia contrariava sua decisão. impediam sua inserção social, principalmente na es- Aos 4 anos, a criança passou a afirmar que cola. Ele se perguntava o que definiria seu sexo: a não era uma menina, mas, sim, um menino. A mãe biologia ou sua identidade, sua história que o levou ficou feliz, pois a atitude da criança era a confirma- a fazer uma escolha subjetiva e passar a afirmar que ção de suas suspeitas desde a maternidade. Afinal, era um menino? nunca conseguiu entender muito bem como os mé- Em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualida- dicos afirmavam o contrário. Sendo assim, a mãe e de” 17, Freud define a sexualidade inicialmente como a criança, então com 8 anos de idade, decidem re- perversa e polimorfa, uma vez que, nessa sexuali- tornar ao tratamento para que a situação ambígua dade, a pulsão sexual tem seu modo de satisfação pudesse ser resolvida. A criança decide abandonar a experimentada no próprio corpo, recortado em zo- escola, para evitar os constrangimentos pelos quais nas erógenas. A pulsão sexual apresenta-se como passava diante de professores e colegas. A todo o uma modificação das funções naturais, desviadas do momento, via-se questionado sobre sua ambiguida- objetivo originário, ligado à autopreservação. de: “Não quero ser chamado de ”, declara ele em Nesse texto, que aborda questões fundamentais sua primeira entrevista. da sexualidade humana, Freud comunica os achados A ambiguidade genital fora tratada pela medi-

Artigos de atualização Artigos da pesquisa psicanalítica relativa ao tema da sexuali- cina, mas retorna em decorrência da ambiguidade dade, que o leva a retificar a visão cotidiana de que sexual. Não é verdade que todos os sujeitos nasci- a sexualidade estaria ausente na infância e que so- dos com ambiguidade genital se tornarão ambíguos mente se manifestaria na puberdade, ligada à função sexuais no futuro, como pudemos observar na clí- reprodutiva. Para ele, há um início bifásico, a sexua- nica em vários casos de DDS. É exatamente esse lidade humana inicia-se em tenra idade e, depois de aspecto que o caso Rodrigo revela; ele faz a sua um período de latência, reinicia-se na puberdade. identificação sexual no tempo esperado. A singula- ridade experimentada pelo sujeito no processo de Essa contribuição de Freud é contrária à argu- constituição subjetiva é o que, afinal, explica o fato mentação proposta atualmente por uma corrente de que nascer com o sexo biológico definido não de pesquisadores que sugerem suspender as cirur- garante a inexistência de uma ambiguidade sexual, gias corretivas em casos de AG ou qualquer outra como demonstram os famosos casos de transexua- intervenção que possa definir o sexo do bebê no lismo. No caso Rodrigo, uma escolha sexual foi feita, início da vida, apoiados na ideia de não haver neces- ele realiza uma identidade sexual que é declarada sidade de designar o sexo dos bebês, uma vez que as por ele, já aos 4 anos de idade, como masculina. A questões sexuais somente surgiriam com o advento contradição, no momento de sua chegada, se desfaz da puberdade. Desse modo, melhor seria aguardar no decorrer do tratamento, e essa vai ser sua de- para que a própria criança faça sua escolha guiada 18 manda de saída: receber do médico uma declaração ou determinada pelo sexo cerebral . que pudesse dar a ele a possibilidade de mudar seu A nosso ver, a questão que se apresenta não nome e seu sexo, legalmente. está no fato de se fazer ou não a cirurgia ou qualquer Todavia, por que persistia a ambiguidade sexu- outra intervenção, mas a argumentação evidencia al, se a mãe e, principalmente, a criança afirmavam, um pensamento equivocado. É facilmente compro- na intimidade, saberem que o sexo era o masculino? vável que a sexualidade está presente na infância. Além disso, ele já havia escolhido outro nome, um Também é verdade que a ausência dos procedimen- nome inequivocamente masculino, que lhe permi- tos médicos ou de outra intervenção, como a de dar tia circular entre os colegas. Quanto à sua imagem um nome, não é de modo algum garantia de que corporal, apresentava-se virilizado, por ter abando- essa criança não teria problemas para realizar sua nado o tratamento. Desde os 4 anos, usava roupas identidade sexual. Ao contrário, ela provavelmente masculinas. Sua demanda de tratamento logo é es- encontraria dificuldades ainda maiores. clarecida: “Não quero ser confundido com gay, não Vejamos o que revelou a análise do caso Rodri- quero ser um intersexuado”. go. Logo de início, temos as diversas interpretações Embora tivesse promovido mudanças e assu- que a mãe se viu forçada a fazer para atender às mido a sexualidade masculina, não podia ignorar a necessidades do bebê. A condição de desamparo existência do diagnóstico médico, que dizia tratar-se obriga a mãe a transformar o grito, que, em si, não de uma menina. Seu nome e sexo de registro tam- quer dizer nada, em chamado, em demandas. Ela se bém eram o feminino. Desse modo, vivia exposto a viu forçada a responder à pergunta: “O que ele de-

