DIVISAS COLORADAS: RADICAIS E FEDERALISTAS NA FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS, ESPAÇO PLATINO (1811-1828)

CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI Universidade Federal do [email protected]

O objetivo deste texto é destacar os significados que o vermelho adquiriu ao longo do processo de formação dos Estados nacionais na América Latina, especialmente no espaço platino, onde as insígnias coloradas – em bandeiras, flâmulas, e outros distintivos – apareceram nos embates políticos como “evidências aceitáveis” de projetos diferenciados (BURKE, 2004, p.17). Para uns, foi símbolo da barbárie, da “guerra até o fim”, do derrame de sangue; para outros, era a cor da liberdade, do sacrifício, da autonomia. Neste sentido, o espírito liberal e seus valores burgueses ainda não eram vitoriosos sobre as visões mais apaixonadas – algumas arcaicas, outras muito avançadas! – das questões americanas (ROJAS MIX, 1981, p. 192). 1 A trajetória dos matizes colorados foi muito original no Rio da Prata. Ela esteve presente desde a descolonização até a consolidação dos Estados nacionais; nesta perspectiva, o espaço platino se caracterizou sempre por uma acirrada disputa de projetos políticos que eram divulgados por uma série de ícones, e suas implicações se estenderam por todo o território do antigo Vice Reinado do Rio da Prata e suas vizinhanças. Aceitando que foram os movimentos nacionalistas que “criaram” as nações (GELLNER, 1983, p. 53), o maior desafio destas elites nos países americanos era a imposição de seus projetos nacionais a setores que exigiam autonomia. Ademais, frequentemente estas disputas político-econômicas ganhavam tintas culturais, onde se digladiavam modelos e valores “europeus” contra os usos “crioulos”. (DI MEGLIO, 2007, p.100). Estes valores eram também cores, e muitos aspectos das disputas no campo político e ideológico se davam numa “guerra de imagens” que eram mais perceptíveis que a produção textual.

Independência: as Províncias Unidas e seus signos azuis e brancos!

Bem antes das invasões napoleônicas nos países ibéricos, os símbolos e discursos radicais jacobinos haviam criado pavor entre as autoridades de Espanha e nas suas possessões na América. Os textos mais extremados da Ilustração e das Revoluções Americana e Francesa já se difundiam traduzidos clandestinamente por intelectuais das principais cidades coloniais (GOLDMAN, 2000, p. 36). A onda de mudanças que sacudia o Antigo Regime se alastrava pelas colônias americanas, onde reconstruiria suas representações em patamares um pouco distintos. Quando Espanha foi ocupada pelas tropas napoleônicas e a família real aprisionada, desataram-se as amarras nas colônias, e em muitas partes foram rechaçadas as autoridades metropolitanas e líderes “crioulas” assumiram o poder. Em , em 25 de maio de 1810 foi formada a Primeira Junta, rechaçando o Vice Rei e outras autoridades espanholas. Laços comuns e “escarapelas” foram os primeiros distintivos dos patriotas na guerra contra os realistas (PERAZZO, 2008, p. 217). 1 Estes emblemas de uma “pátria” se originaram durante as Invasões Inglesas de 1806-1807 pelos Patrícios, corpo de milicianos formado em Buenos Aires 2 na luta contra os invasores. Beraza (1957, p. 99) informa que seu uso se estendeu entre os três regimentos dos Patrícios, que se identificavam respectivamente pelas cores branca, celeste, vermelha; para o batalhão de reserva era usada uma insígnia tricolor, pois poderia substituir qualquer um dos três. A presença de panos brancos e celestes poderia indicar um clima de tolerância entre patriotas e realistas, ao passo que “escarapelas" coloradas eram associados ao “jacobinismo” francês. Assim, o vermelho era a cor da dinastia Bourbon da Espanha, e foi “apropriada” pela plebe portenha. O temor dos projetos mais radicais se acentuava, pela presença incômoda da “chusma”, e os “jacobinos” acabaram afastados das principais posições. O caso mais emblemático foi Mariano Moreno, Secretário da Primeira Junta, autor de um projeto de Estado que atemorizou os proprietários e comerciantes. Projetos mais moderados foram defendidos por outro dos grandes líderes da Revolução de Maio, como foi o caso de . Nas suas primeiras ações armadas, ele optou pelas ‘”escarapelas” em azul e branco, e sua difusão foi aprovada

1 Escarapelas eram panos coloridas, franzidos em forma de roseta. Foram usadas como versões das cocardes tricolores ou vermelhas dos revolucionários franceses.

