Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020

GEOSMINA E BARBÁRIE: ocaso da 1 GEOSMIN AND BARBARISM: the decline of citizenship Luana Bulcão 2 Michel Misse Filho3 Raquel Paiva4

Resumo: O presente artigo pretende discutir a relação entre cidadania, cidade, saúde pública e corpo a partir dos casos da poluição da Baía de Guanabara e a recente crise no abastecimento da água da bacia do Guandu. Por meio da análise de matérias do jornal objetiva-se compreender de que forma a falta de informação da população sobre o tratamento das águas no influencia na sua vivência da cidade. Considerando que cidadania é um conceito etimologicamente conectado a cidade e, para exercê-lo de forma plena, se faz necessário uma apropriação política e afetiva do espaço urbano, questiona-se como as ideias de justiça e racismo ambiental relacionam-se com essa concepção cidadã no fenômeno de disseminação da geosmina e no caso da poluição das águas do cartão postal da baía de Guanabara.

Palavras-Chave: Cidadania. Informação. Saúde pública.

Abstract: This article aims to discuss the relationship between citizenship, city, public health and the body based on the cases of pollution in Guanabara Bay and the recent crisis in the water supply in the Guandu basin. Through the analysis of articles in the newspaper O Globo, the objective is to understand how the lack of information from the population about water treatment in Rio de Janeiro influences their experience of the city. Considering that citizenship is a concept etymologically connected to the city and, in order to fully exercise it, a political and affective appropriation of the urban space is necessary, it is questioned how the ideas of justice and environmental racism are related to this citizen conception in the phenomenon of geosmin dissemination and in the case of water pollution in the postcard of Guanabara Bay.

Keywords: Citizenship. Information. Public health.

1. O verão da geosmina

Alguns dias após a entrada de 2020 o carioca foi surpreendido com uma mudança na cor, cheiro e aspecto da água que adentrava suas casas. Na sexta-feira, dia 3 de janeiro de 2020, os primeiros telejornais matutinos mostravam a água barrenta que saía da torneira em vários bairros da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A mídia enfatizava o "silêncio

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania do XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação/UFRJ sob orientação da professora Doutora Raquel Paiva, bolsista CAPES, [email protected]. 3 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação/UFRJ, [email protected]. 4 Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora 1A do CNPq, [email protected].

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 ensurdecedor” do governador do RJ5 e os canais não-oficiais espalhavam todo tipo de boato sobre a procedência da água turva. Nos celulares, através do WhatsApp, muitos vídeos amadores e reprodução de matérias divulgadas na mídia tradicional. Em menos de 72 horas iniciou-se a corrida aos supermercados e vendinhas para a compra de água mineral. Os primeiros a sumirem das prateleiras foram os galões de 2,5l e de 5 litros. Na sexta-feira, dia 10, nos supermercados das zonas sul e central já não havia mais garrafas de 1,5ml de água. Apenas garrafinhas de 500 ml eram encontradas em padarias e bancas de jornais. O boca-a-boca, agora substituído pelo zap-zap, dava conta de que a situação era gravíssima. Quem não podia comprar ou não tinha feito um estoque de água mineral, deveria fervê-la. Os filtros estavam todos condenados porque, segundo “informações semi-técnicas”, a geosmina – sim, não havia carioca que não soubesse nomear o vilão da história - ficava alojada nas engrenagens dos filtros. Os casos de enjoos e diarreias eram relatados aos montes e houve até relatos de mortes, supostamente ocultadas, mas nunca confirmadas. Uma semana depois do primeiro relato de água turva, o caos já estava instalado: beber, escovar os dentes e até tomar banho, só com água mineral ou fervida. A população circulava numa caça frenética à água mineral engarrafada, comprando tudo que achava. Por volta da quinta-feira, dia 16, o zap-zap e algumas mídias impressas já apontavam a geosmina como a "ponta do iceberg". O problema mesmo, mostravam as imagens de vídeos, eram os rios poluídos, carregando esgotos de todo tipo, desembocando no rio Guandu, responsável pelo abastecimento de toda a cidade. O lançamento de dejetos sem tratamento não era uma grande novidade, mas a informação -junto à crise hídrica- caiu como uma bomba, estando o governador Wilson Witzel fora do Rio, portanto, sem consumir a água poluída, enquanto o diretor da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) andava de carro blindado e bebia água mineral. Witzel, se aproveitando do “pânico urbano” instalado na metrópole carioca, afirma que a despoluição do rio Guandu só seria possível com a verba resultante de um leilão da Cedae6, que já figurava desde 2017 na lista de privatizações, como contrapartida à União pelo Regime de Recuperação Fiscal. Isto é: a única solução para anos de descaso do poder público com as regiões mais pobres da urbe carioca era a privatização da Cedae, enquanto boa parte dos cidadãos, sem condições para

5 Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-01-14/cariocas-questionam-silencio-de-wiztel-e- presidente-da-cedae-sobre-crise-da-agua.html. Acesso em 19 de fevereiro de 2020. 6 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/witzel-diz-que-despoluicao-do-guandu-depende-de-verba-obtida- com-leilao-da-cedae-1-24195031. Acesso em 19 de fevereiro de 2020.

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 comprar as já inflacionadas “garrafinhas de água mineral”, que se virassem fervendo a água e torcendo pelo melhor.