76 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Intersexualidade: uma clínica da singularidade seja?”. Já na maternidade, ela olha o bebê e busca um investimento libidinal naquela criança como me- sinais que possam auxiliá-la nos cuidados. O que ele nino. A visão do genital masculino foi decisiva para quer? Por que chora? Do que gosta? Como vai ser que a mãe passasse a acreditar que seu bebê era um quando crescer? São perguntas que as mães se fa- menino. Impressão tão contundente que conduziu zem e que a mãe em questão não hesitou em fazer. a mãe a concluir que, certamente, teria mantido a É por essa razão que não pôde levar seu mesma convicção, ainda que fosse possível aos mé- bebê para casa sem ter uma impressão acerca do dicos declararem, logo após o parto, que se tratava sexo da criança. Ela argumenta que os médicos de uma menina. Cabe ressaltar que a experiência podiam esperar para saber se o bebê era menino vivenciada pela mãe fora transmitida à criança de ou menina, mas, para ela, esperar era uma tarefa maneira verbal, mas, principalmente, que o lugar impossível. Isso se deve ao fato de que, para arcar que a criança ocupou no desejo da mãe contribuiu com a responsabilidade de cuidar do bebê, ela pre- como elemento fundamental para a formação da cisava saber de quem estava cuidando. Para essa dentidade da criança, tornando-se parte de sua pró- mãe, cuidar de um menino era muito diferente de pria história. cuidar de uma menina. Compreende-se por que a Sabemos que, quando uma criança nasce, seu criança cai no abandono no momento em que ela sexo é designado pela anatomia. O caso de Rodrigo recebe a notícia de que seu filho não era menino. ensina que a anatomia continuou a ser o elemen- Passa a queixar-se de não saber mais como cuidar to decisivo para a definição do seu sexo, a partir do de atualização Artigos do bebê. olhar da mãe. Porém, não é sempre assim: a obser- Enquanto pensava que era um menino, ela vação da clínica, caso a caso, revela que a sexuação não tinha dificuldades porque já tinha feito uma sé- não acontece da mesma forma para todos os indi- rie de interpretações sobre o que ele queria e do víduos. Existem situações clínicas cuja anatomia que gostava. Quando lhe disseram que ele era uma da genitália não oferece possibilidade alguma de menina, não sabia mais nada em relação àquela afirmar tratar-se de um menino ou de uma menina. criança, que lhe surgiu como alguém impossível de Nesses casos, a mãe ou os pais encontram-se efe- cuidar. A mãe, naquele momento, vacilou e pensou tivamente obrigados a aguardar pela investigação que, talvez, seu marido tivesse razão: quem sabe médica. Entretanto, nos casos em que há prepon- outra pessoa, mais qualificada e de posses, pudesse derância anatômica para um ou para outro sexo, cuidar melhor da criança do que ela? os pais acabam por ter uma impressão, a partir da A mãe então fez a si mesma uma pergunta observação dos genitais, que termina por definir o instigante: “O que ocorreu entre mim e o bebê, até sexo da criança. Essa impressão muitas vezes pode agora, não vai trazer consequências para ele no fu- não coincidir com o sexo biológico. turo?”. Afinal, até os 8 meses, o bebê estava sendo tratado como menino. Tinha uma identidade, um Considerações finais nome. Diante disso, perguntava-se se seria possível passar a tratá-lo como menina, ponderando sobre aquilo que considerava a resposta: “Se eu começar a Distinguir a ambiguidade genital da ambigui- chamá-lo por outro nome, um nome de menina, ele dade sexual é essencial para aqueles que trabalham pode ficar confuso”. na clínica dos distúrbios da diferenciação sexual. A ambiguidade genital remete a um problema de Se, por um lado, esses pensamentos a ator- ordem biológica: a dificuldade encontrada para mentavam, por outro, pensava que os médicos distinguir a diferença anatômica dos sexos - apar deviam saber o que estavam