pelo governo das chamadas Províncias Unidas do Rio da Prata em fevereiro de 1811, e se generalizaram entre as tropas dos patriotas. Isto levou Belgrano a propor um símbolo mais formal para suas tropas: “necessitando revoar uma bandeira e não a tendo, mandei- a fazer branca e celeste conforme as cores da Escarapela Nacional”.2 A sua campanha militar brilhante contra os realistas no norte do país divulgou amplamente o estandarte que havia proposto (PERAZZO, 2002, p. 32-33). Em Buenos Aires, a primeira aparição daquele pendão ocorreu somente em 23 de agosto de 1812. Esta bandeira consistia num campo formado por duas faixas em azul- celeste, separadas por uma branca: azul, para liberdade de pensamento e expressão, próprios do liberalismo francês; branco, da “presença divina”, uma herança da antiga monarquia. Assim, o uso dessas cores é controverso: indicaria a preferência de Belgrano por uma monarquia constitucional, ou como sugeriu Sarmiento, anos depois: “As cores são o celeste e o branco; o céu transparente de um dia sereno, e a luz nítida do disco de sol; a paz e a justiça para todos” (SARMIENTO, 1952, p. 87). Uma interpretação parecida seria a do céu azul, dissipado de nuvens pela luz da Revolução; 3 outra menos provável aponta para o Rio da Prata, pois na Heráldica o branco significa prata (BARKER, 2009, p. 146). Belgrano propôs ainda um escudo que também mais tarde seria adotado pela ; era ovalado, dividido horizontalmente numa metade superior azul, do céu, enquanto outra branca seria o Rio da Prata; mãos dadas erguem um barrete frígio numa lança, encimados pelo Sol de Maio, representando a trilogia Igualdade, Fraternidade e Liberdade, e o nascimento de uma nação (PERAZZO, 2008, p. 102).

2 “Necesitando enarbolar bandera y no la teniéndola la mandé hacer blanca y celeste conforme a los colores de la Escarapela Nacional”. Tradução do autor.

Figura 1. Bandeira de Belgrano (1812).

Em janeiro de 1813 foi realizada a Assembleia Geral Constituinte – ou Assembleia do Ano XIII – em Buenos Aires, buscando definir o futuro político do país. Esta Assembleia foi rejeitada por muitas províncias pelo seu caráter centralista, apesar do arrojo de suas propostas (HALPERÍN, 1985, p. 129-132). Ela promoveu muitas reformas sociais avançadas; mesmo sem formalizar a independência, oficializou uma 4 moeda própria, o primeiro hino nacional do mundo, e aceitou que Belgrano usasse sua bandeira na guerra contra os realistas no norte do país. Nestas campanhas, ele cedeu aos cabildos de Salta e Jujuy versões do seu estandarte com o mesmo escudo que criara para que usassem como símbolos antirrealistas. Na época, muito semelhante foi a bandeira de San Martín (1990, p. 42) para o Exército dos Andes. O estandarte tinha o campo formado por apenas duas faixas horizontais, branca e azul, com uma variante no escudo criado por Belgrano: além do Sol de Maio e das mãos dadas sob o barrete frígio aparece uma cadeia de montanhas sob as mãos, numa alegoria ao desafio de cruzar os Andes rumo à campanha do Chile. A bandeira azul e branca só foi oficializada pelo Congresso de Tucumán, que proclamou a Independência em 9 de julho de 1816. Em 1818 foi acrescentado à bandeira um “figurado” – o Sol com uma face humana – numa referência ao passado incaico, onde Inti, o deus Sol, era a representação do poder. O Sol é também uma forma “disfarçada” do vermelho: esta é a cor que tem no “nascer”, o que também é uma referência à criação da nova nação (GRIXALBA, 2006, p. 357).

Rebelião no Litoral4: ideias francesas “sangram” as bandeiras!