2. Cidade, corpo e saúde

Desde o início, o urbanismo como saber técnico de planejamento, construção e reconstrução das cidades esteve conectado tanto a ideia de saúde, higiene e limpeza; quanto a noção, compreensão do corpo humano. No livro Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental Richard Sennett (2014) discute a relação entre corpo e cidade, ou como as questões do corpo se expressam na arquitetura e no desenho urbano e vice-versa. A partir de uma retomada histórica – passando pela Atenas de Péricles, a Roma Antiga do imperador Adriano, a Paris da Revolução Francesa e a Nova York multicultural –, o autor constrói a hipótese de como o planejamento urbano aliado a aceleração imposta ao capital, produz, com o passar dos anos, um corpo passivo e individualizado. Sennett (2014) esclarece que o “corpo” tratado no texto é o corpo que representa um caleidoscópio de épocas, gêneros e raças, aquele que ocupa um espaço característico nas cidades atuais e passadas. Contudo, são os corpos dominantes que permanecem representados nas pedras da cidade, construindo espaços de poder apreendidos como reflexo de toda a imagem humana. Félix Guattari (2006) também trabalha a relação empreendida entre corpo e espaço, para o autor ambos devem ser pensados como fenômenos inseparáveis, isto porque o espaço seria fundamental na constituição dos modos de subjetivação e podem nos afetar de diferentes modos (históricos, funcionais, afetivos etc.). Na Atenas de Péricles, no tempo da guerra do Peloponeso, o calor do corpo era a chave para a compreensão da fisiologia humana. Acreditava-se que o corpo quente era mais forte e ágil, por isso os homens andavam expostos e exibiam sua nudez como um ato de ser cidadão. A “ciência” do calor corporal ditava as regras de dominação e subordinação, justificava direitos desiguais e espaços urbanos distintos. As mulheres, os escravos e os estrangeiros – considerados seres de corpos frios – deviam andar cobertos e se esconderem na penumbra das casas. Os atenienses construíam baseados no seu conhecimento de corpo, corpo que fazia parte de uma coletividade maior, ou seja, a pólis e a cidade. Dessa forma, Sennett (2014) explicita, o Parthenon foi edificado como símbolo do esforço cívico-coletivo, sua localização dramatizava os valores cívicos da cidade e simbolizava o jogo de superfícies do espaço

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 urbano e da democracia ateniense. As imagens dos corpos esculpidos representavam o corpo perfeito e nu do homem grego. Na Roma do imperador Adriano, entretanto, a construção do Pantheon foi embasada na consciência romana das simetrias e equilíbrios visuais, ou seja, na imagem e geometria do corpo humano. Sennett (2014) fundamenta que a geometria corporal dos romanos foi utilizada para ordenar o mundo onde governavam, tanto como construtores, quanto conquistadores. Quando fundavam ou reconstruíam uma cidade, esse povo estabelecia um ponto denominado de “umbilicus”, equivalente ao umbigo humano, de onde partiria a construção da urbe. O umbilicus funcionava como ponto de partida para o cálculo da geometria urbana e marco emocional de fundação da urbe. Ao contrário do templo grego Parthenon que podia ser avistado de várias partes da cidade, o primeiro templo romano chamava atenção por sua fachada, onde se concentravam os elementos decorativos e, internamente, era ornamentado de forma a orientar o sentido do olhar. Dessa forma, geometria do espaço romano obedecia a regra do olhar e disciplinava o movimento corporal. A simetria do poder presente na arquitetura da Roma Antiga, regulava tanto o domínio público, quanto a intimidade de cada um. As casas, por exemplo, espelhavam a realidade da vida urbana, evidenciando, nas características de sua construção, as classes, a clientela, as idades e as propriedades de seus moradores. No século XVI, Sennett (2014) explora como o cristianismo impôs novas formas ao espaço urbano. Na Alta Idade Média e início do Renascimentos, os parisienses cristãos sentindo seus ideais de comunidade ameaçados pelos povos não-cristãos – principalmente os judeus, que atraídos pelo ideal de economia urbana no continente europeu tornavam-se cada mais numerosos – criaram o Gueto de Veneza. No livro Construir e habitar: ética para uma cidade aberta Sennett (2018) disserta sobre as duas maneiras de rejeitar o outro estranho: a fuga ou o isolamento. A fuga, segundo o autor, está relacionada a uma necessidade de construção da subjetividade individual a partir da eliminação da dissonância que o outro representa. Enquanto a exclusão, como no caso dos judeus em Veneza, torna-se necessária quando esses outros desprezados são também necessários. O autor fundamenta que a geografia da cidade italiana, sua ecologia insular, foi utilizada como ferramenta para produzir um espaço de segregação mais eficaz. Como as ruas venezianas são na verdade seus canais, as águas dessa urbe funcionavam como uma espécie de muralha – posteriormente substituída por muros realmente de pedras – separando os