fazendo. Decide, en- tir dos genitais. A ambiguidade sexual refere-se às tão, ignorar seus temores e atender às orientações vicissitudes da escolha do sexo, que compreende médicas. Nesse momento, confusa por “não saber processo mais abrangente, envolvendo um conjun- o que seria melhor para a criança”, transfere a res- to de elementos que vão além da discussão sobre a ponsabilidade para o saber científico, representado genitalidade. A ambiguidade sexual coaduna-se com pela medicina. É o momento de seu afastamento e o processo descrito por Freud, como referente à or- da entrega da criança aos cuidados médicos. A situ- ação torna-se insustentável. Segundo ela: “Não quer ganização da sexualidade. dizer que não desejasse ou não soubesse cuidar de A ambiguidade genital pode ser diagnosticada meninas, pois já tinha um casal de filhos”. O fato é logo no início da vida. Quando ocorre e é identifi- que havia uma história entre essa mãe e esse filho cada, constitui-se um problema apresentado à mãe que não tinha como ser apagada. Ela já havia feito no início da vida do bebê. Ela é o primeiro sujeito http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 77 Intersexualidade: uma clínica da singularidade

que, antes da própria criança, tem de lidar com a ta alguma coisa: dor, fome, sede, frio, desconforto, questão. Isso não é sem consequência para a crian- sono etc. A mãe terá de ser capaz de traduzir o que ça, pois será a mãe quem apresentará as primeiras o bebê necessita. significações de mundo ao bebê. Desse modo, a Temos, aqui, algo essencial: a relação entre a mãe é o sujeito que inicia o texto da criança, que irá criança e a mãe inicia-se apoiada na satisfação de reeditá-lo mais tarde, quando já estiver submetida necessidades biológicas, tais como a fome e a dor. à linguagem. Com a intromissão da mãe, esse “ser primordial”, A clínica da intersexualidade é singular, pois engendra-se algo além da pura e simples nutri- traz à cena a questão do acaso e da temporalidade. ção. Ao responder ao grito, a mãe introduz algo da O bebê poderá ser ou não diagnosticado no início subjetivação, algo relacionado com o desejo, mar- da vida. Logo, a criança está sujeita ao acaso por- cado pela alternância presença-ausência da mãe. que depende daquele de quem recebe os primeiros Tais fatos descritos na teoria psicanalítica também cuidados. Esse é um fato decisivo e que traz con- se tornam relevantes ao tratarmos da criança com sequências, visto que um bebê não tem recursos genitália ambígua. Por essa razão, é imprescindível capazes de promover a satisfação de suas necessi- esclarecer de que modo a família toma a questão da dades vitais. ambiguidade genital e de que maneira a transmite Tal condição de incapacidade de satisfazer-se, à criança. Artigos de atualização Artigos com a qual nasce o organismo humano, é denomi- As questões relacionadas com a tempora- nada por Freud “desamparo inicial” (anfängliche lidade e a contingência suscitadas na clínica dos Hilflosigkeit). A experiência de satisfação só pode distúrbios do desenvolvimento sexual trazem ao ser realizada se, por acaso, existir uma intervenção campo da medicina uma importante discussão, vinda de fora, do mundo externo, que promova uma destinada a interrogar e a investigar qual seria o mo- ação específica. Essa ação é um trabalho realizado mento mais adequado para tratar a ambiguidade por uma pessoa experiente, que atende ao grito do genital. Trata-se de uma questão ética e epistemo- bebê. Esse processo constitui o princípio do fun- lógica. Ética, por exigir um posicionamento, uma cionamento mental. Ele dá origem à comunicação escolha, um julgamento, uma deliberação. Refere- entre a mãe e o bebê. -se à preocupação sempre presente, evidenciada Desse modo, é exatamente o desamparo ini- na pergunta: “O que seria melhor para a criança?”. cial que acaba por introduzir o bebê no mundo das Epistêmica porque, se acreditamos que na infância relações. Suas necessidades vitais são inicialmente há subjetividade, elaboração psíquica e sexualidade, sinalizadas por ele mediante uma descarga. A mãe a intervenção será orientada de forma a considerar ou a pessoa que acolhe essa descarga – que surge o posicionamento subjetivo da criança ou a partir como um grito – interpreta que o bebê experimen- das questões que ela mesma é capaz de fazer.

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http://dx.doi.org/10.1590/1983-80422015231047 Rev. bioét. (Impr.). 2015; 23 (1): 70-9 79