Mas este predomínio do azul e branco não se havia estendido a outras regiões do Rio da Prata. Onde houve maior mobilização da plebe, o vermelho revolucionário se impunha como símbolo radical. Este foi o caso pioneiro dos paraguaios, que em 1810 formaram sua própria Junta, não aceitando orientações vindas de Buenos Aires. Mas apenas em junho de 1811 depuseram o governador espanhol e confirmaram sua autonomia em relação à metrópole e às nascentes Províncias Unidas do Rio da Prata. Somente em 1813 surgiu a emblemática bandeira tricolor que, com poucas mudanças, se constituiu na bandeira usada até o presente. O vermelho apareceu na bandeira paraguaia com outro significado, agora como símbolo da luta contra o centralismo de Buenos Aires, distinguindo-se do pendão celeste e branco de criado por Belgrano. Mesmo compartilhando as ideias anticolonialistas dos vizinhos, os paraguaios não mandaram representantes para a Assembleia do Ano XIII, pois sua independência não se limitava à Espanha, mas a qualquer outra interferência externa. 5 Não é casual a semelhança com a bandeira da Revolução Francesa neste primeiro modelo aparecido em 1813. Numa interpretação, o azul representa a Justiça e Patriotismo, o branco a Paz, e o vermelho a Liberdade (CONSTANTINO, 2005, p. 165). A radicalização política dos primeiros anos da formação nacional paraguaia, com a liquidação dos latifúndios e do poder da Igreja Católica, mostram que o jacobinismo francês tinha repercussão junto ao grupo que secundava o ditador Francia, o primeiro dos chefes políticos do país (HALPERÍN, 1985, p. 275). Em 1811 iniciava na a luta contra o bastião realista sitiado em Montevidéu, sob a liderança de José Artigas. A primeira Invasão Lusitana, identificada com os interesses de Carlota Joaquina, da dinastia Bourbon, impediu Artigas de conquistar Montevidéu. Devido ao acordo dos portugueses com Buenos Aires para preservar os realistas espanhóis, os artiguistas realizaram o famoso Êxodo do Povo Oriental, também chamado de La Redota, quando a quase toda a população da

4 Chama-se litoral a grande planície de aluvião formada pelos rios Paraná e Uruguai, confluindo no Rio da Prata. Era formado pelas províncias Oriental, Entre Rios, Santa Fé, Corrientes, além das Missões guaranis, disputadas com o Paraguai

campanha – mais ou menos dez mil pessoas – seguiu seu chefe para Entre Rios. Permaneceram neste exílio de outubro de 1811 a setembro de 1812 (SALA DE TOURON, 1978, p.55). Neste período Artigas aprofundou seu projeto agrário, associando autonomia política à expropriação das terras e distribuição entre os homens do campo. 6 De volta ao cerco de Montevidéu, não enviou representantes para Assembleia do Ano XIII, negando assim a legitimidade dos governantes portenhos. Entre 1814 e 1815, Artigas e seus seguidores conformaram a Liga dos Povos Livres, também conhecida por Liga do Litoral ou , constituída pela Província Oriental, Entre Ríos, Santa Fé, Corrientes, Córdoba e os guaranis de Misiones. Seu projeto federal defendia a autonomia das províncias da Liga. Em 1815, depois de assumir o controle da Banda Oriental, Artigas encomendou um estandarte próprio: “branco no meio, azul nos dois extremos e no meio destes umas listras coloradas, signos da distinção de nossa grandeza, de nossa decisão pela República e do sangue derramado para sustentar nossa Liberdade e Independência”, como explicou num ofício de 4 de fevereiro de 1815 ao governador de Corrientes (CHAPARRO, 1951, 6 p. 18). 7 Os significados do vermelho estão bem explícitos! Mas houve um erro na confecção desta bandeira em Corrientes: as listras vermelhas propostas atravessavam longitudinalmente as duas faixas celestes da bandeira de Belgrano, e não a bandeira toda em diagonal! Apesar disto, este pendão se chama Primera Bandera de Artigas; seria também a bandeira adotada pelos correntinos até 1818.

6 O programa de Artigas compõe o Reglamento Provisorio de la Província Oriental para el fomento de su campaña y seguridad de sus hacendados. (SALA DE TOURON, 1978, p. 151-155). 7 (…) blanco en medio, azul en los dos extremos y en medio de estos unos listones colorados, signos de la distinción de nuestra grandeza, de nuestra decisión por la República y de la sangra derramada para sostener nuestra Libertad e Independencia. Tradução do autor. Ofício de 4 de fevereiro de 1815 ao governador de Corrientes.

Figura 2. “Primeira Bandeira” de Artigas (1815).

Também o primeiro pavilhão oriental hasteado em Montevidéu em 25 de março de 1815 não foi o de Artigas, mas de seu comandado Otorgués, também confundindo as orientações. Tratava-se de uma composição tricolor original, em faixas horizontais: a superior vermelha, a central azul, e a inferior branca. No forte de Montevidéu tremulava 7 ainda a bandeira espanhola; assim, o representante brasileiro Souza Prestes, viu uma cena insólita de Otorgués: “Mandou deitar na entrada do Portão a Bandeira de Fernando 7º para que todos que ali entrarem pasarem por sima e limparem nela os pés” (BERAZA, 1957, p. 58-59). Mas ainda nestes primeiros dias de governo, o próprio José Artigas acrescentou à Bandeira de Belgrano uma faixa diagonal vermelha, na tonalidade chamada de rojo punzó8, que do canto superior esquerdo ao inferior direito cruzava as três bandas originais. No despacho que o Protetor dos Povos Livres mandara para as demais províncias da Liga do Litoral ordenando seu uso, explicara que a nova bandeira teria “uma faixa vermelha atravessará a bandeira, de modo que esta fique no meio das faixas azuis” (Id. p. 66). 9 Este modelo, conhecido como Segunda Bandeira de Artigas, foi içado primeiro em Santa Fé, em 3 de abril de 1815. Em Montevidéu, sua estreia ocorreu nas Fiestas Mayas, comemorativas da Revolução, de 25 de maio de 1816.