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 conjuntos de prédios numa espécie de arquipélago de ilhas. O tipo de exclusão iniciado em Veneza precisava apenas de um espaço que pudesse ser totalmente isolado e vedado, nesse caso, a água substituía o lugar das pedras, mas o primordial desse modelo arquitetural é o “emparedamento da diferença social, um novo princípio do traçado urbano europeu – o espaço do gueto – se cristalizou como forma urbana moderna” (SENNETT, 2018, p. 152). Michel Foucault (1979) no texto “O nascimento da medicina social” trata da questão da exclusão do outro estranho a partir de um olhar político-sanitário. Segundo o autor, existiram basicamente dois grandes modelos de organização médica na história do ocidente: o modelo promovido pela lepra (exclusão) e o suscitado pela peste (vigilância). Na Idade Média, o modelo médico político implementado era o de “tratamento” dos doentes através da expulsão do ambiente comum. O leproso, assim que descoberto, era expulso para além dos muros da cidade, exilado em lugar confuso para conviver entre outros iguais, igualmente leprosos. Era por meio da exclusão que se purificava o espaço urbano. A cidade, como entidade social, econômica e legal crescia e tornava-se tão diversificada que não era mais possível manter as pessoas juntas. Nascia, portanto, um dos grandes temas da sociedade moderna: para garantir a “pureza” da população mais numerosa, era necessário o isolamento da minoria. Na Veneza do século XVI, essa minoria era representada pelos judeus, cujos corpos eram tidos como um receptáculo de segredos e vícios. Atualmente, essa minoria não é mais quantitativa e sim política, a água do Gueto Veneziano é substituída por muros, cercas e cordões invisíveis de isolamento, o importante é fazer perdurar a segregação urbana desse outro estranho, porém necessário. A urbe gradualmente maior e com uma população cada vez mais numerosa passa a ser uma preocupação real para os chamados urbanistas da época. No século XVIII, a crise econômica motivou a migração em massa de jovens para as grandes cidades europeias, além disso, a falta de infraestrutura básica transformou cidades como Londres e Paris no ambiente ideal para proliferação de doenças epidêmicas que afetavam tanto ricos quantos pobres. Os surtos de cólera, peste, tuberculose entre outros males, ou seja, enfermidades resultantes de problemas de saúde pública, tornaram-se a principal preocupação para os planejadores citadinos da época. Em outras palavras, o corpo – primeiro coletivo, depois individual – e a salubridade da cidade impulsionaram vastas transformações urbanas. Segundo Foucault (1979) o controle da sociedade sobre os indivíduos começa pelo corpo, é no corporal, por meio da medicina como estratégia bio-política, onde primeiro

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 investiu a sociedade capitalista. O século XVIII, foi o período onde desenvolveu-se o que o autor denomina de “medo urbano”, isto é, medo da cidade, dos seus amontoados populacionais, estruturas, esgotos, dos cemitérios que invadem a cidade. Pânico urbano característico de uma inquietação político-sanitária consequência da formação do tecido urbano. A reação da burguesia ao medo urbano e aos surtos de doença da época foi a instauração do modelo médico-político da peste cujo plano consistia em vigiar, esquadrinhar, registrar e revistar exaustivamente os mortos e os vivos. Ao contrário do modelo suscitado pela lepra o modelo da quarentena fundamentava-se na individualização, registro, inspeção e vigilância da população. O nascimento da medicina urbana, uma medicina das coisas: do ar, da água, decomposições, fermentos, uma disciplina preocupada com a circulação dos elementos, com as condições de vida do meio ambiente. Paralelo a isso, a descoberta da circulação sanguínea por William Harvey alterou completamente a compreensão do corpo humano e com ela a noção de saúde e urbanização. O descobrimento de Harvey colocou a livre circulação como elemento fundamental para o corpo saudável, transposto para o desenho urbano, esse paradigma pensava a cidade como um corpo coletivo que para se manter saudável deveria dispor de vias e artérias desobstruídas. Sennett (2014) coloca que a revolução científica catalisada por Harvey mudou as possibilidades para planos urbanísticos no mundo todo, assim como, suas descobertas acerca a circulação do sangue e da respiração alteraram as ideias a respeito da saúde pública. Foucault (1979) aponta como o controle da circulação foi alvo da medicina urbana, porém, não a circulação dos indivíduos, mas sim das coisas e dos elementos, principalmente a água e o ar. Outro objetivo dessa medicina do século XVIII era a organização e distribuição de elementos comuns à vida da cidade, como por exemplo as fontes de água e esgoto. A contaminação da água de beber por dejetos foi considerada uma das principais causas de doenças epidêmicas na época. A partir da análise dos efeitos do ambiente sobre os indivíduos que se desenvolve uma importante noção para a medicina social, a ideia de salubridade. Diferente de saúde, salubridade significa a base material, as condições ambientais capazes de possibilitar a melhor saúde para os indivíduos. Paralelo a isso, propaga-se as noções de higiene pública, além de técnicas necessárias para controlar os elementos materiais do meio que são passíveis de favorecer ou prejudicar a saúde.

