MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO III ENCONTRO REGIONAL NORTE DE HISTÓRIA DA MÍDIA

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO III ENCONTRO REGIONAL NORTE DE HISTÓRIA DA MÍDIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA – UFRR Endereço: Av. Ene Garcez, nº 2413, bairro Aeroporto, CEP: 69304-000, Boa Vista/RR. Reitora: Drª.Gioconda Santos Martinez Vice-Reitor e Pró-Reitor de extensão:Dr. Reginaldo Gomes de Oliveira Pró Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Pró-Reitora: Drª.Rosangela Duarte

EXPEDIENTE Revisão: Conselho Científico: Luís Munaro e Mauricio Elias Zouein Dr. Álvaro Larangeira – UTP Dra. Carla Monteiro – UFRR Capa: Dr. Luís Francisco Munaro – UFRR Lannne Prata e Mauricio Elias Zouein Dra Maria Berenice Machado – UFRGS. Msc. Mauricio Elias Zouein – UFRR

Dra. Netília Seixas – UFPA Projeto Gráfico e Diagramação: Dr. Vilso Santi – UFRR Lannne Prata e Mauricio Elias Zouein

Organização dos Anais: Conselho Editorial: Luís Munaro e Mauricio Zouein Dr. Luís Francisco Munaro – UFRR Dra Maria Berenice Machado – UFRGS. Organização do Evento: Msc. Mauricio Elias Zouein – UFRR Luís Munaro, Mauricio Zouein, Vilso Dra. Netília Seixas – UFPA Santi, Sonia Padilha, Carla Monteiro

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ÍNDICE

GT HISTÓRIA DA MÍDIA DIGITAL

Execução sumária de presidiários nos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web (2005-2014)...... 06 Tipiti Notícias: Webjornal Feito a Partir de Tuites de Jornalistas e Estudantes de Roraima...... 20 Caso Pesseghini: O perfil de um psicopata segundo o Portal G1...... 31 A Abordagem da Comunicação Contemporânea no Filme a Rede Social ...... 44 O uso da Mídia Televisiva por Grupos e Instituições Religiosas no Brasil: Uma análise da atuação da IURD na Rede Record...... 56 Análise das Características do Jornalismo Online apresentadas pelo Portal jornalístico Folhaweb...... 68 O Portal Macuxi e a História do Webjornalismo...... 83

GT MÍDIA E HISTORIOGRAFIA

Estado Democrático de Direito e a Mídia sob a Perspectiva da Pluralidade das Fontes...... 101 Anúncios e propaganda no jornal “Estrella do Amazonas” (1854-1859)...... 114 Etnoperiodismo: Estudos históricos sobre grupos étnicos, comunidades imigrantes e minorias sociais no Brasil através da Imprensa...... 129 Resistência e Jornal Pessoal: Da Ditadura Militar à Democracia na Amazônia– Resistir é preciso...... 142 A articulação de jornais e espaços públicos na Ilustração Inglesa (1700-1820)...... 159 Ora, sim; ora,não! O diploma de Jornalismo em várias fases do processo de profissionalização da atividade jornalística no Brasil...... 174 O Jornalismo em Território Indígena: Breves Considerações sobre a presença da mídia na festa da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol...... 190

GT HISTÓRIA DO JORNALISMO

O percurso da mídia impressa no Pará: uma viagem até Cametá do século XIX...... 204 Sequestro do ônibus 174 e a mudança de padrões na transmissão de grandes coberturas...... 218

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A Polamazônia e o discurso desenvolvimentista durante o Regime Militar...... 229

Jornal do Rio Branco (1916-1919): O projeto beneditino de Civilização na vila de Boa Vista do Rio Branco...... 240 A Editoria de Meio Ambiente em Jornais Impressos de Roraima: Uma breve Análise Histórica...... 257 O Ethos de cada um: limites e associações entre a Ética Profissional de Jornalistas e Corporativa de Empresas de Comunicação...... 271 Curso de Comunicação da UFRR as dificuldades Para a formação do Jornalista...... 285

GT HISTÓRIA DA MÍDIA AUDIOVISUAL

Theodor Kock-Grünberg e George Huebner na Amazônia: Pioneiros no fotojornalismo e a semiótica enquanto método de análise...... 302 Linguagem na Amazônia: Incursões no Registro Cinematográfico do alemão Koch-Grünberg...... 315 (I)margem da história: A ideia de Amazônia nos signos euclidianos...... 329 Façanhas Políticas de Roraima em Quadrinhos (HQ)...... 342 Fotografia na Amazônia: Testemunho do tempo, do passado de alguns, da memória de um povo e da identidade de uma Nação...... 361 Conceitos e questões éticas do documentário: Análise das asserções da produção tocantinense “Kitnet o filme”...... 387 Rastreando notícias, Buscando faces: Fotografia e imprensa em Manaus...... 401 Linguagem visual: Prolegômenos de um diálogo entre Fotojornalismo e Patrimônio cultural...... 416

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Execução sumária de presidiários nos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web (2005-2014)

Aldenor da Silva PIMENTEL1

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a cobertura promovida, de 2005 a 2014, pelos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web, impresso e on-line, respectivamente, sobre execuções sumárias de presidiários. Foi realizada a análise performática de 52 textos jornalísticos (notícias, editoriais e notas de coluna social), sobre 14 casos de execuções sumárias ocorridas em unidades prisionais de Boa Vista, capital de Roraima. Para dar embasamento teórico à investigação, foram utilizadas as contribuições de autores ligados à hipótese do newsmaking. Como resultado, foi demonstrado que houve momentos em que a cobertura analisada divulgou predominantemente a versão da gestão do sistema prisional e da polícia civil e em outros são apresentadas versões divergentes.

Palavras-chave: História do jornalismo; Jornalismo criminal; Execução sumária; Presidiários.

Este trabalho tem por objetivo analisar a cobertura promovida, de 2005 a 2014, pelos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web sobre execuções sumárias de presidiários. Ambos os jornais, impresso e on-line, respectivamente, compõem o mesmo grupo de comunicação, que compreende ainda uma rádio e uma editora. O periódico on-line disponibiliza também no suporte digital notícias publicadas pela versão impressa. Portanto, a grande maioria dos textos da amostra desta pesquisa foi publicada simultaneamente nos dois periódicos. Foi realizada a análise performática de 52 textos jornalísticos, entre notícias, editoriais e notas de coluna social, sobre 14 casos de execuções sumárias ocorridas em unidades prisionais de Boa Vista, capital de Roraima. O levantamento desses casos vem sendo feito por este pesquisador desde a graduação, em razão da temática de investigação de seus trabalhos acadêmicos. As notícias foram encontradas por meio de pesquisa, em sites de busca na internet e do próprio sistema de busca do jornal Folha Web, por palavras e expressões como encontrado morto, preso morto, detento morto e presidiário morto e pelo nome completo de presos que eram

1Mestrando em Comunicação pela UFGO, com mestrado sanduíche pela Unisinos. Graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, pela UFRR, especialista em Comunicação, Assessoria de Comunicação e Novas Tecnologias, pela Facinter, e especialista em Docência no Ensino Superior, pelas Faculdades de Educação Montenegro, email: [email protected]. 6

executados sumariamente, de conhecimento deste pesquisador. Os jornais estudados foram escolhidos por serem os mais antigos em atividade no Estado de Roraima, em seus respectivos suportes (impresso e on-line). Optou-se, como se vê, por casos múltiplos, a exemplo de Braga (2010), em Análise performativa. Cem casos de pesquisa empírica, em que o autor estuda a estrutura singular de cada caso, mas também, características do conjunto, para a obtenção de inferências transversais. Como embasamento teórico, utilizamos a hipótese do newsmaking, que se orienta para a produção e os produtores da notícia, ao estudar a influência da rotina (constrangimentos organizacionais, condições orçamentárias, distribuição da rede noticiosa, etc.) na representação dos acontecimentos. A produção noticiosa é pensada como rotina industrial e a notícia é vista como resultado dos diversos fatores envolvidos no processo, isto é, a ação pessoal, social, ideológica, cultural, do meio físico, histórica (SOUZA, 1999). Por isso, a técnica adotada foi a análise performativa, que tem como característica “estudar sistematicamente as relações que o objeto constrói e entretém com seu contexto, assim como as ações realizadas pelo texto ou pelo produto midiático nas dimensões explicitamente definidas pelo problema de pesquisa que esteja em construção” (BRAGA, 2010, p. 409). Segundo Braga (2010, p. 410), na análise performativa de produtos midiáticos procura-se “percepções sobre o produto como elemento ativo em uma circulação interacional”, a partir de observações do que “o produto faz através do que ‘diz’ ou ‘mostra’”. A referida técnica foi escolhida por propiciar o tratamento da produção jornalística como resultado de decisões profissionais. A amostra está organizada da seguinte forma: são dez casos investigados pela operação Bastilha, desencadeada pela Polícia Federal, em novembro de 2008, que objetivou desmantelar uma quadrilha que comandava o crime organizado dentro do sistema prisional de Roraima (inclusive promovendo execuções sumárias de detentos, ocorridas entre 2006 e 2008). Para se fazer uma análise comparativa, foram selecionados ainda outros quatro casos, sendo um anterior aos investigados pela operação policial e três posteriores a ela.

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Os casos analisados são de mortes oficialmente consideradas execuções sumárias, segundo, ao menos, uma das fontes públicas ouvidas pelos periódicos da presente amostra. Na maioria dos casos, os responsáveis pela execução tentaram forjar o crime como suicídio. Há homicídios inclusive ocorridos no mesmo dia, na mesma unidade prisional, em que se tentou forjar duplo suicídio.

1. Momentos de cobertura x Comportamento editorial Esta pesquisa identificou quatro momentos na cobertura pelos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web sobre execuções sumária de presidiários, dentro do recorte temporal analisado. Cada momento corresponde a um comportamento editorial dos referidos periódicos na cobertura dos casos. Na primeira fase, a postura editorial, de forma predominante, reproduz a versão da administração do sistema prisional e da Polícia Civil. Na segunda fase, a cobertura é incrementada com a aparição de instituições que trazem versões contraditórias em relação às fontes predominantes na fase anterior. Na terceira, marcada pelo desencadeamento da Operação Bastilha, os jornais atualizam os casos já noticiados com a divulgação da versão oficial que vem substituir a precedente, a partir das investigações policiais. Na quarta e última fase detectada na amostra, há a consolidação de práticas dos momentos anteriores e o ressurgimento de outras que pareciam até então superadas. Destaca-se que essas fases não são estanques. Elas se atravessam, ocorrendo, por vezes, simultaneamente. Há ocasiões em que elementos de uma ainda perduram até a fase seguinte, enquanto elementos predominantes em fases posteriores aparecem pontualmente em uma anterior.

1.1 A imprensa refém do sistema Na primeira fase, os jornais em análise, de forma predominante, reproduzem como fato a versão da administração do sistema prisional e da Polícia Civil. Há matérias em que essas fontes são as únicas a quem é dada a voz. Segundo Traquina (2001), para analisar a confiabilidade da informação e considerando que as fontes são pessoas com interesses, os jornalistas utilizam critérios para avaliar as fontes de informação: a) a autoridade (status

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ocupado dentro de uma hierarquia); b) a produtividade (capacidade de fornecer com frequência informações novas e relevantes); c) e a credibilidade (capacidade de fornecer informações confiáveis). Raros nas notícias são os elementos que contradizem a versão oficial. O exemplo abaixo é um deles: No lead da matéria Macuxi é encontrado morto dentro da cela, referente ao primeiro caso objeto da operação Bastilha, que seria desencadeada dois anos depois, é apresentada a versão oficial seguida da versão da família do executado: “Macuxi morreu por enforcamento e a versão dada pela direção do presídio é de que ele cometeu suicídio, mas a família contesta e acusa que ele foi assassinado.” (SOUSA, 2006, p. 1) Entretanto, ao longo dessa mesma notícia, é desenvolvida somente a versão oficial, como no trecho “disse o diretor, acrescentando que a ala 08 onde ele estava é considerada uma das mais tranqüilas do presídio” (SOUSA, 2006, p. 1). Em nenhum outro ponto do texto, volta-se a citar a versão da família. Essa postura do periódico é consolidada em seu editorial, do dia 5 de dezembro de 2006, coluna que leva o nome de Parabólica. O texto assume a versão de suicídio, como pode ser notado a seguir: “Macuxi – assassino do capitão Castro Mendes, e de uma adolescente de 17 anos – suicidou-se recentemente na Cadeia Pública.” (PARABÓLICA, 2006, p. 1) Destaca-se que a postura do jornal se dá duas semanas após a execução, tempo insuficiente para a conclusão das investigações policiais e do processo administrativo disciplinar. O próprio periódico declarou o caso “encerrado” em uma nota de outro editorial, em 15 de novembro de 2007:

ENCERRADO. Um ano depois, está encerrado o caso do comerciante José Barnabé Filho, o “Macuxi”, encontrado enforcado em uma cela na Cadeia Pública de Boa Vista, em novembro do ano passado. Ele foi o autor do assassinato do capitão da Polícia Militar, Castro Mendes. Uma sindicância aberta à época concluiu que não houve facilitação ou envolvimento de agentes carcerário[s] na morte de Macuxi. (PARABÓLICA, 2007, p. 1)

Acresce-se que a postura editorial de assumir como verdade, sem questionamentos, a versão do sistema prisional de que se tratou de suicídio é antecedida pela matéria do próprio periódico, de 3 de julho de 2006, intitulada SISTEMA PENITENCIÁRIO - MPE entra com ação contra o Estado, em que são citados, em trecho da ação civil pública, casos

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de execuções sumárias de detentos em Boa Vista: “A superlotação [...] facilita a prática de crimes como os ocorridos com Marinaldo Mota Lira, encontrado morto enforcado na cela em 04.05.2004 e o guianense Roberto Júnior Pereira Xavier, degolado com uma faca por outros detentos em 18.07.2005” (SISTEMA, 2006, p. 1). Ou seja, o jornal dispunha de elementos históricos para contrapor a versão oficial e não o fez. Nessa fase, o suicídio é a primeira hipótese. Somente em dois casos analisados, o homicídio não é apresentado como possibilidade segunda; em um deles há um presidiário que assume a autoria da execução. A seguir, um exemplo em que o suicídio é a versão principal: “O caso será investigado pela Delegacia-Geral de Homicídios e, conforme o delegado Glauber Lorenzini, inicialmente a suspeita é que a vítima cometeu suicídio. No entanto, não está descartada a hipótese de um homicídio.” (PRESO, 2007, p. 1) Como mencionado, nessa fase, versões contraditórias à fala oficial são minoradas. Observa-se, por exemplo, que os dizeres dos familiares são mediados por instituições estatais, como pode ser notado em “comentou [o Defensor], enfatizando que o pai desse rapaz procurou a DPE [Defensoria Pública do Estado] e disse que o filho estava correndo risco de morte em razão da fuga” (MORTES, 2008, p. 1) e “Nas investigações, segundo o delegado, [...] Apenas uma irmã de um preso, que não foi morto, disse que o irmão teria falado sobre esse pacto [para nenhum preso fugir]” (MORTES, 2008, p. 1). Ambas as citações pertencem à notícia MORTES NA PA - Defensor ameaça pedir intervenção federal, veiculada em 22 de janeiro de 2008. Além disso, nesta fase, é possível perceber na construção da narrativa dos casos analisados elementos que justificam ou atenuam a execução sumária de presos. Isso pode ser percebido quando a notícia se refere ao presidiário morto por um adjetivo substantivado, como o estuprador ou o homicida. Ressalva-se que essa denominação é empregada mesmo em casos em que o detento ainda é réu, ou seja, não foi sentenciado e, portanto, é legalmente considerado inocente.2 Também se percebe um processo de justificação ou atenuação da execução extralegal, ainda que não deliberadamente, quando se dá ênfase nos antecedentes do

2 O princípio constitucional da presunção da inocência diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 2006, p. 19), ou seja, até que finde a possibilidade de recurso judicial, o réu deve ser considerado inocente. BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. Lex: Brasília: Senado Federal, 1988. 10

executado, inclusive com destaque para a violência do crime que ele teria cometido, como neste exemplo: “VÍTIMA – [O Executado] Roberto estava preso acusado de matar três pessoas no bairro Operário naquele mesmo ano, crime que ficou conhecido como ‘chacina do Operário’, onde foram assassinados brutalmente com golpes de facas o pai e seus dois filhos.” (PRESIDIÁRIO, 2007, p. 1, grifo nosso) Nesta fase, quando se levanta a possibilidade de as mortes retratadas terem sido homicídio, as (possíveis) execuções sumárias são delineadas como práticas de uma pessoa isolada ou pequenos grupos provisórios que, desorganizados, surgem espontaneamente com fim específico de executar extra legalmente um ou mais detentos e se desfazem após o crime. Em um dos casos, ainda que se, segundo o jornal, o diretor da Cadeia Pública de Boa Vista, tenha dito não poder afirma que não houve participação de outros detentos, além dos dois que confessaram terem degolado um interno da unidade, a mesma notícia atribui ao diretor a seguinte informação: “a barbárie foi responsabilidade de dois outros presos e não teve aval do restante da população carcerária, que permanece querendo paz no sistema prisional.” (CORREIA, 2005, p. 10). Abaixo, outros dois exemplos:

Nas investigações, segundo o delegado, não foi relatado por nenhum dos presos a existência de uma “lei do silêncio” dentro dos presídios, nem mesmo de um suposto pacto entre eles para ninguém fugir, sob pena de quando voltarem a sentença ser severa: a pena de morte. [...] Alegando não existirem relatos dos presos sobre essas possíveis regras nos presídios, entre as linhas de investigação adotadas pela Polícia Civil estão a cobrança de dívidas e casos de desafeto. (MORTES, 2008, p. 2, itálico nosso) A superlotação contribui para acerto de contas entre desafetos, assim como facilita a prática de crimes como os ocorridos com Marinaldo Mota Lira, encontrado morto enforcado na cela em 04.05.2004 e o guianense Roberto Júnior Pereira Xavier, degolado com uma faca por outros detentos em 18.07.2005Roraima” [...], afirma a ação [civil pública]. (SISTEMA, 2006, p. 1, itálico nosso)

1.2 A intervenção republicana A segunda fase é marcada pela entrada em cena de outros poderes além do Executivo. Poderia ser apontada como o divisor de águas do momento anterior para este a já citada notícia MORTES NA PA - Defensor ameaça pedir intervenção federal.

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No prazo de um ano, o defensor público Stélio Dener disse que na Cadeia Pública e Penitenciária Agrícola do Monte Cristo foram cerca de dez mortes, na maioria tendo como vítimas presos que fugiram do sistema ou acusados de assassinatos, mas o Estado até agora não tomou providências para evitar novas ocorrências. Pelo menos três casos de mortes duplas nas celas foram registrados de março do ano passado até agora. (MORTES, 2008, p. 1)

Na matéria, como se percebe, a Defensoria Pública é a voz principal. Também são ouvidos o Judiciário, a Secretaria de Justiça e , responsável pelo sistema penitenciário, e a Polícia Civil, que comanda a investigação referente à morte dos presos. A partir desse momento, outro personagem ganha a cena. A família do executado, que até então aparecia em segundo plano, agora tem destaque. Cerca de uma semana depois da matéria citada acima, outra tem como voz principal o genitor de um detento morto, com o título Pai denuncia que filho foi embriagado na Penitenciária antes de morrer. Aponta-se que não é coincidência esse crescimento dos parentes do executado na cobertura jornalística após a aparição de vozes institucionais que contradizem a versão oficial. Acredita-se que instituições como a Defensoria Pública transferiram sua credibilidade aos familiares dos executados, ao corroborarem a versão destes junto à imprensa, inclusive sendo mediadores entre jornal e parentes dos presos assassinados. “Ele [o pai de um dos presos encontrados mortos] participou do programa acompanhado do defensor público Stélio Dener, que vinha acompanha[n]do o caso antes das mortes na PA. Maurício disse que processar o Estado e pedir indenização pela morte do filho” (PAI, 28 jan. 2008, p. 1). Outra instituição que contradiz o Executivo nesta fase é o Ministério Público:

Dos casos registrados, incluindo o do dia 21, [o promotor de Justiça] Teles comentou que duas ou três mortes podem ter sido suicídio, mas ainda assim serão apuradas. Nos casos de morte em dupla, tanto os promotores como delegados não trabalham com a hipótese de suicídio. Uma característica comum nesses registros é a fuga como precedente. (RL, 2008, p. 1)

Na matéria, o promotor acusa ainda pelas mortes a demora do Judiciário em julgar uma ação civil pública contra o Estado e também “o descaso da sociedade quando se trata de presos”. 12

1.3 Forças federais em ação Esta fase é inaugurada pelo desencadeamento da operação Bastilha, da Polícia Federal, em novembro de 2008. Aqueles que eram as principais fontes na fase anterior, responsáveis pelos processos administrativos disciplinares que investigavam a possível “omissão” de funcionários nas mortes, agora são acusados de serem líderes da quadrilha que determinava a execução sumária dos presos.

Segundo a Folha apurou, o major da Polícia Militar Sydney Santos, ex- diretor do Departamento do Sistema Penitenciário seria a cabeça da organização. O cabo PM Raimundo Carvalho, ex-chefe do Serviço de Vigilância Interna da Penitenciária, seria seu braço direito. Os crimes seriam executados pelos detentos presos, que também são suspeitos de liderar a quadrilha. (GOMES; TRAJANO, 2008, p. 1)

Em janeiro de 2009, outra operação, agora da Polícia Civil, denominada São Leonardo de Noblat, foi desencadeada e cumpriu mandados de prisão de detentos. Essa operação consolidou as investigações iniciadas pela Polícia Federal. A formulação a seguir, presente na matéria que noticiou a operação daquela instituição policial, é digna de atenção:

Embora a população já tivesse essa convicção, pelo menos nove dos 11 presos que apareceram mortos dentro da Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, a maioria deles pendurados por cordas entre os anos de 2007 e 2008 supostamente por suicídios, na verdade foram assassinados. (SOUSA, 2009, p. 1)

Ao publicar a convicção da população contrária à versão oficial sobre as mortes nos presídios, é interessante perceber o que o jornal deixa de dizer: qual a convicção dele próprio em relação a essas mortes? Estaria ele incluso nessa população de convictos, na condição de “representante da opinião pública”? A resposta a essas perguntas não fica clara nesse texto noticioso, mas em uma matéria publicada dois meses antes é possível perceber que o jornal se coloca como agente que antecipou a versão que só depois se confirmaria “verdadeira”: “Na época da morte de Careca, Nara Pantoja, sua irmã, disse à Folha que não acreditava na versão oficial de que seu irmão tinha se matado.” (GOMES; TRAJANO, 2008, p. 1) Ressalva-se que, como já acentuado, os periódicos em análise, na fase anterior, apresentavam o suicídio como 13

hipótese principal, e o homicídio, como possibilidade marginal. É interessante perceber que na nota da coluna social abaixo o texto traça um paralelo entre um caso recente e uma morte “nas mesmas circunstâncias” que, na época da publicação da referida coluna, já havia sido elucidada pela Polícia Federal como homicídio. Entretanto, a nota não dá essa informação. Fica apenas na sugestão, demonstrando que o jornal ainda se sentia desconfortável em assumir a versão de homicídio, que à época já se tornara oficial.

No Presídio * A morte de um estuprador apenas 24 horas após ter dado entrada no presídio causou o maior alvoroço, pelo fato de o criminoso estar sozinho na sela no momento em que morreu enforcado com o cordão de um calção amarrado às grades da prisão. * De acordo com a administração do presídio, já foi constatado que se trata mesmo de suicídio. O recente episódio é exatamente idêntico ao caso do homicida José Barnabé da Silva (Macuxi), que morreu na cadeia tempos atrás nas mesmas circunstâncias (RODRIGUES, S., 2009, p. 2).

Mais interessante ainda é saber que a edição do Jornal em que foi publicada essa nota é a mesma em que consta a notícia Denunciadas 34 pessoas por morte de presos (TRAJANO, 2009), sobre a já citada operação São Leonardo de Noblat. Entretanto também não é feita qualquer referência a essa operação policial. Nesta fase, as histórias são revisadas, atualizadas como homicídio, diferente do que havia sido publicado anteriormente pelos jornais. Apesar disso, os periódicos em nenhum momento fazem um mea culpa. Não há qualquer referência ao fato de os jornais em análise terem publicado e, inclusive assumido como verdade, a versão oficial anterior e agora divulgarem outra como verdadeira, sendo que esta contradiz aquela.

[...] no dia 30 do mesmo mês, foi à vez do preso Mário Gomes Feitosa, apelidado de Velhinho, que foi espancado até à morte; no dia 26 de novembro ainda de 2007, o preso Sebastião de Almeida Lourenço, foi induzido e instigado a se enforcar com uma camisa, único caso confirmado de suicídio, porém obrigado (SOUSA, 2009, p. 2).

Outro destaque a se fazer é de que nessa fase as execuções deixam de ser apresentadas como possível ação entre indivíduos ou promovida por pequenos grupos formados espontaneamente para figurar como ações organizadas de uma quadrilha

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criminosa. “[Um dos livros de anotações] pertence à Cawboy e foi apreendido na casa da mulher dele, onde descreve toda a estrutura da organização e segundo o delegado possibilitará que muitos outros crimes, não somente de homicídios sejam esclarecidos.” (SOUSA, 2009, p. 2)

1.4. Outra vez a mesma história Esta fase é uma compilação das anteriores. De um lado, vê-se como positiva a consolidação de práticas no noticiário como a crítica ao Estado na sua responsabilidade de gerir o sistema prisional, o levantamento estatístico de mortes suspeitas em presídios em período determinado e a abertura para vozes contraditórias, como o MPE, familiares, o Judiciário, a OAB e um pesquisador (sociólogo). De outro lado, práticas que pareciam superadas ressurgem nessa fase. São elas a construção da narrativa de modo a justificar ou atenuar a execução sumária, mostrar a execução como uma prática de uma pessoa isoladamente e apontar, sem contraposição, o suicídio como primeira hipótese. Como estratégia do jornal que acaba por justificar ou atenuar a execução extralegal, em que pode ser apontado um apoio implícito ao homicídio, observa-se o destaque na repercussão junto à população do crime atribuído ao preso morto, em detrimento da própria execução.

O crime de grande repercussão cometido pelo pedreiro chocou a população e também os presos da PA, para onde Honorato foi levado. Os detentos são contra estupradores de crianças e mulheres, e as leis internas adotadas pela população carcerária são severas. Esta é a segunda morte de estuprador, somente este ano, registrada dentro do mesmo presídio. Em depoimento prestado por Robson Orelha durante o flagrante de homicídio realizado no Plantão Central I, uma hora após o crime, muito friamente ele foi enfático ao dizer que matou pela revolta diante do brutal crime cometido por Honorato. (MELLER, 2011, p. 1, itálico nosso)

Além disso, o exemplo acima faz referência a “leis internas da população carcerária”, sem questionar explicitamente que a adoção dessas “leis” são, na verdade, uma ilegalidade. Aliado a isso, pode-se perceber a construção da execução sumária como um fim inevitável para quem comete crimes como estupro de criança, em uma postura de banalização e

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normalização da execução sumária, como se observa abaixo:

“[O preso] Já sabia que iriam matá-lo dentro do presídio, e antes de eu sair, ele se despediu, como se soubesse que nunca mais iria vê-lo vivo”, disse. A esposa também falou que desde o momento em que foi informada da morte sabia que ele não tinha se suicidado, e sim sido assassinado. “Os presos não perdoam os estupradores. Infelizmente, esse foi o fim do meu marido”. (MELLER, 2011, p. 2)

Os exemplos abaixo, referentes a três casos diferentes, demonstram que uma prática que parecia superada na fase anterior volta como procedimento recorrente dos periódicos em análise: enquadrar o homicídio como ação isolada de uma pessoa ou um pequeno grupo, sem menção a uma organização criminosa. “Como o detento confessou o crime, alegando que o praticou sozinho, a delegada Francilene disse que o procedimento vai ser relatado e encaminhado à Justiça.” (POLÍCIA, 2011, p. 1)

Ele confessou detalhes de como tudo aconteceu. Disse que, logo após a transferência de Honorato da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), onde o flagrante foi realizado um dia após o estupro, Orelha - que é tido como um homem muito violento e sem escrúpulos - adotou pessoalmente “medidas de punição” contra o estuprador. (MELLER, 2011, p. 1) Detentos que estavam no local do crime disseram que ele teria sido espancado durante toda a tarde, até que durante a noite o homicídio foi consumado. Segundo a Polícia Militar, o preso Ednaldo Fonseca da Silva, 19, confessou ter dado o “golpe de misericórdia” no homem ao enforcá- lo. (LIMA, 2011, p. 1)

Também nessa fase, volta-se ao suicídio como primeira hipótese, nos casos em que não há autoria assumida, como nos dois exemplos abaixo.

A Folha apurou que na “tranca” onde Honorato ficou no isolamento, na noite de terça para quarta-feira, agentes carcerários monitoraram a Ala 8 para evitar que qualquer incidente ocorresse. “Tudo indica que os próprios presos disponibilizaram a corda para que Honorato cometesse o suicídio”, declarou a fonte da Penitenciária. A mesma fonte da Folha disse que os presos não admitem crimes de estupro contra mulheres e criança. “A lei na PA é bruta e os presos não aceitam isso. Então, eles entram na mente do estuprador [pressão psicológico] e ele mesmo comete o suicídio, que é melhor para ele”, explicou ao lembrar que estuprador não imagina o inferno dentro da PA. “Os presos não toleram” (TARGINO, 2011, p. 1). 16

“O pintor foi encontrado enforcado e a polícia trabalha até o momento com a hipótese de suicídio.” (RODRIGUES, T., 2013, p. 1) Reconhece-se, nesta fase, a publicação também, ainda que ínfima, de material jornalístico com foco em políticas públicas. A notícia Reativada ala de presos por crimes sexuais, entretanto, é a única da amostra que se enquadra nesse perfil, uma exceção que confirma a regra. Em todos os outros textos analisados o foco é criminal.

Considerações finais Este trabalho analisou a cobertura dos jornais Folha de Boa Vista e Folha Web, de 2005 a 2014, sobre execuções sumárias de presidiários. A investigação identificou quatro fases que correspondem cada uma a um comportamento editorial dos periódicos na cobertura dos casos, seja a reprodução da versão oficial, da administração do sistema prisional e da polícia civil, a apresentação de vozes contraditórias ou a revisão das histórias já publicadas. É preciso destacar que não se trata de uma história linear e evolutiva, que parte de uma realidade negativa até um momento em que os problemas dos momentos anteriores deixam de existir. Nessa travessia, há avanços e retrocessos. Diferentes características e comportamentos editoriais, por vezes contraditórios, convivem simultaneamente. Algo que fica evidente em toda a cobertura é que há pouco espaço para o jornalismo investigativo. É predominante nas notícias em estudo as instituições oficiais como fonte de informação, ainda que seja para contradizer uma a versão da outra. Tal constatação indica que os jornais analisados estão presos ao critério autoridade para analisar a confiabilidade da informação fornecida, o que acaba por proporcionar uma cobertura um tanto quanto limitada do tema em questão. O embasamento teórico, hipótese do newsmaking, e a técnica adotados, análise performativa, ajudaram a perceber as características apontadas na cobertura jornalística analisada como resultado de decisões profissionais, e não como produto de técnicas objetivas. Desse modo, acreditamos que a forma como as notícias foram apresentadas não são as únicas possíveis, mas foram a escolhida pelos periódicos analisados dentre tantas outras.

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MORTES na PA - defensor ameaça pedir intervenção federal. Folha Web, Boa Vista, p. 1-3, 22 jan. 2008. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2014.

PAI denuncia que filho foi embriagado na Penitenciária antes de morrer. Folha Web, Boa Vista, p. 1-2, 28 jan. 2008. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2014.

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POLÍCIA Civil autua detento por matar na PA, pedreiro que confessou estupro. Folha Web, Boa Vista, p. 1, 7 jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2014.

PRESIDIÁRIO que decapitou colega na Cadeia vai ser julgado hoje. Folha Web, Boa Vista, p. 1, 28 abr. 2007. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2014.

PRESO é encontrado enforcado na PA. Folha Web, Boa Vista, p. 1, 28 nov. 2007. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2014.

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TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2001.

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Tipiti Notícias: Web Jornal feito a Partir de Tuites de Jornalistas e estudantes de Roraima

Cyneida Menezes CORREIA3 Paulo Felipe MEDEIROS4

RESUMO: No mundo digital, não apenas profissionais de comunicação, mas qualquer pessoa pode compartilhar uma informação, construir uma noticia ou adaptá-la a sua realidade. Este produto foca nas práticas do jornalismo. Considerando a circulação jornalística no Twitter, como resultado da observação do que é produzido e vinculado pela rede social e com dados obtidos em uma analise com jornalistas e estudantes de comunicação de Boa Vista – Roraima. Por fim, se produz um jornal de twittes em uma plataforma de observatórios que pode ser utilizada por estudantes para a prática da produção jornalística e cientifica com conteúdo que circula nos jornais online e são recirculados A plataforma deve servir para que os estudantes possam aprender a usar a rede social de forma correta para divulgar informação.

PALAVRAS-CHAVE: Webjornalismo; Twitter; Roraima; Tipiti Notícias

Este trabalho busca compreender como se dá a influência do twitter no jornalismo. A abrangência é feita na avaliação de como os jornalistas estão utilizando o Twitter, no processo de produção das notícias, a partir da criação de um jornal feito com twittes abordando o assunto Roraima. O tema foi escolhido a partir da observação sobre o crescimento do número de jornalistas e estudantes de comunicação usuários do Twitter em Boa Vista Roraima. A pesquisa em questão tem sua relevância científica, por contribuir com um material teórico sobre Twitter, possibilitando que novos acadêmicos disponham de maior quantidade de informação sobre o assunto. A partir de analise do que foi twittado feita em uma amostra de 150 jornalistas e estudantes da área de Comunicação Social, e uma seleção bibliográfica sobre mídias digitais, foi produzido esse trabalho e este produto aqui apresentado, oferecendo novas oportunidades de se avaliar o que é divulgado e retransmitido. Para ilustrar tais conceitos, utiliza-se como bibliografia básica os autores:

3 Aluna do 6º. Semestre do Curso de Comunicação Social-Habilitação Jornalismo, email: [email protected]. 4 Estudante do 6º. Semestre do Curso Comunicação Social-Habilitação Jornalismo, email: [email protected] 20

Silva, (2009) e Zago (2008) que dizem que cada vez mais tem crescido a utilização do Twitter para finalidades voltadas ao jornalismo, como na cobertura de acontecimentos ou eventos ou na divulgação de últimas notícias. Outro teórico utilizado será Recuero (2009) que sistematiza três relações possíveis entre jornalismo e redes sociais: as redes sociais podem atuar como fontes produtoras de informação, como filtros de informação, ou ainda como espaços de reverberação dessas informações. “Ao repassar informações que foram publicadas por veículos, os atores estão dando credibilidade ao veículo e tomando parte dessa credibilidade para si, pelo espalhamento da informação” (RECUERO, 2009, p. 48). O papel do jornalista passa a ser o de selecionar quais as informações receberão destaque. Filtragem passa a ser mais importante que a mediação (PRIMO & TRÄSEL, 2006). As redes sociais exerceriam, assim, caráter complementar ao jornalismo “não tendo o mesmo comprometimento que estes para com a credibilidade da informação, mas auxiliando a mobilizar pessoas, a construir discussões, e até mesmo, a apontar diversidades de pontos de vista a respeito de um mesmo assunto” (RECUERO, 2009b, p. 50). Nem tudo o que está no Twitter é jornalismo. “Nesse sentido, o Twitter se torna parte de um ambiente de sistema de mídia no qual os usuários recebem um fluxo de informação tanto da mídia de referência quanto uns dos outros” (HERMIDA, 2010, online). Essa rede social também permite informar que há vários outros usos possíveis para o Twitter, como para fazer a cobertura ao vivo de um evento, para notícias, para comunicação entre integrantes de um grupo de trabalho, etc. [...]. Um uso importante possível para o Twitter é estabelecer diálogos coletivos de modo assíncrono (SANTOS apud LEMOS, 2008, p.7). Assim como notícias em primeira mão são agora mais “primeiras” do que nunca, os negócios podem se armar com o imediatismo do twitter para inovar e construir relacionamentos como nunca. (COMM, p. 22, 2009)

1. Objetivo Constituir e consolidar um jornal alternativo virtual de twittes capaz de representar o que é noticiado por acadêmicos de comunicação e jornalistas, dando-lhes espaço para se

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manifestar e discutir questões de relevância social, sem deixar de lado as tendências de comunicação visual e editorial. Pretende-se informar atualidades para que jornalistas e estudantes escolham temas de repercussão para o estado, tornando-se assim disseminadores de informações plurais e criticas. A preocupação primordial é diagnosticar um fenômeno que vem ocorrendo na prática do jornalismo, que é o sistema de microblog Twitter servindo como pauta, fonte e até mesmo de espaço de reverberação de informação, num processo de encadeamento midiático. Este projeto tentará descrever o fenômeno através de casos estudados, além de interpretá-los dentro do atual contexto da ‘sociedade da informação’ ao qual estamos inseridos.

2. Justificativa A Justificativa para este trabalho é que vários estudos mostram que a atuação de atores sociais no Twitter, podem auxiliá-los a mobilizar a informação jornalística em proveito próprio. No caso, a publicação de determinadas informações podem estar diretamente relacionadas com interesses diversos inclusive fazer com que os estudantes de jornalismo possam estar mais antenados com o mundo. Neste sentido, as redes sociais, enquanto circuladoras de informações, são capazes gerar mobilizações e conversações que podem ser de interesse jornalístico na medida em que essas discussões refletem anseios dos próprios grupos sociais. As redes sociais podem, muitas vezes, agendar notícias e influenciar a pauta dos veículos jornalísticos. Justifica-se também a escolha do tema pela ausência de trabalhos que mostrem como as redes sociais podem coletar e republicar as informações obtidas através de veículos na própria rede. Por ser o tema de grande relevância social que tem um conteúdo muito extenso, procura-se traduzir em poucas linhas alguns. Um dos valores que pode ser observado a partir desta perspectiva é a publicação das informações nas redes sociais na Internet e seu impacto individual. Zago (2008) observou que o uso do Twitter para disseminar conteúdos jornalísticos, demonstram que a republicação de informações na ferramenta tem um caráter informativo relevante. Firmino (2009) faz observações semelhantes, igualmente focando o papel dos microblogs no jornalismo.

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A informação que vincula no twitter foi feita para convergir com o web jornal Tipiti, uma publicação em formato de jornal virtual, com vários temas e que pode ser acessado pela internet. O avanço é que, optou-se por disponibilizar um jornal capaz de trazer organizar por temas o conteúdo jornalístico divulgado na rede twitter levando o leitor a conhecer não apenas os sites geradores da informação, mas também os usuários que a retransmitiram e seus comentários sobre o assunto. As grandes justificativas para a criação do Tipiti Noticias são: a) a necessidade de um jornal virtual que especificamente segmentado para jornalistas e estudantes de comunicação interagirem com seguidores e poderem trabalhar a informação de maneira mais ampla, b) o fortalecimento da comunicação regional c) a necessidade da convergência entre o site twitter e o jornal Tipiti Notícias. Essas justificativas se encontram fundamentadas na necessidade do jornalismo estar atento aos diferentes públicos, seus comportamentos, maneiras de consumir, de pensar e de agir na prática, para que assim possam compreender a relação dos meios de comunicação em geral e as estratégias de produção de conteúdo. Pensou-se na produção de um jornal com foco nas expectativas do público para o qual se produz, tendo em vista as diversas segmentações da sociedade, dentre as quais estão os estudantes de comunicação.

3. O jornalismo na web Antes da invenção do World Wide Web (WWW ou Web), a rede já era utilizada para a divulgação de informações, porém os serviços oferecidos eram direcionados para públicos muito específicos e funcionavam através da distribuição de e-mails, de boletins disponibilizados através do Gopher ou de recursos semelhantes. A Internet passa a ser empregada, de forma expressiva, para atender finalidades jornalísticas, a partir de sua utilização comercial, que se dá com o desenvolvimento da Web no início dos anos 90. Ao longo desta década de história do jornalismo na Web, é possível identificar três fases distintas. Num primeiro momento, ao qual chama-se de transpositivo, os produtos oferecidos, em sua maioria, eram reproduções de partes dos grandes jornais impressos, que passavam a ocupar um espaço na Internet. Com o aperfeiçoamento e desenvolvimento da estrutura técnica da Internet, pode-se identificar uma segunda fase – a da metáfora -

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quando, mesmo ‘atrelado’ ao modelo do jornal impresso, os produtos começam a apresentar experiências na tentativa de explorar as caraterísticas oferecidas pela rede. O cenário começa a modificar-se com o surgimento de iniciativas tanto empresariais quanto editoriais destinadas exclusivamente para a Internet. São sites jornalísticos que extrapolam a idéia de uma simples versão para a Web de um jornal impresso e passam a explorar de forma melhor as potencialidades oferecidas pela rede. Tem-se, então, o webjornalismo. Este terceiro, e atual, momento também corresponde a um estágio mais avançado de toda uma estrutura técnica relativa às redes telemáticas e aos microcomputadores pessoais, permitindo a transmissão mais rápida de sons e imagens. Para descrever o momento atual, a seguir são apresentadas as características do wejornalismo.