8 A expressão é uma corruptela do francês rouge ponceau, que designa um tom de vermelho escuro e brilhante.

9 “(...) una franja roja atravesará la bandera, de modo que ésta quede en medio de las franjas azules.” Tradução do autor

Figura 2. Bandeira de Artigas (1815).

Desde sua imposição, a tricolor com a diagonal vermelha passou a ser chamada por diversos nomes, como “Bandeira Oriental”, “Bandeira da Liberdade”, “Bandeira da Independência”, ou mais simplesmente “Bandeira de Artigas” (CHAPARRO, 1951, p. 32). O vermelho tornava-se, na medida em que o conceito de Liberdade se confundia com a Autonomia dos Povos Livres, em símbolo máximo do Federalismo, e foi esta 8 representação que atravessaria todo século XIX. Uma nota interessante diz respeito às manifestações populares, com as crianças da Escola do Estado levando “o gorro encarnado, vestimenta cívica e a bandeirinha nacional”, ou ostentando “gorros frígios, decorados com a escarapela tricolor”. Como se tornaria comum mais tarde em todo espaço platino, a partir de 1816 foi instituído o uso obrigatório de distintivos tricolores, por militares e civis: “Todo individuo patriota deverá usar A Escarapela de Província Oriental” (Id, p. 87-88).10 Apareciam também formas de popularizar as cores de Artigas. Foram fabricados, por exemplo, uns “naipes artiguistas”, onde os baralhos tinham suas cartas enfeitadas com a bandeira tricolor no verso. Numa versão interessante, Beraza (1957, p.100-101) afirma que as cores da bandeira artiguista se popularizaram porque também faziam parte do cotidiano campeiro: “branco” era o couro cru empregado nas rédeas, laços, rebenques e demais correames; azuis os pelegos, que assim tingidos se mostravam como artigos de “luxo”

10 “(...) el gorro encarnado, vestido civico y la banderita tricolor (...) gorros frigios, decorados con la escarapela tricolor. (...) Todo individuo patriota deberá usar La Escarapela de la Provincia Oriental” Tradução do autor.

dos gaúchos; e também essa era a cor predileta para os ponchos que eram quase sempre forrados de baeta vermelha; e vermelhos eram os barretes, lenços etc. O Congresso dos Povos Livres realizado por Artigas em 29/ de junho de 1815 reuniu representantes de todas as províncias do litoral – Banda Oriental, Entre Rios, Santa Fé e Corrientes – além de Córdoba. Neste encontro, os participantes da Liga se comprometem com a independência e defendem a afirmação de um sistema Federal, repudiando a participação no projeto nacional que os Unitários pretendiam impor às Províncias Unidas. Crescia a diferença entre o federalismo de Artigas, que cobrava autonomia, livre comércio e república, e o modelo unitário de Buenos Aires, centralista, monopolista e sensível a alguns projetos monárquicos. A negativa em participar no Congresso de Tucumán, que oficializaria a independência da Espanha, motivou o governo unitário do Diretório a acordar com Portugal a ocupação da Banda Oriental, que resultaria ao final na incorporação do território como Província em 1820. Quando houve a Segunda Invasão Portuguesa de 1816, as bandeiras tricolores estavam em todas as partes da Banda Oriental. Um modelo mais simples foi adotado 9 pelas forças de Artigas, formada por três faixas horizontais: a superior azul, a central branca e a inferior vermelha, assumindo também o papel simbólico de canalizar a resistência dos orientais. Mesmo os documentos dos invasores quando se referem à apreensão de bandeiras artiguistas, se referem a elas como “bandeira com emblema da Liberdade” ou “bandeira pátria”. Muito chamativo foi um estandarte que continha na faixa branca central versos de uma Canção Patriótica de Bartolomé Hidalgo: “Bravos orientais / Hinos entoai / Porque Artigas vai ao templo / da Liberdade” (BARROSO, 1930, p. 106). 11 A bandeira de Artigas era mostrada assim no poema de outro uruguaio, Zorrilla de Sán Martín: “Essa longa e vermelha cicatriz que atravessa suas três faixas, é a ferida da glória que a matou. Morreu de Liberdade.” (1950, p. 352). 12

Os herdeiros de Artigas no litoral são colorados!