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Sennett (2018) explicita bem essas questões, quando trata das experiências técnicas empreendidas pelos urbanistas para melhorar a qualidade de vida no período. Por exemplo, a implementação de pedras lisas na pavimentação das ruas com propósito de facilitar a limpeza dos excrementos de cavalos. Ou a invenção do pissoir, o urinol, utilizado em ruas muito movimentadas, tinha como objetivo desencorajar o hábito masculino de urinar em público. Foucault (1979) fundamenta que foi só no século XIX, com a ameaça política representada pelas classes mais pobres, que a medicina urbana se voltou para o corpo individual do proletário. Após um surto de cólera de 1832, iniciado em Paris e propagado posteriormente por toda Europa, cristalizou-se na população urbana uma infinidade de medos políticos e médicos. A partir de então, começou-se a dividir o espaço citadino entre pobres e ricos, isto porque, a coabitação no mesmo ambiente dessas classes era considerada um perigo sanitário e político para a urbe. Com a Lei dos Pobres, na Inglaterra, desenvolve-se a organização de um serviço autoritário, que empreendia o discurso de cuidados de saúde, mas possuía como objetivo o controle médico da população. São os sistemas de health service e health officers cuja função consistia em controlar a vacinação, organizar o registro de doenças – obrigando a população a declarar doenças perigosas – a localização de lugares considerados insalubres e eventualmente a destruição deles. Na prática, o intuito era o de controle das classes mais pobres. Desponta, portanto, na Inglaterra do século XIX uma medicina de inspeção da saúde e do corpo das classes mais proletarizadas com objetivo de torná-las mais aptas para o trabalho e mais passivas em relação as classes mais ricas. A vida na cidade representa também o cuidar-se coletivamente, porque afinal estar apartado e isolado significa estar exposto a uma série de dificuldades historicamente próprias da natureza as quais o homem optou por combatê-las e vivenciá-las grupalmente. Por esta razão, a deterioração do que pode ser entendido como bem público, coloca o indivíduo a um passo do seu próprio fim. Ao urbanismo acrescentam-se as regras de civilidade e a partilha da cidadania ainda se encontram no horizonte civilizacional. Afinal a palavra cidadania está etimologicamente ligada a cidade, mesmo que não se costume incluir nos direitos de cidadania a apropriação extensiva do espaço urbano por seus habitantes, com vistas a torná-lo de fato habitável (acolhedor, agregativo), resgatando-o da degradação ambiental e da falência dos serviços públicos. Para alcançar esse patamar, é preciso entender cidadania, com palavras e ações,

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 como apropriação coletiva dos bens e valores criados no quadro da historicidade democrática, isto é, das conquistas ativamente obtidas pela movimentação soberana de um determinado grupo humano. Somente a partir desse entendimento, habitar pode deixar supor que os cidadãos façam da cidade uma apropriação política e afetiva. O desleixo com o bem ou patrimônio coletivo implica desta maneira um apartamento com o próprio horizonte civilizacional. E foi assim, com uma sequência de ações relegadas e descuidadas que na manhã de 3 de janeiro de 2020 o Rio de Janeiro começou a “descobrir- se” no novo milênio como uma cidade em que a população ingere água impropria para o consumo. Aos poucos ficou evidenciado que a sequência de desleixos vinha de longa data, com a poluição de seus afluentes e do seu mais precioso e mundialmente conhecido bem: a baía de Guanabara.

3. Rio de Janeiro e os casos da baía de Guanabara e baía do Guandu

Às voltas com problemas sanitários que vêm de décadas, curiosamente a cidade do Rio de Janeiro foi a terceira do mundo a ter um sistema de esgoto.7 As ruas evidenciavam as precárias condições sanitárias do Rio do século XIX já que, ainda como uma prática legal, era comum o lançamento de águas sujas pela janela da casa, bem como a atuação dos chamados “Tigres”: barris de acúmulo de dejetos humanos, lançados pelos escravos em fossas abertas ou na beira das praias. Após a morte de cinco mil pessoas decorrentes de uma epidemia de cólera em 1855, a cidade assinou contrato com a companhia inglesa City para a construção de uma rede de serviços de esgotamento sanitário doméstico. Já no início do século seguinte, são notórios de serem citados os projetos de reforma urbanística e sanitária do então prefeito Pereira Passos e do sanitarista Oswaldo Cruz, na construção de ruas largas e remoção de cortiços e suas populações. As transformações urbanas e pretensamente sanitárias se sucedem em outras gestões como, por exemplo, com a demolição do Morro do Castelo, em 1921, sob a administração do prefeito Carlos Sampaio. Apesar do maior enfoque em reformas necessárias para a “higienização” da cidade, o vertiginoso aumento populacional da capital federal ao longo do século XX não era acompanhado, todavia, de proporcional aumento na rede de coleta e tratamento de esgoto. Os

7 O sistema de esgoto do Rio veio após o de Londres (1815) e Hamburgo (1842). As informações são do site da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Disponível em: https://www.cedae.com.br/tratamento_esgoto

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 quase 300 mil habitantes de 1872 se tornariam cerca de 1,7 milhão em 1940 e ultrapassaria, trinta anos depois, a marca dos 4,3 milhões de habitantes8. Como consequência, uma das principais marcas da defasagem do saneamento fluminense veio a ser, a partir da metade final do século, a poluição de um símbolo fundamental da constituição da Região Metropolitana: a Baía de Guanabara, local de despejo de esgotos domésticos e industriais - além de derramamentos de óleo por navios e refinarias. Desde o início da colonização já se tinham os primeiros indícios de agressão ambiental à baía, na devastação de matas e extração de pau-brasil. Já no século XVII, a primeira obra sanitária da cidade foi a abertura de um valão na atual Rua Uruguaiana, que descarregava os esgotos e lixos da população na antiga Prainha, onde hoje é a Praça Mauá. Nota-se em uma pesquisa de notícias no acervo do Jornal O Globo, todavia, que o entendimento disseminado pela imprensa de que havia uma poluição hídrica da Baía de Guanabara é originário apenas da década de 1950 em diante, apesar de, eventualmente, outros tipos de degradação ambiental serem noticiados à época. Um bom exemplo é uma matéria de 1927, de primeira página, que traz o título “A impiedade humana devastando a natureza! Árvores que choram e rochas que parecem ter coração – como vão sendo sacrificadas as ilhas da Guanabara” (O GLOBO, 02/11/1927, p. 1). O texto, ainda desprovido de características do jornalismo moderno, é uma ode à preservação das belezas naturais, mas ainda não contempla o assunto da poluição das águas. Veremos que a primeira matéria que utiliza o termo “poluição” em referência à Baía de Guanabara data de 1957, o que não significa a inexistência de um considerável grau de poluição num momento anterior a esse. Prova disso é um relatório de 1943 do Dr. Del Vecchio, da Quarta Divisão da Inspetoria de Águas e Esgotos, que muito antes dos jornais já alertava para a gravidade da situação: “Tomar um banho hoje em dia na praia de Botafogo é banhar-se numa verdadeira caldagem de micróbios patogênicos, todos de origem fecal, veiculados na água do mar.” (COELHO, 2007, p. 139). Antes rotineiramente descrita de forma elogiosa por viajantes e personalidades em suas referências na imprensa, a Baía de Guanabara se constitui, cada vez mais, enquanto sujeito jornalístico a partir do momento em que se agrava o seu processo de poluição. A primeira matéria, intitulada “O peixe está desaparecendo: aterros, águas poluídas ou

