Maio 2006 n.° 189 DISCOPATIA ● Honorato Pimentel Qualquer recensão de um álbum novo de um autor já estudado nestas páginas comporta sempre alguma ambiguidade. Se por um lado há o prazer da Segundo fôlego redescoberta do disco anterior, tampouco será Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio inédito um torcer de nariz Heraclito à prosa original. Outro perigo, de tipo reflexo, ● consistirá em descobrir não estar afinal o disco novo é em simultâneo de uma desconfortável modernidade. ousado e familiar, surpreendendo e Logo na faixa inicial, Sleeping à altura do seu ilustre deleitando a cada novo instante com Lessons , temi o pior, uma construção antecessor. as suas melodias ensolaradas, a sin- em crescendo culminando numa cas- gela guitarra acústica, as cordas dis- No caso dos heróis da presente cretas e um ouvido exímio para a Discopatia , Ray LaMontagne, The melodia. Gravado quase na íntegra Shins e Arcade Fire, não hesito em na cave de Mercer, o álbum consegue subscrever toda a carga superlativa vestir-se de uma sofisticação sonora de elogios antes publicados. A recu- que não lhe sufoca a espontaneidade peração dos seus álbuns anteriores e um encanto algo devedor da foi motivo de renovado prazer. melhor cena de rock independente Ousariam competir com eles os novos britânica, feliz resquício da educação álbuns? Eis o que vamos tentar apu- adolescente de Mercer em terras de rar! E nós, seremos os mesmos que Sua Majestade. ouvimos esses primeiros discos? Com uma sequenciação imaculada, cata violenta de guitarras eléctricas começando com os temas mais a ras- ao arrepio da antiga subtileza. gar e introduzindo a partir do meio Tratava-se, afinal, de a thousand dif- do disco as baladas e uma pungente ferent versions of yourself , logo se steel-guitar , Chutes Too Narrow cons- sucedendo uma corrente non-stop de tituiu os 35 minutos mais rápidos e encantadoras canções tão belas viciantes do ano musical de 2003 como as antigas, como se, mais que para Discopatia e o álbum mais rapi- um álbum, Wincing fosse um único e damente vendido da história do selo interminável hit , com o irresistível , a etiqueta cuja pena no cha- Phantom Limb como cartão-de-visita. péu eram os Nirvana. Por experimentação quereria Mercer referir-se à introdução de elementos b) (2007) novos como sintetizadores ( Sealegs ), a) Chutes Too Narrow (2003) O espectro do gosto musical de texturas electrónicas ( Black Wave ) e Os Shins são oriundos do Novo Discopatia é, sem ostentação, vasto, batidas hip-hop (de novo Sealegs ) ou o México e a sua estreia discográfica dos blues ao jazz , da folk à electrónica, recurso ao produtor Joe Ciccarelli (Beck, Oh, Inverted World (2001) entusias- etc. No entanto, e embora cada vez U2), desvios laterais que traduzem a mou a comunidade rock independen- menos, uma pura melodia pop de 3 curiosidade de Mercer e expandem a te da América. Com Chutes Too minutos logra resgatar-me deste simples mas inspirada música dos Shins Narrow (2003) lograram superar o spleeen meridional e do negativismo em mais direcções sem a afastar da sua notável álbum de estreia com um tão português, mais do que qualquer encantadora rota principal – uma disco orgulhosamente de autor, com- registo do Philip Glass ou de um Tom encantadora pop de canções soando posto de dez canções pop perfeitas, Waits outrossim favorito destas páginas. sempre familiares, embora agora um povoadas de linhas melódicas encan- Chutes Too Narrow fizera-me sorrir pouco mais negras e densas e a reque- tadoras, dulcíssimas harmonias vocais sem complexos e contaminara-me de rer maior disponibilidade do ouvinte. e limpas do filtro nebuloso à volta da um entusiasmo juvenil. Razão para voz de , compositor, recear as palavras de James Mercer, As letras são igualmente crípticas e guitarrista, cantor e artesão-mor de anunciando o novo álbum como mais palavrosas, canções sem refrão e de uma banda com existência ancorada experimental, quiçá enjeitando o frases longas (a antítese da pop ) tes- nas suas composições. puro prazer pop de Chutes em nome tando a ginástica vocal de um James

AUDIO&CINEMA EM CASA 125 DISCOPATIA Segundo fôlego