11 “Bravos orientales / Himnos entonad / Que Artigas va al templo / de la Libertad.” Tradução do autor. 12 “Esa larga y roja cicatriz que atraviesa sua tres fajas, es la herida de gloria que la mató. Murió de Libertad.” Tradução do autor.

Mas a luta de Artigas não se restringia à Banda Oriental; a partir de 1815, sua bandeira se instituiu como representação dos intitulados Povos Livres, ou seja, aqueles que compunham as províncias da Liga Federal. Apesar da intenção de uniformizar as cores de todos os membros da Liga Federal, a bandeira teve algumas versões específicas a algumas das províncias, que dominaram o litoral de 1815 a 1821, e mesmo depois do exílio de Protetor no Paraguai. A chamada Primeira Bandeira de Artigas fora adotada em 1815 por Corrientes, e se manteve até 1818; nesta ocasião, dissidências entre os chefes da província exigiram a intervenção do comandante dos guaranis das Missões, Andrés Guazurary, adotado pelo Protetor como Andresito Artigas. Andresito criou para Corrientes uma bandeira que era formada por três faixas horizontais: a superior de cor punzó, a inferior branca, e a central verde, uma novidade entre os estandartes da Liga Federal! Sobre esta questão há controvérsias: alguns autores defendem que o verde seria uma representação da vegetação missioneira, muito diversa do pampa (PERAZZO, 2002, p. 70); mas outra interpretação é de que a cor original seria celeste, que desbotaria com facilidade 10 naqueles tecidos mais baratos, tingidos com anil (BERAZA, 1957, p.55-56). Depois da derrota e prisão de Andresito pelas forças luso-brasileiras em 1819, extinguiram-se em Corrientes os símbolos artiguistas. Noutras frentes, os chefes artiguistas Francisco Ramírez, de Entre Rios, e Estanislao López, de Santa Fé, venceram amplamente as tropas de Buenos Aires em 1º de fevereiro de 1820. Esta vitória teve duas marcas significativas: além dos usaram estandartes totalmente vermelhos (Id. p. 79); Ramírez e López amarraram seus cavalos no obelisco de Buenos Aires, um gesto muito significativo de desprezo pelos “civilizados” da cidade, mais tarde muito alardeada em relação à “barbárie” dos caudilhos. No entanto, no Tratado de Pilar, firmado com Buenos Aires, não obrigaram os vencidos a lutarem com Artigas pela libertação da Banda Oriental. Seguiu-se a ruptura de Artigas, contra seus antigos seguidores; perseguido e derrotado por Ramírez, o antigo Protetor exilou-se no Paraguai, de onde não sairia mais. De 1816 até 1821 a bandeira usada por Entre Rios era igual à de Artigas. Com o afastamento dele, Pancho Ramírez procurou impor-se como a principal liderança do litoral, afirmando-se também com um pavilhão próprio, mas que preservasse as

principais representações da Liga Federal, com destaque para o vermelho, principal adendo que Artigas legara como símbolo da luta contra os Unitários de Buenos Aires. Assim, ladeando a faixa branca central, as metades direitas das faixas superior e inferior mantinham-se celestes; já as metades esquerdas das mesmas faixas eram coloradas. Um escudo central mostrava mãos unidas segurando uma lança que era encimada por um barrete frígio, símbolos da liberdade e luta. Esta versão da bandeira de Ramírez é negada por Chaparo (1950, p. 33), que afirma ter sido ela criada apenas pelo governador Pascoal Echagüe, em dezembro de 1833. A adesão de Santa Fé à Liga Federal ocorreu em março de 1815, quando o caudilho José Eusebio Hereñu hasteou por primeira vez a bandeira tricolor de Artigas. Esta efeméride foi estendida às famílias importantes, quando as damas da sociedade se encarregaram de coser um pavilhão artiguista em seda e outros tecidos mais nobres (Id. p. 31). Há uma versão, no entanto, de que a própria bandeira de Artigas teria sido criada em Santa Fé em 1814 e só depois seria adotada pelo caudilho oriental (BERAZA, 1957, p. 67). Isto talvez tenha sido propalado para mostrar o papel desta província na Liga dos 11 Povos Livres, independentemente de Artigas. A disputa pela hegemonia no litoral resultou na derrocada e morte de Ramírez por Estanislao López. López criou três bandeiras provinciais para Santa Fé entre 1815 e 1822 (Id. p. 49). Santa Fé adotou em 1815 uma variante da Bandeira de Artigas. Neste modelo, as faixas azuis e a branca central estavam verticalizadas; principal característica, a faixa vermelha que atravessava em diagonal a bandeira, foi mantida da mesma forma que na bandeira do Protetor. Em 1819 López adotou uma tricolor de listras horizontais, praticamente igual àquela que Otorgués usou em Montevidéu. Somente em 1822, López criou o modelo que seria praticamente o definitivo para Santa Fé até o presente. As mesmas cores foram verticalizadas, assemelhando-se com a bandeira francesa. Destaca-se um original escudo oval sob a legenda “Invencível Província de Santa Fé”, o Sol de Maio se sobrepõe a duas flechas indígenas cruzadas, atravessadas por uma lança da cavalaria da província, menção ao denodo da população de Santa Fé contra os índios. Fora do âmbito do litoral, Córdoba associou-se à Liga Federal em 1815. Havia muita disputa pelo controle da província, pela importância da capital, uma cidade de