8 Dados do IBGE de populações nos Censos Demográficos, segundo os municípios das capitais.. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 envenenadas contribuirão para que se desertem as águas da Guanabara – um técnico aponta providências imediatas para a solução do problema” (O GLOBO, 01/08/1957, p. 3) mostra uma poluição ainda localizada –em especial na região que compreendia a recém-criada Ilha do Fundão, fruto de aterros que impossibilitaram a circulação das águas- e traz uma entrevista do professor de oceanografia, pesca e piscicultura, Antônio da Costa Pimentel sobre o assunto:

Cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, mediante pesquisas, numa vasta zona da baía de Guanabara, determinaram as razões das poluições das águas, causas do desaparecimento da flora e fauna [...]. A leitura recente da impressionante súmula de trabalhos e observações a respeito da poluição das águas da enseada de Inhaúma e junto à ilha dos Pinheiros, no fundo da baía de Guanabara [...] trouxe nítidas e insofismáveis informações sobre esse mal que pode estender-se à maior superfície da baía de Guanabara (O GLOBO, 01/08/1957, p. 3).

Um primeiro momento do histórico de matérias sobre a poluição tem seu foco, via de regra, no comprometimento da fauna e da flora da região. De 1957 a 1968, a média de ocorrências dos termos “poluição” e “baía de guanabara” na mesma matéria é inferior a nove matérias por ano. Principal inflexão na análise quantitativa das matérias, o grande boom da pauta ambiental da baía, verificamos, dá-se entre 1969 e 1972, quando a média anual de ocorrências beira as noventa matérias. Fora das análises quantitativas (o ano de 1972 registrou o recorde até então de 162 matérias) entende-se que o principal destaque a ser dado para a análise compreende a virada da década. O gancho jornalístico já vinha de dois anos antes: às vésperas do Réveillon de 1968, teria início uma das principais controvérsias em relação à poluição da baía que, pouco depois, elevaria a discussão para outro patamar, para além do desaparecimento da fauna e flora, mas envolvendo a saúde humana. A discussão sobre se o banho de mar em determinadas praias da baía ofereceria perigo (ou não) aos banhistas invadiu os jornais naqueles anos e, num primeiro momento, O Globo reproduziu a posição do governo: “Saúde Pública: praia de Botafogo não oferece perigo aos banhistas”. (O GLOBO, 27/12/1967, p.5). No dia seguinte, uma reportagem anuncia o Rio de Janeiro “sob ameaça de hepatite no verão”, focando especialmente na Ilha do Governador e Praia de Ramos. A Superintendência de Saúde Pública do Estado (SUSAPE), por sua vez, nega haver perigo de surto de hepatite. A relação direta entre hepatite e poluição de águas ainda não era “confirmada” cientificamente.

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Após lembrar que ainda não foi estabelecido se a água marinha pode, em condições normais ser transmissora do vírus da hepatite, o Superintendente da SUSAPE salientou que os dados mais recentes sobre a incidência daquela doença na Ilha [...] deixam supor tudo menos a possibilidade de um surto: os índices demonstram haver, no local, um número de casos abaixo do próprio nível endêmico da doença. (O GLOBO, 28/12/1967, p. 11)

A controvérsia começa por meio de matérias da imprensa que ora denunciam a poluição e suas mazelas, ora trazem posições oficiais de órgãos do Estado ou de estudos desmentindo, relativizando, ou prometendo em curto prazo a solução dos problemas mencionados na denúncia. Logo em janeiro de 1968, a notícia “Água de praia não transmite doenças” trouxe exames do Instituto de Engenharia Sanitária (IES) da Superintendência de Urbanização e Saneamento do Estado da Guanabara (SURSAN), em que não foi acusada a existência de salmonelas –bactérias responsáveis pela febre tifoide- nas águas da baía de Guanabara. Quanto à hepatite, o diretor do Instituto, José de Santa Rita, afirmou que “ainda é discutível no mundo inteiro se a hepatite pode ser contraída nas praias”. Segundo ele, o principal problema das praias cariocas era de ordem estética, “o que só poderá ser corrigido com grandes obras de engenharia e a aplicação severa da legislação já existente sobre a poluição” (O GLOBO, 18/1/1968, p. 18). Ao final de janeiro, mais uma entre muitas matérias denuncia a destruição de peixes e plantas do fundo da baía em decorrência da poluição. Ao analisar as reportagens, abrem-se dois tipos de efeitos negativos da poluição: um relativo à fauna e flora - declarado como certo e sem aparentes contestações-, e o outro relativo à saúde humana, objeto de disputa na arena da opinião pública. Apesar do aumento de reportagens, a poluição ainda não configurava, todavia, um entrave para o carioca frequentador das praias. Em fevereiro de 1968 uma matéria expunha a situação da praia de Ramos que, mesmo poluída, permanecia lotada nos dias de sol: “Um quilômetro de desconforto para o banhista”.