3.1 O Jornalismo On-Line No Brasil O jornalismo praticado na Internet é muito atual, e as primeiras iniciativas no Brasil datam da década de 90. Considerando que as mudanças tecnológicas contemporâneas acontecem em ritmo cada vez mais acelerado, a internet trouxe mais transformações que meio século de existência da televisão. Com os navegadores da www, que renovaram a interface gráfica da internet e facilitaram o seu acesso ao usuário, foi possível disponibilizar na rede produtos on-line, inclusive os jornais digitais. (QUADROS, 2002, p. 02) O jornalismo online contribuiu para modificar a linguagem do webjornalismo no Brasil mas até hoje existem controvérsias em relação à definição de qual foi o primeiro jornal a disponibilizar conteúdo na rede mundial. Alguns creditam o feito ao “Jornal do Brasil” e outros ao “O Estado de São Paulo”. Ricardo Torquato (2005, p. 26) e Luís Pereira (2002, p. 07) apontam o periódico carioca como pioneiro, enquanto Cláudia Quadros (2002, p. 11) destaca as experiências realizadas pela “Agência Estado”, com o “NetEstado”, que foram anteriores ao lançamento do “JB On Line”. Já o GJOL (Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-Line), afirma que as primeiras iniciativas de veiculação de notícias pela Internet aconteceram com o “Jornal do Commercio” de , que utilizava recursos de sistema de inserção de arquivos no formato de menu, administrado pela “empresa municipal de informática do ”, em

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1994 (MACHADO; PALÁCIOS, 1997, p. 18)

O Grupo Estado, dono do jornal “O Estado de São Paulo”, foi o primeiro a realizar testes de implantação de notícias no mundo virtual: No Brasil, a utilização da Internet pelas organizações jornalísticas resulta numa etapa preliminar de algumas iniciativas isoladas como as do Grupo Estado de S. Paulo [...]. A preocupação do conglomerado em acompanhar os próximos passos do intrincado mundo digital fez com que o Estado aderisse ao projeto Notícias do Futuro do Massachussetts Institute of Technology- MIT [...]. (MACHADO; PALÁCIOS, 1997, p. 05).

Em maio de 1995, o “Jornal do Brasil” produziu uma versão resumida das notícias do formato impresso. Pouco tempo depois, os nacionais “Folha de São Paulo” e “O Globo” também passaram a produzir versões digitalizadas. Nesse momento, é possível notar que as redações dos veículos ainda não demonstravam preocupação com a adaptação da linguagem para a nova mídia e muito menos exploravam as incipientes ferramentas de navegação da web. [...]é importante destacar que as primeiras gerações de páginas na web reproduziam conteúdos e design das versões impressas, aproveitando os dados armazenados nos computadores da redação tradicional. (QUADROS, 2002, p. 05). No intervalo de tempo que se sucedeu entre os primeiros jornais on-line e um segundo momento intermediário, em que se começou a planejar modelos criativos de informação jornalística digital e não apenas digitalizada, outro fenômeno arrasaria as concepções pré- estabelecidas sobre o webjornalismo até então: o surgimento dos portais, que forneciam notícias curtas e instantâneas. Para Pollyana Ferrari, os primeiros jornais a se aventurarem na Internet foram justamente os vinculados a grandes conglomerados comunicacionais do país. Essas empresas brasileiras participaram e investiram na criação dos chamados portais de informação, entre os anos de 1999 e 2000.

O conceito de portal surgiu nos EUA a partir do desenvolvimento dos sites de busca, que ofereciam serviços de chat, e-mail, comércio eletrônico, canais de entretenimento e notícias. Empresas tradicionais como as Organizações Globo, o grupo Estado (detentor do jornal O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde), o Grupo Folha (do jornal Folha de S. Paulo) e a Editora Abril se mantêm como os maiores conglomerados de mídia do país, tanto em audiência quanto em receita com publicidade. Foram eles que deram os primeiros passos na Internet brasileira, [...]. (FERRARI, 2006, p. 27).

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Foi assim que nasceu o primeiro jornal exclusivamente digital, no ano de 2002, com o “Último Segundo”, do portal IG, que pretendia oferecer uma informação nova a cada minuto. E para cumprir com esse objetivo, dispunha de uma pequena redação própria, embora quase todo o conteúdo fosse proveniente do serviço de agências de notícias. Antes disso, porém, uma das revistas semanais mais vendidas do país, a “Veja”, cria sua versão on-line. A atualização do conteúdo era feita com a mesma periodicidade com que a revista seguia para as bancas: semanalmente. Isso corrobora a idéia de que os veículos impressos ainda “não sabiam” como administrar suas publicações eletrônicas, deixando de explorar especificidades como instantaneidade, usabilidade, navegabilidade e hipertextualidade, características que serão analisadas no próximo capítulo.

3.2 Características do jornalismo na Web Ao estudar as características do jornalismo desenvolvido para a Web, Bardoel e Deuze (2000), apontam quatro elementos: interatividade, customização de conteúdo, hipertextualidade e multimidialidade. Palacios (1999), com a mesma preocupação, estabelece cinco características: multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização e memória. As características, que serão brevemente apresentadas, refletem as potencialidades oferecidas pela Internet ao jornalismo desenvolvido para a Web. Tais possibilidades não se traduzem necessariamente em aspectos efetivamente explorados pelos sites jornalísticos, quer por razões técnicas, de conveniência, adequação à natureza do produto oferecido ou ainda por questões de aceitação do mercado consumidor. Interatividade - Bardoel e Deuze (2000) consideram que a notícia online possui a capacidade de fazer com que o leitor/usuário sinta-se parte do processo. Isto pode acontecer de diversas maneiras, entre elas, pela troca de e-mails entre leitores e jornalistas; através da disponibilização da opinião dos leitores, como é feito em sites que abrigam fóruns de discussões; através de chats com jornalistas. Porém, os autores não contemplam a perspectiva da interatividade no âmbito da própria notícia, ou seja, a navegação pelo hipertexto que, conforme Machado (1997), constitui também uma situação interativa. Customização do conteúdo/Personalização - Também denominada de personalização ou individualização, consiste na existência de produtos jornalísticos

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configurados de acordo com os interesses individuais do usuário. Há sites noticiosos, entre eles o da CNN, que permite a pré-seleção dos assuntos de interesse, assim quando o site é acessado, este já é carregado na máquina do usuário atendendo à demanda solicitada. Hipertextualidade - Esta característica, apontada como específica da natureza do jornalismo online, traz a possibilidade de interconectar textos através de links. Bardoel e Deuze (2000) chamam a atenção para a possibilidade de, a partir do texto noticioso, apontar para outros textos como originais de relises, outros sites relacionados ao assunto, material de arquivo dos jornais, textos que possam levantar os ‘prós’ e os ‘contras’ do assunto em questão, entre outros. Multimidialidade/Convergência - No contexto do webjornalismo, multimidialidade, trata-se da convergência dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração do fato jornalístico. Memória - Palacios (1999) aponta para o fato do acúmulo das informações ser mais viável técnica e economicamente do que em outras mídias. Sendo assim, o volume de informação diretamente disponível ao usuário é consideravelmente maior no webjornalismo, seja com relação ao tamanho da notícia ou à disponibilização imediata de informações anteriores. Desta forma surge a possibilidade de acessar com maior facilidade material antigo. Para finalizar, a última das características a ser abordada, e talvez a mais complexa delas, é a hipertextualidade. Para fins deste texto, a característica multimidialidade será considerada como uma característica integrante da hipertextualidade. No webjornal, as notícias são disponibilizadas numa proposição multi-linear, através de células informativas (Salaverría, 2001) conectadas por links. Tais células podem ser constituídas de textos, sons ou imagens. A multimidialidade em si não é a novidade no webjornal; a inovação fica por conta do formato de organização e apresentação da informação, que é o formato hipertextual. Uma discussão que existe (Armentia, 2001; Salaverría, 2001) é se o formato de pirâmide invertida, largamente utilizado para o jornalismo impresso, seria ou não o mais adequado para as narrativas hipertextuais.

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4. Métodos e técnicas utilizados

4. 1 Pré-produção Compreende as ações de planejamento, pesquisas de público e processos jornalísticos que antecedem a produção de conteúdo para o jornal propriamente ditos. Nessa fase, também são avaliados os conteúdos enviados pelos estudantes e jornalistas que podem contribuir com produções multimídias (vídeos, textos, fotos e áudios) para o jornal.

4.2 Manutenção Está ligada aos novos processos de produção de conteúdo para jornal online a partir de twitter. Tais processos incluem os procedimentos diários de redação, apuração e checagem de informações, edição de texto, diagramação de infográficos, revisão, postagem no site, divulgação de conteúdo nas redes sociais e atualização de informações – sempre que possível – em tempo real. Para reforçar a ideia defendida do novo produto, uma pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada com estudantes e profissionais, graduados em jornalismo de Roraima. O pré-requisito era que todos os entrevistados fossem atuantes na área jornalística, além de serem usuários do Twitter, que possuíssem uma assiduidade mínima de pelo menos um acesso ao mês. A amostra foi aleatória, com participação de indivíduos do sexo masculino e feminino, feita por livre escolha dos pesquisadores. Os twittes e noticias foram selecionadas de maneira livre, sem limitação de tempo. A pesquisa seguiu a modalidade bibliográfica. Entende-se por pesquisa bibliográfica, segundo Ander-Egg: “um procedimento reflexivo sistemático, controlado e crítico, que permite descobrir novos fatos ou dados, relações ou leis, em qualquer campo de conhecimento”. A metodologia utilizada será o método dedutivo-indutivo por se tratar de uma observação do twitter e de um levantamento das posições de estudiosos acerca do tema. O método utilizado por este projeto de pesquisa será qualitativo, pois terá o ambiente, no caso a rede social Twitter, como fonte direta de dados e o pesquisador como caráter fundamental. Por isso a escolha dessa metodologia, que se baseia na descrição dos fatos e

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na indução e interpretação.

5. Descrição do produto ou processo O jornal online de twittes que será apresentado neste trabalho foi feito de forma laboratorial, e pode ser acessado por meio do endereço http://paper.li/cyneida/1364393818. Em formato de jornal virtual, com visual, que privilegia uma aparência dinâmica, passou a tomar forma com atualizações mais constantes assim que os alunos passaram a entender a dinâmica do projeto. Hoje, ele pode ser acessado tanto pelo endereço repassado, como pode ser montado de forma individual por qualquer pessoas a partir da plataforma Papel Observatórios no endereço http://paper.li/ A importância da segmentação no webjornalismo, a relação do estudante de comunicação e do jornalista com a internet e as propostas ideológicas e editoriais que diferenciam o o jornal virtual de tuites dos demais veículos do gênero, são algumas das principais reflexões propostas. A reflexão sobre o tema aponta para uma possível potencialização da etapa de circulação jornalística a partir da possibilidade de estudantes de comunicação se apropriarem do conteúdo que circula nos jornais online e o fazerem recircular no twitter por meio de um jornal de twittes selecionados a partir de temas previamente escolhidos. O objetivo principal é esclarecer e apontar qual é a influência que a mídia social exerce indiretamente ou diretamente na produção de conteúdo jornalístico.

6. Considerações finais Buscou-se observar, em caráter exploratório, como ocorre a circulação jornalística, a partir da perspectiva dos estudantes e jornalistas no Twitter para a mídia online de referência, e da mídia online de referência para o Twitter.. Como decorrência desse tipo de apropriação da ferramenta, entende-se que o Twitter poderia operar uma espécie de potencialização (PALÁCIOS, 2003) da circulação jornalística na Internet. Não seria, entretanto, uma mera continuidade, na medida em que esse novo meio, com suas características próprias, traz especificidades para a produção, a distribuição e o consumo de notícias. As informações disseminadas no Twitter geram repercussão e isso está cada vez mais presente na atividade jornalística roraimense, independentemente do suporte

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midiático no qual o conteúdo foi veiculado. É possível observar, entre os estudantes e jornalistas de Roraima, uma tendência global de aproveitamento das novas mídias no auxílio do trabalho jornalístico que reflete, mais especificamente, nas redes sociais, que se multiplicam em uma velocidade fantástica, criando ambientes de trocas de conteúdos, informações e outros dados de forma virtual.

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Caso Pesseghini: O perfil de um psicopata segundo o Portal G1

Deborah Negreiros e NASCIMENTO5

RESUMO: Esta análise busca compreender as perspectivas elaboradas pelo canal de notícias G1, vinculado às Organizações Globo, quanto ao caso que ficou conhecido no Brasil como “Pesseghini”. As razões para este estudo de cariz exploratório se baseiam nas supostas influências das emissões noticiosas dos grandes portais e canais televisivos, sua repercussão em escala nacional e, por fim, a abordagem equivocada e tendenciosa elaborada nas matérias a respeito do universo dos jogos eletrônicos. Dessa forma, será possível concluir que, a despeito da influência exercida pelo Portal de Notícias, o intenso trânsito de comentários e interpretações de usuários na internet permite a elaboração de um universo muito diversificado de panoramas e argumentos a respeito dos eventos relatados.

PALAVRAS-CHAVE: Webjornalismo; Portal G1; Games; Informação jornalística; Hipertexto.

Este estudo tem como intuito abordar as várias imagens, panoramas e argumentos criados e difundidos pela Rede Globo durante o frenesi público intitulado “Caso Pesseghini”. O caso, que se alastrou rapidamente por todo o país, envolvia uma criança de 13 anos e sua família (pais, avó e tia-avó), todos encontrados mortos na própria residência, em 5 de agosto de 2013. Através da análise aprofundada das linguagens e edições utilizadas pela Rede Globo ao construir o perfil do jovem Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, tanto na televisão quanto no seu sítio oficial, pretende-se compreender a forma como o veículo de comunicação em questão deliberadamente dramatizou o perfil do acusado e como reproduziu essa imagem dramatizada diante da população. Evidentemente, tal estudo não pode gerar resultados matemáticos: o que se pretende é utilizar instrumentos da psicologia e análise de conteúdo para perceber como a televisão manipula constantemente o perfil de indivíduos públicos para aumentar a dramaticidade dos relatos produzidos. Para chegar a estes resultados, entendemos ser necessário abordar, ainda que de forma breve, a história da RGTV (Rede Globo de Televisão) enquanto veículo de comunicação privilegiado, observando o seu histórico de posturas sociais, culturais e

5 Graduanda em Comunicação Social/ Jornalismo pela Universidade Federal de Roraima. [email protected] 31

políticas diante da sociedade brasileira. Desse modo, compreender seu papel social na hora de transmitir informações sobre casos específicos que envolvem comoção pública e podem ser utilizados para fins políticos ou, então, meramente monetários. Este material será elencado em torno da esquematização do caso Pesseghini – data, acontecimentos, descobertas, teorias, conspirações, solução –, para melhor compreender o personagem principal neste artigo, o adolescente Marcelo Bovo Pesseghini; ainda, através da análise da mecânica e história do jogo de que Marcelo era fã – Assassin's Creed, para entender até que ponto o jogo poderia ter motivado um surto de violência real. Faremos isto utilizando estudos que abordem a influência dos jogos no estilo de vida dos indivíduos. A abordagem da RGTV, segundo a qual as atitudes intempestivas do adolescente Pesseghini foram provocadas pelos jogos violentos não parece muito completa, devendo haver, pelo menos, uma construção de argumentos mais elaborada e mesmo científica, através, em primeiro lugar, da conceituação daquilo que se intitula psicopata. Da mesma forma, possibilitaria ao espectador mudar a visão equivocada sobre os transtornos mentais e como eles são provocados. O estudo será conduzido através de referenciais bibliográficos voltados para a história da Rede Globo, seu papel e sua influência na sociedade brasileira. Assim, entender sua capacidade de convencimento e seu papel enquanto lugar de trânsito de ideologias, sobretudo através de elementos da Teoria Crítica (ADORNO e HORKHEIMER, 1985). O mesmo se fará quanto aos estudos sobre psicopatia. Isso implica em observar de forma detalhada os recursos retóricos e textuais utilizados pela Rede Globo durante a abordagem do caso, seja na televisão ou online. A partir, enfim, da revisão de materiais dispostos no site G1 e matérias ali publicadas, além de vasta análise sobre estudos de psicopatia e influência dos games na vida de indivíduos, buscamos compreender a maneira como a RGTV abordou e percebeu a personalidade de Pesseghini, buscando, através da construção maniqueísta de um bem que se debruça contra o mal, dramatizar a questão que poderia gerar uma ilustração mais adequada.

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1. Rede Globo e a formação do G1

Roberto Pisani Marinho era o filho mais velho de Irineu Marinho Coelho de Barros, dono de dois dos mais importantes jornais no país. O mais importante deles, O Globo, foi fundando em 1925. Quando Irineu Coelho faleceu, Roberto Marinho assumiu a chefia e direção do jornal mencionado, sendo também o redator, com apenas 26 anos. Amorim et. al. (2005, p. 11) cita que no período em que trabalhou na redação da TV Rede Globo (1984 – 1996), Roberto Marinho era tido como o “melhor repórter” e tinha total autonomia sobre os conteúdos publicados, especialmente com relação à política. Ele também menciona que outros funcionários além de Marinho tinham a mesma influência “que uma barata” naquela redação. No entanto, desde 2001 a circulação de jornais impressos começou a entrar em queda. Um exemplo, além do O Globo, seria a reconhecida Folha de São Paulo, que nos anos de 1995, vendia aos domingos 1.417.876 de exemplares. Nos anos de 2010, este número foi reduzido para menos que a metade – 386.197 de cópias.Utilizando-nos das observações de Lima (2004), é possível perceber que o principal motivo desta diminuição de vendas está no nascimento da Nova Mídia. Se a Velha Mídia abrangia os meios de comunicações clássicos – cinema, rádio, televisão, imprensa -, a Nova inclui todos os aparelhos tecnológicos de última geração, como computadores, satélites de transmissão direta de TV e telefones inteligentes. A disponibilização on-line do conteúdo anteriormente acessível somente por meio de compra de um papel relativamente grande e de cuidadoso manuseio permitiu ao indivíduo/audiência a escolha do meio de comunicação que mais tem a ver com suas condições sociais e econômicas. Além disso, as mesmas matérias são resumidas ou adaptadas para os veículos de comunicação como rádio e televisão, o que nos permite dizer que esta última acaba ganhando um papel fundamental de divulgação do conteúdo do impresso. Concomitantemente, os antigos veículos de comunicação buscaram adaptações à Nova Mídia, se adequando aos padrões atuais de jornalismo e entretenimento. Assim sendo, o G1, site de notícias pertencente às Organizações Globo,6 expõe que7

6 Empresas jornalísticas, comandadas por quase oito décadas pelo filho de Irineu Marinho, Roberto. Ele 33

Com a consolidação da Era Digital, em que o indivíduo isolado tem facilmente acesso a uma audiência potencialmente ampla para divulgar o que quer que seja, nota-se certa confusão entre o que é ou não jornalismo, quem é ou não jornalista, como se deve ou não proceder quando se tem em mente produzir informação de qualidade. A Era Digital é absolutamente bem-vinda, e, mais ainda, essa multidão de indivíduos (isolados ou mesmo em grupo) que utiliza a internet para se comunicar e se expressar livremente. Ao mesmo tempo, porém, ela obriga a que todas as empresas que se dedicam a fazer jornalismo expressem de maneira formal os princípios que seguem cotidianamente. O objetivo é não somente diferenciar-se, mas facilitar o julgamento do público sobre o trabalho dos veículos, permitindo, de forma transparente, que qualquer um verifique se a prática é condizente com a crença.

Observando seus compromissos e seus ideais jornalísticos diante do público,8 bem como sua história e papel na sociedade brasileira, julgamos apropriado analisar a abordagem feita pela rede de notícias G1 a respeito de um dos casos mais criminais intrigantes, por assim dizer, do Brasil, ocorrido em agosto de 2013, que ficou conhecido como “Caso Pesseghini”. Isso em virtude, inclusive e sobretudo, pela disponibilidade de material documental mais facilmente acionável.

2. Caso Pesseghini de acordo com o G1 No dia 5 de agosto de 2013, o Portal G1 noticiava que um casal de policiais militares (PMs), o filho (na matéria, tendo a idade de 12 anos) e mais dois parentes (até então, não identificados) foram encontrados mortos onde residiam – Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo (SP). O texto, postado às 19h17, afirmava que até aquele horário, não haviam criou, mais tarde, a Rede Globo de Televisão, que até hoje prevalece como sendo o maior veículo de comunicação do Brasil. No entanto, isto se fez de maneira controversa. Mello (1994, p. 26) transcreve as palavras do Ministro da Justiça do período entre 1974 a 1979, Armando Falcão: “A Globo tinha uma posição de apoio aos governos revolucionários, porque o doutor Roberto Marinho apoiou a revolução de março de 1964 desde antes de ela eclodir. Ele foi revolucionário de primeira hora. E continuou, portanto, a apoiar os governos da revolução”. O desenvolvimento Rede Globo de Televisão se fez com um acordo com o grupo Time-Life, o que apesar de ir contra as leis brasileiras ao que tange a introdução de empresas internacionais de comunicação no país na época, trouxe benefícios que deixaram Roberto Marinho com um poder decisivo na mídia naqueles anos (Mello, 1994, p. 27-28). 7 Disponível em . 8 Na Seção II, Tópico 2, na subdivisão “e”, destaca-se: “Todo veículo jornalístico tem uma responsabilidade social. Se é verdade que nenhum jornalista tem o condão de, certeiramente, escolher que informações são 'boas' ou 'más', é legítima a preocupação com os efeitos maléficos que uma informação possa causar à sociedade. (...) A regra de ouro é divulgar tudo, na suposição de que a sociedade é adulta e tem o direito de ser informada. A crença de que os veículos jornalísticos, ao não fazerem restrições a temas, estimulam comportamentos desviantes é apenas isso: uma crença”. 34

informações sobre o que motivara a chacina. Aliado às informações, exibiu-se um vídeo do SPTV 2ª Edição, no qual o jornalista Carlos Alberto Tramontina afirmava que os dois parentes eram “a sogra e prima [sic]”. O Globocop (helicóptero da emissora Globo) registrava imagens da “área toda cercada. A gente vê as luzes dos carros da polícia, em grande quantidade [sic] na região”, afirmava Tramontina. O texto, por sua vez, dizia: “Dois corpos foram baleados na cabeça e uma arma estava embaixo do corpo do menino. Vizinhos ouviram tiros no fim da manhã, horário que a polícia acredita que aconteceram as mortes. A rua está interditada para o trabalho dos policiais e da perícia” (G1, 5 de ago, 2013.) Entre os 841 comentários feitos a respeito da matéria, percebeu-se uma suspeita geral por parte dos leitores de que se tratava de um crime cometido por bandidos. A maioria dos julgamentos populares afirmava, de maneira vulgar, que esses possíveis culpados deveriam morrer e/ou pagar caro pelo que fizeram. Também percebiam a ação como sendo imperdoável, por se tratar de um crime contra pessoas do bem – policiais militares. Entre as afirmações, uma delas contrariava as demais perspectivas, de uma pessoa identificada como Solange Carvalho, no indagando que “pode ter sido um deles mesmo, que surtou [sic] ou por briga em família [sic] exterminou todos e depois se matou”. Observa-se que esta notícia expõe somente o factual, sem especulações nem juízos de valor, o que felizmente entra em desacordo com a ideia de Preti (1996, p. 11). Segundo o autor,por vezes a linguagem utilizada para abordar temas como a violência acaba por transformar o próprio veículo em mensagem. No entanto, o mesmo não se pode dizer sobre as próximas notícias ligadas ao caso, expostas no canal noticioso aqui em análise. A matéria do dia seguinte (6) sugeria que Marcelo Pesseghini – filho dos PMs,9 aqui já com 13 anos – utilizava a foto de um personagem do jogo Assassin's Creed10 como foto de perfil em uma rede social. O título sensacionalista – “Suspeito de matar pais PMs usa foto de game assassino [sic] no Facebook”– seguido de um texto11 pouco preocupado em

9 No decorrer da análise, percebe-se que esta caracterização - “casal de PMs”, “pais PMs”, “PMs” - foi massivamente utilizada pelo canal de informações, afirmando um ideal social recorrente: policiais estão à favor da sociedade, protegendo-a; logo, matar pessoas que exercem esse trabalho coloca o autor do crime como sendo o “mal”, e as vítimas, como sendo o “bem”. 10 Tanto a foto de perfil do jovem quanto as imagens mostradas nos vídeos expostos no site comprovam que a versão do jogo é a segunda – Assassin's Creed II, com classificação para maiores de 18 anos no Brasil e na Europa. 11 “O adolescente Marcelo Pesseghini, de 13 anos (…), usava a imagem de um assassino de videogame no 35

descrever a mecânica do jogo, bem como os benefícios de produtos como este para pessoas de diversas idades,12 acabou por trazer à tona uma discussão mal construída e ignorada pela mídia: a real influência de jogos na vida de seus consumidores. Ora, os 4.364 comentários13 sobre a matéria em questão são divergentes e, ao mesmo tempo, demonstram pensamentos completamente opostos quanto à influência desses materiais na vida de jovens como Pesseghini. As pessoas se dividem entre as que repudiam jogos cada vez que veem notícias nesse tom, como escreveu a leitora Madalena Paula: “espero que tomem as devidas providencias [sic] e proíbam [sic] que fazem os filhos matarem os pais [sic] coisa absurda aos olhos de Deus [sic]”-, e nas que repudiam acusações desse nível – de que jogos violentos tornam seus consumidores violentos. Estas últimas se mostram um pouco mais esclarecidas, sem recorrer a crenças, e sim a experiências próprias e possíveis leituras,14 uma vez que nunca cometeram crimes e nem tampouco sentiram vontade de fazer por conta dos jogos que consomem. Um desses indivíduos, assinando como Gabriel Goes, escreveu:

Nossa. Realmente o fato é triste. Eu jogo Hitman: Absolution, nem por isso, [sic] mato por dinheiro. Eu jogo Call Of Duty, e não sou um soldado. Eu jogo Sonic, nem por isso sou um ouriço azul. Eu jogo Mario, nem por isso sou um encanador. Desde que a pessoa tenha um [sic] mente fraca, seu perfil do Facebook há um mês. O suspeito havia trocado sua foto de perfil no dia 5 de julho, passando a utilizar a imagem de um matador do game. Esta foi a última atualização de Marcelo na rede social. 'Assassin’s Creed' é um jogo que mostra a visão de Desmond Miles, um barman que volta no tempo na pele de seus ancestrais. Com isso, encarna o matador Altair e se envolve na guerra entre assassinos e templários ao longo de diversos eventos históricos como as Cruzadas, o Renascimento, a Revolução Americana e, no último jogo, a disputa entre piratas durante a conquista da América. Como membro da ordem de assassinos, Miles tem a missão de dizimar a Ordem dos Templários, que iniciou uma das Cruzadas a Jerusalém”, descreve o texto, assinado por Kleber Tomaz. Observa-se que a verdadeira missão do personagem não é dizimar, e sim proteger uma Maçã Dourada, que tem conhecimentos dos quais os templários não podem se apropriar, uma vez que se o fizerem, a utilizarão para o mal. 12 Savi et. al (2008), descreve que jogos educacionais têm como benefícios a motivação (por estimularem os seus consumidores a persistirem nos desafios), a facilitação no aprendizado (os autores citam que áreas como ciências exatas são as mais trabalhadas), o desenvolvimento em atividades cognitivas (por permitirem, a elaboração de estratégias), o aprendizado por descobertas (o que estimula a coragem do indivíduo), as experiências de novas identidades (um exemplo seria que, quando simulam a vida profissional de um engenheiro, o consumidor toma para si possíveis situações que passaria na realidade), a socialização (os atuais jogos, como Resident Evil 6, permitem que o usuário se conecte com outros jogadores através da internet na vida real, para agirem em equipe), a coordenação motora, e por fim, o comportamento expert (conhecem bem assuntos que cercam seus jogos). 13 Até o dia 16 de março de 2014. 14 Para Tambosi (2005, p. 31) “o que diferencia a crença como elemento constitutivo de 'crença, verdade e justificação (CVJ)' é que ela deverá ser necessariamente verdadeira, ao passo que crenças religiosas ou ideológicas podem dispensar tal requisito”. No entanto, para o autor, o conhecimento em si, não se forma somente com a crença verdadeira - só existe com a união da CVJ, simultaneamente. 36

ele pode ser influenciada [sic] por LIVROS, NOVELAS, SÉRIES, PERSONALIDADES 'FAMOSAS', e etc. Jogos não influenciam, nunca influenciaram, e nunca vão influenciar pessoas com mente forte. Pessoas decididas, que sabem o que querem, não são influenciáveis por nada nem ninguém.

O repúdio também veio por parte da própria criadora do jogo em observação. A Ubisoft, desenvolvedora responsável por Assassin's Creed, teve sua nota publicada pelo G1 no dia 8 de agosto de 2013 (três dias após o crime). A matéria, intitulada “Criadora de game repudia ligação de jogo com morte de família de PMs”, destacou as palavras expostas no Facebook da própria empresa:

Em nenhum estudo até agora realizado há consenso sobre a associação entre a violência e obras de ficção, incluindo livros, séries de televisão, filmes e jogos. É uma falácia associar um objeto de entretenimento de milhões de pessoas, todos os dias, em todo o mundo, com ações individuais e que ainda estão sendo esclarecidas. Em resposta aos pedidos de posicionamento da Ubisoft sobre o caso da família Pesseghini, trata-se de uma tragédia e nossos pensamentos e orações vão para a família e os amigos das vítimas. Nessa hora de consternação de toda a sociedade, é natural a busca por respostas (Ubisoft, 8 de ago. 2013, via Facebook)

No entanto, apesar de divulgar a nota, o G1 reafirmou a mesma abordagem a respeito do jogo, como elaborada por Kleber Tomaz no dia 6 do mesmo mês. Em todas as ocasiões, destacou a utilização da imagem do protagonista do game como sendo o perfil na rede social de Marcelo, sem jamais procurar especialista algum a respeito de crimes dessa proporção para possivelmente oferecer outra proposta de cariz psicológico. Nas matérias dos dias seguintes feitas pelo G1, observa-se a constante menção ao jogo, independentemente do título ou foco do texto. De todas as formas, o canal de notícias transmitiu ignorância a respeito do funcionamento do jogo,15 fazendo com que muitos, que ainda creem firmemente na veracidade das mensagens jornalísticas criassem maiores preconceitos a respeito do universo pouco acessível e explorado dos jogos eletrônicos.16 Anteriormente, porém, a própria emissora havia desmentido a ideia de que outro autor de

15 Aqui, nos utilizamos da palavra no sentido de não querer conhecer, não buscar conhecer. 16 Para se ter ideia dos altos custos do mercado de jogos e consoles no Brasil, a marca Sony anunciou, em 17 de novembro, o preço do Playstation 4, sua plataforma da chamada nova geração, ao lado de outras como XBOX One e Nintendo Wii U, por R$4mil no país. O mesmo produto nos Estados Unidos, custa o equivalente a R$867. 37

um crime bárbaro - Cho Seung-Hui, que matou 33 pessoas na Virgínia Tech – teria matado por ser fã de outro jogo – Counter Strike. Mesmo no final das investigações, o portal G1 citou, de maneira breve, que Marcelo Pesseghini jogava Assassin's Creed, sem dar ênfase, contudo, ao fato de que anteriormente o jovem havia tentado “dar uma flechada” na sua avó,17 tampouco que amigo do pai de Marcelo declarou que o filho ameaçou a sua mãe.18 Foram apenas divulgadas, sem destaques nem detalhes. O jornal Estadão também apresentou esta última notícia, acrescentando que

de acordo com o PM [amigo do pai do garoto], Marcelo tinha uma espingarda de pressão e gostava de atirar em animais, como cães e passarinhos. Vizinhos teriam reclamado para a mãe do estudante, que chamou o garoto para conversar. A testemunha disse à polícia que Andréia [mãe de Marcelo] avisou que ele deveria parar de acertar em bichos e explicou que só poderia usar a arma contra um alvo em casa.

São fatos como este que, se fossem unidos à análise de psiquiatras e psicólogos especializados em transtorno de personalidade antissocial ou psicopatas, e mais tarde divulgados para a massa, criariam a possibilidade de construir um tipo mais sólido de pensamento. São casos como esse que Barbosa Silva (2008) tenta esclarecer em seu livro Mentes Perigosas – O psicopata mora ao lado.19A autora menciona casos de crianças que cometeram atos de violência e que foram tomados com maior perplexidade por parte da sociedade, uma vez que seres humanos têm dificuldade em acreditar que estes jovens, associados à inocência, seriam capazes de cometer crimes tão brutais (2008, p. 139). No decorrer de seu livro, ela esclarece ainda que psicopatas sejam incapazes de ter sentimentos pelas outras pessoas, pensando somente em si mesmos e utilizando outrem como objetos para alcançar suas metas. No final do capítulo sobre jovens portadores da doença,20 a autora desmente o senso comum, afirmando que:

17 Em 22 de agosto: “Filho de PM teria dito a amigo que tentou dar flechada em avó”. 18 Em 30 de agosto: “Amigo de pai de Marcelo Pesseghini diz que jovem teria ameaçado a mãe 19 Capítulo 9: Menores Perigosos Demais (p.137). Ela introduz o capítulo com a seguinte frase: “É estarrecedor observar que crianças que deveriam estar brincando [sic] ou folheando livros nas escolas trafiquem drogas, empunhem armas e apertem gatilhos sem qualquer vestígio de piedade” (p.136). 20 “A gente costuma chamar pessoas assim de monstros, gênios malignos ou coisa que o valha. Mas, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), eles têm uma doença, ou melhor, deficiência. O nome mais conhecido é psicopatia, mas também se usam os termos sociopatia e transtorno de personalidade antissocial” (Narloch, 2006/2012, p.152). 38

é fundamental destacar que a redução da maioridade penal pouco vem contribuir para a diminuição da violência ocasionada por jovens perigosos, que são maus na essência. Ao meu ver [sic], devemos avaliar a personalidade do infrator, a sua capacidade de entendimento dos seus atos, seus sentimentos e a gravidade do crime cometido. Isso levaria a se considerar cada caso com sua justa individualização, tornando possível distinguir, de forma eficaz, os jovens que precisam e poder ser reeducados daqueles que são refratários a qualquer tipo de medida socioeducacional. Estes últimos, irrefreáveis e incompatíveis com o convívio social, devem ser rigorosamente punidos como adultos. Caso contrário, só iremos amargar [sic] cada vez mais a infeliz certeza de que eles não vão parar nunca (SILVA, 2008, p. 147).

Mesmo Guido Palomba, reconhecido psiquiatra forense brasileiro –atuou no caso Ritchtofen, ocorrido em 2002 – associou o crime cometido por Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, como sendo vinculado a uma síndrome chamada “Dom Quixote”, na qual o jovem, que dois anos antes teria sofrido uma lesão cerebral em consequência de falta de oxigênio, confundiu realidade com ficção e quis ser um assassino de aluguel. Para tal, precisaria eliminar obstáculos de seu caminho – no caso, os familiares. Teria cometido o suicídio porque chegou à escola e não conseguiu aprovação de seus amigos quando relatou o caso. É preciso destacar a principal frase, do ponto de vista deste estudo, que consta no laudo assinado pelo psiquiatra: “Ele criou um grupo imaginário de assassinos de aluguel e passou a usar um capuz, tudo isso inspirado no personagem de um videogame violento”. Se o único especialista chamado para explicar a personalidade de Pesseghini se pôs a favor da ideia de influência negativa dos jogos, é possível supor que o debate sobre games na vida de jovens teria um desfecho unilateral na apreciação do público. No entanto, os 1.192 comentários feitos sobre a matéria em questão demonstram a reprovação por parte do público com relação ao caráter unívoco da matéria. Alguns creem apenas que ele matou por conta de sua lesão cerebral, que acabou por mudar sua personalidade; outros, apostam apenas na “maldade” do garoto; poucos indivíduos insistem que a culpa foi do jogo; e por fim, outros simplesmente não acreditam que um garoto de 13 anos seria capaz de cometer tal ato.

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Considerações finais

Foi possível perceber, nesse breve percurso de análise, que mesmo que as informações veiculadas pela mídia componham, ainda que inconscientemente, um esforço unilateral de persuasão, as formas de recepção e consumo de notícias são muito variadas. Trata-se de um tipo de leitura e feedback impossível de ser feita no primeiro canal de Roberto Marinho, o jornal O Globo, da mesma forma como passou a acontecer na televisão. O conteúdo digital, inevitavelmente vinculado aos comentários e à apreciação direta do público, transforma-se de forma muito mais constante e assume mais elementos cognitivos que permitem pensar mais amplamente uma determinada situação. Se, portanto, num primeiro momento, a notícia veiculada teve uma apreciação unívoca (apenas uma leitora sugeriu que o crime teria sido cometido pela própria criança), nas últimas matérias vinculadas ao caso pode-se perceber um número muito maior de avaliações e panoramas críticos, muitas vezes independentes do conteúdo sugerido pela matéria. Esta última, bem mais econômica do que na televisão ou no impresso, parecia incorporar a ideia de que um desfecho não poderia ser definitivo e logo uma nova matéria viria a lume permitindo ao leitor lançar uma luz mais direta para o caso. Isso só assegura, como tem sido afirmado, que o conteúdo do jornalismo digital oferece mais caminhos e vias de exploração para o leitor e que, justamente esse poder do hipertexto tem garantido uma migração sucessiva de consumidores culturais para as plataformas digitais. No caso estudado, ainda que brevemente, pôde-se perceber, através do feedback dos usuários, que eles crescentemente eram capazes de cotejar explicações mais amplas a respeito do acontecido, muitas vezes baseados mais num trânsito horizontal de interpretações do que no conteúdo e interpretação direcionados pela matéria.

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A Abordagem da Comunicação Contemporânea no Filme a Rede Social

Francisco Guimarães COSTA JÚNIOR21

RESUMO: Neste artigo, tratou-se do filme A Rede Social (2010), de David Fincher, e de como ele estuda as relações sociais contemporâneas através de seu enredo e das ferramentas cinematográficas bem empregadas. Para que possamos identificar essa mensagem, é preciso interpretar as cenas e formular hipóteses sobre as idéias do filme. Primeiramente, mostrou-se o resumo do filme para que o leitor se familiarizasse com o enredo. Depois, o filme foi decomposto, após a análise de algumas cenas que provocam o espectador com o uso da linguagem cinematográfica para fortalecer a narrativa e a transmissão da mensagem. O uso integrado da edição de imagens, dos personagens e da trilha sonora dá poder suplementar ao filme para analisar as relações sociais contemporâneas.

Palavras-chave: Comunicação digital; cinema; Internet; redes sociais.

As relações interpessoais foram profundamente abaladas pela Internet. Na sociedade atual, as redes sociais, que deveriam ser campo virtual de convergência de laços sociais, acabam sendo utilizadas mais para autopromoção da imagem pessoal do que para a real comunicação humana. São justamente esses aspectos que são denunciados pelo filme A Rede Social, dirigido pelo cineasta David Fincher e lançado nos cinemas em 2010. O enredo, sobre a criação da rede social Facebook por Mark Zuckerberg, não é o único fator usado para transmitir a mensagem. Os próprios recursos cinematográficos (enquadramentos, trilha sonora, roteiro) complementam a história para criticar a comunicação contemporânea. Como um meio de comunicação, o cinema tem uma grande poder de abordagem. Uma música de fundo, por exemplo, pode dizer muito sobre uma cena romântica ou aterrorizante. Ou uma troca de tomada na câmera, que não pode ser arbitrária ou carente de significado. Os itens que compõem um filme podem ser identificados e analisados. Para isso, é preciso decompor o filme para que entendamos seus significados e como eles estão

21 Acadêmico do 4° Semestre do curso de Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: [email protected] 44

interligados. O motivo deste artigo é a necessidade de captar a simbologia contida nos filmes através da obra A Rede Social,que usa a metalinguagem para criticar as relações sociais contemporâneas. O objetivo é analisá-lo para perceber essa crítica, bem como contextualizar com a realidade. Para isso, é preciso familiarizar o leitor com o enredo através do resumo do filme A Rede Social, relacionar personagens do filme com os atores da sociedade atual e analisar como as técnicas cinematográficas complementam a emissão da mensagem. Trata-se de um trabalho interpretativo, mas também de uma pesquisa bibliográfica, de caráter dissertativo, abordagem qualitativa. Primeiramente, para realizá- lo, foi necessário assistir ao filme A Rede Social quatro vezes consecutivas. Na primeira vez, o filme foi visto no modo convencional, em áudio original, legendado em português, sem pausas ou intervenções; na segunda, com áudio e legendas dos comentários do diretor David Fincher; da terceira, comentada pelo roteirista Aaron Sorkins e o elenco; e na última, com áudio e legendas em português, com pausas nos momentos em que foi necessário anotar diálogos importantes para o estudo. Assim, foi possível a desconstrução, com separação dos elementos técnicos do filme e análise destas, para posterior reconstrução e análise geral. Complementando o trabalho, foram pesquisados capítulos de livros sobre temas relacionados a cinema, comunicação e das redes sociais, além de consultas a trabalhos científicos publicados em sites especializados.Os comentários dos envolvidos, somados aos documentários que estão no segundo disco da edição dupla do DVD A Rede Social, foram importantes para corroborar com aspectos da análise. Mais do que entretenimento, o filme analisado é um estudo das relações humanas e suas transformações com o “mundo digital”. Seus elementos dizem muito sobre o enredo em si e a ligação entre elas é fundamental para realizar o estudo. Será mostrado como linguagem cinematográfica reforça o enredo para denunciar a falência das relações interpessoais e faz o filme revelar contradições e ambigüidades sobre a comunicação humana. É por obras como esta que reafirmamos o cinema como importante instrumento de denúncia social.

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1. O Cinema

Os filmes são grandes meios de comunicação. Mais do que apenas entreter, o cinema constitui um veículo eficaz para a transmissão de uma mensagem. Os elementos cinematográficos podem estar conectados de tal forma que podem intensificar a emoção da cena. A edição de imagens, por exemplo, tem um efeito poderoso na narrativa de um filme. Conforme Turner (1993), a habilidade na edição exige timing nos cortes, em que um corte num momento de relativa estase pode retardar a narrativa e revelar ambigüidades. O uso de eventos paralelos em uma só cena pode revelar mais que uma passagem de tomada. Pode trazer um grande significado, o que exigirá do espectador um bom senso interpretativo.

A complexidade da produção cinematográfica torna essencial a interpretação, a leitura ativa de um filme. Inevitavelmente precisamos examinar minuciosamente o quadro, formar hipóteses sobre a evolução da narrativa, especular sobre seus possíveis significados, tentar obter algum domínio sobre o filme à medida que ele se desenvolve. O processo ativo da interpretação é essencial para a análise do cinema e para o prazer que ele proporciona (TURNER, 1993).

A trilha sonora é outro complemento para a força narrativa de um filme. A música de fundo pode situar o espectador sobre a condição emocional dos personagens ou a importância de uma cena específica. A escolha da música-tema é primordial para fornecer uma identidade sonora ao filme, tornando-o único. O que vemos (e ouvimos) em tela também pode fomentar o ato de repensar a realidade. Anacleto (2007) diz que o cinema pode refletir o que e o que queremos ser. Sendo assim, o poder interpretativo e analítico pode ser aplicado ao filme a ser estudado.