enorme tradição para aqueles tempos. Em março do ano seguinte houve a ocupação de Córdoba pelas hostes de Artigas, decididas a defender o “Pavilhão da Liberdade“ (PERAZO, 2002, p. 47). Depois disto, Córdoba concebeu ainda neste ano sua própria bandeira, formada por três faixas horizontais: a superior branca, a central azul, e a inferior vermelha. Existem referências a uma modificação a esta última, porque alguns testemunhos informavam que a divisa de Córdoba era branca, celeste e “rosada”, diferente do tom forte do vermelho punzó das bandeiras artiguistas (Id. ibid.). Provavelmente tenha se dado o mesmo que em relação ao “verde” do estandarte de Andresito, e que o tom rosado se devesse à exposição prolongada da bandeira.

A guerra de bandeiras na Cisplatina A conquista da Banda Oriental, mudada para Província Cisplatina, não era significava apenas uma troca de mando político, já que a noção de “soberania particular dos povos” presente no federalismo de Artigas divergia conforme o grupo social de que 12 se tratasse, e as resistências à ocupação foram muitas e variadas (FREGA, 2007, p. 329). Os luso-brasileiros impuseram em 1821 sua própria bandeira para a Banda Oriental, agora Província Cisplatina. No pendão do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, num campo branco havia uma composição da Esfera Armilar de Ouro – o mundo submetido aos navegadores lusitanos – sobre um fundo azul, representando o Brasil; encimava o conjunto Escudo Real Português, na cor vermelha; e sobre a esfera aparece uma Coroa do Poder Real, sacramentando a integridade do Reino. A bandeira da Cisplatina tinha duas faixas horizontais verdes, cor da dinastia dos Bragança de Portugal. Na faixa branca do meio, figurava a Esfera Armilar de Ouro sobre fundo azul, uma representação do globo terrestre com seus mares, sobre uma Cruz de Malta vermelha e branca, outro símbolo do antigo poderio naval de Portugal (GRIXALBA, 2006, p. 359). Desapareciam as cores que identificavam a influência de Artigas no litoral e entravam os padrões lusitanos. As características apontadas para a província conquistada mostram para uma filiação direta da bandeira que havia sido criada em 1816 com a elevação da colônia brasileira a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

A bandeira só foi arriada depois da Convenção Preliminar de Paz de 1828, com o fim da dominação do Império do Brasil sobre a Banda Oriental. A guerra pela libertação da Banda Oriental foi iniciada pelos Trinta e Três Orientais, como foram chamados os seguidores de , antigo lugar- tenente de Artigas, que entraram na província ocupada sublevando plebe da campanha. A disputa forçaria a entrada das Províncias Unidas contra o Império de Brasil, desencadeando o grande conflito armado entre os dois países, que durou de 1825 a 1828. Durante a Guerra da Cisplatina foi usada pelos orientais a bandeira de Lavalleja, que era formado por três faixas horizontais de mesma largura: a de cima azul, a central branca, a de baixo punzó, que levava na listra branca a inscrição “Libertad o Muerte”.

13

Figura 3. Bandeira dos Trinta e Três Orientais (1825).

A Bandeira dos Trinta e Três Orientais foi reconhecida pelo Diretório como pendão oficial da Província Oriental, permanecendo nesta condição de 1825 a 1828, quando foi substituída após a criação do Estado Oriental do Uruguai. 13 Até este momento o vermelho de Artigas ainda estava presente na representação política das disputas platinas. Na nova bandeira foi retirado o vermelho, e as cores azul e branca retomaram a relevância do estandarte oficial das Províncias Unidas. A pacificação obtida no Rio da Prata não tinha lugar para ideias radicais, ressaibos do artiguismo.