A praia de Ramos, com aproximadamente um quilômetro de extensão, é mais importante do que muitas outras mais extensas. Ali se concentra o maior número de pessoas por metro quadrado e, aos domingos, a areia fica totalmente tomada, obrigando muitos banhistas a permanecerem dentro da água. [...] Segundo o Instituto de Engenharia Sanitária da SURSAN, a poluição das águas da baía de Guanabara, nas proximidades de Ramos, é a mais grave de todas as praias cariocas. Por isso, “não é aconselhável” tomar banho ali, mas nada tem sido feito para contornar tal situação. (O GLOBO, 2/2/1968, p. 5).

Os anos seguintes seguem com a controvérsia, pendendo mais para o lado da poluição e o risco de doenças. Em março de 1968, outro alerta: “Praias poluídas são grave ameaça para

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 os banhistas” já citando, inclusive, o suposto perigo de hepatite, ainda não confirmado na matéria. Três meses depois, outra liberação do banho na praia de Botafogo, após ficar interditada durante um mês. Já em 1969, o número de matérias que tratam da poluição da Guanabara aumenta de forma exorbitante. Em fevereiro, outra matéria trata da hepatite: “Perdura o perigo nas praias fluminenses”, falando do aumento dos casos da doença em Niterói, “quase todos provocados pela poluição das praias urbanas; as autoridades mostram- se impotentes para evitar os banhos de mar nos dias de calor”. O verão de 1970, no entanto, mudaria substancialmente a forma como a Baía de Guanabara era pautada pelos jornais. A discussão entre poluição e contração de doenças se acirraria ainda mais, com uma extensa matéria d’O Globo, publicada em 07 de janeiro, mostrando os dados de substâncias encontradas nas águas cariocas, coletadas pelo jornal e analisadas por um laboratório privado. É a primeira matéria do tipo, com uma tabela detalhada informando o conteúdo encontrado e o grau de poluição de todas as praias do Rio, com o título: “Metade das praias poluídas”. A praia de Botafogo era a única que estava interditada, e o jornal informa que “para as autoridades todas as outras praias do Rio estão em perfeitas condições de ser frequentadas por crianças e adultos, uma vez que não estão interditadas” (O GLOBO, 07/01/1970, p. 7) No dia seguinte, outra matéria traz uma mudança completa de construção narrativa do tema: em vez de se limitar às recorrentes entrevistas com técnicos do governo, foram publicadas diversas fotos, em que a principal expunha uma mãe ao lado dos filhos na praia: “A maioria das mães cariocas não faz ideia do perigo a que estão expostos seus filhos” é a legenda da imagem. Médicos foram entrevistados, e atribuíram à poluição das águas o aumento do número de casos de hepatite na Ilha do Governador. Banhistas se mostraram surpresos com a novidade que era colocada na vida do carioca, ainda tão acostumado a frequentar as praias da baía:

A maioria dos banhistas cariocas revelava à reportagem que não julgava fosse tão grande o perigo a que estavam expostos, demonstrando disposição de procurar agora locais menos insalubres. [...] Muita gente ficava surpresa: “Ué, não era só Botafogo?”. [...] Principalmente na Ilha do Governador, as pessoas indagavam: “Se todas as examinadas aqui da Ilha estão poluídas, será que todas não podem ser frequentadas?” [...] “Eu estou aqui no Rio a passeio, sou de São Paulo. Bem, eu achei que esta praia era muito suja e não pretendia frequentá-la, mas vi que as senhoras que moram aqui trazem os filhos a ela e pensei que não era nociva à saúde. Agora vou procurar outra” (O GLOBO, 08/01/1970, p. 13).

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A importância desta matéria se dá pela mudança de construção da própria reportagem. Foi, provavelmente, a primeira mais “humanizada”, com entrevistas que não fossem de técnicos do governo, contando com fotos de banhistas e assumindo um tom de denúncia inédito na relação entre poluição e a saúde humana. Em um exercício imaginativo, pode-se supor que só a pauta estritamente ambiental – como o desaparecimento da fauna e a flora- não tivesse força suficiente para elevar a discussão da poluição na baía ao nível em que se encontrou após essas matérias, e que até hoje permanece: as médias de matérias sobre o assunto nas décadas subsequentes mantêm-se semelhante à da década de 1970, e com o passar dos anos o Poder Público aceitou o argumento de risco à saúde em praias poluídas da baía. Não é possível desconsiderar, no entanto, a enorme influência de eventos internacionais e a ascensão do pensamento ambientalista neste momento, como a Conferência de Estocolmo da ONU em 1972. Ou seja: talvez a sequência de matérias descritas aqui digam menos a respeito da poluição da baía (que já vinha de anos) do que diz sobre o próprio jornalismo praticado à época, ainda começando, incipientemente, a traçar seus primeiros percursos rumo à consolidação do jornalismo ambiental como um tipo especializado – que se consolidaria, no Brasil, às vésperas da conferência Eco-92, realizada no Rio de Janeiro (BELMONTE, 2017). São também perceptíveis algumas semelhanças entre o caso descrito da Baía de Guanabara com a chamada “crise” da distribuição da água no Rio de Janeiro em 2020, na Estação de Tratamento de Água de Guandu, operada pela Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae). Percebe-se que a discussão em torno da água fluminense se deu, igualmente, em torno de uma controvérsia central: a água distribuída pela companhia se tratava ou não de um risco à saúde? Nova “vilã” do momento, a proliferação da substância geosmina na área de captação foi apontada pela Cedae como a razão das alterações no gosto e cheiro da água. No entanto, a coloração marrom que saiu das torneiras da população, bem como as denúncias de diarreias e gastroenterites, colocou sob suspeita a primeira afirmação oficial de que não haveria risco para a saúde. De forma parecida com 1970, a imprensa (O Globo, nos dois casos estudados) evidencia o outro lado da versão oficial e aumenta o caráter de polêmica no assunto. Especialistas ouvidos pelo jornal rebatem argumentos da Cedae e manifestam a possibilidade de haver substâncias tóxicas na água - além da própria geosmina que só não ofereceria riscos