2. A abordagem do filme a Rede Social O filme começa quando Mark Zuckerberg (interpretado pelo ator Jesse Eisemberg) está conversando com sua namorada Erica Albright (a atriz Rooney Mara). O casal fala sobre o futuro da carreira de ambos. Ele, que estuda em Harvard, discrimina-a

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por ela ir à Universidade de Boston, supostamente inferior àquela. Ofendida, ela termina o namoro com ele. Em seguida, ele volta pra Casa Kirkland, local onde mora na universidade, liga seu computador e, via Internet, ofende a ex-namorada. Como retaliação, ele tem a idéia de hackear o sistema de Harvard e baixar as fotos de todas as alunas da universidade. Quando o amigo Eduardo Saverin (Andrew Garfield) chega à casa, Mark pede para que ele dê um algoritmo que tornasse possível a intenção de Mark: criar um site chamado facemash, usando esse algoritmo para montar um sistema de classificação em que, entre duas alunas quaisquer, o usuário votasse na sua preferida. A façanha atraiu 22 mil usuários, fazendo cair toda a rede de Harvard. Alem de ter sido advertido pela direção da universidade por causa disso, Mark é chamado por três alunos: Divya Narendra (Max Minghella) e os irmãos gêmeos Tyler e Cameron Winklevoss (interpretados pelo ator Armie Hammer). Interessados na capacidade de programação de Mark, os três o convidam a participar do site TheHarvardConnection, pelo qual os alunos da universidade conheceriam os perfis de outros alunos, e ele aceita. Então, sem comunicar Narendra e os Winklevoss, ele chama o amigo Eduardo para, ambos, criarem um novo site de relacionamentos em que as pessoas postariam suas próprias fotos, editariam seus perfis e procurassem amigos. Começa a criação do TheFacebook. Os idealizadores do TheHarvardConnection descobrem e tentam processar Zuckerberg, ao passo que existem cada vez mais pessoas conectadas ao site. O sucesso do TheFacebook é descoberto por Sean Parker (Justin Timberlake), criador do primeiro dispositivo a baixar músicas online: o Napster. Interessado em participar do progresso do site, Parker procura os sócios Mark e Eduardo. Sua primeira contribuição foi sugerir a retirada do “The” do título, deixando apenas “Facebook”. Em outro encontro, Parker mostra que sua intenção era difundir a rede social para além do campus universitário. Seguindo o conselho do novo colega, Mark leva a empresa para a Palo Alto, Califórnia, enquanto Eduardo procura por novos investidores. Os amigos entram em conflito sobre os planos do site e, para chamar a atenção de Mark, Eduardo congela a conta da empresa e volta à Nova Iorque. Lá, recebe uma ligação de Mark sobre o dinheiro de um investidor conseguido por Parker. Voltando à Califórnia, assina alguns acordos com os

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investidores. Ao descobrir suas ações foram diluídas pelos acordos, Eduardo decide processar Mark. O criador do Facebook enfrenta dois processos: de Tyler Winclevoss, Cameron Winclevoss e Divya Narendra, por apropriação de propriedade intelectual; e de seu ex- amigo, Eduardo Saverin, por diluição nas ações da empresa e omissão de crédito na criação da rede social. Aconselhado pela advogada Marylin Delpy (Rashida Jones), Mark faz um acordo com todos os envolvidos. O filme termina com Zuckerberg sentado na mesa, sozinho, conectado à Internet pelo seu computador.

2.2 Análise das cenas

2.2.1 O Início e o Fim (ou vice-versa) O objetivo deste tópico é mostrar o paradoxo entre a cena inicial e a final e o que podemos aproveitar dessa cena a fins filosóficos e sociológicos. Na introdução, após terminar o namoro com Mark, Erica diz: “Vamos ser amigos”. Imediatamente, ele responde: “Amigos, não quero”. Ela replica: “Fui educada. Não vou ser sua amiga”. Já na cena final, Mark está sozinho em uma sala com seu notebook. Conectado ao Facebook, ele descobre que Erica, sua ex-namorada, também criou um perfil na rede social. Ele envia um convite virtual a ela, clicando no ícone “Adicionar aos amigos”. Enquanto o filme encerra, ele fixa o olhar na página dela, atualizando-a. A princípio, percebemos na primeira cena que a reação de Zuckerberg poderia ser de qualquer pessoa que seja rejeitada: a de recusar uma provável amizade. Contudo, ao relacionarmos esse evento com a cena final, revelamos um aspecto do protagonista que pode representar, de modo alegórico, como a sociedade contemporânea se comporta em relação às discrepâncias entre relacionamentos reais e virtuais. Apesar da ironia de Erica (já que, de fato, ela não desejava a amizade proposta por ela própria), é a resposta de Mark Zuckerberg que importa. Na segunda cena, ao clicar no ícone “Adicionar aos amigos” na página do Facebook de Erica, Mark está, virtualmente, propondo uma amizade. No mundo real, a atitude equivaleria a uma conversa com uma frase do tipo “Vamos ser amigos” ou “Quer

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ser meu amigo?”. Bem parecida com a falsa proposta de Erica no início do filme, então rejeitada por Mark. Ou seja, os papeis se invertem. Mas, com o fim da metragem, nunca conhecemos a resposta de Erica. É importante notar como as intenções de Mark se diferenciam do início para o fim. Antes, no mundo real, ele não queria ser amigo de Erica; depois, no mundo virtual, procurou a amizade dela. De um modo especifico, conclui-se que, pelo menos em relação à ex-namorada, ele se sente socialmente mais à vontade no mundo virtual do que no real. Podemos comparar essa conclusão com um aspecto contraditório da sociedade contemporânea: a sobreposição da virtualidade sobre a realidade nas atuais relações sociais. Há duas décadas, Baudrillard (1997, p.149) já denunciava ferozmente a euforia e o encantamento messiânico pelo virtual, em que a felicidade é simulada, pois existe por não ter razão para existir.

A virtualidade aproxima-se da felicidade somente por eliminar sub- repticiamente a referência às coisas. Dá tudo, mas sutilmente. Ao mesmo tempo, tudo esconde. O sujeito realiza-se perfeitamente aí, mas quando está perfeitamente realizado, torna-se, de modo automático, objeto; instala-se o pânico (BAUDRILLARD, 1997, p. 149)

As redes sociais também têm pontos positivos. Segundo Recuero (2009, p. 90), a mudança dos sistemas sociais não é, necessariamente, negativa. A mediação por computador gerou outras formas de estabelecimentos sociais. No caso em particular do casal, abriu-se um espaço para que o relacionamento de ambos mudasse. Contudo, não houve resposta de Erica Albright.

2.2.2 O desvio do real para o virtual No segundo ato, ao chegar em casa após o fim do namoro, a primeira atitude de Mark Zuckerberg é ligar seu computador para narrar sua frustração em seu blog – o Zuckonit. Através dele, Mark difama Erica Albright com adjetivos pejorativos. Mais adiante, quando o Facebook já é um sucesso na universidade, os ex- namorados se reencontram por acaso em um restaurante. Ao conversarem sobre o Zuckonit, Erica também se mostra revoltada:

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Erica – “Mas escreveu sobre isso. Como se seus pensamentos ‘geniais’ devessem ser compartilhados. A Internet não é escrita a lápis. É permanente e publicou que eu era uma idiota, zoou do meu sobrenome, do tamanho do meu sutiã e ‘classificou gostosas’”.

O desabafo de Zuckerberg no blog se assemelha a uma pessoa escrevendo em seu respectivo diário, como se o computador fosse o melhor amigo. Sendo assim, ele acaba escrevendo “pensamentos”, algo que talvez não dissesse com palavras faladas. Contemporaneamente, esse é o modo como as redes sociais são consideradas na prática. A cena em que Dyvia descobre a existência do Facebook também é interessante. Ele está assistindo a uma peça musical, enquanto uma moça está com seu notebook acessando a rede social, sem se importar com o evento no qual está presente. Seu foco é a Internet, é o seu “eu” virtual. A moça ganha destaque na cena. Das três pessoas exibidas na tomada, apenas ela está usando o computador. É difícil se deparar com momentos reais assim, em que, mesmo em um ambiente com grande contingente, a pessoa prefira estar focada no computador?

2.2.3 Uma Condição Social A cena em que Mark constrói o site facemash mostra bem o poder da edição e do paralelismo de imagens como instrumento de crítica à juventude do século XXI. Há dois eventos ocorrendo paralelamente na cena:

1) Mark se conecta à Internet e, sob o olhar curioso de seus colegas, cria um site chamado facemash; 2) Um grupo de jovens vai a uma festa noturna em uma das casas de Harvard.

No evento 1, ele se diverte hackeando os sistemas de todas as casas da universidade para fazer o download das fotos das alunas. Seu intuito é criar um site para comparar a beleza das alunas, no qual o usuário acessa e escolhe a universitária preferida. No evento 2, os homens e mulheres estão em um ônibus rumo a uma festa noturna. A festa é regada a bebidas, jogos e dança. Enfim, um evento comum. Enquanto em um evento a pessoa se diverte em casa, apenas usando o

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computador, no outro as pessoas se divertem no modo convencional, saindo para festas, popularmente conhecido por balada. Na conexão desses dois eventos, mostrados paralelamente na mesma cena, podemos interpretar como uma metáfora da contradição de comportamentos sociais. Ou seja, na sociedade, muitos permanecem se entretendo com as baladas e alguns outros se contentam com a Internet. O uso da trilha sonora eletrônica (que pode simbolizar “diversão”), sem alterações de volume durante a alternância de ambientes, indica que não há alterações de sentimento de euforia. Passar horas na Internet, para uma pessoa que está online, é equivalente a uma pessoa comum dançando na balada. Com a existência dessa equivalência, então o mundo exterior se torna desnecessário e o vício, inevitável.

2.2.4 Cartaz Humano Na cena em que Zuckerberg terá a idéia de construir o “Status de relacionamento” no Facebook, Dustin tem o seguinte diálogo com Mark, sobre uma garota com a qual aquele queria flertar.

Dustin: – “Ela tem namorado? Já viu ela com alguém? E se não, sabe se ela procura alguém?”. Mark: – “Dustin... quem anda com um cartaz dizendo se...”

A resposta de Mark é interrompida por seu próprio insight. Sua resposta a Dustin fê-lo perceber o que deveria ser acrescentado na construção de sua rede social, que seria o campo do status supracitado. Ele se levanta rapidamente e sai correndo do local, deixando o colega sem uma resposta sobre a garota. Sua saída repentina para casa tinha como objetivo se conectar ao seu site para enriquecê-lo com a idéia recém-formada. O campo “Status de relacionamento” do Facebook serve para indicar se o usuário tem um relacionamento. Atualmente, as opções são: solteiro, casado, em um relacionamento sério, noivo, viúvo, em um relacionamento enrolado, em um relacionamento aberto. O campo “Interessado em” indica em que tipo de pessoa está interessado., tendo como opções homens, mulheres e homens e mulheres. O usuário pode optar por não deixar esses campos visíveis ao público. O que chama a atenção no diálogo é o uso do termo cartaz para designar pejorativamente o status de uma pessoa. Associando a resposta de Zuckerberg (incluindo o 51

uso da palavra cartaz) e a idéia de criar os campos “Status de relacionamento” e “Interessado em”, concluímos que esses tópicos fazem parte da propaganda pessoal do usuário. Enfim, fazem parte de seu próprio “cartaz”. Se o cartaz criado pelo sujeito real torna o sujeito virtual um produto teremos dois sujeitos muito diferentes. O real está na frente do monitor, cujas reais intenções e expressões são desconhecidas por outros usuários online. O virtual é um personagem, uma idealização imaginada pelo sujeito real, e é ele que está na linha de frente da página pessoal da rede social e, consequentemente, do estabelecimento de um vínculo comunicativo. O problema é que nem sempre às características do sujeito virtual correspondem às do sujeito real. Isso porque a imaginação é algo relativo e muito particular. Geralmente, a auto-definição é exagerada se comparada ao ponto de vista de outrem. Sibilia (2008. p. 8) afirma que a atmosfera contemporânea estimula a hipertrofiado eu até o paroxismo, que enaltece e premia o desejo de “ser diferente”e “querer sempre mais”. A valorização desses ícones criados faz com que estas prevaleçam no campo virtual. No impedimento de conhecer a pessoa no campo real, que está do outro lado do monitor, o usuário acolhe o personagem do outro como se fosse a representação fidedigna do sujeito real. Recuero (2009, p. 109-110) afirma que “um dos pontos-chave da construção de redes sociais é, justamente, o fato de que os sistemas que as suportam permitem um maior controle das impressões que são emitidas e dadas, auxiliando na construção da reputação”. Essa liberdade de jogo de informações mostra o quão eficiente é a Internet na construção do eu-virtual através desse tipo de propaganda – ou “cartaz”, como diria Mark Zuckerberg. Já Baudrillard (1997, p. 149) não acredita nesse controle, ao contrário. Para ele, essa possibilidade de dissimulação, do desaparecimento de si próprio no espaço impalpável do virtual, faz com que o próprio usuário não se localize mais. É bem provável que, desse modo, o internauta prefira que seu alter-ego responda por ele, por nem mais se reconhecer enquanto sujeito real.

2.2.5 A música-tema Existem três cenas cujos respectivos backgrounds são pontuados pela mesma música: “Hand covers bruise”, uma das obras instrumentais criadas pela dupla de

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compositores Trent Reznor e Atticus Ross.

 Cena 1: durante os créditos iniciais, quando Mark vai caminhando até a Casa Kirkland após o término do namoro com Érica.  Cena 2: no tribunal, quando Mark vê a chuva através da janela, enquanto o advogado de Narendra e os irmãos Winklevoss tenta um diálogo com o mesmo.  Cena 3: no tribunal, quando Eduardo diz o valor de diluição de suas ações na empresa Facebook e todos miram Mark.

“Hand covers bruise” é uma trilha tocada em piano, com dois conjuntos de seis notas que se repetem. Segundo os compositores, como é mostrada no documentário do segundo disco do DVD do filme, ela foi criada para momentos melancólicos. Surpreenderam-se quando descobriram que a música foi escolhida pelo diretor David Fincher para ser o tema do filme.

Gostei dessa música pois... Achei a melodia dela incrível. E pareceu ousada e melancólica, trágica, importante de certa forma. Mas, para ser sincero, não sabia o quão sombrio ou isolado David [Fincher] queria que ficasse o filme. Pois ver uma edição com música temporária, deu um ar totalmente diverso para o filme. Ficou mais casual, ruidosa, com faixa de rock e guitarra na cena de abertura dos créditos. Pareceu: ‘Bom é um filme de faculdade com uns jovens fazendo coisas, e se aproveitando um do outro’. Mas com nosso trabalho, mostrou que algo estava acontecendo abaixo desta superfície, e há uma tensão e vulnerabilidade que acho que mudou todo o clima do filme (Trent Reznor in: FINCHER, 2010).

Além disso, há uma característica peculiar no uso dessa faixa: seu volume diminui no decorrer das cenas pontuadas. Ou seja, se na primeira vez em que a ouvimos ela está em volume normal, na segunda ela está menos audível. Na terceira, o volume está mais baixo. O diretor David Fincher também explica isso no documentário.

Foi quando comecei a falar com [os editores] Ren Klyce, Angus Wall e Kirk Baxter e começamos a dizer: ‘Pode ser três partes... Podemos conectar esta primeira afronta, do que ele pode se tornar neste momento de discórdia e podemos conectar com o depoimento. E então toca na traição de Eduardo quando Eduardo descobre que suas ações foram liquidadas. (...) E acabamos ouvindo todos esses pianos diversos, e decidimos que o primeiro seria o mais íntimo, um piano simples, mas completo. Então acho que foi um piano de armário gravado bem e perto.

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E na próxima vez em que ouvimos, é gravado um pouco mais distante. É quase como uma memória de quem ele era no início. E ao chegar no final, é tão distante, como se o próprio piano fosse gravado... É quase como se tivesse desaparecido quem ele era. E foi algo bem emotivo. Você ouve e fica na memória. E na segunda vez que escuta, há uma leve mudança. E na terceira vez, é quase como uma memória de infância (FINCHER, 2010).

2.3 A Rede Social como representação do real Mais do que a história sobre a criação do Facebook, o filme é um retrato da geração contemporânea. É, portanto, uma cruel representação da realidade atual, da desertificação voluntária e contraditória do real, em que as relações sociais “presenciais” estão perdendo espaço para as virtuais, em um período em que tanto se busca amigos. Os próprios personagens simbolizam esses problemas. Mark Zuckerberg é um indivíduo pacato, que possui apenas um amigo (no caso, Eduardo Saverin) e é indiferente a outras pessoas senão ele próprio. Contudo, ironicamente, criou a maior rede de relacionamentos da atualidade. Essa ambigüidade é parte da denúncia à hipocrisia. A relação entre Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin também demonstra essa contradição das relações sociais. No início, eles são amigos; criam o facemash em uma noite e, posteriormente, o Facebook em alguns meses; têm a amizade abalada, pela entrada de Sean Parker na empresa, e encerrada, pelo destino das ações da empresa. Em outras palavras, a amizade decresce ao longo do filme, enquanto a rede social cresce cada vez mais. Justamente quando a empresa atinge um milhão de usuários (ou um milhão de pessoas procurando amigos), Mark perde seu único amigo. Era a euforia do sucesso de seu mundo virtual contrastando com o fracasso no seu mundo real.

Considerações finais O filme A Rede Social mostrou, através de suas cenas e de como elas foram compostas, uma análise das relações sociais contemporâneas. A denúncia não é tão clara, pois exige uma interpretação ativa do espectador. Contudo, uma vez decifrada a mensagem, o intérprete dá uma importância maior não apenas ao filme, mas ao poder do cinema como meio de comunicação. Alem disso, a denúncia é urgente, pois trata de como as redes sociais influenciam no novo comportamento social das pessoas. A comunicação humana mudou muito com as novas formas de relações sociais

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pela Internet. Teve muitos avanços graças à tecnologia, mas precisa ser aprimorada. Ela não é apenas uma forma de interação atribuída a uma ação individual, mas também uma forma de auto-renovação de sistemas sociais. Portanto, não basta que a tecnologia se expresse por si só. O sucesso das relações sociais contemporâneas depende do conjunto de pessoas, não do indivíduo. As redes sociais são um grande instrumento comunicativo, mas a renovação das relações humanas é sempre necessária.

Referências ANACLETO, A. O cinema como mídia educacional no ensino superior uma ferramenta pedagógica no auxílio à docência. Ponta Grossa. 2007. Congresso Internacional de Administração. Disponível em . Acesso em 16/08/2013

BAUDRILLARD, J. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre. Sulina. 1997.

FINCHER, D. The Social Network. Filme. EUA. Columbia. 2010.

PENAFRIA, M. Análise de filmes – conceitos e metodologia(s). VI Congresso SOPCOM. Beira Interior. 2009.

PEREIRA, L. R. A Abordagem Didática do Uso do Cinema em Sala de Aula. UDESC. Disponível em . Acesso em 16/08/2013.

RECUERO, R. Redes sociais na Internet. Porto Alegre. Sulina. 2009.

SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2008. Disponível em . Acesso que em 16/08/2013.

STOCKINGER, G. Caminhos da comunicação contemporânea. Curitiba. 2004. Disponível em . Acesso em 16 de agosto de 2013.

TURNER, G. O cinema como prática social. São Paulo. Summus. 1993.

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O uso da mídia televisiva por grupos e instituições religiosas no Brasil: uma análise da atuação da IURD na rede Record

Jackson de Souza FÉLIX22

Resumo: O crescimento desenfreado de novas mídias tem levado o indivíduo a acomodar-se aos novos modos de relacionamentos, quer seja interpessoal, quer seja espiritual, possibilitando a manutenção de um relacionamento mais próximo diante de sua divindade, como é o caso de várias emissoras cristãs surgidas ao longo dos últimos anos no Brasil. A mais famosa delas é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), criada há 36 anos e que ao longo desse tempo tem utilizados os meios de comunicação como forma de conquistar cada vez mais fiéis para sua igreja, pregando a Teologia da Prosperidade. Este artigo busca analisar o programa Fala que eu te escuto veiculado na Rede Record, apontando os atos persuasivos e estratégias político-econômicos utilizadas pelos pastores eletrônicos e membros da Igreja, expondo como a IURD utiliza os meios de comunicação para o acúmulo de capital, além de entender a instituição religiosa iurdiana como uma grande empresa.

Palavras-chaves: Televisão; IURD; Rede Record; Programa Fala que eu te escuto.

Desde que compreendemos o real sentido de globalização, o mundo tem vivido um amplo processo de informação e inovação tecnológica. O surgimento da prensa de Guntenberg, que provocou a Revolução da Imprensa com a publicação do primeiro livro impresso, a Bíblia, possibilitou e ajudou a enfraquecer o monopólio religioso controlado pela Igreja Católica. O fracionamento do monopólio religioso foi o “boom”, ou seja, o pontapé inicial para que as denominações pagãs e as demais denominações ganhassem força. Graças ao Protestantismo de Lutero e à tradução da bíblia para outros idiomas nasceu a denominação que hoje conhecemos como “evangelismo”. Uma das principais características do evangelismo do século XX é a apropriação dos meios de comunicação, primeiramente no rádio, com concessões gratuitas cedidas pelo governo, e posteriormente na televisão por meio de cultos eletrônicos, sobretudo na sociedade norte-americana. Não muito diferente do televangelismo norte-americano, no Brasil foi inserida a programação religiosa nas rádios e emissoras de TV, tendo em vista que muitos dos

22Acadêmico do Curso de Comunicação Social/ Jornalismo na Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: [email protected]. 56

protestantes que se instalaram no Brasil vieram de outros países como missionários e já tinham conhecimento acerca dos cultos eletrônicos e a da difusão do evangelismo pelos meios de comunicação. A Igreja Universal do Reino de Deus, da qual falaremos mais à frente, em seus primeiros anos de fundação já possuía o seu próprio programa na rádio intitulado “Despertar da Fé”, pela Rádio Metropolitana do Rio de Janeiro com duração de 15 minutos e conquistando posteriormente programas veiculados na extinta TV Tupi. Isso fez com que a IURD acompanhasse toda a informação e evolução tecnológica de várias áreas. O fato é que a Rede Record não é totalmente voltada para a programação religiosa. Durante todo o dia são transmitidos apenas dois programas dessa modalidade. Um deles em horário bem incomum, durante a madrugada, que acontece todos os dias da semana. Os programas, em geral, são jornalísticos e de entretenimento. Já está mais do que provado que o caráter comercial/empresarial de Edir Macedo, dono da Rede Record, transcende o espiritual, mostrando que a religião se tornou um subproduto da busca pelo dinheiro. Cabe explorar, no espaço deste artigo, quais os instrumentos e estratégias são utilizados para o alcance deste fim, sobretudo através de leitura bibliográfica relativa à expansão do conglomerado midiático iurdiano, e sua interpretação à luz de conceitos presentes na Comunicação Social.

1. O Neopentecostalismo como base ideológica Para maior entendimento da temática deste artigo, é necessário que se tenha conhecimento acerca do neopentecostalismo, que na sua forma mais branda corresponde a terceira vertente do pentecostalismo. Como lembra Mariano (1996), o pentecostalismo de origem norte-americana chegou ao Brasil por volta do início do século XX e rapidamente ganhou espaço no território nacional, fazendo com que surgissem cada vez mais igrejas. A heterogeneidade do pentecostalismo possibilitou a complexidade dessa denominação fazendo com ela fosse divida em três linhas diferentes, para que fosse mais bem compreendida historicamente e melhor estudada. A primeira linha tomada é chamada de pentecostalismo clássico, que compreende o período entre 1910 e 1950, com a chegada da denominação ao país e a fundação da

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Congregação Cristã no Brasil (SP) e da Assembleia de Deus (PA). Ela é caracterizada como pura, pregando o anticatolicismo, dando ênfase ao dom de línguas, além do sectarismo radical e o ascetismo de rejeição do mundo. Seguindo essas características ideológicas, a Congregação Cristã no Brasil se mantém firme a elas. Por outro lado, a Assembleia de Deus mantém um posicionamento mais flexível às ideologias, adequando- se às mudanças que ocorrem no movimento pentecostal (MARIANO, 1996, p. 25). A segunda linha pode ser chamada de pentecostalismo neoclássico, Deuteropentecostalismo,Pentecostalismo Pós-Clássico ou, simplesmente,Segunda Onda do Pentecostalismo,que teve início da década de 50 com a chegada dos missionários Harold Williams e Jesus Hermirio Vasquez Ramos a São Paulo. Lá eles criaram a Cruzada Nacional de Evangelização baseados na crença de cura divina, difundindo (evangelizando) seus ideais através do rádio, o que possibilitou o crescimento do pentecostalismo por todo território brasileiro. Além de tudo, fundaram a Igreja do Evangelho Quadrangular (MARIANO, 1996, p. 25). A terceira e última vertente surgida é o neopentecostalismo, na metade da década 70, fortalecida nas décadas seguintes. Foi nesse contexto que surgiu a Igreja Universal do Reino do Deus (1977) fundada essencialmente por um pregador brasileiro e que representa hoje uma das principais igrejas neopentecostais. Além disso, constituem uma posição menos dogmatizada do mundo, são filiados a partidos políticos e fazem forte uso da mídia eletrônica. Ela se caracteriza principalmente por pregar e difundir a Teologia da Prosperidade, defendendo que o cristão está destinado a ser próspero em todos os aspectos terrenos de sua vida, seja na saúde, nos bens materiais, nos empreendimentos etc. dando ênfase o adágio franciscano “é dando que se recebe”:

A Teologia da Prosperidade consta entre as principais mudanças doutrinárias e axiológicas ocorridas no chamado neopentecostalismo, vertente pentecostal encabeçada pela controversa Igreja Universal do Reino de Deus. Defendendo que os cristãos, enquanto sócios de Deus ou financiadores da obra divina, estão destinados a ser prósperos, saudáveis, felizes e vitoriosos em todos os seus empreendimentos, esta teologia, oriunda dos EUA, derruba por terra o velho ascetismo pentecostal, prejudica a imagem pública deste grupo religioso e concorre para pôr em xeque a tese que vê afinidades entre o pentecostalismo e o "espírito do capitalismo" (MARIANO, 1996, p.24)

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Ao mesmo tempo essa vertente enfatiza a guerra espiritual contra o Diabo, luta espiritual que se refere à necessidade do fiel neopentecostal resistir a outras religiões, sobretudo as de matriz africana (MARIANO, 1996, p. 26).

2. A criação e ascensão do império de Macedo A sigla IURD pode ser um pouco desconhecida pela massa, mas ao se referir à Igreja Universal do Reino de Deus fica fácil discernir o seu significado, já que é o maior e principal grupo neopentescostal do Brasil, contando com mais de cinco mil templos, aproximadamente 1,8 milhões de fiéis e quase 10 mil pastores segundos dados do IBGE 2010. A história da IURD teve início em nove de julho de 1977, quando o então pastor Edir Macedo abriu as portas do que seria a quinta maior instituição religiosa do Brasil, realizando pequenas reuniões. Edir contou com a ajuda de seu cunhado Romildo Ribeiro Soares que conheceu durante o final da década de 60 na Igreja Pentecostal de Nova Vida. Juntos decidiram abandonar a Nova Vida e criar a própria igreja, primeiramente denominada “A Cruzada do Caminho Eterno” e posteriormente chamada de “Casa da Bênção”. De acordo com Macedo, essa denominação seria para atrair as pessoas que não eram de nenhuma igreja de cunho protestante. Romildo possuía um modo de pensar diferente ao de Macedo e três anos depois, já na década de 80, Edir e Romildo decidiram seguir caminhos diferentes em virtude dos conflitos de princípios. Enquanto Macedo almejava a expansão da Igreja nos Estados Unidos, Soares visava à expansão em território nacional, ao mesmo tempo contratando pastores de outras denominações. Essa atitude tomada por Soares foi totalmente repudiada por Macedo, pois seu intuito era criar uma denominação sem se misturar com as igrejas pentecostais tradicionais. Como meio de resolução para esse impasse, ambos realizaram uma assembleia excepcional composta por 15 pastores, na qual Edir saiu vencedor com 12 votos a favor e 3 contra. A partir disso, Soares resolveu desligar-se da igreja e fundar a sua própria, a Igreja Internacional da Graça de Deus. A partir daí a IURD cresceu de forma extraordinária. Logo nos primeiros oito anos de sua fundação, a instituição contava com 195 templos em 14 estados brasileiros e no

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Distrito Federal e dois anos depois ela teria 356 templos em 18 unidades federativas. Em 1989, ano da negociação da compra da Rede Record, a igreja passou a ter 571 templos. No início, a igreja se concentrou nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, mais tarde se expandindo para as demais capitais brasileiras e ocupando todo o território brasileiro na década de 90, aumentando o número de 269 mil para 2,1 milhões de fiéis no Brasil. Não contente com a expansão pelo território nacional, a instituição alcançou o número de 80 nações em 2002, conquistando pessoas entre as camadas mais abastardas e menos escolarizadas da população. Atualmente a IURD conta com mais de cinco mil templos em todo o país, nos mais diversos lugares, seja em galpões, presídios, cidades ribeirinhas e até mesmo aeroportos. Segundo dados do censo brasileiro de 2010 realizado pelo IBGE, a denominação IURD possui cerca de 1,8 milhões de adeptos, embora vários pastores contestem o censo, dizendo que os dados são levantados de forma deficiente e incompleta, não realizando entrevistas nos locais em que realmente se encontra a massa de fiéis da Igreja Universal, como em favelas e na periferia.

3. A midiatização iurdiana e suas relações de poder Como característica própria do neopentecostalismo, o uso da mídia eletrônica pela IURD é um instrumento essencial na relação empresarial desta instituição. Pare ter-se ideia, a IURD possui uma grande rede de comunicação que conta com editoras, gravadoras, rádios, jornais, revistas, sites e emissoras e TV. 23 O império empresarial de Edir Macedo24 através do rádio e da televisão constitui o mais poderoso meio empregado pela Igreja Universal, pois atrai rapidamente um grande número ouvintes e telespectadores de diferentes localidades geográficas. Segundo Mariano (1999, p. 75) “a mídia faz com que as barreiras geográficas, sociais e ideológicas sejam rompidas e os ‘produtos’ iurdianos sejam colocados para um público necessitado, que lhe paga pelo preço pedido, porque se trata de alcançar a felicidade, o bem-estar físico e o espiritual”. Durante os anos 80, período de redemocratização brasileira, a IURD cresceu de

23Cezar Lazzari Junior, Julio (Jeniro de 2012). A relação da comunicação integrada com o crescimento da igreja universal do reino de deus. Disponível em: http://www.webcitation.org/6AeuGdzrB 24Quem é o dono da Rede Record. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br. Acesso em:10 out. 2013. Arquivado do original 60

forma ininterrupta através da compra de rádios e televisões, a introdução de alguns líderes na política partidária, a abertura de templos em outros países, mas esse crescimento culminou com a compra da até então decadente Rede Record de Rádio e Televisão, em 1989 (FERRARI, 2007, p.177). Atualmente a Rede Record é a segunda maior rede de TV do Brasil em audiência e faturamento. Logo depois de ter se consolidado no campo religioso à estruturação econômico-empresarial, a IURD sentiu a necessidade de usar o recurso lucrativo midiático e a sua representação no âmbito político passou a ser entendida como estratégia, ao mesmo tempo em que buscou estabelecer relações em vários campos que lhe garantiam a sustentação do poder enquanto instituição religiosa. Por isso os meios de comunicação eram mais do que necessários, não somente para difundir a teologia da prosperidade, mas também para velar algo que ferisse a imagem da instituição ou de seus representantes. Na mídia impressa a IURD conta com a Folha Universal, o jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, o jornal Hoje em dia, de , o Visão de Fé, voltado para os auxiliares do bispo, o jornal Força Jovem, voltado para o público adolescente, a Folinha IURD, para o público infantil. Além de periódicos há revistas, como é o caso da Plenitude, que é a revista oficial da igreja, responsável pelo marketing e divulgação das atividades da instituição além de abordar temas variados, sendo usada na evangelização dos indivíduos, quer seja nas ruas, em hospitais e presídios. Há também as revistas Obreiro de Fé e Mão Amiga e Educador. Além de periódicos e revistas a IURD possui a sua própria editora, a Unipro. Segundo Faccio (2006) em seu artigo, O Império Midiático da Igreja Universal do Reino de Deus: reflexõe e análises das estratégias de comunicação da IURD. a a instituição possui uma rede nacional de rádios conhecida como Rede Aleluia cobrindo cerca de 75% de todo o Brasil consolitando-a como um fenômeno de comunicação de massa. Além do rádio, a o império iurdiano conta com a TV Univesal transmitida pela Internet. Possui também a Line Records gravadora, o portal Arca Universal na Internet, a Uni Line produtora de vídeos, o Banco de Empreendimentos Metropolitano, Unimetro Emprendimentos, Cremo Empreedimentos, New tour (agência de viagens), Unitec (construtora), Uni corretora, Investholding Limited, Ediminas, além de outras empresas fora do Brasil.

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Funcionar com empresa lucrativa, este é o lema do bispo primaz para competir e ser bem-sucedido num mercado altamente concorrencial como é o atual mercado religioso brasileiro. Por isso a dedicação, profissionalismo e o aumento de produtividade (…arrecadação, …congregações… dizimistas… trabalho dos pastores)… os ‘improdutivos’… são sumariamente dispensados. (MARIANO, 1999, p.64).

Apoiado em uma ótima assessoria jurídica e financeira, o bispo Edir Macedo soube beneficiar as igrejas e entidades filantrópicas. Embora a IURD não tenha burlado o legislação de forma suficientemente desvelada, pois várias denúncias e acusações foram feitas contra a instituição, entre elas sonegação de impostos, evasão de divisas e usurpação de legislação brasileira em relação às instituições religiosas, existe toda uma proteção jurídica do seu lado empresarial através da fachada eclesial (FERRARI, 2007, p. 178):

Para isso, amparava-se na Constituição brasileira, que concede a imunidade tributária às igrejas por exercerem atividades sem fins lucrativos, tais como assistência religiosa social. No caso da Universal, a Receita avaliou que devia cobrar Imposto de Renda, uma vez que boa parte do dinheiro por ela arrecadado era desviada de suas finalidades essenciais, sem pagar impostos, para remunerar seus dirigentes, comprar emissoras de rádios e TV, empresas, casas, apartamentos, carro (MARIANO, 1999, p. 88).

4. Polêmica interna velada: o discurso por trás do “Fala que eu te escuto” Logo depois que a Rede Record foi comprada pelo bispo Edir Macedo, foi criado o programa “Fala que eu te escuto” em meados da década de 90. Depois de ter estudado as estratégias televisivas durante o período em que passou nos Estados Unidos. Sendo um dos programas mais promissores da IURD e que está no ar até hoje. O programa é exibido diariamente à 1h 15 da madrugada pela mesma emissora. Sua finalidade é promover o debate público de assuntos variados, expondo temas que estimulam a opinião pública. Inicialmente, o programa expunha temas essencialmente religiosos, mas mudou com o tempo de acordo com as demandas sociais. Anteriormente, o discurso utilizado pelo programa assemelhava-se ao discurso utilizado nos templos iurdianos, hoje esse discurso está presente no carisma estratégico e na boa articulação dos apresentadores, que se afastam da interpretação ortodoxa dos temas tratados.

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A escolha do tema é feita com bastante minúcia e extremamente orientada para que não se fuja da ideologia da igreja. Seria mais correto dizer que ele é manipulado, devendo obedecer às regras institucionais. Assim, a discussão que eles dizem oferecer na verdade não existe, pois, além disso, pouco se dá atenção ao que o telespectador fala por telefone ou Skype, o que é mascarado pela exacerbada simpatia dos apresentadores nos diálogos. (RODRIGUES; DANTAS, 2012, p. 6) Na última década o programa foi reformulado, sofrendo algumas mudanças na sua estrutura, adequando sua programação para um público mais amplo. A modificação feita para se adequar às necessidades do novo público não impediu que ele continuasse seguindo o seu caráter religioso, pois a estratégia principal da IURD era de compor e direcionar um programa para a massa, o que financeiramente geraria mais lucros à emissora. Muitos questionamentos são feitos acerca do horário que o programa é transmitido, mas ele pode ser respondido de acordo com a lógica de mercado. Por exemplo, faria sentido colocar um programa religioso de baixa audiência no horário nobre televisivo competindo com grandes telejornais ou telenovelas de audiências elevadíssimas? É óbvio que não, pois isso iria desfavorecer não apenas o programa como também a emissora com a queda dos lucros. Apesar de ser um programa de rede nacional, as lógicas de mercado não se aplicam a todas as regiões do Brasil, sendo esse outro fator para o horário alternativo do programa. Como é o caso dos grandes centros urbanos, em que os indivíduos estendem seu horário de “descanso” e se afugentam nos programas de televisão ou internet. Apoiado em um discurso psicológico e técnica persuasiva, a linguagem simbólica do programa é passada através de bispos e pastores com um forte poder de persuasão, o que leva a crer que estes foram especialmente treinados para agir de tal maneira, carismática, provocando certa empatia no telespectador e levando-o a buscar na igreja apoio para suprir suas carências humanas, dificuldades na vida financeira e pessoal. O sucesso do “Fala que eu te escuto” não reside apenas no fato do discurso persuasivo do apresentador, mas principalmente no número de telespectadores que não fazem parte do grupo de fiéis da IURD. Analisando o programa por meio de roteiro do programa “Fala que eu te escuto”, dos 30 de abril de 2007 e primeiro de maio de 2007, pode-se perceber que estes estavam voltados para atender àquelas pessoas em condições de vulnerabilidade social ou

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emocional acomodados à rotina. Dentre elas se podem destacar donas de casa, mulheres que sofreram alguma agressão e até mesmo adolescentes. Assim como pessoas endividadas, que estão passando por problemas financeiros. A figura masculina se faz presente eventualmente como forma de pormenorizar a figura feminina.

O discurso do Fala Que Eu Te Escuto não possui marcas de proselitismo, tampouco se trata da doutrina. O que interessa para eles é angariar públicos e mostrar a maleabilidade e modernidade da Igreja Universal, capaz de atender aos diversos públicos, independente de classe, religião, idade ou grau de escolaridade. O que o telespectador talvez não perceba é que por trás disso há uma grande organização que trabalha para fins mercadológicos e visa acima de tudo manter e aumentar sua audiência. Para tanto, esta sabe da importância de se moldar aos novos formatos da modernidade (RODRIGUES, DANTAS, 2012, p. 2).

Desse modo, o programa nos prova que o processo de midiatização da sociedade, mais especificamente da religião, tem ultrapassado e conquistado cada vez mais espaço nos meios de comunicação, fundamentando a criação de um novo campo social e assim estabelecendo novas maneiras de agir e viver a religiosidade. Permitindo-nos vivenciar e fazer a religião sob novas práticas, suportes e ambientes (AIRES; SOARES, 2011, p.2). Analisando o minidocumentário produzido pela autora Sônia Lúcia Nunes Pinto em seu trabalho de conclusão de curso, que trata justamente da relação mídia-religião, podemos observar que o programa possui um discurso bem direcionado e amplo. As palavras proferidas pelo telepastor atingem profundamente o seu receptor. O uso do pronome de tratamento “você” aproxima cada vez mais o emissor do seu receptor. Dessa maneira o ele usa uma espécie de discurso incisivo, apontando os problemas do dia-a-dia de qualquer pessoa, quer seja com problema financeiro ou amoroso. Em condições precárias e de vulnerabilidade emocional, o telespectador sente como se aquele discurso estivesse sendo emitido diretamente para ele e com isso ele é atraído a frequentar a Igreja Universal. Esse é justamente o objetivo dos cultos eletrônicos, atrair cada vez mais futuros dizimistas, pessoas que deem o dízimo para a remissão de seus pecados e que sejam retribuídos com bens materiais e prosperidade. Como exemplo, podemos citar um caso fictício em que seu “Joaquim” que está com todas as suas contas atrasadas, divorciado, doente e desempregado, basta que ele vá ao culto da IURD e faça a sua “contribuição” para

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que os seus problemas sejam resolvidos e a tribulação vá embora, ou seja, o templo de seria de orações a Deus é também o lugar que ostenta riquezas e se torna um comércio. Logo, os meios de difusão ideológica e os métodos de dominação aliados ao bom orador resultam no sucesso que é hoje programa “Fala Que Eu Te Escuto” da Rede Record. O culto e eletrônico é apenas uma extensão da igreja e um meio de legitimar seu poder na mídia, mas quem realmente atua no processo de alienação são os templos iurdianos, que exploram os seus fiéis a “doarem” o dízimo à igreja, tendo como pretexto o adágio franciscano, quando na verdade se trata de um venda de indulgências velada.

Considerações Finais Ao longo deste artigo pode-se perceber o quão forte é a relação entre mídia e religião e que a partir do contexto pós-moderno, os grupos e instituições religiosas transformaram a religião em comércio ativo aliado à lógica capitalista. O neopentecostalismo a partir da teologia da prosperidade, ajudou a compreender um pouco da ideologia utilizada pela IURD, que remete ao âmbito empresarial e enriquecimento próprio da igreja, utilizando seu poder midiático, político e financeiro para burlar as leis que comprometem a imagem da instituição. Pensando muito além do conteúdo televisivo o império iurdiano têm investido cada vez nas mídias sociais como Facebook, Twitter, Skype, e-mail e telefonemas. A convergência midiática e o conteúdo híbrido acabam aproximando ainda mais o telespectador do programa, fazendo com que ele não se atente ao discurso capitalista pregado pela instituição. A maneira incisiva como a IURD age no processo de aquisição de fieis, age quase da mesma maneira como a teoria da agulha hipodérmica. Um processo verticalizado de dominação em que os indivíduos são apenas telespectadores passivos sem discernimento algum para filtrar o conteúdo que se assiste. Mas no caso da IURD, a programação televisiva na rede aberta, que compreende não somente a Rede Record, mas também outras emissoras em horários totalmente atípicos acabam se direcionando a camadas especificas da sociedade, principalmente das grandes cidades. Trabalhadores de baixa renda, que trabalham durante todo o dia e chegam em casa somente pela madrugada. É mais ou menos esse tipo de perfil que os programas iurdianos costumam atingir.