13 Tanto a Bandeira dos Trinta e Três quanto a de Artigas são atualmente considerados símbolos nacionais, equivalentes ao próprio pavilhão nacional do Uruguai. Modernamente, a Bandeira dos Trinta e Três foi também adotada pela Frente Ampla.

A Bandeira Nacional adotada pelas autoridades em 1828 misturava elementos do pavilhão argentino com outros da bandeira dos Estados Unidos. O estandarte era formado por dez listras brancas alternadas com nove azuis, que representam os nove primeiros departamentos criados no Estado Oriental. No canto superior esquerdo, se localiza um quadrado branco com o “figurado” do Sol de Maio (BARKER, 2009, p. 145). Este modelo seria modificado por outro semelhante em 1830, com redução das listras para nove ainda representando os primeiros departamentos. O novo modelo simplificava também o “figurado”. Para Beraza (1957, p. 112) este Pavilhão Nacional foi concebido por uma Assembleia Constituinte formada por “doutores unitários e os abrasileirados” que então “não tinha nenhuma vinculação com o verdadeiramente local”. 14

As lutas no norte: a Guerra Gaúcha de Güemes

As vitórias do exercito patriota de Belgrano no norte do foram estratégicos para 14 controlar a reação dos realistas, assim como para preparar o Exército Libertador de San Martín para cruzar os Andes. Mas até 1821 este espaço foi duramente disputado, e o caudilho principal de Salta, Martín de Güemes, teve um papel fundamental. Contra uma grande superioridade material dos espanhóis, os soldados de Güemes praticaram a guerra de movimento da cavalaria ligeira, pejorativamente chamada de “guerrilha” pelos inimigos. Güemes definia assim a “guerra gaúcha” e seus soldados: “São homens mais calejados com os trabalhos mais ásperos e penosos. Mais breve: são próprios para militares” (NEWTON, 1967, p. 32). 15A organização militar das guerrilhas era simples: vinte a trinta cavalarianos sob o comando de caudilhos locais, os “capitães de Güemes”, que por sua vez compunham quatro divisões. Os milicianos recebiam pagamentos em moeda, complementados por isenção de arrendamentos e liberalidade no abate de reses para alimentação, numa forma que evitava a repartição das terras, sem que houvesse prejuízos nas lealdades entre gaúchos

14 “(...) doctores unitarios y los abrasileñados (...) no tenía ninguna vinculación, con lo verdaderamente local.” Tradução do autor. 15 “Son hombres más cauterizados con los trabajos más ásperos y penosos. Más breve: son propios para militares”. Tradução do autor.

e seus chefes. Era chamado Sistema Güemes ou Foro Gaúcho; mesmo sem o radicalismo do projeto agrário de Artigas, ele motivou muitas recriminações a Güemes, que não aceitava acusações aos seus homens; nestes casos, costumava responder “não incomodem meus gaúchos” (MATA, 2008, p. 104). 16 Em 1815, criou uma divisão de cavalaria de 400 praças que se tornou famosa: “para que possam ser ocupados tanto a pé quanto a cavalo, com a denominação de Divisão Infernal de Gaúchos” (Id. p. 113). 17Incômodos para os aliados, as milícias gaúchas e as roupas coloradas justificaram a fama de guerrilheiros “infernais”, um dos legados representações do vermelho no espaço platino! Güemes não criou nenhum estandarte, mas a mística do vermelho aparecia nas vestimentas dos milicianos. Não há prova de que Güemes usasse o poncho vermelho que leva seu nome. Também não se pode afirmar que os ponchos dos cavalarianos de Güemas fossem todos vermelhos, pois é difícil supor que houvesse, em meio a tantas dificuldades materiais, alguma possibilidade de uniformizar todos os guerrilheiros. Mas a tradição informa que foi Güemes quem vestiu seus soldados de colorado. As informações mais fidedignas 15 dão conta de que Güemes se abastecia de baetas vermelhas para os ponchos, e azuis para os forros, o inverso do que costumava ocorrer nas regiões pampianas (NEWTON, 1967, p. 45).