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 em baixas concentrações. Nas entrevistas, o infectologista Edmilson Migowski afirmou que “é estranho a Cedae dizer que a geosmina não faz mal diante desses episódios”, e o oceanólogo Thompson e professor da UFRJ mencionou outras substâncias:

Os microorganismo que se proliferam conjuntamente com aqueles que produzem a geosmina podem produzir também outras toxinas, como por exemplo microcistina, saxitoxina e cilindrospermopsina, que são tóxicas e podem fazer mal ao fígado e ao sistema nervoso. Já a geosmina só apresenta baixa toxicidade em concentrações inferiores a 75 microgramas por ml de água. (O GLOBO, 08/01/2020).9

Dois dias depois e com a intensificação do problema, a professora da UFRJ Sandra Azevedo, especialista em cianobacterias e efeitos da poluição da água na saúde, reiterou a contradição do posicionamento da Cedae:

Não é a geosmina que faz a água sair com cor de suja da torneira. E nada tem a ver com casos de adoecimento dos quais se queixa a população. [E o que pode deixar a aguar turva é a] sujeira. A turbidez é um indicador muito conhecido e usado de qualidade da água. Uma forma barata de identificar risco de giardíase e criptosporidíase, ambas infecções intestinais. Água cor de barro não pode ser distribuída e, obviamente, a Cedae sabe disso. (O GLOBO, 10/01/2020)10.

O que se viu nos dias seguintes foi uma sequência de matérias abordando o problema, expandindo o assunto para além das declarações oficiais da companhia que culpavam a geosmina. Duas semanas após a acentuação da crise, o jornal publicou a matéria “Comunidade ao lado de Guandu joga dejetos na lagoa de captação de água da Cedae” (O GLOBO, 20/01/2020)11, sobre os 1.200 moradores do bairro Lagoinha, de Nova Iguaçu. Dias depois, “Microbiologista da UFRJ diz que Guandu é ‘sopa’ de micro-organismos nocivos” (O GLOBO, 26/01/2020)12. Já em fevereiro, o jornal publicou: “Geosmina traz à tona problemas maiores no tratamento da água no Guandu” (O GLOBO, 09/02/2020)13, expondo a presença de hormônios em testes nas águas em 2016 e 2017 e apresentando os baixos índices de saneamento.

9 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/especialistas-rebatem-cedae-agua-turva-pode-conter-substancias- toxicas-entenda-1-24178220. Acesso em 19/02/2020. 10 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/nao-a-geosmina-que-faz-agua-sair-com-cor-suja-da-torneira- afirma-especialista-24181997. Acesso em 19/02/2020. 11 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/comunidade-ao-lado-do-guandu-joga-dejetos-na-lagoa-de- captacao-de-agua-da-cedae-24200428. Acesso em 19/02/2020. 12 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/microbiologista-da-ufrj-diz-que-sistema-do-guandu-sopa-de- micro-organismos-nocivos-24212053. Acesso em 19/02/2020. 13 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/geosmina-traz-tona-problemas-maiores-no-tratamento-da-agua- no-guandu-2423841. Acesso em: 19/02/2020.

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Apesar de se tratarem de bacias hidrográficas diferentes, os casos do Rio Guandu e da Baía de Guanabara são frutos, em última instância, da falta de saneamento básico na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. No caso de Guandu, a despeito de supostamente se tratar de um erro operacional da empresa14, que não teria realizado a técnica de “descarga” pra eliminação das algas que produzem a geosmina, ficou evidenciado um problema que já não era novidade: a falta de saneamento levava esgoto in natura proveniente de cidades como Seropédica, Queimados e Nova Iguaçu, através de rios que desembocam próximo à captação de água da estação de Guandu. Em ambas as situações, notamos a influência direta das consequências do problema sanitário e ambiental para a população. Mais do que isso, é necessário pontuar a que população se refere como a mais afetada: são justamente as populações mais pobres e negras15 que habitam regiões cujo índice de tratamento de esgoto lista entre os piores do Brasil – cidades como Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti não tratavam nenhum esgoto em 2014 (ALENCAR, 2016). Apesar das crises ambientais serem recorrentemente referenciadas como um mal que, dito em senso comum, afetaria todos os humanos da mesma maneira, é necessário realçar – e aqui alude-se ao importante conceito de justiça ambiental- o caráter discriminatório das crises ambientais. O caso da poluição na Baía de Guanabara não é diferente e corrobora, em abordagens socioeconômicas e étnicas, a desigualdade de riscos ambientais socialmente induzidos. Talvez não seja exagero acenarmos, portanto, à possibilidade de existência de mais um caso de racismo ambiental - termo nascido no contexto norte-americano para demonstrar a alocação de rejeitos tóxicos em comunidades negras (ACSELRAD, 2002)- no momento em que, ao longo do recôncavo da baía, as populações com maior concentração de negros são desprovidas de redes mínimas de saneamento básico. Já no episodio de Guandu, fica evidente a problemática do direito à água: parte da população recorre aos caros e inflacionados galões de água mineral, enquanto outra parte é privada de água limpa. Por outro lado, o mesmo problema sanitário (que gera a poluição da baía) diz respeito também ao direito de acesso à cidade: de um lado as praias oceânicas,