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Logo, percebemos que toda a jogada de dominação exercida pela IURD está embasada em três pilares, o comunicacional, que envolve a mídias pela qual ela propaga sua ideologia e se firma enquanto instituição, além das teorias comunicacionais que nos ajuda a entender o método persuasivo utilizado por ela. O capitalista, que compreende não somente a Teologia da prosperidade, mas também os produtos meramente comerciais e sem nem um vínculo com a casa de Deus, e por fim o behaviorista, que envolve as pessoas condicionadas pelo ideal iurdiano, que assumem um comportamento diferente a partir do momento em que aderem à ideologia pregada pela IURD.

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FERRARI, Odêmio Antonio. Bispo S/A – A Igreja Universal do Reino de Deus. São Paulo. Ed. Ave Maria, 2007.

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PINTO, Sônia Lúcia Nunes. O poder da fé usando o poder da mídia para convencer os fiéis. Boa Vista. 2007.

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WOLF, Mario. Teorias da comunicação. Lisboa. Ed. Presença, 2010.

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Análise das características do jornalismo online apresentadas pelo Portal jornalístico Folha web

Emmily Dayanna dos Santos MELO25 Valéria Oliveira dos SANTOS26

Resumo Este artigo consiste numa análise sobre as características do jornalismo online desenvolvidas na FolhaWeb, pertencente ao Grupo Folha de Comunicação, do estado de Roraima. Para isso, utilizamos as seis características apresentadas por Palácios (2002): multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, customização do conteúdo/personalização, memória e instantaneidade/atualização contínua, com o objetivo de verificar se o site estudado apresenta estas particularidades. Buscando perceber em que estágio histórico de desenvolvimento se encontra o FolhaWeb. Com a pesquisa foi possível notar várias lacunas na utilização de formatos do jornalismo online.

Palavras-Chave: Jornalismo Online; Jornalismo Digital; FolhaWeb; Webjornalismo; Comunicação.

Em seus estudos sobre webjornalismo, Jakob Nielsen sugere que (apud Ferrari, 2006, 63), “a coisa mais importante nesse tipo de pesquisa é descobrir as três razões principais porque os usuários vão ao seu site e deixar essas coisas extremamente rápidas e fáceis de serem feitas”. O acesso universal à informação, a instantaneidade, a interatividade, o fator tempo e o multimídia, numa era de convergência, afetaram as mudanças que o jornalismo viveu e continua a viver nos últimos tempos. Diante de um ambiente virtual ilimitado, o jornalismo online possibilita a produção de maior quantidade de informação e convergência dos formatos. Trata-se de um estágio histórico do jornalismo cujas conseqüências são ainda imprevistas e as empresas jornalísticas apenas recentemente começaram a explorar de forma mais plena. Esta pesquisa, nesse sentido, pretende estudar as características do jornalismo online desenvolvidas no site FolhaWeb, conforme as características sugeridas por Palácios (2002, p. 3), buscando perceber o seu grau de interação com os recursos disponíveis no Ciberespaço.

25 Acadêmica do Curso de Comunicação Social da UFRR, e-mail: [email protected]; 26 Acadêmica do curso de Comunicação Social da UFRR, e-mail:[email protected]; 67

1. Jornalismo na Web Em 1990, após várias tentativas e estudos, a Internet teve seu salto de inovação tecnológica, melhorando o envio e recebimento de dados. Foi criada a grande rede mundial de computadores: a WWW (world wide web) que organizava o teor dos sítios na internet por informação. A produção de notícias na web, por meio do WWW, fez com que a produção jornalística online aumentasse. Com a WWW foi possível criar um formato padronizado de endereços, “além de textos, informações na Web também podem ser gráficos, sons, fotografias, imagens de vídeo, etc., o que faz da Web um dos mais versáteis meios de comunicação já inventados pelo homem” (TAMIS, 1997, p. 16). A técnica de publicar notícias no Ciberespaço iniciou no jornal The New York Times, nos Estados Unidos. Conforme relata a autora Moherdaui (2007, p. 23), na época a transposição da produção jornalística para a Internet estava resumida aos serviços de notícias específicos para um segmento de público, oferecidos por provedores como a America Online (AOL). Com isso, Moherdaui, fala ainda do jornalismo online, iniciado pelo The New York Times:

O primeiro grande Jornal que ofereceu serviços online foi o The New York Times (http://www.nytimes.com), em meados dos anos 1970, com seu New York Times Information Bank. O jornal passou a disponibilizar resumos e textos completos de artigos atuais e artigos de sua edições diárias passados a assinantes que possuíam pequenos computadores (MOHERDAUI, 2007, p. 23).

Assim, a versão impressa do jornal americano era toda repassada para a web. Mas, foi apenas em maio de 1993, que o primeiro jornal completamente online entrava no ar. Viana (2008, p. 02) cita que a história do jornalismo online propriamente dito começa em maio de 1993, ano em que o jornal americano The San Jose Mercury News, colocou no ar a sua versão com conteúdo online, por meio da rede America On Line. No Brasil, segundo Pinho (2003, p. 114), a primeira iniciativa partiu do grupo O Estado de São Paulo, que, em fevereiro de 1995, colocou a Agência Estado na rede mundial. No entanto, de acordo com Moherdaui (2007, p. 25), o primeiro jornal brasileiro a fazer uma cobertura completa no espaço virtual foi o Jornal do Brasil em 28 de maio de 1995.

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Segundo o atual editor-chefe do JB On-line, Roberto Ferreira, a idéia de produzir um jornal digital surgiu a partir do momento em que a internet, como nova mídia, foi se popularizando entre os brasileiros. Os internautas queriam explorar cada vez mais a rede na procura de novos serviços. 'Os jornais sentiram que não poderiam ficar de fora da tecnologia, para não correrem o risco de serem atropelados', explicou Roberto (LIMA, 2007, p. 08).

Depois do Jornal do Brasil, outros veículos brasileiros também começaram a inovar no conteúdo online. Veículos de comunicação como Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo, jornal Zero Hora, entre outros, também inauguraram conteúdo informativo na Internet. A partir daí, o número de sites de notícias e revistas eletrônicas cresceram pelo Brasil.

2.1 Webjornalismo em Roraima Em Roraima, o jornalismo na Internet teve início em dezembro de 1997. Conforme relata Bezerra (2009, p. 34), o primeiro site de jornalismo local foi o BV Roraima, idealizado e mantido pelo tecnólogo de informação Franco Soares. O sítio surgiu com a proposta de realizar coberturas esportivas. Noticiava também informações de outras editorias. O BV Roraima saiu do ar uma década depois. Segundo o Guia de Mídia, responsável por divulgar a lista dos sites jornalísticos de jornais brasileiros e internacionais, o estado de Roraima possui 18 webjornais, duas agências de notícias (Agência Roraimense de Notícias e Diário Oficial de Roraima) e três provedores de internet (BV Roraima, UZE e Rádio Roraima). De acordo com Veras (2012, p. 36) o Grupo Folha de Boa Vista disponibilizou sua versão na Internet no ano de 1998:

Em 1998, o jornal disponibilizou a sua primeira edição na internet, através do , mas foi somente em 31 de outubro de 2005, com o lançamento de uma nova versão online da FolhaWeb - mais arrojada e com atualizações contínuas, que ficou consolidado o Grupo Folha. [...] Além disso, foi o primeiro a disponibilizar conteúdo impresso na Web, além de ser o único a produzir, mesmo que timidamente, conteúdos exclusivos para o site.

Em 2002, surge outro jornal online em Roraima, o site de notícias BV News. Segundo Bezerra (2009, p. 37), o conteúdo publicado era referente a reportagens sobre

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esportes e cultura. A atualização do site era feita semanalmente, período considerado grande para um veículo de comunicação existente apenas na Internet. Em 2004, foi lançado o Roraima em Foco, em Boa Vista. O Roraima em Foco, destaca Bezerra (2009, p.40), surgiu com a denominação de Trincheira, uma alusão a uma coluna que o jornalista e editor, Gilvan Costa, escrevia no extinto jornal Correio de Roraima:

O Roraima em Foco não tem linha editorial específica, pois trata todos os assuntos pertinentes aos fatos que aconteçam no Estado e também, em nível regional e nacional, sempre observando a importância disso no contexto local. Desde o começo, o site vem procurando informar sobre tudo que acontece em Roraima, seja na área de esporte, cultura, política, social, cotidiano (COSTA 2009, apud BEZERRA, 2009, p. 40).

Após o surgimento do Roraima em Foco, foi lançado também o site Roraima Hoje. Veras (2012, p. 36) lembra que o jornal Roraima Hoje foi fundado em 2006. Primeiramente, ele foi disponibilizado na versão online e, meses depois, precisamente no dia 6 de dezembro do mesmo ano, na versão impressa. O site Roraima Hoje trabalha com as editorias de Cidade, Política, Esporte, Cultura e Social. No ano seguinte, em 2007, foi a vez do site Jornal do Rádio. O projeto, conforme Bezerra (2009, p. 41), foi idealizado pelo radialista Waldenir Bentes e a jornalista Eudiene Martins. São publicados neste site todo tipo de notícia referente ao Estado. Em 2009, surge o Boa Vista Agora, que teve a finalidade de ser um espaço na Internet aberto para a hospedagem de fluxo de opiniões e notícias sobre variados temas de interesse coletivo, reunindo material informativo, próprio ou de outras fontes27. Outros sites disponíveis em Roraima são: Fonte Brasil, Jota 7, Roraima Notícias, Tribos de Roraima, Portal Macuxi e por último, o G1 Roraima.

3. Histórico da Folha Web Desde 2006 o jornal Folha de Boa Vista disponibiliza sua produção jornalística na Web, por meio do endereço eletrônico . A implantação do webjornal

27 Informações retiradas do site Boa Vista Agora. Disponível em . Acesso em 20 de novembro de 2013. 70

ocorreu em decorrência da exigência do mercado, conforme explicou o editor da FolhaWeb, Jessé Souza, no artigo, Conheça a história e a trajetória da Folha de Boa Vista.

O objetivo é produzir jornalismo on-line, com atualizações a cada meia hora, proporcionando “furos” jornalísticos enquanto a equipe do jornal impresso ainda trabalha a notícia para publicá-la no dia seguinte, com mais detalhes. O compromisso da equipe Web é o mesmo norteado pelo Grupo Folha, sem esquecer de conjugar a instantaneidade da notícia on-line com princípios éticos de pluralidade, independência e senso crítico. (Disponível em Acesso em 20 de nov. 2013)

A equipe do jornal para a Web começou a ser montada em 2009. Desde 2012 ela é composta por seis profissionais, sendo um editor chefe, três repórteres, um webdesigner e um responsável pela atualização do site. Destes, tanto o editor como um repórter também produzem conteúdos para a versão impressa, já os demais são exclusivos para o meio digital. O site apresenta duas versões à escolha do internauta: uma transposição das principais notícias do jornal impresso e a versão online, com conteúdos adicionais (entrevistas virtuais, notícias nacionais, internacionais, especiais e de última hora).

3.1 Estrutura da Folhaweb Na página inicial do site FolhaWeb( ver Figura 1) o internauta encontra logo no canto superior esquerdo a identidade do site e no direito a ferramenta de busca. Na lateral esquerda é possível encontrar a barra menus com os botões de navegação para os ‘Links e Serviços’ e ‘Colunas’.Até a metade do site o internauta consegue visualizar slides com chamadas para três matérias ilustradas com fotos. Ao contrário dos demais sites de notícias, como Folha de S. Paulo e Estadão, onde a manchete principal fica do lado esquerdo da página, na FolhaWeb a manchete é do lado direito, seguida de três sub-manchetes. Na parte inferior do site, ficam localizadas do lado esquerdo as matérias especiais e no direito os destaques. Ainda na parte superior, estão localizadas as últimas notícias publicadas.

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Figura 1 – Página inicial do site FolhaWeb

Fonte:FolhaWeb. Disponível em

4. Características do Jornalismo Online Palácios (1999, p. 2), em seu estudo sobre modelos do jornalismo digital, estabelece que o jornalismo desenvolvido na web é composto por seis características: Multimidialidade/Convergência, Interatividade, Hipertextualidade, Personalização, Memória e Instantaneidade. Sobre as particularidades, Palácios (2002, p. 02), acrescenta ainda que tais potenciais são utilizados, em maior ou menor escala, e de forma diferente, nos sites

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jornalísticos da Web. A possibilidade de reunir todas as mídias em um só suporte é chamada Multimidialidade/Convergência. A aproximação dos formatos, conforme Palácios (2002, p. 3):

Refere-se à convergência dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração do fato jornalístico. A convergência torna-se possível em função do processo de digitalização da informação e sua posterior circulação e/ou disponibilização em múltiplas plataformas e suportes, numa situação de agregação e complementaridade.

Outra característica importante no webjornalismo é a interatividade. Nesta, o internauta tem a possibilidade de participar do processo jornalístico. Pode-se dizer, segundo estudo feito por Guedes (2007, p. 20), que a interatividade é uma das características que mais revolucionou o campo das comunicações na Rede. A maneira como a interatividade ocorre pode ser de diversas maneiras. Palácios (2002, p. 03) exemplifica que pode ser por meio da troca de e-mails entre leitores e jornalistas, através da disponibilização da opinião de leitores, como é feito em sites que abrigam fóruns de discussões, através de chats com jornalistas, etc. [...] A interatividade ocorre também, no âmbito da própria notícia, durante a navegação. Na hipertextualidade, os textos na web são interconectados por meio de links, que auxiliam na potencialização da informação para o usuário/leitor. O hipertexto cria a possibilidade da leitura não linear. As hiperligações, segundo Guedes (2007, p. 18) representam pequenas partes de conteúdo que são conectadas de acordo com o interesse de cada usuário, que os acessa através de links. A personalização está diretamente relacionada com a possibilidade de obter informações de acordo com os interesses específicos de cada leitor/usuário, conforme estudo de Mielniczuk (2003, p. 27). Desta forma, a personalização do conteúdo online permite que o usuário configure cada opção conforme os interesses individuais. Sobre a característica, Palacios (2002, p. 04) exemplifica que há sites noticiosos que permitem a pré-seleção dos assuntos, bem como a sua hierarquização e escolha de formato de apresentação visual (diagramação). Assim, quando o site é acessado, a página de abertura é carregada na máquina do usuário atendendo a padrões previamente

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estabelecidos, de sua preferência. Com isso, por meio da personalização de conteúdo, o leitor se aproxima mais do emissor e tende a acompanhar o conteúdo. A personalização aproxima e conquista a visibilidade do público. Na web, o acúmulo de notícias é muito maior, o que possibilita um acesso mais fácil às notícias e ao conteúdo publicado anteriormente. Esta característica é definida por Palácios (2002, p. 4) como memória sendo, segundo ele, um recurso prático e mais econômico. Desta forma, a memória pode ser recuperada tanto pelo produtor da informação, quanto pelo usuário. Sem as limitações anteriores de tempo e espaço, o jornalismo tem a sua primeira forma de memória múltipla, instantânea e cumulativa. Por meio da memória há a disponibilização imensurável do material noticioso produzido pela web, que diferente de outras mídias, não necessita muitos recursos, se não a própria rede de Internet. Outra particularidade, que embora exista no rádio e na televisão, ganha novas dimensões na web é a instantaneidade. A capacidade de transmitir um fato em tempo real é abordada por Palácios (2002, p. 04), como a rapidez do acesso, combinada com a facilidade de produção e de disponibilização, propiciadas pela digitalização da informação e pelas tecnologias telemáticas, permite uma extrema agilidade de atualização do material nos jornais da Web. Por meio da atualização contínua das informações, e o acréscimo das notícias, o webjornalismo torna a cobertura na Internet mais ágil, se comparada ao outros meio de comunicação. “[...] isso possibilita o acompanhamento contínuo em torno do desenvolvimento dos assuntos jornalísticos de maior interesse [...]” (PALÁCIOS, 2002, p. 04). Assim, todas as características e recursos apresentados acima sintetizam a produção da notícia no webjornalismo. A distribuição das notícias com tais ferramentas ampliam as possibilidades de se transmitir uma informação e aumentam as chances de atingir maiores públicos.

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5. Análise da homepage

Na homepage da FolhaWeb são apresentados ao internauta apenas alguns recursos de multimidialidade/convergência: chamadas com links para as matérias, imagens, textos e áudio. Não há o uso de vídeos nem infográficos.

Figura 2 – Links para o acesso às matérias da página inicial

Fonte: FolhaWeb. Disponível em

A interatividade no site é feita por meio de comentários nas matérias e dos botões de navegação, onde o internauta tem a possibilidade escolher entre as principais colunas do jornal, acessar a versão do jornal impresso e serviços. Há ainda, no final da página, a opção onde o usuário pode entrar em contato com o jornal. Não há o recurso para a criação de e- mail.

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Figura 3 – Internautas podem fazer comentários nas matérias

Fonte: FolhaWeb. Disponível em

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A hipertextualidade da FolhaWeb é percebida apenas na página inicial do site. Nas matérias não há o recurso do uso de hirpelinks nos textos, que ficam estáticos ao leitor. Não há a interconexão entre as matérias, há apenas, em alguns casos, o uso de imagens ilustrativas. Na maioria dos textos o internauta não encontra vídeos ou sons que complementam a informação.

Figura 4 – As matérias da FolhaWeb não possuem hiperlinks

Fonte: FolhaWeb. Disponível em

Não é possível customizar ou personalizar o conteúdo disponibilizado na Folhaweb. Não há opções que permitem ao internauta mudar itens dispostos no site. Com relação memória, o site disponibiliza todas as matérias publicadas. No entanto não há o acesso ao acervo do jornal com relação ao conteúdo impresso.

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Figura 5 – Acervo das matérias publicadas no site

Fonte: FolhaWeb. Disponível em

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Quanto à instantaneidade, na página inicial há um espaço com o ícone “Últimas Notícias”. Nele, o internauta/leitor pode visualizar as últimas notícias publicadas no site e clicar no link Lista Completa, para ter acesso a todo o conteúdo publicado no portal de notícias. O site mantém um ritmo de publicação e atualização contínua do conteúdo, apesar desta atualização não seguir um padrão do conteúdo. Que pode ser local, nacional ou até mesmo internacional.

Figura 6 – Últimas Notícias do site FolhaWeb

Fonte: FolhaWeb. Disponível em Acesso em 17 de fev. de 2013.

Considerações finais A partir do estudo de Palácios (2002, p.3), sobre as características do jornalismo na web, foi possível observar que o site FolhaWeb pouco utiliza os recursos inerentes ao jornalismo online. No que diz respeito à multimidialidade/convergência, o portal não apresenta todas as funções que a ferramenta oferece. Além disso, a convergência é pouco explorada. Neste site, a interatividade é limitada, ficando restrita apenas a possibilidade do internauta comentar nas matérias publicadas e navegar pelo conteúdo disposto na página inicial. Quanto à hipertextualidade, no que diz respeito ao conteúdo das matérias, não há. O site utiliza apenas o link de navegação, por meio do botão da home, onde o internauta pode voltar a página inicial independe de qual local do site ele esteja navegando. O internauta não tem a possibilidade de navegar no conteúdo das matérias. Esta ferramenta é limitada apenas à página inicial. Por meio da pesquisa, foi possível observar que o usuário não tem a liberdade de personalizar o conteúdo, a exemplo do ocorre em webjornais como o Estadão, onde o internauta/leitor pode escolher o noticiário destinado 79

somente às notícias de São Paulo ou o conteúdo que abrange todo o país. O site oferece apenas um padrão de seleção da notícia. Entretanto, o sítio dispõe de um acervo onde contém todas as notícias publicadas no meio online e a atualização das matérias é contínua, com um intervalo de trinta minutos a uma hora para publicação do conteúdo. Diante disso, podemos considerar que apesar do jornal FolhaWeb ter uma proposta de jornalismo online, ele possui muitas limitações no que se refere as especificidades do jornalismo na web. O site já caminha rumo à exploração dos recursos oferecidos pela rede, no entanto precisa ultrapassar barreiras e buscar a autossuficiência para as adequações deste novo meio.

Referências Bibliograficas BEZERRA, Gersika do Nascimento. A diversidade nos meios de comunicação de massa: o jornalismo on-line em Roraima. Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2009.

BOA VISTA AGORA. Disponível em . Acesso em 20 de nov. de 2013.

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GUEDES, Ana Paula Figueiredo. Blogs e Webjornalismo: As páginas pessoas da rede como fonte de informação. 2007. Disponível . Acesso em 5 de dez. de 2013.

LIMA JR, Walter Teixeira. Precursores do jornalismo On-line. In: V Congresso Nacional de História da Mídia, Facasper e Ciee, São Paulo, 2007. Disponível em < http://www.intercom.org.br/papers/outros/hmidia2007/resumos/R0049-1.pdf>. Acesso em 6 de out. 2013.

MIELNICZUK, Luciana. Características e implicações do jornalismo na Web. Disponível em Acesso em 10 de nov. 2013.

MOHERDAUI, Luciana. Guia de Estilo Web: produção e edição de notícias online. 3. ed. São Paulo: Senac, 2007.

PALACIOS, Marcos. Ruptura, Continuidade e Potencialização no Jornalismo On-line:

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o Lugar da Memória. In: Workshop de Jornalismo Online: Universidade da Beira Interior, Covilhã (Portugal), 2002.

PINHO, J. B. Jornalismo na Internet: Planejamento e produção da informação online. São Paulo: Sumus, 2003.

SOUZA, Jessé. Conheça a história e a trajetória da Folha de Boa Vista.FolhaWeb, Boa Vista, 21 out. 2011. Disponível em. Acesso em 20 nov. 2013.

VERAS, Laura Patricia Lopes. O estágio de desenvolvimento do fotojornalismo em Roraima a partir do site Folhaweb. Universidade Federal de Roraima, Boa Vista, 2012.

VIANA, Júlia da Escóssia Melo. O Jornalismo Online Como “Evento Audiovisual Extensivo”: O caso do G1, Portal. 2008. Disponível < http://www.intercom.org.br/papers/nacionais2008/resumos/R3-0417-1.pdf>. Acesso em 5 de dez. de 2013.

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O portal Macuxi e a História do Webjornalismo

Lucienny Pereira SANTOS28 Vilso Junior SANTI29

Resumo: O jornalismo, hoje, marca sua presença na Internet através de sites de notícias com produção exclusiva para a web e redes sociais e uma infinidade de outros recursos como blogs e microblogs. Partindo desse contexto de inovações tecnológicas na área da comunicação e percebendo a ampliação desse cenário, em razão da velocidade no fluxo de informações, observamos a falta de referencial específico sobre essa nova realidade no Estado de Roraima. A partir daí, surgiu à necessidade de se obter análises das produções jornalísticas que estão acessíveis na Internet. Como a web é um meio muito amplo para se trabalhar, delimitamos para essa pesquisa analisar o site Portal Macuxi. Além do resgate da história e da observação descritiva do site em questão, buscamos em pesquisas bibliográficas obras sobre o assunto abordado e realizamos entrevistas semiestruturadas para fundamentarmos as discussões. Como resultado, formatamos diversas sugestões de melhoria para que o site volte a recuperar seu público, o qual se afastou por conta da falta de comprometimento para com o leitor nas atualizações, principalmente de suas colunas e blogs.

Palavras-Chave:História do webjornalismo; Jornalismo online; Portal Macuxi.

Este trabalho surgiu a partir de uma análise primeira realizada em diversos sites de notícias locais, depois que retornamos aos estudos no curso de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na Universidade Federal de Roraima (UFRR). A escolha do tema deu-se a partir da percepção das novas tendências na Comunicação e no Jornalismo, pois há mais de dez anos iniciamos o primeiro semestre na UFRR, e no Campus, acompanhamos a evolução do Jornalismo, da Internet e do Jornalismo na internet. Quando os principais jornais do país começaram a publicar seus conteúdos na grande rede, popularizaram-se as especulações sobre o futuro dos impressos e as novas possibilidades de comunicação mediada por computador. Hoje o que se vê é o desenvolvimento do webjornalismo, publicado em plataformas hipermidiáticas que vêm se aperfeiçoando a cada dia. O jornalismo para a web surgiu a partir de uma necessidade de adaptação da

28 Graduada em Comunicação social/ Jornalismo pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), [email protected] 29Professor Doutor do Curso de Comunicação Social/ Jornalismo na Universidade Federal de Roraima (UFRR), [email protected] 82

comunicação moderna e após vários anos de teste, aperfeiçoamento, erros e acertos. A breve história do webjornalismo tem sua origem numa fase que prepara as redações para a passagem do impresso para a web. Desde esse momento, de forma contínua, o jornalismo vem passando por mudanças que, na fase atual, dão indicativos quanto à consolidação de suas características próprias. Como trabalhar com o webjornalismo é algo muito amplo, afunilamos nossa pesquisa para os sites jornalísticos, mais precisamente, os Portais de Notícias. Ainda assim, o portal nos traz um imenso leque de opções. Há, nele, muitos links e hiperlinks. Então delimitamos para esse estudo trabalhar com a Home-Page do Portal Macuxi. Recortamos para observação, realizada entre os dias 03 e 09 de novembro de 2013, sua Página Inicial. Escolhemos este site de notícias diante de uma gama de 21 websites que tem base no Estado do Roraima, por ele ser um Portal em que as notícias são criadas exclusivamente para a web. O Portal Macuxi não possui outra plataforma de divulgação de conteúdo. Para a delimitação do tema, levamos em consideração três importantes ingredientes no momento da formulação da pesquisa: relevância, viabilidade e utilidade. O trabalho é relevante, útil e viável, por ser realizado em um site de notícias do próprio Estado; por não haver registros de outros tipos de pesquisa referentes a este assunto em Roraima; e, por ele ser o marco inicial para futuras pesquisas na área. O objetivo geral do estudo é analisar o Portal Macuxi e verificar de que forma ele produz, publica e atualiza suas matérias. Os objetivos específicos são: conhecer o Portal Macuxi, regatar a sua história e apresentá-lo em todas suas seções; estudar de que forma as características do webjornalismo são incorporadas pelo jornal; averiguar quais são os critérios que definem a escolha das manchetes (notícias principais publicadas no slideshow da página inicial do Portal); apurar quais as editorias que possuem maior destaque em suas manchetes; e, fazer uma análise crítica sobre os critérios de atualização do Portal. Na pesquisa nosso método de trabalho foi resultante de um somatório de técnicas que agregou estudo de caso, estudo exploratório, consulta bibliográfica e entrevista. Em um primeiro momento buscamos diferentes tipos de obras que abordassem o assunto pesquisado em livros e artigos e em seguida fizemos a triagem de todo material pesquisado. Para aplicabilidade do levantamento de dados, utilizamos entrevistas semiestruturadas. E, finalmente, escolhemos aleatoriamente o recorte de uma semana da

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página inicial do Portal, a fim de analisar a produção, publicação e atualização das notícias, que, unidos aos dados bibliográficos e entrevistas, nos ajudaram a obter uma interpretação minuciosa do site em estudo.

1. A internet e o Webjornalismo Apesar de ter se passado mais de uma década que o Jornalismo conheceu a internet, e já existirem inúmeros estudos sobre o tema, ainda não há registros seguros nem um consenso em relação às terminologias usadas quando falamos do jornalismo praticado na internet, para a internet ou com o auxílio da internet. Existem registros de autores que utilizam a expressão “jornalismo online”, “jornalismo digital”, “jornalismo eletrônico”, “jornalismo multimídia” e “ciberjornalismo”, conforme explica Mielniczuk (2003, p. 22). De acordo com Canavilhas (2001), para designar as nomenclaturas no jornalismo, basta seguir uma lógica,

[...] de certa forma, o conceito de jornalismo encontra-se relacionado com o suporte técnico e com o meio que permite a difusão das notícias. Daí derivam conceitos como jornalismo impresso, telejornalismo e radiojornalismo”. É, pois, com naturalidade que se introduz agora o conceito de webjornalismo e não de jornalismo online (Murad, 1999, apud CANAVILHAS, 2001, p. 2).

Já Santi (2009, p. 5) em “O processo de apuração no webjornalismo de quarta geração”, explica com mais detalhes o que Canavilhas (2001) definiu:

O autor aponta que para designar o jornalismo desenvolvido para a televisão, utilizamos “telejornalismo”; o jornalismo desenvolvido para o rádio “radiojornalismo”; e também chamamos de “jornalismo impresso” àquele que é feito para os jornais impressos em papel. É dessa forma, portanto, que podemos usar “webjornalismo”para falar o jornalismo feito para a Web.

Portanto, a terminologia webjornalismo será o termo/conceito utilizado neste trabalho, pois o termo traz consigo a ideia de que podemos explorar todas as potencialidades que a internet oferece, apresentando um produto completamente novo: a webnotícia. Como muitas tecnologias a internet surgiu por acaso no final na década de 1970 nos Estados Unidos. No Brasil ela só começou a operar comercialmente em 1995. Ao longo

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desse mesmo ano, a internet brasileira cresceu, tanto em número de provedores quanto de usuários e de serviços prestados. Um crescimento natural do mercado, que modificou o jornalismo brasileiro. Afinal, a internet apresenta-se para o jornalista como uma ferramenta que une o som do Rádio, os vídeos da TV e as informações do Impresso em um só lugar. Nascia, assim, o Webjornalismo de Primeira Geração30. Nesta fase, conforme Mielniczuk (2003, p. 32):

Os produtos oferecidos eram reproduções de partes dos grandes jornais impressos. [...] o que era chamado então de „jornal online’, na Web, não passava da transposição de uma ou duas das principais matérias de algumas editorias. Esse material era atualizado a cada 24 horas, de acordo com o fechamento das edições do impresso. A rotina de produção de notícias é totalmente atrelada ao modelo estabelecido nos jornais impressos.

A internet brasileira consolidou-se apenas em 1997. A partir daí o conteúdo em língua portuguesa tornou-se significativo e empresas, bancos, universidades e até o governo fizeram questão de entrar nesse novo mundo midiático. Em 1998, uma pesquisa realizada pela Folha de São Paulo e pelo Datafolha, estimava que o número de internautas brasileiros aproximava-se de dois milhões de pessoas. Nesta época, o Webjornalismo encontrava-se em fase de mudança, iniciando sua Segunda Geração, onde os links começaram a ser explorados pelos jornalistas, uma mostra do avanço do antigo modelo do jornal impresso, segundo explica Mielniczuk (2003, p. 34):

Ao mesmo tempo em que se ancoram no modelo do jornal impresso, as publicações para a Web começam a explorar as potencialidades do novo ambiente, tais como links com chamadas para notícias de fatos que acontecem no período entre as edições; o e-mail passa a ser utilizado como uma possibilidade de comunicação entre jornalista e leitor ou entre os leitores, através de fóruns de debates e a elaboração das notícias passa a explorar os recursos oferecidos pelo hipertexto.

A chegada dos portais de notícias (a partir de 1999 com a criação do Globo.com), com produções jornalísticas especialmente desenvolvidas para a web, anunciava também a chegada do Webjornalismo de Terceira Geração. Esse terceiro estágio é marcado por uma produção jornalística especificamente criada para a web. Nessa fase há o enriquecimento da narrativa jornalística, sobretudo pelo uso de recursos multimídia e de interatividade,

30 Classificação do Webjornalismoconforme os autores Pavlik (2001), Silva Jr, (2002), Palacios (2002), e Mielniczuk (2001). 85

dentre outros.Mielniczuk (2003, p. 36) confirma esse conceito ao falar que:

Nesse estágio, entre outras possibilidades, os produtos jornalísticos apresentam recursos em multimídia, como sons e animações, que enriquecem a narrativa jornalística; oferecem recursos de interatividade, como chats com a participação de personalidades públicas, enquetes, fóruns de discussões; disponibilizam opções para a configuração do produto de acordo com interesses pessoais de cada leitor/usuário; apresentam a utilização do hipertexto não apenas como um recurso de organização das informações da edição, mas também começam a empregá- lo na narrativa de fatos.

Bardoel e Deuze (2001) e Palacios (2002) conceituam que o webjornalismo em sua terceira geração, deve atender a algumas características básicas: a Multimidialidade31, a Interatividade32, a Hipertextualidade33, a Personalização34, a Memória35e a Atualização Contínua36. Na linha evolutiva das pesquisas aplicadas ao webjornalismo, para alguns autores há, ainda, o Webjornalismo de Quarta Geração, referindo-se ao impacto do uso das bases de dados na narrativa webjornalística. Para Machado (2004, p. 3), a quarta geração organiza as informações em bancos de dados complexos, que são empregados no jornalismo e que permitem a recuperação rápida de informações, “os dados armazenados em Bancos de Dados complexos são tudo menos uma simples coleção de itens”.Santi

31Trata da “[...] convergência dos formatos das mídias tradicionais (imagem, texto e som) na narração do fato jornalístico. A convergência torna-se possível em função do processo de digitalização da informação e sua posterior circulação e/ou disponibilização em múltiplas plataformas e suportes, numa situação de agregação e complementaridade (PALACIOS, 2003, p. 3)”. 32Trata da “[...] a capacidade de fazer com que o leitor/usuário sinta-se mais diretamente parte do processo jornalístico. Isto pode acontecer de diversas maneiras: pela troca de e-mails entre leitores e jornalistas, através da disponibilização da opinião dos leitores, como é feito em sites que abrigam fóruns de discussões, através de chats com jornalistas, etc. (BARDOEL e DEUZE , 2001, p. 5)”. 33“Esta se relaciona com as propriedades de hipermídia de forma combinada, permutacional e interativa de multimídia, em que textos, sons e imagens (estáticas e em movimento) estão ligados entre si por elos probabilísticos e móveis, que podem ser configurados pelos receptores de diferentes maneiras (MACHADO, 2004, p. 4)”. 34 “Está diretamente relacionada à Interatividade, sendo resultado da relação entre leitor e notícia/conteúdo. As escolhas do leitor são o primeiro passo para o acesso a todos os conteúdos disponibilizados no webjornal. Portanto, a Personalização está próxima da dissertação, uma vez que o usuário tem condições de fazer e/ou modificar o processo, ou ainda construir de acordo com sua mediação (ZUIN e CORREIA, 2008, p. 13)”. 35 Conforme PALACIOS e RIBAS (2007, p. 49) a Memória permite que o usuário acesse qualquer conteúdo a qualquer hora e estabeleça seu próprio fluxo de leitura, criando uma relação particular com a temporalidade. Esse acúmulo de informações é mais viável técnica e economicamente na web do que em qualquer outra mídia. 36 “[...] aos poucos, a periodicidade de atualização começou a crescer. Passou a ser comum que os sites jornalísticos, mesmo mantendo uma determinada periodicidade de atualização, passassem a oferecer uma “janela” em funcionamento contínuo, com as últimas notícias, geralmente através de um serviço de agência (PALACIOS e RIBAS, 2007, p. 51)”. 86

(2009, p. 7) explica que:

O Webjornalismo de quarta geração (4G) vai se utilizar de banco de dados que, devido à tecnologia internet, junto com as linguagens de programação muito dinâmicas, passaram a gerar páginas que somente existem devido às solicitações do usuário ao navegá-las; e/ou telas que podem apresentar áreas de informações flexíveis em estruturas que possibilitam a co-relação de dados e de campos informativos.

É interessante ressaltar que as mencionadas gerações do webjornalismo não são excludentes, mas é possível localizar marcas distintas convivendo num mesmo produto.

2. O Webjornalismo em Roraima Nessa esteira surgiram os primeiros sites de notícias do Estado de Roraima. Criado em agosto de 2002, o pioneiro BV News nasceu a partir da ideia de dois jovens roraimenses que queriam oferecer uma nova forma de comunicação para o público local. Munidos de um computador, algumas ideias e muita vontade de trabalhar, o webdesign Michael da Silva Siqueira e o jornalista Raustman Gondim decidiram colocar a ideia de um website local em prática. Após este, muitos outros foram criados e hoje, existem 21 websites jornalísticos em Roraima (ver Tabela 1), porém apenas 13 estão em funcionamento, um está em manutenção e sete deixaram de existir por diversos motivos. Não há registros de análises sobre nenhum deles.

Tabela 1: Lista dos sites de notícias em Roraima, com seus respectivos endereços na web. JORNAL ENDEREÇO NA WEB SITUAÇÃO ATUAL 1 - Boa Vista Agora www.boavistaagora.com Em funcionamento 2 - Boa Vista Já www.boavistaja.com Em funcionamento 3 - Boa Vista Notícias www.boavistanoticias.com.br Fora do ar 4 - Brasil Norte www.brasilnorte.com.br Em manutenção 5 - BV News www.bvnews.com.br Em funcionamento 6 - Fato Real www.fatoreal.com.br Em funcionamento 7 - Folha de Roraima www.folharoraima.com.br Em funcionamento 8 - Fonte Brasil www.fontebrasil.com.br Em funcionamento 9 - Guia Roraima www.guiaroraima.com.br Fora do ar 10 - Jornal do Rádio www.jornaldoradio.com Fora do ar 11 - Jornal Sul de Roraima www.sulderoraima.com Fora do ar 12 - Jota 7 www.jota7.com Em funcionamento 13 - Mucajaí www.mucajai.com Fora do ar

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14 - Política com Pimenta www.politicacompimenta.com Em funcionamento 15 – Portal Macuxi www.macuxi.com Em funcionamento 16 - Portal Roraima 20 www.roraima20.com Fora do ar 17 - Roraima Brasil www.roraima-brasil.com Fora do ar 18 - Roraima em Foco www.roraimaemfoco.com Em funcionamento 19 - Roraima Hoje www.roraimahoje.com Em funcionamento 20 - Roraima Notícias www.roraimanoticias.com.br Em funcionamento 21 - Tribos de Roraima www.tribosderoraima.com.br Em funcionamento Fonte: Elaboração própria.

3. O Portal Macuxi O Portal de Notícias, que brotou na segunda geração e se solidificou na terceira fase do webjornalismo, é um site que centraliza características específicas como apresentar na Página Inicial chamadas para conteúdos diferentes de várias origens, dispostos em vários editoriais. A Página Inicial do Portal contém, portanto, informações gerais e especializadas, serviços de e-mail, canais de chat e relacionamento, shoppings virtuais, mecanismos de busca na web, entre outros, cuja intenção é ser a porta principal de acesso a orientar a navegação do usuário pela web. Para Camargo e Becker (1999), o objetivo desse tipo de site é claro: direcionar os passos do internauta para tentar mantê-lo o maior tempo possível no portal. Fidalgo (2001, p.32) fala que a informação na internet está cada vez mais concentrada nos Portais, pois eles “funcionam como ponto de chegada, organização e distribuição de informação”. No que se diz respeito ao webjornalismo, os Mega Portais abriram caminho para o surgimento de outra modalidade: os Portais Locais, como o Portal Macuxi. Eles se concentram na oferta de serviços e conteúdo direcionados a uma localidade ou região específica, a um nicho/seguimento específico, como por exemplo, um Estado ou um Município. Os portais locais/regionais são uma nova e recente categoria do webjornalismo, porque cumprem a função de informar segundo os critérios de proximidade, veiculando a informação em harmonia com as características primeiras do webjornalismo que foram citadas no referencial teórico deste trabalho. Apenas em 1999, os Portais Locais começaram a ser difundidos no Brasil. Os conteúdos locais, neles, estruturam-se segundo a importância, o significado, a afinidade e o interesse que possam despertar no público. São elementos que, no jornalismo constituem o valor-notícia proximidade, pois notícias sobre acontecimentos, pessoas e interesses mais

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próximos ao leitor terão um maior significado para ele. No texto “Os Portais Regionais como um formato para o Jornalismo Digital”, Suzana Barbosa (2001, p. 11) afirma que os portais regionais, como o Portal Macuxi, “são uma forma de presença digital adotada por empresas informativas de atuação regional”. A autora destaca que os portais regionais são como um modelo de assimilação da tecnologia conforme uma lógica de articulação local-global, que privilegia os conteúdos locais, reforçando a relação entre a comunidade e o conteúdo. Buscando dar vazão esses conteúdos locais é que um grupo de amigos comunicadores, formado por Andrielly Lima, Bárbara Carvalho, Johann Barbosa, Luiz Valério, Ramon Barboza, Rodrigo Baraúna e Saulo Oliveira, sentiu a necessidade de produzir algo novo no jornalismo de Roraima. Juntos, decidiram montar um website com um diferencial: cada um dos sete integrantes, além ser responsável pela atualização de uma editoria, deveria assinar uma coluna no Portal. No entanto, somente três jornalistas que fizeram parte da criação do site, continuam o seu trabalho no Portal Macuxi: Andrielly Lima atualizava as editorias de Mundo e de Geral. Hoje ela é a responsável por toda a alimentação e atualização do site, além de manter em dia sua coluna Circulando; Bárbara Carvalho assina a coluna Viva Bem, continua acompanhando as estatísticas do Portal e respondendo os e-mails dos leitores. No início ela também era a responsável pelas editorias de Cultura e de Tecnologia; e Rodrigo Baraúna, que é o responsável pelo blog Sobe o Som, e atualiza as contas do site nas redes sociais. No momento a equipe conta com mais integrantes: a produtora cultural, poeta e atriz Carolina Uchôa, que assina o blog EspalhaFato; a jornalista Jéssica Ferri, que mantém o blog Literando; o pesquisador e professor de Relações Internacionais Eloi Martins Senhoras, que é responsável por uma equipe que atualiza a coluna Análise Internacional; Fábbio Halliwell, bacharel em Administração de Empresas, que empresta seu nome a nova coluna social do site; Lanne Prata, publicitária e fotógrafa, que também possui uma coluna com o seu próprio nome, sobre a arte de fotografar; o economista Rubens Leal, que assina a coluna Mercado S.A.; a publicitária e designer Lidiane Santos, que é responsável pela coluna ReDecore; e, a advogada Juliana Quintella autora da coluna Seu Direito.