Considerações finais: a guerra das bandeiras no Rio da Prata O processo de Formação dos Estados Nacionais na América Latina foi muito intrincado, e mostrou peculiaridades em seus múltiplos espaços e sociedades. Em relação aos países que se formaram a partir da descolonização e fragmentação do antigo Vice Reinado do Rio da Prata, tanto as disputas restritas aos debates políticos quanto suas exacerbações nas guerras civis, giraram em torno de diversos projetos. Estes litígios muitas vezes se traduziam em antagonismos que reduziam a complexidade das questões envolvidas: unitários x federalistas, centralização x descentralização, monarquia x república, Estados nacionais x províncias, capitais (ou portos!) x interior, exércitos nacionais x milícias, civilização x barbárie...

16 “¡No incomoden a mis gaúchos!” Tradução do autor. 17 “(...) para que puedan ser ocupados así a pie como a caballo, con la denominación de División Infernal de Gauchos” Tradução do autor.

Para este trabalho, interessou especialmente o uso do vermelho, e como sua simbologia foi adotada e transformada ao longo do processo de formação dos Estados nacionais. A representação vermelha da liberdade, herança longínqua dos radicais que buscaram a Independência Americana nas colônias inglesas, passando pelo jacobinismo da Revolução Francesa, aportou em terras platinas já nas Invasões Inglesas de 1806. Ainda com este significado se incorporou primeiro à bandeira paraguaia, mas foi na gesta de Artigas que se consolidou, se disseminando por todas as partes onde alcançou a sua influência. A partir daí, e com o final da pretendida Confederação dos Povos Livres, o matiz colorado se associou à ideia de autonomia política, que era apenas uma de tantas das pretensões do projeto de Artigas. Ou seja, federalismo era o limite permitido à noção de liberdade, visto que esta não poderia ser estendida às camadas subalternas.

Bibliografia

BARKER, Brian J. The Complete Guide to Flags of the World. London: New Holland 16 Publishers, 2009. BARROSO, Gustavo. A Guerra de Artigas. 1816-1820. : Cia. Editora Nacional, 1930. BERAZA, Agustín. Las Banderas de Artigas. : Imprenta Nacional, 1957. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru (SP): EDUSC, 2004. CHAPARRO, Félix A. La Bandera de Artigas o de la Federación y las Banderas Provinciales del Litoral. Santa Fé: Librería y Editorial Castellví, 1951. CHIARAMONTE, José Carlos. Mercaderes del Litoral. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1991. CONSTANTINO, Maria. Guia Ilustrado das Bandeiras. Lisboa: Estampa, 2005 DI MEGLIO, Gabriel (a). ¡Viva el bajo pueblo! La plebe urbana de Buenos Aires y la política entre la Revolución de Mayo y el rosismo. Buenos Aires: Prometeo, 2007. FREGA, Ana. Pueblos y Soberanía en la Revolución Artiguista. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2007. GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca (NY): Cornell U. Press, 1983. GOLDMAN, Noemí. Historia y lenguaje. Los discursos de la Revolución de Mayo. Buenos Aires: Ed. de América Latina, 2000. GOLDMAN, Noemí L. ¡El pueblo quiere saber de que se trata! Buenos Aires: Sudamericana. 2009.

GRIXALBA, Carlos. Enciclopédia de Heráldica. Madrid, LIBSA, 2006. GRUZINSKI, Serge. A Guerra de Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HALPERÍN DONGHI, Tulio. Reforma y disolución de los imperios ibéricos 1750- 1850. Madrid: Alianza, 1985. HIDALGO, Bartolomé. Cielitos y Diálogos Patrioticos. Montevideo: Signo, 1967. LUGONES, Leopoldo. La Guerra Gaucha. Buenos Aires: Losada, 2009. MATA Sara Emilia. Los gauchos de Güemes. Guerras de Independencia y conflicto social. Buenos Aires: Sudamericana, 2008. MORENO, Mariano. Plan Revoluvionario de Operaciones. Buenos Aires: Plus Ultra, 1975. NEWTON, Jorge. Güemes el Caudillo de la Guerra Gaucha. Buenos Aires: Plus Ultra, 1967. PERAZZO, Rubén A. Nuestras Banderas. Vexilología Argentina. B. Aires: Dunken, 2002. PERAZZO, Rubén A. Manual de Vexilologia Universal. B. Aires: Dunken, 2008. ROJAS MIX, Miguel. America Imaginaria. Barcelona: Lumen, 1981.

SALA DE TOURON, Lucía. Artigas y su Revolución Agraria, 1811-1820. México: 17 Siglo XXI, 1978. SAN MARTÍN, José de. Escritos Políticos. Petrópolis: Vozes, 1990. SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo o Civilización y Barbarie. Buenos Aires: Editorial Sopena Argentina, 1952. ZORRILLA DE SAN MARTÍN, Juan. La Epopeya de Artigas. Montevideo: Imprenta Nacional Colorada, 1950.