Mercer a sair-se airosamente da tarefa. soul de Ray, cuja voz expressiva fará rífica e documental do penoso per- The Shins did it again , não faltando chorar as pedras da calçada, safando- curso entre a tal cabana no New quem julgue James Mercer como o se com brio de fraseados aqui e ali Hampshire e as luzes da ribalta. novo Brian Wilson da pop. dificilmente cantáveis. Se as canções permanecem simples e Ray LaMontagne Um vago perfume nostálgico a anos (mais) desoladas, algumas beneficiam a) Trouble (2004) 70 – a figura frágil do autor-intérpre- de arranjos mais cuidados de cordas e A história de Ray LaMontagne, resga- te – inebria Trouble , colecção de can- metais e produção menos despojada tado ao isolamento de uma cabana no ções singelas mas não menos inten- do fiel , como as soulful New Hampshire, construída por si e sas por isso, arriscando-se a ficar na Three More Days e You Can Bring Me onde vivia precariamente com a famí- história da melhor música popular Flowers , onde ecoa uma feliz memó- lia, e a um emprego das 9 às 5 numa norte-americana. De tempos a tem- ria do glorioso som Stax ou Motown fábrica, é um pequeno conto-de-fadas. pos surge um álbum assim, de ori- ou a escola dos blues . gem ignota e contagiante na sua sin- gularidade, que apetece anunciar aos Escrita e voz de LaMontagne são de quatro ventos e impor aos amigos. uma tocante vulnerabilidade, suspei- tando Discopatia que o número de b) Till the Sun Turns Black – Ray incondicionais do autor não diminua, LaMontagne (14 th Floor – 2007) adensando a aura de autor sofrido. O Atendendo ao enorme volume de reconhecimento público, esse fica autores-intérpretes a tentarem pon- adiado para compromisso futuro tualmente a sua chance e ao reduzido entre uma arte intimista e uma ges- saldo positivo dos que o conseguem, tão mais comercial da obra. em tempos de vacas magras para a indústria, é quase inaudito que The Arcade Fire A fada madrinha foi o produtor Ethan Trouble , álbum primeiro de um autor a) Funeral (2004) Johns e a epifania para o público o desconhecido, haja vendido mais de Não conheço caso recente na música álbum de estreia Trouble . 300.000 exemplares, motivando um pop de tamanha sintonia entre crítica LaMontagne jamais lograria encon- culto crescente à volta da figura e can- e público como os Arcade Fire, colec- trar um produtor com tamanha ções torturadas de Ray LaMontagne. tivo sediado em Montreal e cujo empatia pelas suas canções quanto álbum de estreia, Funeral , um dos Johns, produtor-músico que tocaria mais insólitos e hipnóticos documen- mais instrumentos (bateria, baixo, tos sonoros da música popular, moti- piano, guitarra, arranjos de cordas) vou hossanas da comunidade musical no álbum que o próprio LaMontagne planetária. As suas incandescentes – «Ethan coloriu um álbum o qual, prestações ao vivo reforçaram o sem ele, seria bem mais negro.» culto, como a já mítica actuação em Paredes de Coura em 2005, para Trouble é uma colecção de canções muitos dos ditosos lá presentes o aditivas e algumas short-stories concerto das suas vidas. (Narrow Escape, Hannah) – «canções simples oriundas de um lugar negro» Funeral é uma sentida meditação – sobre o mais velho dos temas, o sobre a família, a precariedade da amor (e a liberdade, a dúvida, a dor), Discopatia não foi a única a render- vida e as dores que informam quem escritas por uma pena dilacerada, o se aos encantos inéditos de Trouble e lá anda, mas também sobre o amor, a que já valeu comparações decerto foi uma das que mais anteci- redenção e o sentido de comunidade. (Discopatia prefere falar em piscade- pava quaisquer novas canções de O som é inclassificável, uma pop de las de olho) a Jeff Buckley, Van LaMontagne. Como tal, das primeiras câmara propulsionada pela atitude Morrison, Otis Redding, , a alvoroçar-se com notícias de novo punk da voz de Win Butler e do ata- Ray Charles ou Rufus Wainwright. disco. E das primeiras a desapontar-se que feroz de guitarras eléctricas a um à primeira audição do álbum, apenas passo da dissonância, mas poetica- O despojamento é característico da a antiga fidelidade a motivando para mente temperada por uma outra e maioria dos temas ( Burn é mesmo escutas renovadas onde, finalmente, heterodoxa instrumentação – xilofo- nu), mas não sem alguma sofistica- tamanho desapontamento se atenua! ne, violino, acordeão, sintetizador, ção, o hipnótico Forever My Friend cordas. O equilíbrio é precário mas roçando perigosamente o indulgente Till the Sun Turns Black é, como o miraculoso, estímulos e elementos soft-rock dos anos 70 (Jackson apocalíptico título indicia, negro, vários em convívio e colisão num edi- Browne, Michael McDonald, os espectral e menos radio-friendly que fício sonoro à beira da implosão e arranjos de guitarras acústicas dos Trouble , mais sussurrado, íntimo e salvo pela poesia e delicadeza das America) e dele salvo pela blue-eyed melancólico, uma folk aqui e ali sopo- linhas acústicas. E, a espaços, pela