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Segundo Carvalho (2013)37, no dia em que Roraima completou 24 anos, 05 de outubro de 2012, o grupo “presenteou” o Estado com um novo site de notícias, o Portal Macuxi. Seu nome é em homenagem a uma das etnias indígenas existentes no Estado e as cores predominantes (amarelo, verde e vermelho) representam as cores da bandeira de Roraima. O Portal Macuxi é um site que não é focado apenas em notícias do Estado. Na Página Inicial o internauta pode encontrar as principais notícias do dia, atualizadas em tempo real, ou seja, no momento em que acontecem. O leitor não tem acesso apenas às notícias locais, mas também, nacionais e internacionais, sobre os mais diversos assuntos, como esportes, economia, política, cultura, polícia, entretenimento, além de entrevistas e colunas dos jornalistas locais. Carvalho (2013) explica que “há um dinamismo muito grande, pois o jornal online, como o próprio nome sugere, é uma coisa mais dinâmica e mais curta, é para o leitor acessar num espaço de tempo curto, além do mais, pode ser acessado até pelo celular”. De acordo com Carvalho (2013), o Portal conta com mecanismos simples de navegação para que o internauta possa visualizar facilmente todas as seções do site. O público-alvo do Macuxi é bastante diversificado, atendendo a todos os sexos e idades. A interatividade é a palavra chave do Portal. O internauta pode entrar em contato com a equipe responsável pelo site, deixar sugestões, críticas ou elogios, participar de enquetes e ainda compartilhar assuntos do seu interesse a partir do perfil no Twittere da página do Facebook. Os leitores também podem acessar as notícias através das redes sociais. Como o site conta com segmentos variados, cada profissional fica responsável pela atualização de seu blog ou coluna, não havendo restrição para os assuntos abordados. De acordo com Lima (2013)38, para o Portal se tornar mais dinamizado, “ficou combinado apenas que cada coluna fosse atualizada em dias da semana diferentes, para que nossos leitores tivessem uma novidade no site a cada dia”. As pessoas que fazem parte dessa equipe não são remuneradas, o lucro depende da venda do espaço do blog ou coluna. O valor de cada propaganda varia, pois é definido de acordo com o tamanho do anúncio e do tempo de permanência na página.

37 Jornalista Bárbara Carvalho em entrevista cedida à autora no dia 10 nov 2013. 38 Jornalista Andrielly Lima em entrevista cedida à autora no dia 10 nov 2013. 90

Na primeira página do Portal, os usuários podem ter acesso visual à barra horizontal do menu principal, logo abaixo da logomarca da empresa e de um anúncio. Os links nos levam à PÁGINA INICIAL, EDITORIAIS39,BLOGS E COLUNAS40, ENTRETENIMENTO41,CONTATO42e ANUNCIE43. No final da barra de menus, há um espaço em que leitor poderá fazer uma pesquisa de assuntos dentro do próprio site, um mecanismo muito utilizado nos grandes jornais e bem procurado entre os internautas quando estão à procura de notícias remotas. A página inicial do Portal Macuxi traz um slideshow, com as três manchetes do dia revezando entre si. A foto principal de cada manchete traz consigo seu título destacado em uma caixa de texto com fundo de cor vermelha e letras brancas. Ao lado do slide show das manchetes, há o link /TEMPO. Logo abaixo da previsão do tempo, há links para o Portal Macuxi nas redes sociais mais populares da internet (Twitter e Facebook), opções para receber as atualizações de notícias por RSS e via e-mail, e por fim um atalho para adicionar a página como “Favoritos” do seu navegador.Baraúna (2013)44 explica que o grande diferencial do Portal Macuxi é conseguir alcançar os leitores através de um ambiente virtual em que eles estão acostumados a acessar diariamente, que é a sua própria conta nas redes sociais. Abaixo das manchetes, encontram-se as notícias que foram destaques de algumas editorias. E no lado direito, podemos observar um box intitulado /PLANTÃO, onde são publicadas as últimas notícias. São notas recentes dos acontecimentos, ou seja, “furos” de reportagem que independem da editoria e são publicados e organizados na ordem cronológica. A página inicial do Portal Macuxi também conta com o box/FRASES, que traz alguma frase de impacto que circula pela internet, alguma citação de autores ou de famosos que normalmente repercutem com bastante ênfase na sociedade e /ENQUETE, onde o

39O trabalho em redações jornalísticas é geralmente dividido em editorias temáticas, agrupando os assuntos mais comuns no noticiário. No Portal Macuxi as /EDITORIAS estão divididas em: /CULTURA, /ESPORTES, /GERAL, /MUNDO, /POLÍCIA, /POLÍTICA e /TECNOLOGIA. 40São divididos entre três blogs e sete colunas. Sendo /ESPALHAFATO, /LITERANDO e /SOBE O SOM blogs; e /ANÁLISE INTERNACIONAL, /CIRCULANDO, /FÁBBIO HALLIWELL, /LANNE PRATA, /MERCADO S.A., /REDECORE, /SEU DIREITO e /VIVA BEM colunas. 41Engloba /AGENDA, /CURIOSIDADES, /CINEMA, /HORÓSCOPO e /RECEITAS. 42Onde o internauta pode entrar em contato com a equipe do site Portal Macuxi. 43Onde internauta tem a possibilidade de entrar em contato com a equipe comercial do site, caso se interesse divulgar de sua empresa ou produto. 44 Jornalista Rodrigo Baraúna em entrevista cedida à autora no dia 10 nov de 2013. 91

internauta pode interagir com o site opinando sobre determinado assunto que está em discussão no momento. Há ainda espaço para os destaques de algumas das editorias, que podem variar de acordo com a importância das notícias do dia e as chamadas das matérias dos blogs. A /GERAL possui um lugar específico e fixo na página. Assim como o resumo das principais /NOVELAS, as dicas de /RECEITAS, a /AGENDA CULTURAL e o que está passando no /CINEMA naquela semana. Um detalhe que podemos observar na Página Inicial do Portal Macuxi, é que o leitor pode cadastrar, de forma simples e rápida, um e-mail para receber as notícias no momento em que o site é alimentado. É um recurso bastante procurado por pessoas que trabalham em empresas que não permitem o acesso em alguns sites e é de suma importância para o posicionamento do webjornal no mercado, pois esse cadastro traz a identidade do leitor. Essa facilidade também é usada dentro das estratégias de marketing do site. Apesar de estar ainda começando no webjornalismo roraimense, o site possui números expressivos. De acordo com Carvalho (2013) são em média 1.100 acessos diários e o Portal Macuxi é visto em 83 países entre Brasil, Estados Unidos, Venezuela, Portugal, Rússia, Alemanha, França e Guiana. Cada visitante navega, em média, por 9,3 páginas e gasta 13,04 minutos no site.

4. Análise crítica e operacional No Portal Macuxi uma das finalidades do projeto gráfico da página inicial de um jornal é atrair e manter a atenção do internauta, tornando a experiência de leitura das notícias fácil e agradável. A primeira página do jornal funciona como um convite à leitura e o local onde está posicionado o slideshow é considerado o espaço de maior importância do site. Mas com tantos acontecimentos como escolher as manchetes? Conforme Lima (2013) as manchetes são escolhidas a partir do critério é a proximidade: “o Macuxi é um portal do Estado feito para o Estado de Roraima. Nosso nome já diz quem somos e de onde somos, então, queremos deixar o leitor bem à vontade e familiarizado”. Ao analisarmos a Página Inicial do Macuxi, pudemos observar que há uma

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repetição das manchetes, mas não foi encontrada nenhuma periodicidade, rotina ou sistema que explicasse tal fato. Concluindo-se que isto aconteceu de forma equivocada e aleatória.No dia posterior às datas de publicação das manchetes realizamos uma visita ao site e as manchetes do dia anterior foram todas encontradas na editoria de GERAL. Na semana de análise, 3 a 9 de novembro de 2013 (domingo a sábado), todas as manchetes publicadas no slideshow foram inseridas na editoria GERAL, mesmo havendo editorias específicas para a notícia, previstas na estrutura do portal. Todas, porém, utilizam o critério de proximidade como credencial que as tornou manchete na Página Inicial do site. Em relação à Multimidialidade, o Portal Macuxi explora apenas algumas ferramentas que a web oferece. Na semana de análise não foram encontrados vídeos, animações ou simulações nas manchetes e na página inicial (apenas texto e fotos). Quanto à Interatividade, o Portal em estudo abre as portas através do link /CONTATO, que nada mais é que uma troca de e-mails entre leitores e jornalistas, a /ENQUETE e a barra de comentários no fim de cada matéria ou coluna. Não foi encontrado nenhum fator que configure a Hipertextualidade no Portal Macuxi. Como as escolhas do leitor são o primeiro passo para o acesso a todos os conteúdos disponibilizados no webjornal através dos hiperlinks nos hipertextos, foi verificado que o Portal Macuxi também não possui a característica da Personalização. Sobre a Memória, foi verificado que usuário pode acessar qualquer conteúdo a qualquer hora a partir de uma pesquisa feita na página inicial através do campo /BUSCA. Isso permite que o internauta leia uma notícia factual ou remota utilizando apenas palavras chaves dos assuntos de seu interesse. Por fim, a característica que é fator determinante no conceito de webjornalismo: a Atualização Contínua. Na página inicial do Portal Macuxi, podemos verificar essa característica no box/PLANTÃO, que é atualizado conforme as notícias chegam para a equipe jornalística.

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Considerações finais O Portal Macuxi é um site dinâmico, convidativo e abrangente, que traz uma abordagem diferenciada dos sites de notícias, pois dá prioridade aos assuntos locais. Porém, como podemos verificar com a pesquisa que ele possui apenas algumas características que o encaixam dentro do Webjornalismo de Terceira Geração (onde normalmente estão inseridos os Portais de Notícias). O Portal Macuxi cumpre o seu papel de portal local, através do critério de proximidade, mas possui menos de 50% das características inerentes a terceira geração do jornalismo para web. Em relação à: - Multimidialidade: o Portal Macuxi não explora todas as ferramentas que a web pode oferecer ao publicar suas matérias. Então sugerimos que a equipe do site inclua em suas matérias vídeos sobre o assunto abordado, mapas, gráficos e gifs para o melhor aproveitamento das ferramentas oferecidas pela web e proporcionar algo novo para o leitor. - Interatividade: o Portal utiliza diversos recursos como o contato do leitor através de e-mails, enquetes e comentários. Sobre esse item, ressaltamos apenas a importância de manter esse contato com o internauta ativo e facilitado, pois observamos que durante a semana de análise da página inicial, a enquete ficou estagnada e sem possibilidade de votação. - Hipertextualidade: essa característica ainda não foi empregada no site, portanto aconselhamos o uso de hiperlinks para que leitor possa ter a oportunidade de navegar entre os textos do site construindo seu próprio roteiro de matérias. - Personalização: como não foi encontrada essa característica no Portal Macuxi, sugerimos que seja adicionado ao cadastro de e-mail, um item novo onde o leitor possa escolher quais as atualizações das editorias, colunas e blogs que ele deseja receber via e-mail. Pode-se criar também um campo de cadastro para fazer o login na página tornando-a mais pessoal, pois o internauta poderá ter a opção de personalizar sua página inicial com as notícias das editorias que mais lhe interessa. - Memória: o site de notícias estudado possui seu próprio sistema de busca na página, muito importante e bastante procurado por leitores que precisam rever/reler determinada notícia ou assunto.

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- Atualização Contínua: o Portal Macuxi preenche esse quesito através do seu /PLANTÃO atualizado constantemente na página inicial. Foi observado, no entanto, que as atualizações são muito próximas e que depois há um lapso temporal (à noite o Portal para completamente). Ele só volta a ser atualizado na manhã do dia seguinte. Nossa proposta é que se procure um mecanismo que lance as notícias de forma automática, evitando assim um prejuízo para o leitor. Em relação às peculiaridades descritas no artigo “Uma estratégia para portais verticais locais”, de Outing (1999), o Portal Macuxi não cumpre todas as características exigidas para ser classificado como um Portal de Notícias local. Perante essa realidade, pudemos constatar que apenas 36% das características peculiares aos portais estão presentes no Macuxi, o que coloca em evidência um grande questionamento: afinal, o Portal Macuxi é ou não um Portal de Notícias? O Portal Macuxi ainda não possui uma sede física, portanto não possui equipes de reportagem e/ou redação. De acordo com Lima (2013) todo o material publicado nas editorias é originário de releases ou reproduzido dos Mega Portais, ficando apenas os blogs e as colunas personalizadas e assinadas pelos seus respectivos responsáveis como os lugares de produção original de conteúdo. Como apenas um jornalista é responsável pela atualização do site, o ponto negativo dessa situação é a falta de periodicidade de disponibilização de informações no site. Assim que foi lançado o Macuxi era atualizado a cada três horas, mas, atualmente, apenas um ano depois, ele passou a ser atualizado somente três vezes ao dia. Isso refletiu diretamente no seu público que diminuiu drasticamente. Essa perda foi constada pela própria equipe do Portal ao acompanhar a audiência semanalmente. A falta de comprometimento com os leitores levou o Portal Macuxi do ranking de mais acessado ao menos acessado em poucos dias. Isso apenas reforça o quão importante são as características de Interatividade e Atualização Contínua no webjornalismo e o quanto a web é imediatista e volátil. Esses deslizes passam ao leitor uma ideia de abandono e desorganização quanto à atualização do site, isso pode contribuir para o desinteresse e a evasão, pois o leitor que acessa uma informação desatualizada, raramente acessa outro conteúdo e até mesmo pode não voltar a fazer um novo acesso ao site.

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Outra sugestão que trazemos aqui é a inclusão de indicadores de data e horário de atualização, um calendário diário fixado horizontalmente abaixo do menu principal, na Página Inicial do Portal Macuxi. Isso poderia facilitar a navegação do leitor permitindo que ele fique mais tempo conectado ao portal. A pesquisa aponta, desse modo, que o Portal Macuxi possui 50% das características necessárias para estar incluso na Terceira Geração do Webjornalismo– conforme Pavlik (2001), Mielniczuk (2003); Bardoel e Deuze (2001) e Palacios (2002) – e apenas 36% das características peculiares dos Portais de Notícia – segundo os postulados de Outing (1999). Levando em conta a estrutura, o modo de operação, a produção e a frequência de atualização, o Macuxi ainda não cumpre totalmente seu papel de Portal. Cumpre melhor o papel de reprodutor de releases já que não possui equipes que se dediquem a produção específica de conteúdo jornalístico próprio. Acompanhando as manchetes da semana escolhida para análise, pudemos perceber que todas as notícias são assinadas como Da Redação, o que indica claramente que o release recebido por e-mail doi reproduzido na íntegra no site. A partir das análises estrutural-descritiva e operacional-crítica pudemos verificar que a maior audiência do Portal Macuxi concentra-se nos BLOGS e nas COLUNAS – seu único conteúdo original, moderno e inédito. Sugerimos então aos mantenedores do Portal que invistam na produção de conteúdo jornalístico próprio; e que, potencializem a utilização de ferramentas que já trouxeram resultado positivo para site. No entanto é inegável que o Portal Macuxi traz colunas informativas com uma visão local e regionalizada. Sua abordagem cotidiana se alinha a vivida no eixo Norte- Roraima, revelando o estilo de vida e a diversidade cultural do Brasil do “lado de cima da linha do Equador”. Verificamos também que o Portal Macuxi está em fase de testes para utilizar novos recursos e poder aproveitar melhor e de maneira mais integral todas as ferramentas que a web proporciona, como por exemplo, jogos online, músicas e um layout novo, mais dinâmico e convidativo. Conforme levantamento, a intenção dos seus produtores é lançar a nova cara do site no seu aniversário de dois anos, em 05 de outubro de 2014. Nesse sentido frisamos que as proposições apresentadas aqui não se pretendem definitivas ou absolutas e visam trazer melhorias para o site que é único no Estado.

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Objetivam, sobretudo, contribuir para a ampliação do debate em torno dos sites de notícias, principalmente, os portais de notícias locais.

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MACHADO, Elias. O banco de dados como espaço de composição de narrativas multimídia. In: Anais do II SBPJor. Salvador, 2004. Disponível em . Acesso em: 02 nov 2013.

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MIELNICZUK, Luciana. Jornalismo na Web: uma contribuição para o estudo do formato da notícia na escrita hipertextual. 2003. 246p. Tese. (Doutorado em Comunicação e Culturas Contemporânea) – Universidade Federal da , Salvador, 2003. Disponível em: . Acesso em: 03 nov 2013.

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Estado Democrático de Direito e a Mídia sob a perspectiva da pluralidade das fontes45

André Lucas Demétrio de ALMEIDA46

RESUMO: O trabalho a seguir desenvolve uma análise de como os meios de comunicação atuam enquanto instância (criadora e criatura) da realidade social, dos interesses políticos e econômicos. Busca-se abordar as intersecções entre mídia e democracia no Brasil sob o ponto de vista da multiplicidade de sujeitos comunicadores como condição para um satisfatório desenvolvimento da democracia representativa e, sobretudo, da democracia direta, participativa. Desenvolvendo os avanços da literatura que se ocupa da relação da mídia com a democracia e propondo caminhos de atuação para a alteração do contexto atual, o texto analisa as influências da mídia no cotidiano dos cidadãos, as consequências de sua atuação para a democracia representativa. As necessidades de alteração do paradigma de concessão pública reforçam-se numa sociedade plural como a brasileira, frente a isso se propõe perspectivas de mudanças políticas, legislativas e educacionais para que seja legitimada a pluralidade de fontes de comunicação. Assim, um Estado Democrático de Direito pode se desenvolver e cumprir com suas promessas construtivas de novas realidades sociais.

Palavras-chave: Mídia alternativa; Comunicação; Estado Democrático de Direito.

Há uma ligação forte entre a qualidade de um regime democrático e sistemas formativos e informativos de opinião. Quando se exige uma mídia comprometida com valores democráticos, voltados a interesses coletivos e de transformação social, isso tem a ver com a necessidade de eleições bem justificadas quanto à qualidade das informações e, sobretudo, com um incentivo à democracia direta e participativa, tão necessária e urgente no contexto brasileiro. Enfim, providências devem ser tomadas no sentido de fazer da mídia uma aliada do Estado Democrático de Direito. Para isso, a lógica dos meios de comunicação deve ser readequada para que atenda ao interesse público.

45 Trabalho destinado ao Grupo de Trabalho Mídia alternativa do 3º Encontro Regional Norte dos Pesquisadores de História da Mídia. 46 Graduando em DireitoUniversidade Federal do Pará

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1. A tensão latente entre mídia e democracia A comunicação social importa na difusão de informações perante a comunidade relativas às possibilidades participativas de um Estado democrático, de outra forma a realidade passada por meios de comunicação de massa pode cumprir papel ideologicamente comprometido com valores individualistas, de mercado e de dominação política e cultural. Tomando maior destaque, a mercantilização dos espaços midiáticos, com a prevalência da propaganda, da exposição de produtos e serviços para a venda constitui uma grave ameaça e efetivamente prejudica a democracia e a soberania dos Estados visto que as ações das empresas de comunicação ficam dependentes dos interesses mercadológicos - internos e externos - interesse esse quase totalizante que minimiza sua potencialidade para promover informação e atua aliada à cidadania local (RÍOS, 2013, p. 333):

Da mesma forma que os mercados são passíveis de ser plenamente dominados por um ou mais atores, os meios de comunicação parecem mostrar uma predisposição peculiar para o monopólio ou oligopólio. Basta observar como estão se estruturando e crescendo as transnacionais da mídia no mundo e particularmente na América Latina. Essa realidade é tal que, para continuarem reivindicando legitimamente o poder associado com a liberdade de expressão e o domínio de seus canais, essas transnacionais devem contribuir para que os cidadãos adquiram um rol de “informação” política e cultural com base no qual possam se envolver, individual ou coletivamente, em um processo que lhes permita uma informação verídica e clara em relação ao mundo. Nesse sentido, os meios de comunicação consistem em um recurso público. Se o imperativo comercial orienta os meios de comunicação para o controle monopolista, ou quase monopolista, e traz como consequência um rol mais restrito de informações e opiniões disponíveis, no qual o conhecimento é cada vez menos um bem comum e, pelo contrário, assume uma posição privilegiada, poder-se-ia concluir que esses meios são contrários às expectativas democráticas que têm como premissa a liberdade de expressão (RÍOS, 2012, p. 326).

A questão fundamental está em se equilibrar as forças entre interesse privado e interesse público, entre globalização das informações influenciadas pelo mercado e a soberania e culturas nacionais, mas também formas de se repreender o uso dos meios de comunicação exclusiva ou demasiadamente em favor de interesses econômicos e mercadológicos sem, contudo, ferir o direito à propriedade privada. Para tanto, isso só será possível se estiver como fiel da balança a função social dos meios de comunicação, a qual

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deve direcionar-se por princípios democráticos e de cidadania, devendo essas duas ser prioritárias em relação ao capital (RÍOS, 2012, p. 342). "A igualdade de acesso, como um aspecto da igualdade cidadã, deve ser considerada um objetivo quando se examina e se propõe qualquer mecanismo regulatório" (RÍOS, 2012, p.344). Daí que o interesse que se põe numa sociedade democrática em se regular a atividade dos meios de comunicação não significa querer acabar com a expressão dos empresários na mídia ou, o que seria mais grave, implantar a censura e suprimir a liberdade de expressão midiática e de imprensa. Pelo contrário, o que se pretende é atender a necessidades democráticas fundamentais para a comunidade, dar poder aos cidadãos para que estejam aptos a escolher da melhor maneira possível não apenas seus representantes políticos como também as próprias políticas públicas e sociais que interferem diretamente em suas vidas. Para isso é fundamental que se ampliem as formas de difusão das informações através das mais variadas fontes de comunicação social. O acesso à mídia, ou seja, aos meios de informação e comunicação, é fundamental para uma democracia, na medida em que pode favorecer o debate político e facilitar mobilizações sociais em prol de mudanças, bem como estabelecer pautas de debates públicos sobre determinados problemas sociais da realidade brasileira. Manter a mídia nas mãos de poucos resulta em menos grau de liberdade dos cidadãos que se mantêm alheios às situações que se põem na realidade, assim, mantendo-se a situação inalterada (GUARESCHI, 2007, p. 17). A mídia, considerada como quarto poder necessita de uma legitimação democrática que resta incompleta quando da positivação de leis e normas constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro.As concessões públicas da mídia no Brasil são legalmente protegidas sob a pretensão de prestarem serviços de interesse público, mas, que, de fato, foram colonizadas por interesses elitistas e se mantêm de acordo com interesses mercadológicos alheios, portanto, à efetiva potencialidade política que a mídia pode ter. Para tal, Guareschi (2007) propõe mecanismos democráticos de permanente fiscalização e monitoramento da mídia pela comunidade, pelos diversos setores da sociedade civil além da expansão das possibilidades de informação e comunicação por meios comunitários de rádio e televisão (p. 19). Há que se perguntar o quanto de censura existe numa democracia, na qual subsiste,

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garantida constitucionalmente, uma apropriação da mídia por pequenos grupos de interesses políticos e econômicos. E em que grau essa apropriação é influenciada por valores de mercado e de dominação cultural no contexto da globalização (GUARESCHI, 2007, p. 20-21). Os canais de televisão se mantêm como propriedades particulares, agindo em prol de interesses próprios, quase que indiferentes à sua função social. Com isso, propagam valores e crenças ao mesmo tempo em que manuseiam a informação e as transmitem sob a forma de verdades fáticas. As informações invadem as mentes crianças, jovens e adultos eivadas de valores nem sempre benéficos à população (GUARESCHI, 2007, p. 23). A partir de então, um dos problemas que surgem do predomínio dos interesses econômicos sobre as necessidades públicas é uma quase incontrolável manipulação dos fatos com prejuízos sérios ao valor da verdade como fundamental para uma democracia. Deve-se ter em conta que a comunicação é um instrumento de interesse público que tem a função de manter os cidadãos informados e permanentemente inclinados ao debate público dos problemas sociais que se põem (GUARESCHI, 2007, p. 24). Consoante Neumann (2013) a liberdade política possui três faces, pressupõe, pois, as liberdades: jurídica, cognitiva e volitiva. A primeira relaciona-se ao Estado de Direito no qual cada cidadão possui determinadas liberdades e deveres vinculados a situações jurídicas, podendo conduzir-se dos modos não vedados juridicamente. A terceira é a esfera de ação do indivíduo enquanto efetivamente agindo, na esfera política se expressa, por exemplo, na discussão e deliberação participativas na arena pública. Precisamente, é o segundo domínio da liberdade política que é fortemente influenciado pela mídia, a liberdade cognitiva corresponde às faculdades de raciocínio, da elaboração de argumentos lógicos, do desenvolvimento dos planos mentais a serem desenvolvidos externamente durante o exercício da liberdade volitiva. Percebe-se pois, que a variedade nos pontos de vista expostos pela mídia está no cerne da elaboração dos enunciados que justificam e dão base sólida tanto a faculdade política do voto quanto da participação direta nas discussões públicas. A cognição é permanentemente informada pelas informações comunicadas no meio, no contexto social em que se enquadra, não há muitas dúvidas quanto a isso.

2. A crise representativa e a necessidade de descentralização

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A crise das democracias representativas é apontada por grande número de autores que se dedicam ao estudo do assunto, os cidadãos não se sentem representados pelos eleitos. Fica evidente a crise da representação política com os números que expressam os níveis de abstenção nas eleições ao redor do mundo a partir da segunda metade do século passado. O desenvolvimento tecnológico promoveu maior contato dos eleitores com seus representantes por meio da mídia que constrói poderosas propagandas de marketing em favor da promoção carismática dos políticos, tanto que alguns autores chegam a caracterizar a democracia atual pela delegação de poder aos políticos com vertente carismática construída midiaticamente (MIGUEL, 2003, p. 123-126). A falta de confiança nas instituições representativas nas democracias contemporâneas não advém da alienação ou da herança de valores autoritários. É, na verdade, a constatação de que as instituições existentes não permitem um grau satisfatório de representação e a capacidade de decisão dos cidadãos é muito reduzida ou nula, fazendo-se com isso que a democracia não se realize enquanto valor, justamente por causa da insuficiência da efetivação da democracia como conjunto de instrumentos procedimentais decisórios (MIGUEL, 2003, p.126). A poliarquia consiste numa pluralidade de núcleos decisórios de minorias. Tais decisões vinculam os governos quando da tomada de decisões políticas que influirão na vida delas (MIGUEL, p.127). Mais ou menos poliárquica, então, é a proposta de mídia que se constrói aqui, como proposta adequada a um Estado Democrático de Direito, com diferentes pólos de comunicação adequados aos variados contextos sociais, ou seja, a pluralidade das instâncias sociais não pode depender de poucas fontes midiáticas e as comunicações precisam ser plúri mas no sentido de se favorecer o debate político das comunidades de acordo com suas necessidades. Interesses no sentido de diminuir o grau de decisão do povo no Estado é que fizeram o regime democrático convergir para a representação, deixando, com isso, o poder decisório nas mãos de pequenas elites. Afasta-se, nesse sentido a ideia de que uma democracia representativa justifica-se pela quantidade populacional que a inviabilizaria. Muitas vezes, a representação perde-se de acordo com interesses políticos pessoais do representante em busca de maior estabilidade política para si mesmo. Além disso, o desenvolvimento dos partidos políticas vem agravar esse problema quando na

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representação devem-se conformar a vontade do representado e a ideologia do partido, estando a última, frequentemente, como prioritária em relação à primeira (MIGUEL, 2003, p. 130). Tomando-se a eleição como inegavelmente importante numa democracia representativa, deve-se considerar, também, a importância da informação na formação das consciências dos eleitores. A escolha esclarecida, ao máximo, pelas instâncias comunicativas resulta no desenvolvimento de uma agenda de debates públicos mais ou menos adequada à realidade da comunidade política. É preciso considerar que a formação da agenda pública não tem origem exclusiva na mão dos parlamentares eleitos, depende enormemente das pressões exercidas por grupos externos ao parlamento, bem como pelos conflitos entre grupos de interesse para a priorização de determinadas pautas de discussão e a secundarização (e até eliminação) de outras (MIGUEL, 2003, p. 131). Eis um dos problemas fundamentais: quando a mídia revela ser um grupo de interesses, seja para aumentar seu poder, seja para mantê-lo, seja para silenciar as reivindicações de outros grupos. E este controle midiático dos assuntos é exercido com um notável poder simbólico, a mídia cria a realidade, diz o que está ou não ocorrendo pelo simples fato de expor, ou não, nos meios de comunicação determinadas situações (GUARESCHI, 2006). Por isso, os que assumem maior possibilidade de interferência na criação e modificação das agendas de debate público são os meios de comunicação de massa, assim:

Não é difícil perceber que a pauta de questões relevantes, postas para a deliberação pública, deve ser em grande parte condicionada pela visibilidade de cada questão nos meios de comunicação. Dito de outra maneira, a mídia possui a capacidade de formular as preocupações públicas. Os grupos de interesses e mesmo os representantes eleitos, na medida em que desejam introduzir determinadas questões na agenda pública, têm de sensibilizar os meios de comunicação. (...) É aqui que podemos incluir os meios de comunicação de massa. Nas sociedades contemporâneas, eles detêm o quase-monopólio da difusão de informações, de discursos e de representações simbólicas do mundo social; são a fonte, direta ou indireta, da esmagadora maioria das informações de que os cidadãos dispõem para compreenderem o mundo social em que vivem. Na medida em que o debate público não se limita a fóruns formais como o parlamento, mas deve alcançar o conjunto da sociedade, é evidente que a mídia passa a desempenhar uma função- chave (MIGUEL, 2003, p. 132).

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Miguel (2003) afirma, com base na teoria habermasiana, que mais do que acessório, o papel da mídia em uma democracia representativa tem papel fundamental para a formação de opinião por meio das informações. São os meios de comunicação de massa que podem manejar os debates públicos. Constata-se a ineficiência das instâncias parlamentares, enquanto poderes instituídos, frente às possibilidades que se mostram dos poderes originários de discussão e direção das pautas e deliberações políticas através do discurso (p. 132). A mídia concentrada em poucos grupos não atende adequadamente aos princípios participativos do Estado Democrático de Direito brasileiro, pois representa um sério entrave para o conhecimento dos cidadãos da realidade social que a eles dizem respeito, primeiro porque não se prioriza o papel da mídia enquanto fonte de debates políticos e instancia de informação cidadã para a tomada de iniciativas de participação política, segundo porque a mídia trabalha no sentido de manter as pessoas desinformadas dos mecanismos de participação democrática, bem como dos debates que questionam o regime de concessões dos meios de comunicação para poucos grupos estando esses com interesses marcados e provados pela prevalência dos interesses econômicos sobre os sociais e democráticos. Vale ressaltar que no Estado Democrático de Direito, conforme Morais e Streck (2000): “A atuação do Estado passa a ter um conteúdo de transformação do status quo, a lei aparecendo como um instrumento de transformação por incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade” (p. 95). O conteúdo substantivo desse Estado é a sua capacidade de favorecer os indivíduos e grupos sociais a participarem democraticamente da transformação da realidade compartilhada coletivamente por todos os membros da comunidade política. Em contraste com os valores prevalecentes no Estado Liberal de Direito (liberdade e igualdade formal) e no Estado Social de Direito (igualdade material), típicos de seus contextos e que buscavam conformar a realidade buscando a aceitação dos cidadãos de sua condição como fora construída, o valor prevalecente no Democrático é a solidariedade dos cidadãos entre si, na busca de resolver democraticamente os problemas sociais que afetam, direta ou indiretamente, toda a coletividade, estando materialmente comprometido com um regime democrático de transformação das realidades danosas ao

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convívio social (MORAIS; STRECK, 2000, p.85-96). Ao se aceitar a realidade de um Estado Democrático de Direito percebe-se a sua incompatibilidade com o estado da mídia com se encontra atualmente. Inadequado não por ser monopolizado ou oligopolizado materialmente, visto que a concessão dos meios de comunicação distribui-se entre mais de um ponto entre os particulares e também o Estado possui meios para difusão de informações, mas por ser monopolizado (ou oligopolizado) ideologicamente visto que os meios de comunicação compartilham interesses e visões de mundo entre si, sendo esses, não raro, prejudiciais à sociedade e à democracia (RÍOS, 2012).

3. A situação atual da Mídia quanto à Política A política é contemporaneamente encarada pela mídia como administração e controle do Estado, estando tomada por informações sobre o cotidiano dos parlamentos, as viagens e eventos da qual participam os governadores e várias colunas de crítica das ações e alianças partidárias, dos investimentos e projetos de governo, das ações e negligências de secretarias municipais, estaduais e federais (MELO, 2008, p. 91-92). No âmbito dos conteúdos das seções políticas da mídia, a preocupação central é a de informar com relativa isenção os fatos políticos que se passavam, não mais é a de emitir opinião nem buscar convencer os leitores das possibilidades de ação política-participativa, como ocorria em épocas anteriores (MELO, 2008, p. 92). Contudo, esse papel de convencimento dos leitores e espectadores passou da mídia clássica (televisão e jornais) para os novos meios de comunicação, em que recebe destaque a internet e a telefonia móvel, como bem notado, exerce papel importante ainda que, muitas vezes, questionável, a manifestação das informações recheadas por opiniões políticas diversas representa pressão às forças políticas instituídas por meio dos debates por elas promovidos (SEABRA apud. MELO, 2008, p. 92). Aqui merece destaque o avanço promovido pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou a não obrigatoriedade do diploma de curso superior em jornalismo para o exercício regular da profissão, como trabalhado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos:

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La libertad de expresión es una piedra angular en la existencia misma de una sociedad democrática. Es indispensable para la formación de la opinión pública. Es también conditio sine qua non para que los partidos políticos, los sindicatos, las sociedades científicas y culturales, y en general, quienes deseen influir sobre la colectividad puedan desarrollarse plenamente. Es, en fin, condición para que la comunidad, a la hora de ejercer sus opciones, esté suficientemente informada. Por ende, es posible afirmar que una sociedad que no está bien informada no es plenamente libre (Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 511.961 de 2009).

O papel do Poder Judiciário em sociedades democráticas é o de garantir direitos fundamentais, resolvendo controvérsias e adequando os atos constituídos aos preceitos previstos constitucionalmente. No caso do diploma de jornalista, a exigência que pretendia manter certa qualidade e preparo técnico de jornalistas acabava por se demais rigorosa, a ponto de violar seriamente o direito fundamental à comunicação e à liberdade de expressão, o núcleo fundamentador do direito de manifestação seria reduzido à consequência da posse de um diploma que, de fato, não é necessário para um bom exercício profissional. A decisão tornou-se fundamental por possibilitar a livre expressão dos sujeitos independentemente de pré-requisitos, como um diploma. Mais importante ainda porque os já mal distribuídos recursos para comunicação social, manter-se-iam ainda mais no caso de jornalistas que não poderiam exercer a profissão em virtude de uma exigência inidônea frente aos fins que se pretendiam, mais uma vez mostrou-se a Suprema Corte como extremamente garantista e com uma concepção substantiva dos direitos fundamentais.

3.1 Influências sobre a vida pública Conforme Kang (2012), deve-se considerar que o amplo acesso às informações políticas relativas aos governantes e aos representantes não garante o desenvolvimento de uma democracia representativa. Pelo contrário, enfraquece-a, pois tende a afastar os cidadãos do palco de discussões políticas fazendo-os crer que basta estarem fixados em frente a uma tela de televisão que estarão fiscalizando e analisando o andamento do mandato político do representante no qual votou. “Os parlamentos estão ficando despovoados ao mesmo tempo em que os teatros” (p. 68), pontua precisamente o autor. É claro, essa política mediada, acompanhada ao longe, não é suficiente, pois o

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desenvolvimento de um regime democrático ocorre quando do necessário engajamento dos cidadãos na vida pública, discutindo problemas e formando cidadãos efetivamente atuantes sobre suas próprias vidas. Abrir mão dessa participação e render-se à mídia é arriscado por causa, inclusive, da possibilidade de manipulação das imagens de poder que são por ela transmitidos (KANG, 2012, p. 69).

4. PROPOSTAS DE AÇÃO 4.1 A importância da Constituição Enquanto documento político fundamental, a Constituição carrega consigo os valores de dada comunidade política, no sentido de dar força e hierarquia de caráter jurídico controlando e direcionando os atos tanto dos particulares quanto de cada uma das funções estatais. Informada por um núcleo de princípios fundamentais, todas as normas constitucionais guiam tanto a criação de leis quanto a adequação destas com a Lei Maior, assim, ainda quanto a suas funções:

Qualquer Constituição democrática é passível de ser analisada sob três perspectivas no que diz respeito à questão da comunicação e da informação cidadã. A primeira e mais óbvia é que ela pode ser vista como um mapa do poder, pois permite identificar as diferentes estruturas do Estado, e, nesse sentido, cumpre uma função descritiva. Mas há também uma segunda perspectiva: a parte normativa, já que, além de identificar os distintos poderes, a Constituição estabelece os limites ao exercício de cada um deles, especificando os assuntos que o Executivo e o Legislativo devem cumprir e indicando os procedimentos que devem ser seguidos para a sua própria revisão ou para a modificação das leis. Além do seu papel descritivo e normativo, a Constituição é, sob uma terceira perspectiva, geradora de valores, como os familiares, os comunitários e os democráticos, uma vez que, com base na tradição e na interpretação jurisprudencial, é preciso de um marco valorativo que em linhas gerais oriente um tipo de sociedade" (RÍOS, 2012, p.346).

Dispõe o §1º, da Constituição (1988): “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. Acontece que existem obstáculos simbólicos causados pela concentração dos meios que conseguem atingir, dominar e influenciar diretamente uma gama maior da sociedade, pelo próprio desenvolvimento tecnológico conseguem alcançar um maior raio de abrangência das

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comunicações. Resta, então, que, apesar de estar regulada constitucionalmente, a mídia como se conforma atualmente não possibilita o desenvolvimento de potencialidades democráticas, não se conformando, portanto, ao regime trazido pela Constituição de 1988.

4.2. Formação de sujeitos comunicadores Emerge, também, a importância das escolas no preparo de comunicadores sociais. Incentivar mecanismos de coleta, preparo e difusão de informações em meios como jornais e rádios escolares para discussão de variados assuntos, com plena participação e protagonismo dos estudantes. Preparar, dessa forma, as pessoas para a crítica da comunicação, relativizar a manchete de determinado jornal, comparando-o ao outro, questionar sobre a efetiva realidade em comparação com o que nos é passado pela televisão e os demais meios de comunicação do cotidiano (GUARESCHI, 2001). O papel das escolas, assim, constitui-se como instituição formativa de sujeitos ativos na comunicação na sociedade, o direito à comunicação não se exaure quando do recebimento da comunicação, mas, sobretudo quando podemos exercitá-la ativamente, expressando nossas ideias e formas de pensar. “Temos o direito a uma comunicação ativa e não passiva. Temos o direito de sermos sujeitos e não apenas objetos da comunicação” (GUARESCHI, 2001, p. 157). Com todas essas etapas é que se pode falar de direito à comunicação, de expor suas ideias, suas visões de mundo, de atuar como sujeito ativo de comunicação. O incentivo ao direito de comunicação, desde a formação escolar está na base de uma sociedade plural e democrática. Buscando-se em outras fontes, as fontes de comunicação alternativa, cultivadas e qualificadas desde cedo, possibilita-se uma maior gama de informações e visões dos problemas que existem, quebrando a visão dominante, voltada a interesses obscuros (GUARESCHI, 2001, 157-160).

4.3 Meios legislativos de desconcentração Ao poder legislativo cabe nova regulamentação no sentido de se desconcentrar o regime de concessões públicas (MIGUEL, 2003, p. 134). É preciso, no entanto, não ser ingênuo para acreditar que os legisladores procederão dessa forma, considere-se que os lobbies da mídia estão bem representados nas instâncias político-representativas, além do

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que não se pode desconsiderar que a desconcentração pode não interessar politicamente (fala-se aqui das imagens políticas como são passadas pela mídia no atual contexto) a determinados partidos políticos e políticos profissionais. Com essas ressalvas, faz-se necessária a ação proativa de instituições da sociedade civil comprometidas com o regime democrático e com o direito humanos à comunicação, em prol da propositura de iniciativa popular de lei conforme o inciso III do artigo 14 da Constituição (1988) e uma consequente pressão popular para aprovação de nova regulamentação que não apenas desconcentre a mídia, como também viabilize juridicamente os incentivos para a formação de núcleos comunitários de comunicação, adequados a cada particularidade social, complementando-se esse instrumento com os conselhos de participação popular regional, vinculando-se as deliberações dos cidadãos diretamente envolvidos às decisões tomadas e ações promovidas pelo Estado.

Considerações finais Reunindo seu entendimento sobre a Ética Aristotélica, ensinamentos bíblicos, mitologia nórdica e sua sincera vontade contar uma boa história, J.R. R. Tolkien criou um clássico para todos aqueles que procuram se aventurar em uma terra que fascina pelos seus personagens, prende o leitor pelas descrições de belas paisagens e emociona pelo prevalecimento do Bem sobre o Mal. “O Senhor dos Anéis” é uma obra que ficará para a posteridade como o grande marco da literatura que juntou recursos literários extraordinários como profundos ensinamentos morais que não se limitam somente para aqueles que acreditam que de fato há uma recompensa no fim de tudo. Mas possui grande valor também para todos que procuram enfrentar da melhor maneira possível essa jornada chamada vida.

Referências BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: .

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 511.961 de 2009. Disponível em: Disponível em Acesso em: 14 mar. 2014.

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GUARESCHI, Pedrinho Arcides. Mídia e cidadania. Conexão - Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 27-40, jan./jun. 2006.

______, Pedrinho Arcides. Mídia e democracia: o quarto versus o quinto poder. Revista Debates, Porto Alegre, v.1, n.1, p. 6-25, jul.-dez. 2007.

______, Pedrinho Arcides.Sociologia crítica: alternativas de mudança. 50 ed. Porto Alegre: Mundo Jovem, 2001, p. 136-166.

KANG, Jaeho. A mídia e a crise da democracia: repensando a política estética. Novos estudos. CEBRAP [online]. 2012, n.93, pp. 61-79. Acesso em 02 de março de 2014 disponível em .

MELO, José Marques de. Jornalismo Político: Democracia, Cidadania, Anomia. Trad. Flávio Marques Prol. Revista FAMECOS, Porto Alegre, nº 35, abril de 2008, quadrimestral.

MIGUEL, Luis Felipe. Representação política em 3-D: elementos para uma teoria ampliada da representação política. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2003, vol.18, n.51, pp. 123-140. Acesso em 02 março 2014. Disponível em .