14 Segundo matéria do site “Globo.com”, o procedimento da “descarga”, se realizado, teria evitado a crise. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/02/06/procedimento-simples-poderia-ter- evitado-a-crise-da-agua-no-rj-diz-especialista.ghtml 15 De acordo com o Mapa Racial feito com base nos dados do Censo 2010. Disponível em: http://patadata.org/maparacial/

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIX Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande - MS, 23 a 25 de junho de 2020 localizadas nas regiões mais abastadas (na Zona Sul, Barra da Tijuca e Região Oceânica de Niterói) são as únicas com índices aceitáveis de balneabilidade16; do outro, as praias do interior da Baía de Guanabara, poluídas e assoreadas, deixam de se constituir enquanto opção de lazer, turismo, esporte, transporte, valorização imobiliária, desconcentração econômica, entre as muitas potencialidades envolvidas no assunto. Ressalta-se, a partir desta análise de matérias, a importância de se olhar a pauta ambiental em conjunto com a pauta social – tanto na área de saúde, como no direito de acesso à cidade-. Enxergar, portanto, a discussão da problemática socioambiental a partir da necessidade de um modelo mais integrativo e menos disciplinar (FERNANDES & SAMPAIO, 2018) ou tratando o assunto de forma “complexa” como sugere Morin (2015). Finalmente, a título de conclusão, evoca-se o conceito de “sociedade incivil” apresentado por Sodré e Paiva (2019) para conceituar a progressiva perda de conexão cidadã na vida quotidiana das cidades brasileiras. A experiência vivida, e não solucionada, pela população da cidade do Rio de Janeiro que se acentuou nos primeiros meses de 2020 demonstram um apartamento do exercício da cidadania onde se constou um acentuado volume de informações falsas circulando a partir especialmente do aplicativo WhatsApp e de uma produção jornalística pouco investigativa e instigante no sentido de promover e provocar uma discussão aprofundada a respeito das causas profundas, atendo-se apenas no evento mais recente (o da geosmina) e nenhuma preocupação em apontar soluções, como se esperaria de um jornalismo comprometido com a causa pública.

Referências

ACSELRAD, Henri. Justiça ambiental e construção social do risco. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n.5, pp.49-60. Curitiba, 2002. ALENCAR, Emanuel. Baía de Guanabara: descaso e resistência. Rio de Janeiro: Mórula, 1.ed., 2016. BELMONTE, Roberto Villar. Uma breve história do jornalismo ambiental brasileiro. In: Revista Brasileira de História da Mídia, vol.6, n.2, pp. 110-125. Porto Alegre, 2017. CAPPELLI, Paulo. Witzel diz que despoluição do Guandu depende de verba obtida com leilão da Cedae. O Globo, Rio de Janeiro16 de jan. de 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/witzel-diz-que- despoluicao-do-guandu-depende-de-verba-obtida-com-leilao-da-cedae-1-24195031. Acesso em 19 de fev. de 2020

16 Os dados de balneabilidade da série histórica estão disponíveis, praia por praia, no site do Instituto Estadual do Ambiente: http://www.inea.rj.gov.br/ar-agua-e-solo/balneabilidade-das-praias/

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CARIOCAS questionam silêncio de Witzel e presidente da Cedae sobre crise da água. Agência O Globo, 14 de jan. de 2020. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2020-01-14/cariocas-questionam-silencio- de-wiztel-e-presidente-da-cedae-sobre-crise-da-agua.html. Acesso em 19 de fev. de 2020. COELHO, Victor. Baía de Guanabara: uma história de agressão ambiental. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. FERNANDES, Valdir & SAMPAIO, Carlos. Problemática ambiental ou problemática socioambiental? A natureza da relação sociedade/meio ambiente. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n.18, pp.87-94. Curitiba, 2008. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2006. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014. ______. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018. SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. Comunitarismo e sociedade incivil. Famecos, 2019, v. 6, n. 1. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/33027 A IMPIEDADE humana desvastando a natureza! O Globo, Rio de Janeiro, 02/11/1927. Geral: 1. O PEIXE está desaparecendo: aterros, águas poluídas ou envenenadas contribuirão para que se desertem as águas da Guanabara. O Globo, Rio de Janeiro, 01/08/1957. Geral: 3. SÁUDE Pública: praia de Botafogo não oferece perigo aos banhistas. O Globo, Rio de Janeiro, 27/12/1967. Geral: 5. SUSAPE nega haver perigo de hepatite. O Globo, Rio de Janeiro, 28/12/1967. Geral: 11. ÁGUA de praia não transmite doenças. O Globo, Rio de Janeiro, 18/01/1968. Geral: 18. UM quilômetro de desconforto para o banhista. O Globo, Rio de Janeiro, 02/02/1968. Geral: 5. METADE das praias poluídas. O Globo, Rio de Janeiro, 07/01/1970. Geral: 7. CASOS confirmam: o perigo existe. O Globo, Rio de Janeiro, 08/01/1970. Geral: 13.

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