126 AUDIO&CINEMA EM CASA Maio 2007 n.° 200 delicadeza do toque da francófona Bible traduz o crescimento de uma Régine Chastaigne (o acordeão valse- banda – de Toronto à escala global – Discopatia 199 musette , a língua francesa). mais amarga e revoltada e lidando Terei perdido o autocarro? Quereria com torturada verdade com temas e esperar para ver? Estaria o cachet em perigos maiores – religião, guerra, negociação? A memória é nebulosa media , a própria América ( I don’t mas a verdade é que só aportei à wanna live in America no more – Audio no número 2. Se em rigor tal uma linha que poderia valer a exco- me castra a possibilidade de passar à munhão nos Estados Unidos purita- história como fundador, não menos me diminui a vaidade de ser o cola- nos, que não no tolerante e civilizado borador ininterrupto mais antigo. Canadá natal). No sempre difícil e decisivo segundo álbum, os Arcade Sobre a aventura miraculosa de 18 Fire recusaram a facilidade , aventu- anos como revista de referência, rando-se no escuro e comprazendo- quem de direito fala com mais ciência se no enigma. nesta edição. A efeméride, essa moti- Mais que pela excelência de qualquer vou-me uma viagem retrospectiva por artigos antigos de Discopatia , de tema individual, Funeral vale pelo con- Musicalmente Neon Bible é épico grafismo honesto mas passé e revisão junto, exercício hipnótico de renega- sem ser pomposo, dominado pelos inicial defeituosa, povoados de entu- ção do rock e sua salvação, o que deve arranjos de cordas de Owen Pallett siasmos passageiros, desânimos, exal- ser lido com probabilidade como metá- (do curioso projecto pessoal Final tações e, como denominador comum, fora da vida dos membros dos Arcade Fantasy), o acordeão de Régine, um uma sempre renovada e juvenil paixão Fire, às voltas com várias mortes no seu grandiloquente órgão de tubos e pela música e pelos discos. inner circle , cujas informaram a grava- mesmo metais mariachis (Ocean of Se hoje não subscreveria alguns dos ção (e daí o funéreo título) de Funeral . Noise ). Uma secção rítmica coesa pro- exageros aqui proferidos a propósito pulsiona o disco e ajuda a manter os deste ou daquele disco, na releitura b) Neon Bible (2007) pés assentes na terra – pese a dimen- também invejei muita da inocência e Se Funeral já era desfórico, Neon são das preocupações cantadas, a frescura que temo haja fenecido com Bible será o álbum mais negro do ano vulnerabilidade poética de Butler, a o tempo, desgastado por tantos anos (embora Discopatia admita haver opção multilingue (algumas linhas de escrita entrópica. passado ao lado das últimas produ- cantadas em francês), os Arcade Fire Com frequência achava a prosa ções de Tom Waits e Nick Cave). não deixaram de ser uma banda de redundante e a cheirar a mofo. Logo rock . E das mais inventivas da actua- uma rara metáfora mais bem esga- Gravado numa igreja perto de lidade, com um incontestado prazer lhada, um e-mail provocatório ou um Toronto transformada em pequeno por uma teatralidade que ajuda a pôr disco apaixonante (e o ânimo do estúdio, para o disco passou não só a em perspectiva a gravidade dos Jorge Gonçalves ou de amigos como sonoridade do órgão de catedral assuntos recenseados para o álbum. o José Vítor Henriques) me salvavam como também o ambiente severo do e encaminhavam o artigo para o prelo. pré-apocalipse ( World War III when Os inventariadores de influências are you coming for me?) e a iminên- citam Bruce Springsteen ou os U2 Mal suspeitava que as 199 cia do desastre ( not much chance for como sombras tutelares do disco, Discopatias eram o que de mais pró- survival ) para que somos alertados acrescentando Discopatia ecos dos ximo havia de um Diário sempre adia- pelo reverendo Win Butler, espectral cativantes Go-Betweens ou de Ian do e jamais escrito, com as suas do alto do seu púlpito em chamas. McCulloch (dos Echo & The imperfeições, piscadelas de olho, referências culturais, ódios e amores. Bunnymen) na voz de Win Butler. A Nestes 18 anos a Audio foi a minha Butler e os Arcade Fire cantam o des- produção, a cargo da banda, é no Casa da Escrita. concerto de um mundo à beira da geral pouco clara, a ambição sobrele- desagregação, espiado por câmaras vando à aptidão. Mas magníficos Quando for famoso (e defunto), um sinistras e tolhido pelo medo ( there’s temas como Intervention , Ocean of biógrafo póstumo me arrumará os a fear I keep so deep… men are Noise , Windowsill, No Cars Go e o papéis. coming to take me away ), a tensão e grand finale My Body is a Cage salvam Um homem propõe-se a tarefa de a angústia pela next bad thing (mir- o projecto de uma pompa sem rumo. desenhar o mundo. Ao longo dos ror, mirror on the wall / show me anos povoa um espaço com imagens where them bombs will fall), visto Neon Bible , o tal difícil segundo de províncias, reinos, montanhas, através de um Black Mirror e onde álbum, é, mais do que grande, gran- baías, navios, ilhas, peixes, habita- ecoam Bad Vibrations num Ocean of dioso, mais empenhado que politiza- ções, instrumentos, astros, cavalos e Noise em cujo meio cresce uma gran- do, tão cínico quanto optimista e des- pessoas. Pouco antes de morrer des- de Black Wave . confortável mas terno nas suas cobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto. imperfeições. Um triunfo suado. O pathos de Funeral era mais pes- Jorge Luís Borges, in Museu soal, mais intrínseco à banda. Neon eMail: [email protected]

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