MORAIS, José Luiz Bolzan de; STRECK, Lenio Luiz.Ciência política e teoria geral do estado. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 83-92.

NEUMANN, Franz. O conceito de liberdade política. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, n. 22, pp. 107-154, 2013.

RÍOS, Aníbal Sierralta. A revolução tecnológica dos meios de comunicação e os desafios do direito e da democracia. Meritum. Belo Horizonte, v. 7, n. 1, p. 09-14, jan./jun. 2012.

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Anúncios e propaganda no Jornal “Estrella do Amazonas” (1854-1859)47

48 Fábio Rodrigo Severiano GUELBER

RESUMO: O referido artigo busca investigar através dos anúncios presentes no jornal Estrella do Amazonas, representações da sociedade amazonense no período inicial da criação de sua província e o inicio da imprensa amazonense no período de 1854 a 1859. A relevância de analisar o jornal “Estrella do Amazonas” está no fato de ser o primeiro jornal da província de grande circulação, sendo esta também recém-criada, em 1850. Compreendendo o desenvolvimento da imprensa amazonense com o desenvolvimento da cidade de Manaus. Analisar a importância de utilizar as fontes hemerograficas, sobretudo à parte relacionada aos anúncios, desvendar os hábitos dos cidadãos, no seu cotidiano, explorar as propagandas como fontes para compreender os objetos de desejos, as necessidades e trocas entre a população local.

PALAVRAS-CHAVE: Propaganda; Imprensa; Império; Amazonas.

A cidade e o jornal A criação do jornal Estrella do Amazonas está atrelada ao surgimento da Província do Amazonas. O jornal surgiu com o nome de “Cinco de Setembro”, pois, visava exclusivamente à comemoração da elevação da categoria da Província do Amazonas, no qual a lei 592, de 5 de setembro de 1850 separava, a antiga comarca do Alto Amazonas da Província do Grão-Pará. Em 1854, houve a mudança de nome do jornal de cinco de setembro para o Estrella do Amazonas. A recém-criada Província segundo Arthur Reis continha aproximadamente 29.798 indivíduos, e um “insignificante o contingente africano”, o que não condizia com a grande frequência dos anúncios de escravos fugidos, que serão analisados no capitulo seguinte. A província, até a proclamação da República, teve a gerencia de trinta presidentes e dezesseis vice-presidentes, que estiveram em exercício vinte e oito vezes, todos descritos pelo autor:

Inaugurada a Província, os homens que vieram tomar-lhe a direção receberam um encargo pesado, porque era preciso criar tudo, num meio

47 Trabalho apresentado no Grupo Temático Publicidade e propaganda e Relações Públicas, que integra o 3º Encontro Regional Norte de História da Mídia, realizado na Universidade Federal de Roraima, nos dias 10 e 11 de abril de 2014. 48 Mestrando no Programa de Pós Graduação em História pela Universidade Federal do Amazonas (PPGH- UFAM). E-mail: [email protected] 113

onde se obtinham com dificuldade as coisas mais comezinhas noutras partes (REIS, p. 196).

Apesar de o Amazonas ter sido elevado à categoria de província em setembro de 1850, a instalação de fato só ocorreu em 1 de janeiro de 1852, quando chegou a cidade seu primeiro presidente, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Com ele a imprensa se fez importante e necessária na região, convidou Manoel da Silva Ramos, tipógrafo, natural do Pará, para se estabelecer em Manaus, responsável pelo jornal de 1852 a 1857, mudança ocorrida em 1857 a 1865. Em que o diretor foi seu irmão Francisco José da Silva Ramos.Já com o nome de Estrella do Amazonas teve aumento do seu formato em 1864, com áreas políticas desenvolvidas as seções comerciais e de noticias ampliadas, foi publicado até 30 de junho de 1865. O jornal trazia na sua primeira página, o brasão das Armas do Império entre seu nome, seu formato era de 18 x 26 cm, tendo quatro paginas e duas colunas em um caderno, o local de publicação era a Rua Fortaleza e a Rua Manaus (figura 1).

. Figura 1: Frontispício– Jornal Estrella do Amazonas Fonte: Setor de microfilmagens (Laboratório de História da Imprensa no Amazonas, 2013).

O jornal se tornou realidade, principalmente para justificar e dar legitimidade para a recém-criada província, por isso seu conteúdo era quase que exclusivamente político, com os editais do governo, os discursos do presidente de província e noticias do império e os avisos, tema central do artigo.

A imprensa, até 1870, interessando-se quase que unicamente pelos assuntos partidários ou pelos problemas econômicos e materiais da Província, não oferecia feição agradável. Os jornais eram pesadões, escritos em linguagem violenta, deixando de parte o noticiário local.” Sofrendo melhoria a partir de 1870 (REIS, 1998).

A economia da região estava baseada no extrativismo vegetal, produtos como a mandioca, o tabaco e o algodão. Devido à falta de investimentos na região e sua cultura

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indígena de subsistência não havia um maior desenvolvimento das lavouras. A mão de obra era quase que exclusiva de indígena. Tornando as atividades manufatureiras, no ligadas ao extrativismo dos produtos retirados da floresta. Outra dificuldade já citada era a falta de mão de obra especializada, para os mais variados tipos de trabalho na cidade.

Em 1853 as atividades mencionadas além da extração dos produtos vegetais são a pescaria e a salga do peixe, a fabricação da manteiga de peixe boi e dos ovos de tartaruga e a tecelagem de redes de algodão de palha e de fibras diversas palmeiras. Em 1855 foi considerada a existência de uma fabrica de chapéus com serias dificuldade de funcionamento por falta de operários (ibid, p. 4).

No comércio, setor recorrente nos avisos, o maior problema era devido às distâncias, com as quais a cidade se encontra em isolamento até os dias de hoje com os grandes centros econômicos do país, por via terrestre. Todos os produtos tinham saída pelos portos paraenses, dificultando a negociação direta de produtores e exportadores. A sua ligação com o resto do país e o mundo se dava através do Pará.

Sem ligação direta com os mercados externos, em função do seu isolamento, da grande extensão territorial, das grandes distâncias e as dificuldades de comunicação. A vinculação da região do Rio Negro com a atividade exportadora se fez, portanto através do Pará (LIMA, 1978).

A população na Barra do Rio Negro era de maioria indígena, sendo seus jornais publicados para uma minoria branca. Outro agravante para a introdução nos jornais na região do jornal era o domínio da língua portuguesa, com uma população indígena de tradição oral, os periódicos não tiveram grande impacto na realidade desses povos.

Em 1852 a população branca de Manaus, capital da recém criada Província do Amazonas, mantinha percentuais ainda mais baixos. Enquanto a população total era estimada em 8.500 habitantes, os moradores brancos somavam apenas 900 almas( ou 10,5% do total), contra 2.500 mamelucos, 4.080 índios, 640 mestiços e 380 escravos negros (PINHEIRO, 2001).

Maria Luiza Ugarte Pinheiro analisa o florescimento do periodismo no Amazonas, estando ligado a um conjunto amplo de fatores, indo desde uma conjuntura econômica em expansão até a lenta ampliação dos espaços da cultura letrada no interior da sociedade local.

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Ao analisar o surgimento e a dinâmica da imprensa no Amazonas, perceber não só as limitações estruturais, mas também as estratégias empreendidas pela cultura letrada para se impor dentro desse contexto cultural adverso. (...) como a utilização de novas linguagens- humor, a charge e a caricatura- no interior do periodismo pode se constituir em mecanismo que expressam não só tensões, mas também mediações com o universo oral local (Ibid. p. 55).

Com isso os estudos da sociedade através dos anúncios como fonte, se torna uma forma de reconstruir a história de uma cidade, dos seus conflitos, interesses e grupos sociais. A imprensa assume um papel importante principalmente os jornais oficiais, como o caso do Estrella do Amazonas, mas mesmo esses periódicos acabam por no seu interior deixar lacunas e contradições, que em nosso caso é a coluna Avisos às quais acabam denunciando seus reais interesses que na maioria das vezes eram os mesmos interesses do governo. Implantar uma sociedade civilizada, que encontrava no modelo europeu seu reflexo.

Nessa época, em fins da década de 50, a região possuía ainda uma economia com pouco destaque e com aspectos urbanos ainda acanhados. Isso não impedia que a incipiente população local não sentisse a necessidade de se sintonizar com o que ocorria de moderno na corte e nos outros centros urbanos considerados mais importantes, como Paris. Dessa forma, é interessante notar que, mesmo que havendo somente um esboço, existia a preocupação, pelo menos de uma parte da população, sobre a necessidade de se identificar com esse modelo de lazeres, de vida e convenções sociais provenientes da Europa (VILLANOVA, 2008, p. 49).

A importância da propaganda Analisando os anúncios e propagandas, compreendemos as transformações urbanas que a cidade sofreu como anúncios de venda e aluguel de imóveis em bairros que antes não existia, a herança indígena presente nas construções anunciadas como casa com telhas de palha e feitas de madeira, identificamos as mudanças sociais da elite como a busca por produtos estrangeiros sempre a anunciados nos armazéns da cidade, que não poupavam esforços para informar a origem estrangeira dos produtos, propagandas de aulas particulares de francês, a fuga de escravos apresentando uma sociedade escravocrata como no resto do Brasil, os reclames apresentam uma sociedade em transformação.

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A mensagem veiculada pela propaganda e publicidade passou a conformar a mentalidade do período, tarefa estimulante numa sociedade em transformação, na qual pululavam valores, na sua maioria alienígenas, em competição sistemática com o momento de recuperação e valorização de nossas origens (MARTINS, 2001).

A historiografia a cerca dos anúncios de jornais como fontes de pesquisa, ainda são relativamente tímidas, encontramos o artigo de Denise Sant’Anna sobre a Propaganda e História: antigos problemas, novas questões, em que a autora informa sobre a utilização e receios da utilização desse tipo de fonte. Apresentando as dificuldades metodológicas de se lidar com esse tipo de fonte e suas vantagens.

A propaganda como fonte de estudo ainda suscita duvidas metodológicas importantes, referentes, por exemplo, à analise das ilustrações, varias vezes acompanham os anúncios, à compreensão do texto escrito, ora longo, ora extremamente breve, e à relação entre texto e imagem. Há, ainda, o desafio de estudar os clichês e as palavras de ordem repetitivas, tão frequentes em propaganda, e que podem dar a errônea impressão de que sua produção se situaria fora da história (SANT’ANNA, 2007).

Estudar a propaganda requer a um estudo mais amplo, não só a analise do discurso, mas a necessidade de compreender, a história dos meios de comunicação, da imprensa e semióticas dos avisos. Sant’Anna informa que ao estudarmos os anúncios temos que analisar questões para deles “Somente desse modo escaparíamos à tentação de dar conta de todo um período histórico ou de todos os significados contidos num mesmo anúncio ou numa mesma serie de anúncios (IBid. p. 94)”. As perguntas que surgem referidas as fontes com o objeto de estudo e inúmeras relações entre elas, devem ser analisadas ao longo do estudo da fonte. Heloisa de Faria Cruz em A Cidade do Reclame: propaganda e periodismo em São Paulo (1890 – 1915) Analisa o papel da publicidade no processo de formação do publico leitor.A autora informa a importância de pesquisar essa fonte “a historicidade das relações entre propaganda e vida social apresenta-se como um campo aberto à indagação e à pesquisa” (CRUZ, 1996, p. 81), levando a compreender o leque aberto de compreender a sociedade pelos anúncios. A autora compreende a importância “de que o lugar da imprensa na reestruturação da esfera pública burguesa e sobre o papel da publicidade no processo de

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formação dos públicos e na popularização do periodismo e da cultura letrada”. Assim com o aumento da popularidade dos jornais e de como eles vão ganhando espaços na historiografia. Tornando a propaganda um campo vasto de estudos e interpretações tendo várias funções sócias, e maneiras de compreender um determinado espaço e tempo, como Bahia descreve.

O anúncio é uma das mais antigas formas de comunicação social. Ele antecede a própria organização do comércio e tem suas origens nas primeiras manifestações conscientes do home para persuadir o vizinho (BAHIA, p. 283).

Os reclames Os anúncios analisados no referido trabalhos, foram coletados no arquivo digital do LHIA - Laboratório de História da Imprensa no Amazonas, estando microfilmados e digitalizados. Os jornais Estrella do Amazonas, que estão nestes arquivos vão de janeiro de 1854 a dezembro de 1859. Respectivamente do número 73 ao 421. Segundo Juarez Bahia, os anúncios, antes de 1915 ainda era simples e diretos, as gráficas ainda não possuíam maquinários que possibilitassem uma maior complexidade dos reclames.

Entretanto, as técnicas de publicidade, como são desenvolvidas modernamente pelas agências especializadas, só depois de 1915 começam a ser praticadas. Predominaram ainda por longo tempo os recursos primários e diretos do anúncio classificado ou da comunicação formal, que desprezava a valorização da mensagem, como na informação oficial ou na pura e simples transmissão de um aviso (Ibid. p. 168).

Os anúncios do Estrella do Amazonas em sua maioria são de estruturas simples, poucas linhas, os chamados “tijolos”, quadrados e sem muita expressão, porém existem reclames maiores e com desenhos.

Até então, na imprensa diária, na forma de classificados, quase pregões- vende-se, procura-se, oferece-se- que na maioria das vezes, consistiam em pequenas notas e/ou declarações de pessoas “de autoridade” discorrendo sobre as qualidades de produto, a variedade do sortimento de alguma casa comercial, as vantagens de um serviço prestado e as características de um objeto perdido; ou ainda como “tijolo”comerciais arrumados sem menor cuidado na ultima contra-capa, a propaganda pouco evoluía (CRUZ, 1996, p. 85).

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Quem era o público anunciante da cidade de Manaus? Podemos identificar a partir dos principais prestadores de serviços na época como sendo os anunciantes, mesmo com um número pequeno de comerciantes os anúncios eram frequentes. Ao longo da analise dos reclames identificamos esses poucos estabelecimentos comerciais.

Uma ideia das limitadas dimensões da economia amazonense neste momento inicial, basta lembrar que , em 1864, dos 69 estabelecimentos comerciais localizados na capital da Província (Manaus), nada menos que 55 eram compostos de pequenas casas comerciais varejistas.” Pg 66 os restantes era 1 botica, 1 escritório comercial, 1 hospedaria, 2 alfaiatarias, 2 açougues, 3 lojas de sapateiros e 4 padarias (PINHEIRO, 2001, p. 66).

A respeito da educação, um dos grandes problemas da região devido à oralidade e a pouca fluência da língua portuguesa, devido aos idiomas indígenas. Deparamo-nos em anúncios de aulas particulares e as oferecidas no seminário público, onde o português não é oferecido em aulas, mas o francês, geografia e história. Aulas de música aparecem com dias e horários. O que comprova o descompromisso com o ensino na região.

A pequena elite letrada existente em Manaus vinha de outras províncias, e chegavam à região com uma educação estruturada, como era o caso dos governadores. Os que aqui nasciam realizavam a instrução fora da província do Amazonas, já que a composição básica da escola pública era deficiente, fazendo com que famílias não poupassem esforços para levar seus filhos, até fora do país, visando à realização dos estudos. Por conseguinte, o ensino particular e pago estava restrito a uma pequena população. Os anúncios sobre aulas de línguas estrangeiras e instrução já eram observados nos periódicos locais em fins da década de 60 (VILLANOVA, 2008, p. 76).

Reclames que fazem a distinção de gênero como do professor José Pedro Paraguassú que ensina francês e português para meninos a 3$000 reis e sua “Senhora” ensina português falado e escrito, Doutrina Chritã e costura a 2$000 mensais. Assim, como os produtos destinados a homens e mulheres como na loja de Miguel Maria de Assumpçaõ Lopes, tem para vender chapéus pretos para homem da ultima moda, cortes de chalin para vestidos de senhora, analisando os anúncios dos jornais. Outro anuncio que aparece frequentemente são os avisos de saída e chegada de navios a capital, vindo geralmente de Belém. Barcos que traziam muito dos produtos comercializados nos jornais. Frequentemente apareciam imagens nesses anúncios de pequenos barcos a vapor, ao lado direito da propaganda.

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Os secos e molhados que eram os produtos como cal, sal, manteiga, bolacha inglesa, açúcar, os artigos secos e molhados, a farinha que vinha do Pará,vendida a bons preços na Costa & Cª eram oferecidos em armazéns (Estrella do Amazonas. Manaus, 18 de jul. 1854). Os anunciantes informavam as trocas de nomes e donos das empresas anunciantes, como ocorreu com a Costa & Cª que em dois anos informa que se chamaria de Antonio Joaquim Costa & Irmão, seus produtos continuaram no ramo de armarinhos e estivas em geral. A maioria dos anúncios apresentava o preço dos produtos, o que permitia deduzir o poder de comprar das camadas mais abastadas, como o aviso do número 133 da loja do legitimo barateiro Antônio Joaquim da Costa & Irmão, há para vender as seguintes mercadorias, a dinheiro à vista, chegados ultimamente no vapor Tabatinga, pelos módicos preços seguintes: riscadinhos encarnados de quase uma vara de lavoro a 320 réis o côvado, ditos de cores a 280 réis, ditos a crimeia a 240 réis, ganga azul a 200 réis, riscados americanos para calça ou camisa a 240 réis o côvado, cortes de cassa larga a 3$000, dril de linho pardo muito superior a (340 réis o côvado, riscadinhos franceses de bom gosto para camisas a 240 réis, ditos de outros gostos a 220 réis, lenços de cor para pescoço ou algibeira a 400 rés e a 320, dril de lista para calças a 400 réis o côvado, ditos de algodão e linho a 640 réis o côvado, chita fina a 240 réis o côvado, e outras muitas fazendas e miudezas que se vendem muito barato, e a vista faz fé.O que podemos constar a chegada de navios vindo de outra região que não do Pará, com produtos variados. Lojas de produtos importados não poupavam referências à exclusividade dos seus produtos, como na loja do barateiro Miguel Maria d'Assumpção Lopes, na Rua de Manaus, tem para vender um completo sortimento de molhados, á saber; manteiga inglesa, 1200 a libra; boião de doce de Lisboa de todas as qualidades e outros muitos objetos, que se venderão por pouco dinheiro. Na mesma loja em anúncio de agosto do mesmo ano, relata a venda de chapéus vindo do Chile e franceses para homens de vários preços. Alguns informavam a marca, para destacar a qualidade superior, a carne seca de Obidos, o cal de Sarnamby,vendido na Loja de Leonardo Ferreira Marques, no mesmo reclame anunciava a compra de escravos de 18 a 30 anos de idade. Sendo esse anunciante o reclame que mais se repetiu um total de 7 vezes, foi o da loja de Leonardo Ferreira Marques, bastante longo com uma media de 40 linhas por anuncio, em que o destaque estavam em anunciar os

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produtos que acabaram de chegar da França, como uma grande variedade de louças em porcelanas, chapéus de pelo de seda para homens e de sol para mulheres, tecidos diferenciados como Sarja de seda, cetim, pano de chitas, linho e algodão. Apresentando uma sociedade que se espelhava nas sociedades europeias. O próprio jornal antes do anuncio em julho de 1856, faz um comentário sobre o grande numero de embarcações e achegada de produtos ao comercio da cidade.

O nosso commercio vai parecendo animar-se. Durante a quinzena tem estado o nosso porto coberto de embarcações, que de todos os pontos da província vem trazer a capital os productos naturaes ou manufacturados, que devem alimentar as permutações ela nossa praça, permittindo-nos uma exportação vantajosa.A respeito do commercio muito teríamos a dizer se não temêssemos fátigar o leitor. E nos guardamos para o fazer em um artigo especial. E por hoje bastado palestra. Faço as minhas despedida a familia por estes quinze dias, desejando a todos muita ventura (Estrella do Amazonas. Manaus, 3 de julho de 1856).

Em muitos anúncios de compra e venda, não eram identificados os vendedores, sendo postado que era para o interessado se dirigir a tipografia, que seriam informados sobre os relativos compradores e vendedores. Como compra de montaria, armação de loja envidraçada, uma montaria possante, banheira, embarcações. No número 157 há a seguinte publicação: N'esta Typographia-se dirá quem vende uma rede de lancear peixe-boi, grande e nova. No número 161 há venda de uma banheira, compra de uma montaria. As fugas de escravos aparecem recorrentemente, muitos trazem o nome e os donos, a descrição física dos negros fugidos, como baixo e gordo, espigado e alto, a costa marcada por ter sido castigado, no numero 131 de 1856 o escravo do Alferes Miguel Gabriel Baptista, morador no lago grande de Villa Franca, havia fugido o seu escravo Fidelis de 19 anos, baixo, grosso do corpo, dentes podres, sem que tenha falta d'algum na frente; fala pouco, anda vagaroso; tem as nádegas surradas, e na perna esquerda, para a parte de dentro e 3 dedos á cima do tornozelo, uma picada de arraia cicatrizada, é mulato. Uma descrição detalhada dos cativos fugitivos. Alguns o ato da fuga são bem descritos como ocorre no número 128, que descreve a fuga da escrava Joaquina que pertencia a Antonio Jose Lopes Braga,escrava de 18 anos, altura regular, gorda e bem parecida, e é muito falladeir, teria fugido as 8 horas da noite do dia 21, teria fugido com um vestido de chita rosa e camisa de riscadinho rosa também. O relato “desconfia” que a escrava teria sido seduzida por um índio de nome José 121

Maria, o qual teria fugido da Escuna do Sr. França, o dono da escrava era o Luiz Antonia Lopes Braga morador na Rua dos Mercadores,afirmava que gratificava e protestava contra quem ajuda-se na fuga da cativa. O que comprovava a pratica de escravidão na região

No entanto, essas mudanças se processavam em nosso país, e especificamente em Manaus, de maneira aparente, vistas nas roupas, nos modos de portar, nos espetáculos teatrais. Embora houvesse modificações na estrutura econômica e social, prevalecia ainda uma grande distância de um ideal civilizador e modernizador diante da realidade local. Isso persistia na escravidão do negro, na exploração do indígena e na estrutura da sociedade, que era hierarquizada, violenta e desigual (VILLANOVA, 2008, p. 65).

Era comum a repetição de avisos, porém esses raramente passavam de três jornais repetidos, a casos, porém, que superam essa marca, e ao longo eles também eram modificados, no número 157, a loja do legitimo Barateiro no reclame já avisava “tem para vender alem dos objetos já anunciados”, dando uma continuidade aos anúncios anteriores. Há lugares na cidade que se destacam nos anúncios como o largo da Imperatriz, a onde ficava o hotel da Confluência que oferecia refeições a qualquer hora do dia e na casa, os fregueses podem contratar para terem comida na sua caza, hotel também tem seu lado caridoso e aos domingos e dias santos serve chá da noite às 7 horas grátis. A padaria que ficava na mesma região, informava que tinham pão fresco, bolos e biscoitos todos os dias, e que recebiam qualquer encomenda dentro e fora da Capital. Na Rua do Oriente a loja de Miguel Maria de Assumpção Lopes vende charutos a caixa e a unidade, como também o pirarucu. Na Rua Brasileira a loja de Mendonça, Leão & Cia. Apresenta um dos primeiros anúncios do jornal com um bordão em que aparece a imagem de uma mão apontando para a frase BOM E BARATO.O reclame ainda é bem estruturado com a separação dos produtos conforme seu publico alvo, como os livros e materiais escolares destinadas aos JOVENS ESTUDANTES, livros de variadas matérias. Ele pulava uma linha e continuava PARA O BOM TOM pulando outra linha descrevia que continha óleos para perfumes, banha, pomadas, boa massa e superior manteiga de vaca. O bordão surge novamente no número 154 com as mesmas mãos apontando para o enunciado Mais barato que nunca, na bem conhecida loja do legitimo barateiro ha á venda os seguintes objetos chegado ultimamente na Barca Rio Negro, a saber. Outro lugar de vendas de livros é o bazar Amazoniense que publicava em meio de outra mercadoria os manuais enciclopédicos métodos facílimos para

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as escolas do ensino primário, cartilhas de Sarmento e Pimente (Estrella do Amazonas. Manaus, 25 de junho de 1856). Os estilos de moradia aparecem nos anúncios do período. Apresenta-nos como as moradias estão ligadas a cultura indígena. Como o que ocorre em novembro de 1854, de uma casa a venda coberta de palhas, e quarto de telhas, com bastante acomodações para uma família. Como o anúncio de venda de casas e sítios nos Tarumans. No número 125 de novembro de 1855 é anunciada uma casa velha cuberta de palha, com frente para rua da Lua, canto e frente para o Igarapé. No mesmo jornal a respeito da venda de casas um anuncio que chama a atenção é o de Anna Joaquina da Silva que informa que sabendo que seu marido Flauzino Jose de Trintade pretende vender uma casa que eles possuem no lugar da Boa Vista, previne que ninguém contracte a compra da dita caza pois que nella não concorda a annunciante. No número 192 é posta a venda uma casa de palha na Rua Mánaos.

As cidades coloniais, mesmo durante o império, em especial aquelas que estavam longe da grande produção dos produtos exportadores (e Manaus se incluía nesse contexto), possuíam características predominantemente rurais. A maioria dos núcleos urbanos, de acordo com os viajantes, ou segundo sua visão, possuía um aspecto descuidado, sendo imprecisa a separação entre as zonas rurais e urbanas. Era corriqueiro animais pastando pelas ruas, abastecimento de água feito pelos rios ou igarapés, ruelas sem iluminação, construções feitas de taipa e palha (VILLANOVA, p. 43).

No número 168 encontramos a venda de um sitio denominado ouvidor, com árvores frutíferas e com posse de um quarto de léguas de frente com uma pequena casinha de vivenda a margem direita do Rio-Negro, muito próximo a está cidade, os interessados deveriam comparecer a tipografia para saber com quem tratar. Não era muito comum anúncio sobre alugueis, porém, eles existiram como do número 198 Aluga-se um quarto de casa na travessa da Olaria desta cidade e os interessados teriam que ir à tipografia saber quem era o anunciante. A venda de remédios já aparecia nos aviso, não foram constantes nos periódicos analisados. Um interessante foi o Balsamo Homogeneo-Simpatico de Pedro Garbazza( cirurgião italiano) produto aprovado em Roma, Milão, Rio de Janeiro e outros, curava feridas de todos os gêneros, ulcera, escorbuto, sarna, erysipelas, reumatismo, inchações,

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fraquezas nas articulações, queimaduras, fistulas, lombrigas, não exceptuando a tênia ou solitaria, mordedura e picadas de qualquer animal o mais venenoso que seja, irregularidade da falta de menstruação, etc. tudo isso na casa de Jeronimo Costa. Remédios milagrosos, assim como o Xarope de Saúde do Chimico Arrantt O interessante que o anuncio era feito pelo próprio fabricante o que indicava isso era que ele apresentava os lugares de venda como as lojas de Francisco Antônio Monteiro Tapajós, Praça da Imperatriz; e na do Legítimo Barateiro, Travessa do Oriente (Estrella do Amazonas. Manaus, 21 de janeiro de 1857). Podemos observar que a venda de bebidas na cidade, já era uma questão consolidada, varias mercearias. As bebidas alcoólicas eram encontradas com facilidades nos anúncios pesquisados, como na loja do Francisco Mendonça & Compª em que os preços acompanhavam as mercadorias: a cachaça 12$000, o vinho tinto e branco a 2$000, garrafas de licor a 8$000 (Estrella do Amazonas. Manaus, 15 de março de 1856), cabe investigar o preço de a cachaça ser superior as outras, que pode estar ligado ao trabalho extrativista, pois a pinga era um produto valorizado. No Bazar Amazoniense anunciava bebidas de superior qualidades como o champagne, absinto considerada a bebida dos artistas do final do século XIX, conhaque e outras muitas miudezas ultimamente recebidos pela Barca Rio Negro (Estrella do Amazonas. Manaus, 28 de maio de 1856), na mesma anunciava a venda de charutos. Na loja do barateiro Miguel Maria d'Assumpçao Lopes, na Rua de Manaus, cerveja preta e branca; marca índia (Estrella do Amazonas. Manaus, 25 de julho de 1856). Produtos consumidos por uma elite local, tendo em vista seus preços e especificidades. A sorte também era anunciada no jornal de julho de 1855 a loja do legitimo barateiro vendia bilhetes de loterias de N. S. de Nazareth. Um aviso era feito por Joaquim José da Silva Pingarilho que declarava ter perdido o Bilhete n.° 70 da Loteria de S. Sebastião, por este motivo preveniu ao Sr. Tesoureiro da dita irmandade, para que no caso de ser premiado o dito bilhete não entregue a outrem, o que lhe couber em sorte, visto que ele é o seu verdadeiro dono, Manaus 21 de Janeiro de 1857. As imagens não eram muito comuns nos reclames e eram bem rudimentares, no número 141, encontramos três imagens a de uma embarcação, sobre a venda de uma igarité, e imagens de dois escravos fugindo, sendo o primeiro um desenho de um escravo

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fugindo descalço, usando camisa e calcas, com uma trouxa de roupas amarrada em uma vara sobre os ombros. A partir desse número a quantidade de anúncios com imagens, teve um significativo aumentou e continuou nos jornais, o jornal 142 apresenta três figuras, o desenho de um prédio sobre o alugue da rocinha do aterro, a imagem de um veleiro para a venda de uma “cobertinha” e a imagem que geralmente aparecia nas noticias de fugas de escravos, de um escravo fugindo descalço, com calça e camiseta e sua trouxa de roupas, porém, esse aumento não foi constante, sendo mais adiante alguns jornais não apresentam imagens. Essas imagens se repetem em outros anúncios de produtos semelhantes, como no número 145 em que a imagem do prédio é usada para vender um sitio. O interessante dessas imagens, que elas apresentam produtos mais requintados dos que os propriamente descritos nos avisos. Objetos de trabalho como martelos para carpinteiros, ditos e colheres para pedreiros eram anunciados e ferragens no bazar Amazoniense49. Interessante, pois mão de obra na região era escassa. Segundo Otoni Mesquita o quadro de operários da província era composto por um mestre de obras, oito pedreiros, três carpinteiros, dois oleiros, dois aprendizes de ferreiro e quarenta trabalhadores sem ofícios. O anúncio era feito para esses oito pedreiros e eles sabiam ler?Os anunciantes muitas vezes eram os próprios assinantes do jornal, visto que no cabeçalho do jornal informava que os assinantes tinham direito a vinte linhas.

Considerações Finais Essa análise dos anúncios publicados no Estrella do Amazonas, abrem as portas para compreensão do período e da sociedade, por intermédio dos seus produtos e serviços oferecidos no inicio da província e em seu primeiro jornal. O artigo abre espaço para que novos argumentos sobre a imprensa, buscando a analise de diferentes pontos de vista, como a propaganda. Compreendendo que a várias formas de se trabalhar com os periódicos na região norte, tendo em vista a carência de trabalhos, que falem e utilizem os periódicos, o jornal Estrella do Amazonas tem muito a ser analisado, tendo em vista que o trabalho analisou somente umas de suas seções.

49 Estrella do Amazonas. Manaus, 28 de junho de 1856.

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Deixando de fora um vasto material, há necessidade de um maior aprofundamento sobre o período Provincial no Amazonas. O trabalho não se da por encerrado, pois ficaram muitas lacunas a serem preenchidas, como uma melhor analise das imagens contidas nas propagandas as notas e mensagens que vinham antes dos avisos, algumas eram poesias, outro mensagens de anedotas, quais eram a relações dessas mensagens com a população e a reação deles com elas. Ficando para estudos posteriores.

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Etnoperiodismo: estudos históricos sobre grupos étnicos, comunidades imigrantes e minorias sociais no Brasil através da imprensa

Prof. Dr. Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (CITCEM-UP/Portugal)50

RESUMO: Esta comunicação tem por objetivo construir um painel sobre a evolução dos estudos históricos sobre grupos étnicos, minorias sociais e comunidades imigrantes no Brasil. Destacando os trabalhos pioneiros de Roger Bastide e Gilberto Freyre, a primazia de antropólogos e sociólogos com a problemática, até chegar ao momento em que esse tipo de abordagem passa a conquistar espaços mais abrangentes entre os historiadores.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Etnoperiodismo; Imprensa.

Para efeito desta comunicação, e como advertência preliminar, uso o conceito de etnoperiodismo como um termo aberto e provisório para designar um campo de estudos, historiográfico ou não, que prioriza as análises sobre grupos étnicos, minorias sociais e comunidades imigrantes através da imprensa, com perspectivas, instrumentais teóricos e metodológicos advindos das modernas reflexões sobre etnicidade e/ou identidades étnicas, culturais e nacionais. Visto por esse ângulo, e se considerarmos alguns trabalhos de Gilberto Freyre, Virgínea Leone Bicudo e Roger Bastide, sua historicidade remonta à década de 1940, mesmo que entre os historiadores brasileiros não deixa de ser uma experiência recente, vivendo uma fase um tanto embrionária e circunscrita em pequenos universos acadêmicos de muito pouca visibilidade e articulação até mesmo no âmbito do expressivo campo disciplinar da História da Imprensa que passou a experimentar um considerável avanço temático e teórico-metodológico a partir de meados da década de 1990.

50 Professor aposentado do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas e Pesquisador do Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória da Universidade do Porto, Portugal. Trabalho destinado a participação no Grupo de Trabalho 5: Historiografia, sob coordenação da Profa. Dra. Carla Monteiro. 128

Uma das primeiras abordagens por nós identificada foi realizada em 1947, quando a socióloga Virgínia Bicudo publica um trabalho interessante sobre as atitudes raciais de negros e mulatos na cidade de São Paulo, utilizando como fonte privilegiada de suas análises o jornal “A Voz da Raça”, editado por um importante segmento de afrodescendentes daquela cidade51. Mas será somente através das pesquisas do sociólogo Roger Bastide que o tema adquire concretude e sistematicidade, sobretudo a partir de seu estudo clássico sobre “A imprensa negra no Estado de S. Paulo”, publicado originalmente, em 195152. Não obstante a acolhida positiva que o trabalho de Bastide mereceu junto ao pequeno e seleto grupo de sociólogos da Universidade de São Paulo que se constituiu em sua volta, notadamente Florestan Fernandes e Maria Isaura Pereira de Queiroz que usaram largamente a chamada imprensa negra como uma das principais fontes de suas investigações, ele permaneceu insulado nos limites dessas abordagens53. Nem mesmo a reedição que mereceu posteriormente, em 1973, foi capaz de alcançar os historiadores que a partir de meados da década de 1970 começaram a trabalhar com materiais de imprensa em larga escala, incorporando procedimentos metodológicos modernos e novas reflexões sobre os jornais enquanto fonte exemplar para renovação do fazer história. Até hoje, Bastide permanece desconhecido ou ignorado pelos historiadores da imprensa, incluindo entre eles os que estão a direcionar os seus trabalhos de investigação para o atual campo do etnoperiodismo, ou para a historicidade das relações entre História Cultural e imprensa.54 Perda lamentável, uma vez que Bastide, já naquela época, havia avançado muito e de forma pioneira sobre alguns procedimentos metodológicos, hoje caros aos historiadores, de forma bastante inovadora, inclusive incorporando reflexões também originais sobre a

51 BICUDO, Virgínea Leone. “Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em S. Paulo”. In Sociologia, São Paulo, IX, 3, 1947. 52 BASTIDE, Roger. “A Imprensa Negra do estado de São Paulo”. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Boletim CXXI, Sociologia, nº 2. Estudos Afro-Brasileiros, 2ª série, 1951. 53 Vale destacar aqui as investigações de Florestan Fernandes sobre a história do aparecimento dos jornais em A Integração do Negro na Sociedade de Classe (1965) e de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre o aparecimento da Frente Negra Brasileira e o cunho reivindicatório dos jornais da imprensa negra em Coletividades Negras (1977). Apud. FERRARA, Miriam Nicolau. A Imprensa Negra paulista (1915-1963), São Paulo, FFCH/USP, 1986 (Antropologia, 13). 54 Sobre as múltiplas dimensões da vasta obra de Roger Bastide “pontuando as convergências entre seu pensamento e o de diferentes autores brasileiros pertencentes a diferentes matrizes de reflexão”, confira: PEIXOTO, Fernanda Arêas. Diálogos Brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2000. 129

natureza dos jornais enquanto fonte de análise e/ou objeto de estudo. Na verdade, os procedimentos que Bastide usou transcenderam o seu próprio tempo e, se aproximado dos entendimentos que existem, hoje, no âmbito do moderno campo disciplinar da História da Imprensa ou até mesmo da História Cultural através da imprensa, eles guardam a sua contemporaneidade e perfeita aplicabilidade. Prova desse caráter precursor e instigante de Roger Bastide, é que para ele, diferentemente dos historiadores da sua época, os jornais passavam a ser concebidos como expressão das representações, dos sentimentos, das atitudes e das necessidades coletivas de um determinado grupo social ou classe de indivíduos e, como tal, deveriam ser entendidos como fonte privilegiada nos estudos de suas mentalidades coletivas. Foi ancorado por essa perspectiva que o sociólogo francês se confrontou com os jornais da imprensa afro-descendente de São Paulo para, através de uma análise criteriosa dessas fontes, “procurar a psicologia afro-brasileira”, um dos temas cruciais de suas investigações no Brasil. Surpreendente, também, é que nesse seu “artigo programa”, a perspectiva diacrônica é valorizada, quando divide com rigor a “história da imprensa negra em três períodos”, que desenvolve de forma interessante, mesmo que declare não ser seu objetivo oferecer um quadro histórico aprofundado dessa mesma imprensa. Não menos interessante é a tipologia que desenvolve dessa mesma imprensa, construída com profunda e invulgar acuidade, tornando-se bastante atual, inclusive para os historiadores que hoje lidam com a problemática da imprensa étnica, de imigrantes ou de minorias sociais:

Em primeiro lugar, raramente é uma imprensa de informação: o negro letrado lê o jornal dos brancos; é uma imprensa que só trata de questões raciais e sociais, que só se interessa pela divulgação dos fatos relativos à classe da gente de cor. (...) Esses jornais procuram primeiramente agrupar os homens de cor, dar-lhes o senso de solidariedade, encaminhá-los, educá-los a lutar conta o complexo de inferioridade, superestimando os valores negros, fazendo a apologia dos grandes atletas, músicos, estrelas de cinema de cor. É, pois, um órgão de educação. Em segundo lugar, é um órgão de protesto: e isso é verdade tanto na América do Sul como na América do Norte; o preconceito de cor pode tomar formas larvadas, nem por isso deixa de existir e mesmo que não exista, o negro crê senti-lo; terá, pois, que se insurgir e o jornal lhe servirá para fazer ouvir seu protesto. Outro caráter comum a toda a imprensa afro-americana é a importância dada à vida social, às festas, aos bailes, às recepções, aos nascimentos, casamentos e mortes,. Sem dúvida esse não é um dos característicos próprios da raça negra; basta ler os pequenos jornais dos brancos do interior para se perceber que é também um dos característicos 130

do que se poderia chamar de imprensa ‘provincial’. Mas, em ambos os casos, a mesma exigência sociológica se exprime: a de mostrar seu status social e sua honorabilidade. O fato de ser recebido em clube, de assistir tal recepção é um critério que o localiza na ‘boa sociedade’ do lugar. O negro deseja também provar ao branco que tem sua honorabilidade, que tem sua vida mundana, que conhece as regras da polidez, em resumo, que não é um selvagem, como querem muitos. E na imprensa de cor a importância desta seção é ainda maior porque é justamente controlada pela classe média ou classe elevada55.

Outra importante contribuição pioneira que merece igualmente destaque é o estudo clássico que Gilberto Freyre realizou: “O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX”56. Mesmo que se trate de obra originalmente publicada como livro em 1961, sua trajetória enquanto tema remonta, segundo o próprio autor, a meados da década de 1930, quando, a partir de uma conferência proferida em 1934 sobre a questão, escreve um ligeiro ensaio que publicou um ano depois, em 193557. Diferentemente de Bastide, com pontos de vistas diversos e até mesmo conflitantes, quer pela seleção e entendimento dos suportes analisados, quer pela perspectiva assumida em relação aos aspectos metodológicos, Freyre pensa os jornais de maneira tradicional e muito próximo dos historiadores da sua época que em suas buscas obsessivas por critérios de verdade e objetividade, entenderam esses suportes como espaço da pura subjetividade, carregados por linguagem imprecisa, inexata e sem a necessária idoneidade, inadequados, pois, para sustentarem uma investigação cientificamente conduzida. Mesmo assim, para conferir ao seu estudo o necessário valor científico, Freyre opera um curioso procedimento com o objetivo de contornar a falta de confiabilidade e credibilidade dos jornais quando usados em pesquisas históricas acuradas. Sua estratégia é simples, ou seja, procura amputar do conjunto destas fontes a parte “podre de verdade”, invariavelmente representada por todo o conteúdo editorialístico e prioriza, com exclusividade, a parte “sadia” representada tão somente pelos anúncios contidos nos jornais, base vital para um novo campo de conhecimento que chamou de “anunciologia”. Em outras palavras, Freyre entendia os

55 Cf. BASTIDE, Roger. “A Imprensa Negra do Estado de São Paulo”. In Estudos Afro-Brasileiros, São Paulo, Editora Perspectiva, 1973. 56 FREYRE, Gilberto. O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século XIX. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1979. 57 Idem, p. LIX. 131

anúncios dos jornais como o único espaço desses suportes digno de análise e suficientemente capaz de expressar fidedignamente verdades objetivas.

A análise de anúncios de jornais relativos a escravos veio trazer preciosa contribuição para o esclarecimento de parte tão obscura da história desse aspecto das relações do Brasil com a África negra. (...) veio permitir chegar-se a importantes conclusões ou interpretações de caráter antropológico quer psicossomático, quer de todo cultural, à base das descrições oferecidas das figuras, falas e gestos de negros – ou mestiços – à venda e, sobretudo, fugidos... Revela particularidades essenciais da presença africana no Brasil. Abre perspectivas inesperadas. Sugere novas abordagens de assuntos que se ligam à própria atualidade antropossocial e cultural brasileira. Oferece base ou apoios para interpretações em profundidade que vão além das já empreendidas58.

Na complementaridade desta sua perspectiva, Freyre faz uma instigante defesa do conteúdo objetivo dos anúncios, tratando-os como expressão de evidências puras e cristalinas da realidade. Em suas palavras: “A linguagem dos anúncios de negros fugidos, esta é franca, exata, e às vezes crua. Linguagem de fotografia de gabinete policial de identificação: minuciosa e até brutal nas minúcias. Sem retoque nem panos mornos”. E sua explicação para tal é concisa: “quem tinha seu escravo fugido e queria encontrá-lo precisava dar traços e sinais exatos”59. Porém, fica claro que na analise “dessas retóricas diversas, em anúncios relativos a escravos”, que Freyre não os tomou homogeneamente e, muito menos, se lançou sobre eles de forma ingênua e acriticamente. Na verdade, questionou-os em seus fundamentos epistemológicos e estabeleceu critérios e procedimentos metodológicos, dentre os quais, o de evitar deliberadamente os chamados “anúncios de leilões”, ou de “trocas e vendas de escravos” por onde poderiam fluir mentiras sutis ou até mesmo velhacarias. Daí o seu alerta quanto ao modo de proceder com tais evidências:

Naturalmente é um material a ser usado com a maior das cautelas. Não que os anúncios de venda de escravos deformem os fatos mais que as notícias e os artigos de fundo. Suas mentiras são, porém, mais sutis. Por precaução, raramente me utilizei dos anúncios de vendas ou leilões de escravos60.

58 Cf. p. XIV-XV 59 Idem. p. 26. 60 Idem. p. 18. 132

Ao fim e ao cabo, as abordagens de Bastide e Freyre aqui ressaltadas enquanto experiências pioneiras importantes para o enfrentamento de questões que põem em destaque as relações entre imprensa e etnicidade, foram provavelmente muito mais desconhecidas do que ignoradas pela maioria dos historiadores brasileiros, em especial aqueles que se lançaram em busca de um novo estatuto para as fontes periodísticas. A rigor, até final da década de 1980, a problemática sobre a relação entre imprensa e etnicidade ainda continuava fora do campo de estudos dos historiadores. Do pouco que foi produzido nesse sentido, não passaram de tímidos empreendimentos e de estudos ligados muito mais ao campo disciplinar da Antropologia e das Ciências Sociais do que propriamente na área da História, a exemplo dos trabalhos de Miriam Nicolau Ferrara, Sonia Maria Giacomini e Lilia Moritz Schwarcz. A primeira, Miriam Nicolau Ferrara, ao trabalhar com temática sobre a imprensa negra em São Paulo, no período entre 1915 e 1963, produziu um interessante estudo sobre o universo ideológico do negro paulista, percebendo alguns traços marcantes das suas esperanças de vida e do seu comportamento, além de organizar um esboço para uma eventual história dos jornais negros editados em São Paulo, seguindo periodização muito parecida com a proposta por Roger Bastide61. Dois anos mais tarde, em 1988, Sonia Maria Giacomini utilizou fontes periodísticas do século XIX então disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro para promover com bastante sucesso uma interessante releitura sobre a identidade das escravas negras no Brasil.62 Mas, se por um lado, os trabalhos de Ferrara e Giacomini tiveram pouca repercussão, será com a divulgação das investigações de Schwarcz, também antropóloga, que o “etnoperiodismo” assumirá real significação através do uso que fez da imprensa cotidiana paulista, com o objetivo de saber sobre “as várias visões com que se falou sobre a condição negra”, ou “os modos como os brancos falaram sobre os negros”, visando com isto “a recuperação e o entendimento da dinâmica que se estabelece, de construção e manipulação de representações sobre o negro cativo ou liberto, quando se intensificaram as rebeliões negras, no período final do processo abolicionista, e toma volume a própria campanha abolicionista”63. Esse seu livro intitulado “Retrato em Branco e Negro: Jornais, escravos e

61 FERRARA, Miriam Nicolau. A Imprensa Negra Paulista (1915-1963). São Paulo, FFLCH/USP, 1986. 62 GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e Escrava: Uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1988. 63 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Preto: Jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo, edição Circulo do Livro, 1987, p. 14/15. 133

cidadãos em São Paulo no final do século XIX”, originalmente apresentado como dissertação de mestrado no Departamento de Antropologia da Unicamp e publicado em 1987, mereceu significativo acolhimento na academia, inclusive entre historiadores e um público mais vasto. Evidentemente que se trata de um trabalho que do ponto-de-vista teórico e metodológico integra influências multidisciplinares explícitas, em especial as oriundas da Lingüística, da “Nova História” e da “Nova Antropologia”. De sorte que, os jornais por ela utilizados são pensados de maneira muito próxima dos historiadores brasileiros do pós-1970, razão pela qual deixa explícito que sua “postura diante dos jornais será de apreendê-los não enquanto ‘expressão verdadeira’ de uma época, ou como veículo imparcial de ‘transmissão de informações’, mas antes como uma das maneiras como segmentos localizados e relevantes da sociedade produziam, refletiam e representavam percepções e valores da época”.64 Em sua conclusão, o realce das fontes periodisticas, amplia sobremaneira os limites da “imprensa negra” propostos por Bastide e alcança a imprensa periódica como um todo.

É justamente nesse sentido que os jornais, que nesse momento se constituem enquanto órgãos estáveis e fixos, cumprirão um papel relevante. Ou seja, os grandes periódicos da época (e em especial A Província de São Paulo) vão passar não só a veicular normas e valores considerados “civilizados”, como buscarão constituir-se e representar-se a si próprios como os legítimos locais da criação e reprodução das novas idéias da época. Veicula-se, portanto, nos discursos científicos e teóricos, através dos periódicos, uma imagem de ordem e controle social que parecia não se coadunar com a realidade percebida por esses segmentos, que por um lado partilhavam das idéias dos jornais, e por outro observavam o contexto da época com certa apreensão. Assim, o outro lado da moeda que refletia brancos “orgulhosos e cientes” de seus avanços era aquele que demarcava a desigualdade e expunha, com grande temor, o nosso futuro racial e nacional65.

Deve-se ressaltar que na viragem do século passado e início do presente, outros importantes trabalhos estão sendo realizados por antropólogos com fontes periodísticas, como, por exemplo, a dissertação de mestrado defendida por Maria José Alfaro Freire, intitulada “Payakã e os índios na imprensa brasileira durante a ECO-92”, “na qual analisou

64 Idem, p. 16 65 Idem, p. 246. 134

o material produzido pela imprensa brasileira sobre ‘o caso Payakã’, mostrando as estratégias através das quais o discurso jornalístico, toma o caso para colocar em questão as políticas interétnicas e os direitos indígenas no país”66. Afora estes poucos exemplos conhecidos por parte da iniciativa de antropólogos, só será na década de 1990 que os historiadores vão abraçar a questão das identidades étnicas, culturais e nacionais através da imprensa de forma definitiva e irreversível. Dois bons exemplos são as investigações de Liana Maria Reis ao analisar a atuação dos escravos durante o processo abolicionista através de artigos de jornais diários de São Paulo67 e de Liane Muller em “Considerações sobre a trajetória de um jornal negro: O Exemplo, criado em Porto Alegre, no ano de 1892”68. Mesmo que escape um enquadramento etnoperiodístico rígido, Tania Regina de Luca merece referência através da sua análise sobre A Revista do Brasil, um periódico de ampla circulação no Brasil, que se presta para discutir a questão nacional e da nacionalidade brasileira sobre diferentes prismas69. No mesmo sentido trabalhou Ariel Feldman ao analisar as relações entre a formação do Estado e a construção da identidade nacional durante o período regencial, através do jornal O Carapuceiro, publicado na cidade do Recife entre 1832 2 1842, de explícita tendência antilusitana e contra os ideais restauradores70. Mais recentemente, em 2008, Mozart Linhares da Silva avançou com uma comunicação apresentada no XIII Encontro de História da ANPUH-Rio, com o título: “Imagens, Estereotipias e Sujeitos-Falhos: Afrodescendentes e Identidade Étnica na Imprensa Escrita no Vale do Rio Pardo (1970- 2000)”. Pelo lado dos estudos históricos através da imprensa de imigrantes o quadro é bem mais expressivo e os historiadores passam a tirar melhor proveito dessa nova problemática, abordando-os de forma excepcionalmente vigorosa e inovadora, com problemáticas

66Mestrado em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional-UFRJ, 2001. 67 REIS, Liana Maria. Escravos e Abolicionistas na imprensa mineira (1850-1888). Belo Horizonte, UFMG, 1993. (Dissertação de mestrado). 68 MULLER, Liane. Considerações sobre a trajetória de um jornal negro: O Exemplo, criado em Porto Alegre, no ano de 1892. Comunicação apresentada no XX Simpósio Nacional de História, Florianópolis, ANPUH, de 25 a 30.07.1999. 69 DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, Fundação da Editora da UNESP, 1999. 70 FELDMAN, Ariel. “A Construção do Estado e da Nação no Brasil: identidades políticas e imprensa periódica no período regencial (1831-1840). In Revista Aulas – Dossiê Identidades Nacionais. São Paulo, Unicamp, nº 2, outubro/novembro, 2006. 135

diversificadas e aprimoramentos teórico-metodológicos instigantes. No conjunto dessa produção, vale destaque para os trabalhos de Marina Consolmagno sobre o jornal Fanfulla, órgão da colônia italiana em São Paulo, editado em 1893, em língua italiana e onde a autora analisa quem o jornal beneficiava e em que sentido influenciava o seu público, demonstrando também a atuação do Fanfulla no sentido de fortalecer uma visão homogênea da colônia italiana (colletivitá) baseada nos princípios da coesão e conciliação entre as classes, além de estudar as posturas defendidas, em relação ao processo de unificação italiana e a vida política brasileira.71 Outro bom exemplo no campo da etnicidade através da imprensa, é o importante trabalho de Giralda Seyferth sobre a mobilidade social de uma colônia alemã nos setores econômicos e políticos e um conjunto de problemáticas associadas a sentimentos de etnicidade72. No campo dos estudos históricos sobre imigração portuguesa que usaram a imprensa como fonte prioritária ou exclusiva, as investigações são muito poucas quando comparada com a expressividade da presença portuguesa no Brasil e com o avultado número de jornais e outros periódicos editados por portugueses no Brasil desde meados do século XX.73 Mesmo assim, já começam a aparecer importantes trabalhos nesse campo particular de análise, como os de Maria Manuela Ramos de Souza e Silva, que “estuda a saga dos imigrantes portugueses introduzidos no Brasil e destinados principalmente à agricultura, pela pena contundente do editor do jornal português Gazeta Lusitana, publicado na Corte em finais do século XIX. Nesta obra, a autora analisa também as tensões e conflitos gerados no calor dos enfrentamentos: recusas, concessões e solidariedades, além das práticas sociais que mediatizam as relações entre nacionais e portugueses. Para além disso, reconstitui as várias frações do olhar do jornal sobre a sociedade portuguesa e brasileira de seu tempo, escancarando suas mazelas e contradições, cujos aspectos mais visíveis são a corrupção, o mandonismo, a exploração desenfreada do trabalho humano, a vadiagem, a criminalidade e prostituição74.

71 CONSOLMAGNO, Marina. Fanfulla: perfil de um jornal de colônia (1893-1915), São Paulo, USP, 1993. (Dissertação de mestrado) 72 SEYFERTH, Giralda. “Etnicidade, política e ascensão social: um exemplo teuto-brasileiro”. In Mana, Rio de Janeiro, v.5 n. 2, out./1999. 73 SILVA. Maria Beatriz Nizza da. Documento para a História da Imigração Portuguesa no Brasil (1850 a 1938). Rio de Janeiro, Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, 1992. Especialmente o capítulo: “A Imprensa da Colônia”, p. 114-123. 74 SILVA, Maria Manuela Ramos de Souza e. Ambição e Horror a Farda ou a Saga dos Imigrantes 136

Outro importante trabalho que merece destaque é o de Joelson Bitran Trindade, no qual faz uma análise do imigrante português através do olhar da chamada imprensa popular da cidade de Santos, São Paulo75. Pelo viés da militância política de oposição ao salazarismo organizada por portugueses exilados no Brasil, o trabalho de Douglas Mansur da Silva, intitulado “A Ética da Resistência: os exilados anti-salazaristas do Portugal Democrático (1956-1975)”, não deixa de ser um excelente e estimulante exemplo. Silva examina, com precisão e acuidade, “a trajetória de sete imigrantes portugueses, cujas histórias de vida são marcadas por migração política e exílio no Brasil”, através do jornal Portugal Democrático, que na sua avaliação “constitui-se de pronto em uma imensa fonte de dados a estudiosos do século XX português”76. A importância deste trabalho foi realçada por Bella Feldman-Bianco, na apresentação que ofereceu à edição portuguesa, lançada em Portugal com o título “A Oposição ao Estado Novo no Exílio Brasileiro (1956-1974)”, que merece ser destacada por se tratar de instigante contribuição no campo do etnoperiodismo na perspectiva dos antropólogos.

É certo que jornais fornecem preciosa documentação para pesquisadores interessados em reconstruções históricas. Mas Douglas Mansur da Silva, no decorrer da sua investigação, perspicazmente percebeu que o Portugal Democrático, para além de fonte de pesquisa, constituía o núcleo central de um movimento de oposição ao Estado Novo e ao regime salazarista, deflagrado a partir da cidade de São Paulo. Demonstra, assim, o papel crucial desempenhado pelos media impressos como veículos de circulação de ideias e de formação de redes políticas locais, nacionais e internacionais, no período estudado. Dessa perspectiva, examina os editoriais, artigos, notícias e charges publicados no jornal ao longo de quase vinte anos, com particular atenção aos que retratam situações de embates e conflitos através do tempo. Desvenda, destarte, os meandros, constrangimentos e complexidades que moldaram a composição, estratégias e busca de unidade desse núcleo – formado inicialmente por proletários e intelectuais de orientações políticas várias (republicanos, liberais, socialistas, comunistas) – e as diferentes etapas da sua persistente luta contra a ditadura em Portugal. Descortina, enfim, uma etno-história que expõe as relações dinâmicas entre o percurso desse núcleo e os

Portugueses no Brasil, segundo a Gazeta Luzitana (1883-1889). (Tese de doutoramento defendida no Departamento de História da USP, 1991). 75 TRINDADE, Joelson Bitran. “Piedade Lusitana: sobre a Imprensa e o Poder”. In Revista Brasileira de História, São Paulo, v 16 nº 31 e 32, 1996, p. 143/164. 76 Utilizamos o título inicial do projeto, posteriormente defendido como dissertação de mestrado na UNICAMP. SILVA, Douglas Mansur da. Visões sobre Portugal – nação, diáspora e estratégias de cidadania. São Paulo, UNICAMP, 1999. 137

múltiplos acontecimentos daquela efervescente época, discernindo como rumos, incluindo as cisões e as diferentes fases do movimento, foram impelidos seja por episódios luso-brasileiros – como, por exemplo, os protagonizados por Humberto Delgado e Henrique Galvão no Brasil, seja pelo impacto e influência da Revolução Cubana sobre os movimentos de esquerda, ou, posteriormente, pela eclosão de guerras coloniais em África e a política de direitos humanos nas Nações Unidas. Ao delinear esses cenários mais amplos que condicionaram a ação política e que culminaram na crescente influência do Partido Comunista Português sobre o movimento anti- salazarista, deixa-nos entrever a mobilização das esquerdas e especialmente a dos comunistas durante a Guerra Fria77.

Na sequência dessas abordagens que priorizam a análise do imigrante português a partir da sua própria imprensa, Flávia Miguel de Souza estudou o caso da revista Convergência Lusíada, ligada ao Real Gabinete Português de Leitura, e organizada por um pequeno grupo de portugueses letrados residentes na cidade do Rio de Janeiro que fundaram o periódico enquanto estratégia mobilizadora no sentido de reconstruírem uma imagem do imigrante português forjada por valores históricos e tradicionais portugueses tidos como símbolos da civilização europeia no Brasil.78 Por fim, duas comunicações de Geraldo Mártires Coelho intituladas “Uma Memória Tardia: propaganda e imigração portuguesa na iconografia republicana no Pará de 1910” e “Alegoria feminina e propaganda republicana no Pará de 1910”79, servem para mais um exemplo de que as abordagens que estão a priorizar a imprensa produzida por imigrantes portugueses residentes no Brasil, vêm conquistando espaços acadêmicos de real significação, ampliando cada vez mais o processo de construção de novas representações sobre a diáspora portuguesa na sociedade brasileira.

77 FELDMAN-BIANCO, Bella. “Apresentação”. In SILVA, Douglas Mansur da. A Oposição ao Estado Novo no Exílio Brasileiro:1956-1974. Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2006. – (Estudos e Investigações: 42), pp. 21/22. Ainda segundo Feldman-Bianco, depreende-se que: “Uma outra dissertação de mestrado de autoria de Ubirajara Bernini Ramos, intitulada Portugal Democrático. Um jornal de resistência ao salazarismo publicado no Brasil, defendida no Programa de Mestrado em História da PUC-SP em 2004, focaliza o mesmo jornal, mas voltado mais a examinar como esse veículo tratou importantes episódios durante o Estado Novo”. 78 SOUZA, Flávia Miguel de. Tradição, Civilização e Cultura: A Reconstrução da Imagem do Imigrante Português no Brasil através de um Estudo da Revista Convergência Lusíada (1976-1998). Rio de Janeiro, dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, novembro de 2002. Em 1999, a autora apresentou comunicação no XX Simpósio Nacional de História, realizado em Florianópolis, com o título: “A cultura portuguesa sob a perspectiva da revista Convergência Lusitana: 1976-1998”. 79 Comunicações apresentadas no âmbito do XX Simpósio Nacional de História, realizado em Florianópolis, em 1999. 138

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Resistência e Jornal Pessoal: Da ditadura militar à democracia na

Amazônia – Resistir é preciso

Célia Regina Trindade Chagas AMORIM Milene Costa de SOUSA Natália Cristina Rodrigues PEREIRA

Lanna Paula Ramos da SILVA

Resumo: Este artigo busca entender as transformações pelas quais as mídias alternativas na Amazônia, Resistência e Jornal Pessoal, passaram no contexto histórico da ditadura militar (1964-1985) e pós-ditadura. A primeira surgiu no regime ditatorial em 1978; e a segunda no ano de 1987, época de democracia estabelecida no Brasil. Essas publicações, que são mídias radicais, à luz dos estudos de John Downing (2002), começaram no meio impresso e no contemporâneo ganharam as páginas da web. O artigo, uma produção do Projeto Mídias Alternativas na Amazônia, estrutura-se em três pontos fundamentais: uma breve contextualização da ditadura militar e da redemocratização do Brasil e do cenário regional amazônico; os conceitos relacionados às formas de comunicação de resistência do período investigado; e a análise dos dois jornais.Os conceitos-chaves que ordenarão a presente reflexão são Mídia Radical Alternativa, redes e esfera pública alternativa.

Palavras-chave: Mídias alternativas. Amazônia. Redes. Esfera pública alternativa.

A América Latina, a partir da segunda metade do século passado, foi assolada por ditaduras militares –Argentina (1962 a 1983), Chile (1973 a 1990), Brasil (1964 a 1985) – sustentadas pelos Estados Unidos. O período era o da Guerra Fria que apresentava de forma evidente dois inimigos políticos e ideológicos que disputavam a hegemonia do mundo: Estados Unidos, sob a égide do capitalismo; e União Soviética, de matriz socialista. No Brasil, a ditadura teve início com a tomada do poder pelas forças armadas brasileiras, sob o pretexto de que a ação era necessária para o mantimento dos processos democráticos contra a ameaça comunista que poderia se instalar no país. Os pesquisadores Petit e Cuéllar (2012, p.180) afirmam que apesar de ser evidente a centralização das Forças Armadas na tomada do golpe de estado no Brasil a partir de 1964, com o apoio ideológico dos Estados Unidos, não se pode deixar de observar que a natureza da ditadura no país foi no âmbito civil-militar, já que contou 141

com apoio, proteção e subserviência de setores da sociedade civil como empresários e grandes fazendeiros, políticos conservadores, uma parcela significativa da hierarquia da Igreja Católica e dos meios de comunicação de massas.

Foram esses setores que alimentaram durante anos, sobretudo a partir de 1961, a luta contra os reformistas-populistas e contra a crescente influência na sociedade brasileira dos partidos e organizações de esquerda, especialmente o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Tal constatação se impõe sem desmerecer, nunca, o apoio ideológico, econômico e militar do governo dos Estados Unidos aos golpistas no contexto internacional da Guerra Fria e do impacto no continente americano da Revolução Cubana e, portanto, da disputa político-ideológica entre partidários do sistema capitalista e socialista no mundo. (2012, p. 170).

Na Amazônia brasileira a adesão dos meios de comunicação de massa tradicionais à ditadura civil-militar contou como moldura as sucessivas propagações em suas páginas dos planos desenvolvimentistas para a região, à moda do “integrar para não entregar”, mas também reforçavam em seus discursos verbal ou imagético os possíveis perigos do “comunismo ou da ameaça vermelha”. Petit e Cuéllar, (2012) ao observarem a imprensa do Estado do Pará, afirmam que

Tratava-se de matérias que "desqualificavam" o ideário marxista como estratégia de embate ideológico que permeou a Guerra Fria. Os artigos versavam sobre o "Perigo Vermelho", "Cubanização", "Avanço Comunista" e outras expressões que instigavam os leitores a pensar esse regime sócio-político- econômico como um inimigo a ser combatido (Velarde, 2005; Sousa, 2011, Apud, Petit e Cuéllar (2012, p.180-1).

Como os meios de comunicação de massa pautaram suas páginas pela agenda dos militares, ora imprimindo os perigos do comunismo e outros temas correlatos, ora ressaltando os planos de desenvolvimento para a Amazônia ou as conquistas alcançadas com o "milagre econômico" brasileiro e com a vitória da seleção de futebol na Copa do Mundo de 1970, outros veículos de comunicação tiveram que ser criados para garantir informações de interesse público não ligadas ao regime militar. E nesse período que há um “boom” de pequenos jornais alternativos no Brasil que tinham, dentro da diversidade de cada projeto, um ponto em comum:

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O que identificava toda a imprensa alternativa era a contingência do combate político-ideológico à ditadura, na tradição de lutas por mudanças estruturais e de crítica ortodoxa a um capitalismo periférico e ao imperialismo, dos quais a ditadura era vista como uma representação. (KUCINSKI, 2001, p.6).

É desta época os jornais alternativos O Pasquim (1969), Em Tempo (1977), O Movimento (1975). Na Amazônia destacavam-se os jornais Varadouro (1977), do ; Nanico (1979) e Resistência (1978), de Belém do Pará. Este último, objeto de análise do presente artigo, ainda sobrevive na Amazônia, com página na internet. Diversos acontecimentos levaram ao fim os 21 anos de ditadura civil-militar, quando o Brasil pôde enfim se redemocratizar. Segundo o sociólogo Marco Aurélio Nogueira (2007), essa redemocratização no país começou antes do fim do governo militarista. Em um primeiro momento, o autor (2007, P.206) delimita o período a partir do ano de 1975 (quando ocorreu a morte do jornalista Vladimir Herzog), ao ano de 1988, quando foi aprovada a nova constituição brasileira. Por outro lado, Nogueira sugere que a redemocratização pode ter outros momentos que servem como pontos iniciais: a realização de uma eleição direta em 1989; a estabilização econômica realizada no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso em 1994; a eleição de Lula em 2002 – vindo do movimento operário – para a Presidente da República. Apesar da tentativa de demarcar em períodos o início da redemocratização no Brasil, Nogueira admite que não há como definir uma data precisa para início do processo, pois o fim de uma ditadura “(...) só se completa quando se co nsegue dar início à edificação de um regime firmemente comprometido com a democracia, legitimado socialmente e sustentado por uma cultura pública revigorada. (NOGUEIRA, 2006, p. 206). Mas, à medida que o país avança - levando-se em consideração que o fim do regime militar é recente - se pode visualizar mecanismos de fortalecimento democráticos como o processo de eleições diretas e seu aperfeiçoamento no país, em que cada cidadão pode escolher seus representantes políticos; a participação de cidadãos ativos em movimentos sociais lutando por melhores condições de vida; o número

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ascendente de atores sociais que utilizam canais de comunicação, como os populares e alternativos, dentre outros. Especificamente neste artigo, analisam-se dois meios de comunicação contra hegemônicos, o Jornal Resistência (1978) e o Jornal Pessoal (1987), de conteúdo crítico-emancipador, sobreviventes do período de ditadura militar e de redemocratização pelo qual o Brasil passou a partir de 1985. Hoje, essas publicações podem ser encontradas não só no formato impresso como também em páginas na internet e continuam a denunciar e compartilhar informações omitidas da sociedade amazônica. Este compartilhamento de informações por essas mídias alternativas se reveste de uma grande importância na Amazônia. Primeiro porque a internet contribuiu para que pessoas de todas as partes do planeta compartilhem e produzam conteúdos, diminuindo as barreiras geográficas, que no caso específico da região são enormes. E em segundo: o número de pessoas na Amazônia que têm acesso a computadores com internet ainda é pequeno em relação às outras regiões do País. O Estado do Pará é um exemplo de tal situação: em 2010, a Fundação Getúlio Vargas produziu o Mapa da Inclusão Digital, um estudo que mostra que apenas 13,75% dos domicílios paraenses possuem computadores com acesso à internet, enquanto São Paulo possui 48,22% de seus domicílios com igual acesso. O objeto de análise deste artigo se concentra nas formas que, enquanto mídias alternativas, o Jornal Resistência e o Jornal Pessoal, assumiram no período da ditadura militar até os dias atuais, estudando a maneira pela qual se apropriaram das tecnologias disponíveis em cada contexto histórico para a manutenção de suas atividades de resistência na região, desde o nascimento no meio impresso até a adaptação dos jornais ao meio online e as redes de solidariedade que se formaram a partir dessa mudança.

Mídias alternativas, Redes, Esfera pública alternativa A luta por direitos sagrados de cidadania ativados por atores sociais de movimentos populares, tanto no período da ditadura quanto no pós-ditadura até os dias atuais, mantém-se firme e se readequando às mudanças de contexto no campo político, econômico, cultural, tecnológico e ideológico pelo qual o país atravessa.

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É nesta perspectiva que se afirma que durante a ditadura civil-militar, a imprensa alternativa, como era chamada no período, era um dos principais meios a serem utilizados por grupos de esquerda, intelectuais, jornalistas e populares para combater o regime. Os jornais eram vendidos nas cidades em bancas de revistas ou clandestinamente. Outros eram distribuídos em pequenos vilarejos da floresta amazônica de forma gratuita. Tinham como pauta a censura, a luta pela democracia do País, a denúncia contra as violações do direito do homem. Com a consolidação da democracia brasileira, os meios de comunicação alternativos - alguns sobreviveram ao período ditatorial e pós ditadura, inseriram-se no universo multimidiático em rede e passaram a pautar conteúdos mais diversificados, “de enfoques críticos e contestadores; aos políticos e educativos e até os literários e artísticos” (PERUZZO, 2008, p.13). Os estudos do pesquisador John Downing (2002) são fundamentais para se entender, de forma mais ampla, o caráter e abrangência desses meios de comunicação contra hegemônicos na contemporaneidade. Downing (2002) chama de mídia radical alternativa para as inúmeras formas de comunicação como o teatro de rua, a dança, o grafite, a literatura, as rádios comunitárias, as pichações de autoria desconhecidas encontradas em banheiros, as canções, os discursos orais e escritos no meio impresso, dentre outras, que “expressam uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas hegemônicas” (2002, p.22). Segundo Downing, as mídias radicais são uma “resistência a múltiplas fontes de opressão” (2002, p. 53) exercida por diferentes setores da sociedade. Muitas vezes surgem em tempos de conflitos e tensões políticas como em períodos de ditaduras, guerras, ou em sociedades nas quais a dominação cultural gera uma situação de opressão. Para ele, essa mídia “expande o âmbito das informações, da reflexão e da troca a partir dos limites hegemônicos, geralmente estreitos, do discurso da mídia convencional” (2002, p. 81), destacando vozes por vezes ridicularizadas ou assuntos omitidos nos grandes meios de comunicação. Ao trabalhar o conceito de esfera pública alternativa, Downing utiliza o estudo de Habermas e de outros pensadores posteriores, como os críticos marxistas Oskar Negt e Alexander Kluge. Esses autores discordavam do pensamento de Habermas que

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acreditava que a esfera pública havia desaparecido. Eles afirmavam a existência de uma esfera pública proletária na contemporaneidade (2002, p. 63) como zonas alternativas para o debate e a reflexão na sociedade. A esfera pública alternativa vem se reconfigurando com os avanços tecnológicos. De acordo com Castells (1999), a internet, a Rede das redes, aumentou o poder de participação de grupos diversos na produção de informação, possibilitou um maior fluxo de informações de longo alcance e em um menor espaço de tempo. A rede porém, está longe de promover a igualdade social no campo eletrônico:

O processo da formação e difusão da internet e das redes de CMC a ela ligadas nos últimos 25 anos moldou de forma definitiva a estrutura do novo veículo de comunicação na arquitetura da rede, na cultura de seus usuários e nos padrões reais de comunicação. A arquitetura da rede é, e continuará sendo, aberta sob o ponto de vista tecnológico, possibilitando amplo acesso público e limitando seriamente restrições governamentais ou comerciais a esse acesso, embora a desigualdade social se manifeste de maneira poderosa no domínio eletrônico. (CASTELLS, 1999, p.441).

Entretanto, muitos grupos ou atores sociais viram na internet um espaço de oportunidade para emitir informações e opiniões por meio dos processos de comunicação alternativa, revolucionados pela comunicação mediada por computador (CMC), ganhando novos formatos e feições (PERUZZO, 2008, p.14). Dênis de Moraes (2007) compreende a internet como uma “arena de lutas e conflitos pela hegemonia, vale dizer, de batalhas permanentes pela conquista do consenso social e da liderança cultural-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre as outras” (2007, p. 1). Isso significa dizer que as lutas que antes eram travadas entre as classes sociais não desapareceram, ao contrário migraram também para o meio virtual. Para o autor, as mídias alternativas devem ter comprometimento com as mudanças sociais e utilizar o espaço virtual de forma democrática. Tal prática é ainda mais importante em países periféricos em que as desigualdades sociais são mais visíveis, como no Brasil. Entretanto, Moraes adverte que as discussões podem ter início na internet, exatamente pela diversidade de conteúdos e facilidade de contato entre atores sociais que ela favorece, mas as soluções devem acontecer no mundo físico, onde

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as transformações sociais podem de fato ocorrer. “Estou convencido de que é no território físico, socialmente vivenciado, que se travam e se travarão as lutas decisivas por uma outra comunicação e um outro mundo possíveis”. (MORAES, 2007, p. 17).

Jornal Resistência Em 1977, ainda sob o manto da ditadura civil-militar, foi criada no Pará a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) com a finalidade de lutar contra as violações aos direitos humanos ocorridas na Amazônia e a favor da anistia dos presos políticos do país. Os estudos de Paulo Ferreira (2009, p. 01) indicam que a entidade foi organizada por “lavradores, profissionais liberais, funcionários públicos, estudantes, religiosos, operários da construção civil e gráficos” ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) (2009, p. 01) que se posicionavam contra o regime imposto no país e na fronteira Norte do País. Para fortalecer a luta, a SDDH lançou, em 1978, o Jornal Resistência.

Figura 1: Fotos de algumas edições impressas do Jornal Resistência.

Fonte: Projeto Mídias Alternativas na Amazônia, 2014.

Com o lema “Resistir é preciso”, o objetivo do jornal à época, segundo a professora da UFPA e colaboradora do alternativo, Rosaly Brito7, era alertar sobre as pressões comandadas pelo governo militar na Amazônia, lutar contra os problemas sociais que a região enfrentava devido à implantação de grandes projetos na região e denunciar os constantes massacres de índios, colonos e posseiros que se posicionavam contrários à utilização da Amazônia apenas de forma mercadológicas (BRITO, 2013, p.

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5). Enquanto a mídia convencional enfatizava ora as riquezas contidas na Serra dos Carajás, no Sudeste do Pará; ora o projeto do governo brasileiro para a exploração mineral, o Resistência se preocupava em expor as “lutas contra os latifundiários da castanha, a chegada dos pecuaristas mineiros e paulistas, e os capixabas, do extrativismo madeireiro” (FERREIRA, 2009, p. 6). Ao possuir uma linha editorial de contra hegemonia na Amazônia, apoiando diversos movimentos sociais e políticos, a equipe responsável pela publicação sofreu ameaças e atentados violentos durante o regime militar. Ferreira (2009) registra que a quinta edição do jornal continha depoimentos de quatro ex-presidiários políticos que foram torturados por policiais no Ministério do Exército. Por este motivo, antes que as edições fossem colocadas à venda, os jornais foram apreendidos pela Polícia Federal. Diante de tanto arbitrariedade, distribuir o jornal no estado Pará, nas cidades e em áreas de floresta, se tornou tarefa difícil de ser exercida, e poucas bancas de revistas aceitavam vender o jornal. Com a abertura política no país preparando o processo de redemocratização, o Resistência enfrentou crises financeira e política. A financeira, típica da natureza alternativa desses meios de comunicação, que não eram voltados para o mercado e dependia do trabalho voluntário de jornalistas e outros atores sociais que compartilhavam a ideologia do jornal; e no campo político, parte considerável dos jornalistas eram ligados ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e acreditavam que a proposta editorial do jornal deveria estar em sintonia com o que era pregado pelo partido. Todos esses fatores, acrescidos da brutal recessão econômica, que debilitava as finanças da SDDH, mais os prejuízos causados pela censura, contribuíram para, junto com as divergências ideológicas, encerrar a participação do Resistência, uma das mais saudáveis experiências da imprensa alternativa no Norte do Brasil. (FERREIRA, 2009, p. 16) Depois de um longo tempo sem ser publicado, a SDDH resolveu retornar ações do jornal aproveitando a rede mundial de computadores, a internet. Esta rede possibilita um

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maior acesso público às informações, com menores restrições governamentais e comerciais (Castells,1999). Hoje existe uma versão online do Resistência, em formato PDF na internet. Foram criados também um blog, uma página no Facebook e um perfil no Twitter. Esses redes sociais são atualizadas diariamente. O leitor que desejar receber um resumo de notícias publicadas no blog no decorrer da semana pode mandar um e-mail solicitando o “Boletim Resistência Online”, com links de notícias diversas.

Figura 2: Página do Jornal Resistência no Facebook.

Fonte: (https://www.facebook.com/resistenciaonline?fref=ts), 2014.

Figura 3: Imagens do Blog e do Twitter do Jornal Resistência

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Guardadas as devidas proporções de contexto histórico e de atores sociais envolvidos em cada projeto do Resistência impresso e do online, a cobertura da Amazônia é central. Na pauta das mídias sociais do Resistência online há os prejuízos ambientais que a região e as populações tradicionais sofrem com a construção da usina de Belo Monte, a concentração fundiária e grilagem de terras na Amazônia.

Figura 4: Charge do Resistência on line sobre a usina de Belo Monte.

Fonte: (http://jornalresistenciaonline.blogspot.com.br/p/arquivo.html), 2014.

Há também registros pelas mídias sociais das opressões e torturas que a equipe do jornal sofreu no período da ditadura civil-militar, a invasão da sede da SDDH por policiais em 1984 e relembrada na edição do jornal Resistência de agosto de 2013; o assassinato de Paulo Fonteles (primeiro presidente da SDDH) por pistoleiros em 1987 por atuar como advogado de posseiros no violento Sul do Pará, dentre outros temas. O Resistência continua na luta por uma história que ainda precisa ser revelada na região e também instrumento de resistência contra as consequências deixadas pelo mando da ditadura militar na região e planejamentos políticos posteriores.

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Jornal pessoal Em setembro de 1987, quando o Brasil estava trilhando os passos da redemocratização, foi lançado pelo sociólogo e jornalista Lúcio Flávio Pinto a primeira edição do Jornal Pessoal, que apresentou como matéria de capa o assassinato do ex- deputado Paulo Fonteles. Nesta edição inaugural,o jornalista traça um roteiro do esquema utilizado por poderosos fazendeiros da região amazônica para assassinar Fonteles, até detalhes sobre os mandantes do assassinato, que continuaram impunes. Pela natureza da situação e envolvimento no crime de pessoas influentes no Pará, jornais como O Liberal, para o qual o jornalista trabalhava, não publicaram o material jornalístico. A falta de apoio levou Lúcio Flávio Pinto a criar o Jornal Pessoal.

Figura 5: Imagem da primeira edição do Jornal Pessoal, de 1987.

Fonte: (http://chargesdojornalpessoal.blogspot.com.br/2012/06/primeira-edicao.html), 2014

Hoje com 27 anos de existência, o jornal é reconhecido como uma das mídias alternativas mais antigas e influentes da Amazônia e do Brasil (AMORIM, 2008); possui uma tiragem de 2 mil exemplares em Belém – capital do estado do Pará, região Norte do Brasil – e em 2008 entrou na internet, sendo acessível a leitores de todas as partes do mundo, por meio de sua versão digital na página oficial do jornal (http://www.lucioflaviopinto.com.br). O website da University of Florida Digital Collections (UFDC)8 disponibiliza uma boa parte da coleção do jornal.

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O fato de o Jornal Pessoal não contar com nenhum tipo de publicidade, possibilitou a Lúcio Flávio Pinto a independência necessária para escrever, denunciar e cobrar posições do governo e da sociedade sobre os graves acontecimentos amazônicos, rompendo as censuras impostas em período de democracia restabelecida. Diferentemente da censura da ditadura civil-militar, na Amazônia predomina uma “pressão velada” na qual o próprio sistema político e judiciário favorece grandes proprietários de terra, empresários, e pessoas que ocupam cargos influentes na região. Abusos políticos, corrupção, grilagem de terras terminam quase da mesma forma: em impunidade. O caso Fonteles é um exemplo dos muitos registrados na região.Como não se pode fechar jornais alternativos e tampouco fazer apreensões de edições como à época da ditadura, a história do Jornal Pessoal se confunde com uma multiplicidade de ações judiciais no Tribunal de Justiça do Pará (TJE-Pa) contra o jornalista Lúcio Flávio Pinto: são 33 processos na justiça de Belém. Pela relação de dependência entre os grandes veículos de comunicação com o sistema político e econômico no Pará, uma boa parte dos acontecimentos é omitida pela imprensa local e divulgada apenas em jornais alternativos como o Jornal Pessoal. Atualmente, os dois jornais impressos mais vendidos em Belém, capital do Pará, são O Liberal (1946) pertence às Organizações Rômulo Maiorana (ORM), e o Diário do Pará (1982) da família de , que ocupou importantes cargos políticos no estado nos últimos 40 anos. A página oficial do Jornal Pessoal na internet disponibiliza reportagens no meio impresso integralmente, com o acesso permitido após o cadastro do usuário no website. A abertura das discussões sobre as questões regionais no meio digital tornou possível uma maior democratização das notícias, ampliando a esfera pública, que antes era local. A adesão do Jornal Pessoal e do Resistência ao mundo virtual permitiu também a criação de redes de apoio aos jornais. O Jornal Pessoal se articula em rede com seus leitores por meio de duas frentes: por meio do perfil do jornalista Lúcio Flávio Pinto no Facebook, criado por leitores do jornal, que já atingiu mais de 5.300 curtidas; além do compartilhamento de reportagens escritas pelo jornalista em diversos meios de comunicação online.

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Figura 6: Imagens da página online do Jornal Pessoal e da página do Facebook.

A segunda frente diz respeito à rede de colaboração ao jornalista criada como forma de protegê-lo das injustiças político e jurídicas sofridas pelo jornalista ao longo da existência do jornal. Como exemplo destaca-se a Rede Somos Todos Lúcio Flávio Pinto que conta com o apoio de internautas (Amorim, 2013) que, por meio das mídias sociais Facebook e Twitter, decidiram ajudar o jornalista contra possíveis condenações na justiça. Uma delas diz respeito a condenação referente a uma reportagem publicada no Jornal Pessoal, em que Lúcio Flávio Pinto cita Cecílio Almeida, então dono da Construção C. R. Almeida, como um dos maiores grileiros de terra do país, chamando-o de “pirata fundiário”. O poder da rede permite a formação de laços que ultrapassam as barreiras geográficas. As discussões, que antes ficavam restritas a pequenas áreas, hoje chegam ao conhecimento de novas audiências, que podem intervir, questionar e até transformar uma dada situação, criando as redes de que fala Castells (2002). O autor argumenta que a internet favorece a criação na rede dos chamados laços fracos, que se mostram fontes importantes de informações e apoios: A internet favorece a expansão e intensidade dessas centenas de laços fracos que geram uma camada fundamental de interação

social para as pessoas que vivem num mundo tecnologicamente desenvolvido. São redes sociais interpessoais, em sua maioria baseadas em laços fracos, diversificadíssimas e especializadíssimas, também capazes de gerar reciprocidade e apoio por intermédio da dinâmica da interação sustentada. (CASTELLS, 1999, p. 445).

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A internet passou a ser estratégica para o Jornal Pessoal.Com o auxílio dessas interações sociais que se formaram na rede, constituídas por leitores, jornalistas, atores e movimentos sociais, organizações não-governamentais, e outros, Lúcio Flávio Pinto conseguiu arrecadar o valor solicitado pela justiça brasileira – 25 mil reais – e pagou a indenização à família do grileiro, já que Cecílio do Rego Almeida faleceu em março de 2008. Em decorrência de todos os obstáculos que o Jornal Pessoal enfrenta, observa-se que o alternativo preserva o direito à informação na região, democratizando assuntos de uma Amazônia que muitos ainda não conhecem.

Conclusão

Na Amazônia, as mídias alternativas têm um papel fundamental na luta pela democratização da comunicação. Os jornais alternativos, impresso ou digital, expõem uma resistência a toda forma de opressão na região, seja no campo político, econômico, agrário e de comunicação. Na atual configuração política, os meios de comunicação regionais fazem parte de grandes empresas midiáticas, como é o caso do jornal O Liberal, pertencente às Organizações Rômulo Maiorana, afiliada à Rede Globo de Televisão. Dependentes dessas ligações com conglomerados nacionais e internacional, os meios de comunicação locais ficam reféns do que pode ou não ser divulgado para não prejudicar a imagem e acordos financeiros das organizações das quais são subordinadas. É nesse contexto que sobrevivem as mídias alternativas na região. A migração para a internet favoreceu a ação dessas formas de comunicação por se tratar de um meio mais barato de produção e distribuição de informações. A esfera pública alternativa de temáticas áridas da Amazônia (conflitos agrários, grilagem de terras, trabalho escravo) foi ampliada consideravelmente. Este fator tornar-se ainda mais relevante dada às dimensões da fronteira Norte do País. O que antes circulava apenas na região passou ser compartilhado globalmente. Apesar das dificuldades de acesso à internet na região, as mídias como Resistência e Jornal Pessoal têm contribuído para alimentar a esfera pública alternativa de forma planetária. Os problemas das populações locais e de movimentos sociais encontram um

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lugar de exposição e debate nas páginas desses meios para forçar conquista, apoios e soluções amazônicas.

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A articulação de jornais e espaços públicos na Ilustração Inglesa (1700- 1820)80

Luís Francisco Munaro81

Resumo: O Iluminismo, pensado a partir de sua vinculação com os espaços de sociabilidade, sua dependência do trânsito, circulação a apresentação contínua da novidade e da diferença, caracteriza uma transformação contínua na organização da cidade. Habermas notou essa importância ao sugerir o papel dos cafés e salões para a formação de um círculo de retroalimentação entre os escritos ilustrados e as conversações: as conversas alimentavam a pauta periódica dos jornalistas, tanto quanto os jornais reforçavam determinados círculos de conversação. James van Horn Melton trouxe nova luz ao estudo desses espaços oferecendo um panorama mais completo relativo ao seu papel de abrigar uma cultura da interação ou da conversação. Nosso interesse, no âmbito deste artigo, é perceber como essas transformações de espaço abrigaram uma nova forma de cultura escrita, ligada à regularidade e linearidade, a que se chama, hoje, jornalismo, intimamente dependente do esforço interativo.

Palavras-chave: Iluminismo; Jornalismo; Ilustração britânica; Taverna; Modernidade.

As práticas e representações modernas não nasceram de forma súbita dos escombros do Antigo Regime e nem concernem à realização de um futuro escatológico no qual a Razão aparece como a madrinha dos mais altos valores humanos e sua possibilidade suprema de realização. Ao contrário dessa visão teleológica que baliza o moderno entre dois pontos fixos, a modernidade se realiza permanecendo vinculada a um discurso tradicional em que o passado, longe de se tornar relíquia, resiste no bojo da política crescente de racionalização e instrumentalização dos espaços levada a cabo pelos homens do Iluminismo. Estudar a consolidação das práticas modernas é um esforço que diz respeito à investigação dos espaços urbanos específicos que materializaram o ânimo teórico presente no discurso das Luzes. Existem, supomos, bons ganhos compreensivos quando optamos por vincular a discursividade característica do Iluminismo com a materialidade dos espaços de socialização que demarcam novas formas de subjetivação e

80 Trabalho apresentado no GT Historiografia do III Encontro Regional Norte de História da Mídia. 81 Docente do Curso de Jornalismo na UFRR. 157

circulação de seres humanos, considerando, assim, que a abordagem compreensiva traz implícita a possibilidade de, segundo Pierre Rosanvallon, “configurar genealogias de possibilidades e impossibilidades que estruturam os horizontes dos atores” (2010, p. 48). De fato, especular as possibilidades de diálogo e trânsito de atores considerados porta- vozes das Luzes a partir dos espaços que freqüentara, é avançar no que diz respeito ao esforço compreensivo da modernidade. No que concerne à dificuldade de estudar o período de dispersão das Luzes, Lynda Nead lança importantes questões em seus estudos sobre a cidade Vitoriana. Ao mesmo tempo em que as práticas e discursos modernos investiam numa transformação radical do espaço urbano, as crenças dos citadinos resistiam ao fluxo torrencial das mudanças. Esse pano de fundo material que constitui a cidade se torna um agente das mudanças em curso, nunca se mantendo inativo a elas, como se fosse o palco de um teatro (de forma que, inclusive, “teatro das Luzes” não parece ser uma boa expressão). Ela não apenas ajuda a estruturar as ações dos indivíduos como toma parte ativa nelas, ajudando a configurar olhares, práticas, modos de vida e discursos (NEAD, 2000, p. 8). A cidade, portanto, constitui um importante documento para a compreensão das formas de viver e atua como um condicionante dessas mesmas expressões de vida. A secularização da cidade faz parte das práticas modernas.Isso implica numa diferença radical no olhar e no se relacionar com os outros e experimentar o mundo. Em seu estudo Galáxia de Gutenberg (1972), Marshall McLuhan observava que novos condicionamentos psíquicos surgiam com a iminência de novas práticas sociais, como aquela que diz respeito à impressão e disseminação de material escrito. Jonathan Crary,ao estudar as formas de olhar no século XIX, percebe que o confrontamento do indivíduo com a cidade em pleno processo de modernização inclui transformações substantivas nas formas de enxergar o mundo. Ou seja, há uma objetualização do mundo levada a cabo pelo observador cada vez mais isento de relações subjetivas que, segundo a crença iluminista, poderia danificar a apreensão do “mundo em si mesmo” (1990, pp. 10-1). Essa discussão de caráter mais propriamente fenomenológico ajuda a dar uma dimensão das transformações substantivas nos espectros de ações dos indivíduos, limitados como eram pelas mutações dos ambientes vividos. É evidente que a transformação destes ambientes está ligada à emergência de novas formas de discursividade e cultura política, aspectos importantes da historiografia.

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Não obstante, o que nos importa sobretudo no espaço desse artigo são os meios que disponibilizavam o trânsito desses discursos e seu espraiamento, lembrando que um Voltaire sem papel escrito, sem teatro ou sem salões, não teria, senão no reino da metafísica, se tornado Voltaire. O Iluminismo foi alimentado por uma cultura de interação que tornou o intercâmbio entre os indivíduos constante, a ponto de, muito pertinentemente, Lawrence Klein chamá- lo de “Iluminismo como conversação” (KLEIN, 2001, p. 148). Tanto quanto os espaços, importantes para a circulação desses indivíduos, era o material impresso que, nesse caso, fazia parte de uma nova forma de olhar para o mundo.Como lembra Carla Hesse, “printing and publishing were thus not only the most important cultural mechanisms for the spread of Enlightenment ideas; printing and publishing were the embodiment of the Enlightenment in action; the medium was the message - spreading light” (HESSE, 2004, p. 368). Observando a materialidade que encarna os discursos iluministas pretendemos lançar questões sobre a vivência urbana, suas possibilidades e limitações dentro das práticas das Luzes. Isto diz respeito a revitalizar o substrato que a cidade ofereceu para a grande opulência e desenvolvimento de material escrito, subsidiando um surto de publicações profissionais e opiniões profissionalizadas, que Habermas situa no limiar da formação de uma opinião pública. Quem dá conta dessa nova tarefa urbana que consistia em racionalizar o tempo e o espaço urbanos são os literatos que documentam a crescente mercantilização do ofício do escritor, a perda dos altos valores culturais clássicos em detrimento de uma escrita rápida e acessível ao maior número, o que é, indiscutivelmente, característica do jornalismo enquanto uma prática organizadora dessa nova forma de urbanidade. Alexander Pope e Jonathan Swift, por exemplo, mencionam as transformações literárias por que passa Londres junto com seus espaços. Os grandes literatos ingleses são confrontados diariamente com um universo mental insalubre para a atividade intelectual. Seus grandes esforços teriam sido vilipendiados em prol da mediocridade literária da atividade jornalística. Uma multidão de escritores ressentidos e pobres, excluídos do sistema de premiação literária, se concentrava na Grub-Street, rua tornada topônimo para toda uma forma de vida literária na cidade (ROGERS, 1972, p. 13).

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O Iluminismo, que aqui pretendemos apresentar em sua vinculação com os espaços londrinos, em sua dependência do trânsito, circulação a apresentação contínua da novidade e da diferença, caracteriza uma transformação contínua na organização da cidade (GOODMAN, 2001, p. 130). Habermas notou essa importância ao sugerir o papel dos cafés e salões para a formação de um círculo de retroalimentação entre escritos e conversações: as conversas alimentavam a pauta periódica dos jornalistas, tanto quanto os jornais reforçavam determinados círculos de conversação (2003, p. 59).James van Horn Melton continua o estudo habermasiano desses espaços sugeridos como primeiramente salões e cafés (2003) e amplia a gama de espaços, oferecendo um panorama mais completo de seu papel de abrigar uma cultura da interação ou da conversação. Nosso interesse, no âmbito deste artigo, é perceber como essas transformações de espaço abrigaram uma nova forma de cultura escrita, ligada à regularidade e linearidade, a que se chama, hoje, jornalismo, intimamente dependente do esforço interativo.

1. A imprensa na organização de Londres Entender todo o fenômeno que transformou a vida social europeia – e não só da Europa – a partir apenas do círculo de intelectuais ligados à Encyclopèdie diminui a inteligibilidade da grande variedade de práticas e representações envolvidas na cultura das Luzes. Alguns esforços de desconstrução do pensamento do século XVIII comprovam os ganhos de não se investir apenas nos grandes escritos consagrados pelo público. Para tanto é possível mencionar como Robert Darnton, por exemplo, descobriu nas canções populares um rico material de estudos para se entender as transformações da vida e informação na cidade iluminista (DARNTON, 2005). Ou, de outra forma, Pierre Rosanvallon, ainda que tenha concentrado suas buscas históricas nos escritos considerados fundamentais para a inteligibilidade do Iluminismo, considerou-os não como arcabouços fechados de ideias consolidadas por práticas fechadas de negociação literária, mas sim como o substrato vivo da fermentação de mudanças de toda uma época. Como ele fez, por exemplo, ao tratar o liberalismo como uma cultura e modo de vida, um sistema operativo imbricado à vivência cotidiana dos indivíduos, antes do que um conjunto de ideias enunciadas por philosophes cercados por pilhas de livros (ROSANVALLON, 2002). São apenas exemplos de um olhar mais amplo que torna o fenômeno iluminismo tanto mais difícil de capturar quanto

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surpreendente de estudar.Isso implica considerar seriamente, em primeiro lugar, a limitação da asserção de Ernest Cassirer que, na esteira de Peter Gay, afirma que “Enlightenment, which is still usually treated as an ecletic mixture of the most diverse thought elements, is in fact dominate by a few great fundamental ideas expressed with strict consistency in exact arrangement” (CASSIRER, apud.WRIGHT, 2001, p. 88). A importante obra de Ernest Cassirer parte assim do ponto de vista de que a experiência letrada concentrada em torno da produção dos philosophes poderia caracterizar de forma ampla a experiência social iluminista. Como lembra Roy Porter, a tendência em limitar a caracterização do Iluminismo a grupos de indivíduos pensantes acabou impedindo a depuração de outras experiências vinculadas ao mesmo movimento. Segundo o autor, essa visão estereotipada do iluminismo teria limitado a concepção histórica e filosófica do movimento a uma dispersão uniforme do pensamento transgressivo francês:

Enlightenment itself is still a black hole in English historiography. Because, despite the recent advances in historiography which I have been discussing, the Enlightenment in England has continued to suffer almost total neglect. This is partly because general Enlightenment historians such as Peter Gay insist on the essential unity of the Enlightenment, which is then defined largely in terms of the French experience in the age of Voltaire. The Enlightenment is thus seen as a systematic, comprehensive, radical - even - revolutionary critique of the roots of the ancien régime, spearheaded by a militant secularism whose motto was écraser l'infâme. Clearly, eighteenth century England did not wage battles such as these. But English elites - the equivalents of the philosophes - did not need to. They lived in a state which, as the French philosophes applauded, already embodied the Enlightenment in its constitutionality, representative government, freedom of person, religion, property and speech (PORTER, 1994, p. 253).

A peculiaridade do Early Enlightenment na Inglaterra, resultado direto da Revolução Gloriosa e suas conseqüências políticas mais próximas, tornou os projetos de liberdade típicos que se tornariam reivindicação dos philosophes franceses um símbolo da própria constitucionalidade britânica. Essa constitucionalidade garantia a liberdade individual e, portanto, a liberdade de reunião e trânsito de ideias, o que tornou várias das reivindicações francesas inúteis na Grã-Bretanha e tornou possível a realização precoce de uma esfera pública burguesa britânica. Retomar a noção habermasiana dessa esfera é importante para caracterizar as noções aqui em jogo. A expressão tem sido repetida continuamente e cada vez mais se perde em anacronismo (Cf. HABERMAS, 2003, p. 42).

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A organização da esfera pública na Inglaterra caracterizou desde cedo o amadurecimento de uma produção periódica regular, destinada às pessoas privadas. Isto é, como explicitaremos adiante, destinados explicitamente à esfera doméstica em detrimento daquela organizada, em última instância, em torno da corte (MELTON, 2001, p. 7). Essa garantia constitucional tornou um imperativo da vida política a sua inserção criativa no debate impresso, ainda que, durante um bom tempo, os jornais se desentrosaram de uma entrada decidida no espaço público. Alexander Pope dá testemunhos importantes sobre a energia do material escrito periódico em Londres. Em 1729, ele descreve o surgimento de uma imprensa regular como forma de deterioração da cultura escrita. O fato de ele verbalizar precocemente essa denúncia comprova a importância do jornalismo na organização da vida diária em Londres:

Pope, no doubt because he lived at the beginning of a new era of popular publishing and weekly journalism, took a firm stand against the upstairs whom he saw invading the enclosed territory of literature. In the Dunciad of 1729 it is partly the type that he is attacking: the pedantic scholar like Hearne or Theobald; the weekly journalist like Roome and Concanen; the party hack like Oldmixon; the popular writer like Mrs Centlivre, Mrs Haywood, Ned Ward, or the author of Robinson Crusoe; the shameless publisher like Edmund Curll (WATT, apud. ROGERS, p. 188).

Grub Street, mais do que uma rua, tornou-se um topônimo para a crescente ou deteriorada atividade literária da cidade de Londres. Considerar os escritos que pululavam na Grub Street implica ampliar o entendimento da esfera pública literária sugerida por Habermas, na medida em que abarcava escritores incapazes de se inserir no debate impresso racionalizado sobre formas possíveis de governo, quer dizer, simplesmente disseminando intrigas contra o rei e seus ministros. De início, com Addison e Steele, o jornal procura demarcar sua independência da esfera política, sugerindo um ambiente doméstico independente. A formação da imprensa britânica no início do século XVIII é marcada justamente pela tentativa de isenção dos jornais dos debates políticos, ao contrário do que acontecerá na metade do século, com o surgimento dos jornais diários. A famosa empreitada de Addison e Steele insinua um ambiente doméstico independente de qualquer interferência política (PALLARES-BURKE, 1995). Também os “semanários morais” contestavam, segundo Melton, o predomínio cultural da corte sobre os círculos de conversação:

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Demonstratively abstaining from politics, the moral weekly implicitly distinguished the social from the political, the private from the public, and thereby pointed toward modern notions of civil society as a sphere autonomous from the state. In the context of the eighteenth century, the moral weekly´s validation of sociability as an autonomous and non- political arena implicitly contested the cultural dominion of the court. It is no accident that in England, the moral weekly´s popularity came at a time when the cultural influence of the royal court was rapidly dwindling (MELTON, 2001, p. 97).

O envolvimento da imprensa com a vida política se tornará mais comum a partir de 1750 (HABERMAS, 2003, pp. 78-9). O lançamento do Morning Post em 1772 exemplifica de forma clara como os jornalistas e editores jogavam com políticos e a importância de os ministros terem gazetas favoráveis às suas ações. Ao mesmo tempo, esse jornal pode ser considerado pontapé inicial para o desenvolvimento do jornalismo enquanto uma prática profissional enraizada na urbanidade, isto é, como uma forma de escrita regular concernente à organização do espaço público – quando, antes, Addison e Steele trataram de organizar o ambiente doméstico e distingui-lo do público. Pope observa de forma negativa o surgimento de uma esfera de jornalistas que passa a controlar a atividade escrita. Para ele, subsistem basicamente duas formas de escritores:

There are two overlaid senses of ‘professional’ here. In the first place, we have the regular, paid hack who depends wholly on fugitive writing for his livelihood. Pope scorns such a man because his stake in literature is inalienably commercial. If the hack does not deliver the goods, he will not eat; consequently, he is bound to accept any commission, however unworthy, and cannot conduct that free-ranging search of topics, themes and styles which Renaissance theory demanded as a prelude to worthwhile imaginative writing. His subject-matter and his manner of treatment are generally preordained. Secondly, there is the other kind of professional. The category described by Watt includes a number of persons with vested interests in the escalation of vapid bookmaking. The standard example of this type today would surely be the academic. In Pope´s time, as Watt indicates, the world of literature was threatened by a new breed of non-literary men. Pope had himself remarked on the willing-ness of commentators on Homer to discuss anything rather than the poetry as such. In men such as Bentley or Dr. Freind, he saw a similar commitment to the world of letters without any vital engagement in the human and moral qualities which books existed to proclaim. The new ‘professionals’, second sense, are therefore men with a positive vocation – unlike the opportunistic hack. On the other hand, their cultural interests are as it were contingent. They do not necessarily possess, and Pope contends they generally will not possess, the deep personal attachment to

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good writing which the true poet or true critic must nurture (1972, p. 189).

Aos jornais diários que passam a pulular em Londres é possível acrescentar as grandes revistas doutrinais do começo do século 19, Edinburgh Review e Quarterly Review, que ajudaram a dar contornos mais vivos e modernos para os partidos Thory e Whig (COOPER-RICHET, 2006, p. 413). A produção periódica voltada para temáticas políticas acompanha a formação de partidos com ideologias razoavelmente bem definidas e cumpre um importante papel no delineamento do Estado Nacional Inglês. Para exemplificar a importância da imprensa nesse processo, vale lembrar que foi a articulação precoce dos setores monárquicos com alas mais da sociedade que garantiu a permanência do rei enquanto uma figura com papel simbólico importante na Inglaterra (HABERMAS, 2003, pp. 46-7). O fato de o rei ser um símbolo nacional garantidor da unidade dos povos fez com que se tornasse um alvo privilegiado dos cartunistas e caricaturistas que abundavam nos jornais. Contudo, tanto quanto era capaz de criar uma imagem vigorosa do monarca, a imprensa era capaz de desmontá-lo. Cannadine exemplifica, por exemplo, os lamentáveis episódios envolvendo o rei George III, que foi um alvo constante dos ataques de cartunistas:

(...) embora as grandes cerimônias reais fossem completamente cobertas tanto pelos jornais interioranos quanto pelos da metrópole, a imprensa como um todo continuava hostil à monarquia. Nas primeiras décadas do século XIX, as críticas feitas na imprensa londrina por Gillray, Rowlandson e os Cruikshanks transformaram a monarquia ‘sem dúvida no tema e no alvo mais comum dos caricaturistas’ (CANNADINE, 1997, pp. 120-1).

Cumpre ressaltar, uma vez tendo criado relativa noção do papel da imprensa na configuração de um espaço público na Inglaterra, a forma como o próprio discurso da imprensa se desenrolava em determinados espaços de circulação, como é o caso das tavernas da Grub-Street e da Cornhill, ou dos salões e cafés mencionados por Habermas como princípio da esfera pública burguesa (2003, p. 45). A existência desses espaços é fundamental para o surgimento de uma consciência pública ligada à discussão dos problemas nacionais. Os espaços estão entranhados na cidade tanto quanto está o jornalismo como literatura regular primeiramente derivada, segundo Habermas, dos

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correios ordinários (2003, p. 29). Os critérios dessa nova forma de literatura estavam, portanto, intimamente vinculados à troca epistolar permanente de informações. A transformação da notícia em mercadoria vai ligá-la aos critérios de novidade da economia capitalista. A velocidade dos escritos se acelera (MELTON, 2001, pp. 93-4), gerando, no caso inglês, substrato material para aquela crítica típica de Pope e Swift ao conteúdo dispersivo dos jornais.

2. Espaços de aglutinação de ideias e composição de identidades

Os espaços de socialização se multiplicavam em Londres na medida mesmo em que aumentava a necessidade de transitar informações e se adensavam as relações comerciais entre os indivíduos. Os mesmos papeis escritos que, na linguagem de Habermas, caracterizavam a troca epistolar privada e forneceram, aos poucos, fundamentos para um trânsito regular de informações da esfera pública, circulavam por estes novos ambientes e forneciam temas e argumentos para uma classe ascendente de comerciantes (HABERMAS, 2003, p. 213). Os estrangeiros que, no século XVIII, buscaram a Londres das Luzes eram tocados pelo clima cosmopolita da cidade, explícito numa infinidade de albergues limpos, hoteis e ruas iluminadas que abrigavam uma promissora vida noturna. 16000 lamparinas iluminavam as ruas e permitiam a extensão das sociabilidades para além de negociações pontuais realizadas à luz do dia. A vida noturna, com suas tavernas e teatros, tornava-se assim um ingrediente à parte na sociabilidade de Londres. Todo o processo de reconstrução por que passa a cidade é dessa forma observado pelo visitante austríaco Johann Archenholz em meados do século 18:

The contrast betwixt that and the western parts of the metropolis is astonishing; the houses there are almost new, and of an excellent construction; the squares are magnificent, the streets are built in straight lines, and perfectly well lighted: no city in Europe is better paved. If London were equally well built, no place in the whole world would be comparable to it (ARCHENHOLZ, apud PORTER, 1990, p. 39).

A estrutura da cidade é modificada na medida em que as relações sociais adquirem um estágio mais complexificado, tanto quanto surgem ideias relativas à instrumentalização do espaço urbano de forma a economizar espaços e deslocar as sociabilidades, antes guardadas nos salões das grandiosas casas dos aristocratas, para espaços públicos

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destinados exclusivamente para isso. O discurso iluminista se entrecruza assim com uma práxis específica de transformação do mundo. A cidade adquire a coloração dessas novas ideias e, na medida em que se tinge delas, ajuda a fazer transitar os discursos iluministas. No que diz respeito a, especificamente Londres, o papel dos salões é relativamente limitado em detrimento da procura maciça pelas coffeehouses (MELTON, 2001, p. 211). Isso quer dizer que estrangeiros chegados na cidade poderiam encontrar facilmente formas de socialização independentes dos círculos de conversação provincianos da corte (ELIAS, 2001, p. 66), quais sejam, aqueles vinculados a hierarquias formais dentro das quais o indivíduo era avaliado mais pelas suas etiquetas ou vínculos hereditários. Assim, a vida moderna é a vida de uma cidade que se abre abandonando, em grande parte, a avaliação dos indivíduos pelas etiquetas apresentadas em espaços hierarquicamente organizados. A vida moderna é a vida em constante trânsito, o que, do ponto de vista especificamente urbano, quer dizer privilegiar o cosmopolitismo no qual está implícita a possibilidade constante de receber o radicalmente novo, ainda que isso seja motivado, num primeiro momento, pelas necessidades comerciais. Algumas representações da vida cosmopolita de Londres estão presentes nos relatos de portugueses que, em especial a partir de 1807, migraram para a Inglaterra para fugir das perseguições napoleônicas e lá tentaram reorganizar os seus negócios. Em torno do club por eles montado na taverna City of London eles estabeleceram sua defesa contra a espoliação aristocrática clamando por reformas no sistema monárquico de Portugal. Os retratos que os portugueses fizeram da cidade iluminada podem lembrar o de Hipólito da Costa, ao elogiar as cercanias do Hyde-Park, localizada próxima ao New Inn, onde ele residia (CB, Vol. VI, p. 579). Da mesma forma, em uma longa série de comentários dirigidos ao interlocutor Orestes, Rocha Loureiro em 1811 traça um panorama similar da cidade:idílio urbano governado pelo rei constitucional (O Portuguez, Vol. I, p. 196). Os dois jornalistas portugueses deixam caros relatos sobre a organização das comunidades emigradas em Londres e tornam explícita essa abertura da cidade para a diferença. Não é difícil encontrar espaços onde se pode ir e conversar em outras línguas. O historiador James van Horn Melton percorre os espaços que fomentaram o trânsito de diálogos iluministas, constatando, como fez Loureiro, a inocuidade dos salões na sociedade de Londres e o grande fluxo nas coffeehouses e tavernas. Se eles foram uma

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referência na organização das sociabilidades do iluminismo francês, na Inglaterra, talvez pelo menosprezo destinado à mulher pela sociedade inglesa, as mulheres tiveram menor possibilidade de se misturar aos homens nos espaços de socialização. Uma mulher numa taverna era considerada então prostituta. Melton define como mais importantes para o trânsito de diálogos femininos os spas, através dos quais muitas mulheres chegaram a se tornar praticantes regulares de literatura (2001, p. 212). No que diz respeito à sociedade londrina como um todo, adquiriram maior importância as tavernas e coffeehouses. As primeiras abrigavam lojas maçônicas e clubs de negociantes. Se as tavernas, ainda no século 18, possuíam um apelo mais popular e mesmo plebeu, as várias leis contra bebedeira pública e a fiscalização policial tornaram-nas um lugar mais propício para o diálogo calmo e, porque não dizer, iluminista. As tavernas se tornaram assim lugares propícios para o trânsito de tendências e identidades, i.e, onde se haveria de, forçosamente, confrontar com a diferença.

English taverns were a place where disparate publics intersected and sometimes interacted. Originating as a predominantly plebeian sphere of sociability, taverns were a central part of the emerging party system, the expanding realm of popular politics, and the burgeoning associational life of Hanoverian England. As a meeting ground for political elites and local constituencies, as well as an organizational matrix for clubs, societies, and extraparliamentary politics, taverns attracted a relatively broad spectrum of English society (MELTON, 2001, p. 235).

Várias associações de espanhóis e portugueses que se estabeleceram em Londres a partir de 1807 buscaram na taverna espaços regulares de meetings, no caso português a taverna City of London, ou no espanhol a Crown and Anchor (MUNARO, 2013). As tavernas poderiam se tornar um espaço de subjetivação incorporado à identidade dos frequentadores – tanto quanto a Grub-Street era lembrada pela subliteratura, por exemplo. Mitigando a presença excessiva do álcool nas tavernas, houve preponderância do café, que, argumenta Melton, aparece como a legítima bebida do iluminismo. Graças às produções coloniais de França e Inglaterra, estes países não possuíam problemas em oferecer café em abundância. Segundo o mesmo autor, há uma íntima relação entre esses espaços de animação intelectual e as bebidas neles consumidas, como se pode depreender do verdadeiro protagonismo das coffeehouses no Iluminismo inglês.

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As coffeehouses tornaram-se assim ambientes de nítida motivação intelectual. Os proprietários dispunham não apenas vastas mesas para o acomodamento de vários visitantes ao mesmo tempo, como também livros e periódicos contendo novidades. Quer dizer, um café era um local no qual qualquer um podia ir para adquirir as notícias mais quentes. James Melton ajuda a esclarecer essa conexão:

By 1729 the connection between coffeehouses and journalism had become so self-evident that London coffeehouse owners petitioned Parliament for a monopoly on the publication of newspapers. Parliament rejected their plan to replace existing newspapers with a ‘Coffee-house Gazette’, but the incident does illustrate how closely the worlds of journalism and the coffeehouse were interwined (MELTON, 2001, p. 245).

A relação entre a leitura de jornais e as coffeehouses era assim bastante estreita e vai além, como já notou Habermas, da mera disponibilidade de jornais nos coffeehouses, já que os jornalistas se alimentavam ativamente dos diálogos nutridos nestes espaços. Por outro lado, a conversação ativava as pautas jornalísticas na memória do leitor, hierarquizando os temas a partir do substrato que forneciam para a interação. Este promissor ambiente intelectual é responsável pela frutificação do jornalismo em sua forma moderna, ocasião em que assume, para usar a fórmula de Habermas, o papel de “esfera pública literária” (2003, p. 141). Outro espaço urbano cuja menção é merecida é a loja maçônica, que poderia ou não ser situada numa taverna. Este espaço, além de fornecer novidades pela freqüente circulação de indivíduos, ajudava o visitante a se integrar na vida urbana local. Várias lojas de portugueses e espanhóis foram criadas na Inglaterra e serviram de espaço de resistência durante as invasões napoleônicas (MUNARO, 2013). No século 18 as lojas maçônicas já forneciam aos indivíduos um espaço acolhedor baseado numa hierarquia distinta daquela vivida pelos indivíduos no mundo profano.

The geographical mobility of merchants does much to explain freemasonry´s appeal to this stratum, in Great Britain as well as on the continent. Lodges gave merchants a social and communicative network that provided valuable support during their extensive travels. For the merchant traveling far from home, the familiarity and camaraderie he found in a lodge helped to ease the loneliness and isolation he otherwise felt as a stranger. No matter what town he visited, he could usually expect a warm reception from his fellow masons. Through his masonic contacts

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he often received food, lodging, or even credit in the event of a mishap (MELTON, 2001, p. 255).

Evidencia-se, assim, uma grande mobilidade social tornada possível através de um número cada vez maior de espaços de acesso público ou, então, espaços que ignoravam as etiquetas cortesãs na hora de aceitar integrantes. As novas discursividades que acalentam a retórica das Luzes produzem efeitos orgânicos e pragmaticamente orientados na estrutura da cidade, que ora passa a tornar possível a circulação de indivíduos com fluidez similar à da palavra escrita nas folhas de papel impressas. Tanto quanto a correspondência epistolar privada transmuta-se em correios direcionados para públicos cada vez mais amplos, os espaços domésticos fechados que alimentavam a funcionalidade da etiqueta aristocrática deixam de ter um papel ativo na sociedade liberal organizada em torno da cidade.

Conclusão A cidade iluminada materializa as práticas e representações da cultura iluminista. Ela diz respeito a uma abertura constante ao novo em que a identidade transita continuamente à mercê do cosmopolitismo intrínseco das práticas secularizadas. Percebemos como esse olhar inclui as formas de vivência e subjetivação de espaços específicos, que só poderiam existir a partir de uma práxis específica vinculada ao iluminismo, isto é, à busca pela liberdade de manifestação de pensamento. A existência desses locais nos quais se entrecruzava uma diversidade cada vez maior de informações facilitou o desenvolvimento de práticas de escrita regular. Práticas que, por sua vez, alimentavam o próprio trânsito de indivíduos ansiosos por obter as novidades mais quentes. Ao mesmo tempo em que a conversa alimentava os ouvidos atentos do jornalista, este atuava como um intermediário, deixando escritas informações e até mesmo boatos e intrigas de interesse público. A precocidade do envolvimento do Estado inglês com a esfera pública, na forma inclusive de patrocínio de jornais, gerou uma situação bem menos tensa do que aquela percebida na França. Os lordes, acostumados com a presença desconcertante dos jornais, trataram de aumentar impostos, impor obstáculos e, por fim, patrocinar jornais rivais para divulgar as suas ações e fazer sua defesa pública. A solidez da esfera pública em Londres está ligada assim à solidez de sua esfera pública literária, patente num jornalismo cujas primeiras formas de profissionalização já datam do início do século 18.

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Ora, sim; ora, não! O diploma de Jornalismo em várias fases do processo de profissionalização da atividade jornalística no Brasil

82 Robson DIAS

Resumo: a discussão explora os atributos que conferem os limites desse grupo profissional, levando em conta o processo de profissionalização do Jornalismo no Brasil (1), a instituição do diploma como credencial ao mercado de trabalho (2) e o fim da obrigatoriedade do diploma para exercício da atividade (3). O objetivo é o de refletir sobre a construção do (des)valor do diploma até mesmo para os próprios jornalistas. Trataremos dos limites do campo profissional sem o anseio de encerrar uma discussão sobre a obrigatoriedade (ou não) do diploma para exercício da profissão, mas sobre sua representatividade dentro e fora do campo jornalístico, enquadrando o Jornalismo como uma profissão forte ou fraca, na classificação de Freidson (Sociologia das Profissões).

Palavras-chave: Jornalista, Trabalho, Diploma, Profissão.

Processo de profissionalização do Jornalismo no Brasil A estruturação do jornalismo como profissão está ligada ao pressuposto de Objetividade, no que tange à adesão ao paradigma de Jornalismo Informativo e distanciamento do Jornalismo Opinativo, além da regulamentação da atividade profissional que fechou o mercado de trabalho apenas para os jornalistas oriundos da formação universitária, ou seja, os portadores de diploma.

O Decreto-Lei 972/196983 criou a profissão de jornalista e regulamentou seuexercício. A legislação produziu a classificação de dois gêneros de jornalistas: os

82 Doutor em Comunicação, formado pela Universidade de Brasília (Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação, PPGFAC/UnB) a partir do vínculo com os seguintes projetos de pesquisa credenciados no CNPQ: A ideia do pós-Jornalismo (2010-2013), O Jornalismo como Teoria Democrática (2006-2010) e Como o Terceiro Setor pauta a mídia (2003-2006). Atualmente, é professor titular do mestrado Stricto Sensu em Comunicação da Universidade Católica de Brasília (PPGSSCOM/UCB): [email protected] . A revisão teórica e problematização apresentadas, neste artigo, serviram de base para o enfrentamento do trabalho empírico da pesquisa de mestrado A influência do prêmio Jornalista Amigo da Criança sobre o profissional de jornalismo: um estudo de caso, trabalho feito sob a orientação da Profª Drª Dione Oliveira Moura (presidente SPBJor: gestão 2011-2013). O autor recebeu bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). 83 O Decreto-Lei 972/1969 criou a profissão de jornalista, durante a ditadura militar. Foi alterado pela Lei 6.612/78.

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que tinham formação pela prática cotidiana e atuavam no jornal com conhecimento prático (1); e os que vinham de uma formação universitária (2). Os jornalistas da prática cotidiana receberam uma licença para continuar a atuar (portadores de registro provisionado). Já os oriundos da formação universitária receberam o registro de Jornalista Profissional (portadores de diploma). Esses dois grupos de jornalistas atuavam num mercado em transição. A mudança do paradigma do Jornalismo Opinativo para o do Jornalismo Informativo. Franzoi (2003) afirma sobre a transição de paradigmas que

(No Brasil) as profissões regulamentadas, a posse do diploma era suficiente. Para as não regulamentadas, era necessária a comprovação na prática da competência, ou seja, tratava-se por um lado de um mercado fechado e por outro de um mercado competitivo (FRANZOI, 2003, p. 35).

O processo de profissionalização da atividade jornalística no Brasil não se consolidou mesmo depois de quase 40 anos de fechamento do mercado com a obrigatoriedade do diploma (1969-2009).. Muitos jornalistas do interior do país recebem registros provisionados para exercício da atividade até hoje, pois não dispõem de condições para cursar faculdades para a formalização do registro profissional. Assim, muitos jornalistas no país trabalham com registros provisórios que, na verdade, ocultam uma condição permanente. A flexibilidade quanto a quem pode ou não praticar a atividade jornalística, principalmente em relação ao acesso pelo registro provisionado, confere certa liberdade dos membros do campo (jornalistas e empregadores) de reivindicarem um mercado de trabalho, ora fechado, ora aberto. Para Senra (1997, p.14), a profissão de jornalista “padece de uma ambiguidade, por assim dizer, histórica”. Abramo (1997) vincula o processo de profissionalização da atividade jornalística à complexidade do mundo contemporâneo:

O jornalismo foi se transformando de uma atividade geral para uma profissão específica com o aumento da complexidade do mundo moderno. Para o exercício do jornalismo, exige-se uma formação especializada que permita que o profissional busque, organize, estruture e hierarquize as informações, além de explicá-las, analisá-las,

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interpretá-las e apresentá-las, utilizando-se de meios impressos, auditivos e visuais (ABRAMO, 1997. p.296-298).

A questão profissional em Jornalismo é polêmica e passível de críticas. Paccola (2003, p. 80) entende que o profissionalismo é mais uma marca do jornalista dos tempos atuais que abandona progressivamente o ideal de mudar o mundo para tornar-se um profissional.

Moretzsohn (2001) avalia o discurso do profissionalismo como um argumento aceito quase que de maneira inquestionável: “quem é profissional é responsável, equilibrado, justo, competente (... ninguém pergunta competente para quê?)”. A autora traz à tona a questão de que o grande marco dessa nova realidade seria a descaracterização dos confrontos entre jornalistas e patrões. Os empresários apreciam essa mudança, que preserva a mística da missão, daquela tiram proveito para manter e até aumentar seus lucros, de modo que a cobrança do profissionalismo não é acompanhada pela remuneração salarial que seria correspondente.84

O diploma é de jornalista, mas o posto de trabalho ... de Relações Públicas No Brasil, há a peculiaridade de os jornalistas terem assumido postos de trabalho da área de Relações Públicas, evocando o discurso do profissionalismo. Durante a Ditadura Militar (1964-1979), a atividade jornalística no país foi cerceada em sua expressão e em limites profissionais. Neste período, a comunicação organizacional tornou-se mais importante na esfera estatal do que as atividades de imprensa e mídia. Muitos jornalistas foram demitidos de empresas jornalísticas e encontraram postos de trabalho em organizações não-jornalísticas, nas assessorias de imprensa. Duarte (2002) recupera que

84 MORETZSOHN, Sylvia. “Profissionalismo” e “Objetividade”: o jornalismo na contramão da política. UFF. 2001. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-profissionalismo-jornalismo.pdf. Acessado em 12-12-2011.Antes dos anos 60, o jornalista era romântico, não tinha hora para sair do jornal, depois ia para o bar e chegava em casa de madrugada. Aí, veio o regime militar, e com ele a censura e a profissionalização. Os militares incentivaram a modernização da imprensa, facilitaram a compra de equipamentos, a construção dos grandes prédios. Ao mesmo tempo, em que censuravam e prendiam jornalistas. Neste momento, há uma mudança no perfil do jornalista, que se profissionaliza – se eu disser isso os mais velhos não vão gostar, porque vão dizer que eles também eram profissionais. Também muda o perfil do jovem que entra no jornalismo, nos anos 60 e 70. Ele não pode mais atuar na editoria de política, que está cerceada (idem).

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O interesse da imprensa por pautas relacionadas à economia, cultura e negócios aumentou provavelmente mais pela perda de importância dos assuntos políticos e, particularmente pela censura impostos pelo Regime Militar (DUARTE, 2002. p.84).

O espaço noticioso na imprensa foi tomado por material distribuído pelas assessorias de imprensa (releases, publieditoriais, matérias pagas). Também era comum a publicação de passatempos e receitas de culinária no lugar de matérias jornalísticas censuradas pelo governo. DUARTE (2002) resgata o relacionamento entre os meios de comunicação e governo antes e durante a Ditadura Militar:

Para Duarte (2002), durante a Ditadura Militar, houve uma distorção na oferta de informação que afetou a operacionalidade da atividade jornalística e do mercado noticioso, especialmente no interior, onde os veículos de comunicação até hoje possuem grande dependência da publicidade oficial governamental. Nessa fase de valorização da atividade de Relações Públicas e desvalorização do Jornalismo (dentro do preceito de Liberdade de Imprensa) ocorreu a ida de jornalistas, egressos das redações, para as assessorias de imprensa. Duarte (2002) afirma que os jornalistas iam trabalhar como RPs nas assessorias de imprensa valendo-se da identidade profissional de jornalista, pois havia a necessidade da comunicação organizacional se desenvolver quase como uma “agência de notícias”:

O objetivo inicial, entretanto, era reunir jornalista para distribuir material para jornais do interior, como uma agência de notícias, mas os veículos não tinham recursos. Éramos jornalistas, não sabíamos atuar na área comercial (DUARTE, 2002, p.84).

Com o fim da Ditadura Militar (1985), a Liberdade de Imprensa retornou como preceito da sociedade brasileira. Os jornalistas tomaram a iniciativa de limpar o noticiário midiático das notícias corporativas vindas das assessorias. Duarte (2002) considera como fatores de retorno dos jornalistas a seus postos de trabalho nos jornais: o ressurgimento da democracia, o movimento sindical, a Liberdade de Imprensa, os novos padrões de competitividade no mercado e o prenúncio de maior exigência quanto aos direitos sociais e dos consumidores. Para o autor, as empresas e as instituições necessitaram de uma nova forma de comunicação com a sociedade e seus diversos

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segmentos. O Jornalismo foi identificado como o grande instrumento, o caminho mais curto para agir sobre a agenda pública, informar e obter uma imagem positiva.

Sobre esta questão, na análise de BUENO (1995),A comunicação deixa de ser „perfumaria‟ [naquele período de redemocratização ou fim do Governo Militar] ganhando as entranhas da administração pública e privada e extrapola os limites dos tradicionais „jornaizinhos‟ internos para assumir o status de um complexo poderoso, intrinsecamente vinculado à chamada estratégia negocial (BUENO, 1995. p. 9).

A reviravolta fez com que os jornalistas retornassem aos seus postos de trabalho nas redações, mas também expandissem oportunamente seus domínios profissionais. Em suma, a categoria jornalística, oprimida durante a Ditadura Militar, resgatou a finalidade pública da atividade e recuperou postos de trabalho e a função num ambiente democrático. Para Duarte (2002), houve uma caracterização peculiar da profissionalização do jornalismo durante o período pós-ditadura:

A peculiaridade, no Brasil, é que assessoria de imprensa não é tratada como relações públicas. Ainda que o jornalista deixe um jornal para atuar em assessoria de imprensa, estabeleceu-se que sua atividade permaneça sendo considerada jornalismo – subsidiário ou ao nível de fonte (DUARTE, 2002, p.86).

O Jornalismo se tornou um complexo poderoso com a absorção de domínios profissionais das Assessorias de Imprensa (AIs), tradicionalmente pertencentes à área de Relações Públicas. A identidade profissional do jornalista brasileiro passou a contar com a figura do Jornalismo Corporativo. Um fato inédito na história do próprio Jornalismo não conhecido sequer pelos arquétipos vindos da Europa e dos Estados Unidos. Para Kucinski (1986 apud 2002),

Hoje você vai cobrir um departamento do governo, alguma empresa, e tem lá o jornalista para receber você. Formou-se uma promiscuidade que levou a um mascaramento da função do jornalista (KUCINSKI, 1986, p. 17).

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O processo de profissionalização do Jornalismo, depois da Ditadura Militar, leva a uma discussão não só do que é ser profissional e não-profissional (1), mas do limite de onde se emprega a força de trabalho: num ambiente jornalístico ou não- jornalístico (2). As assessorias de imprensa passaram a ser domínio também dos jornalistas devido à transparência que as organizações passaram a ter a com a abertura de mercado nos anos 90 e a política neoliberal. Sant‟anna (2007) pontua que, no Brasil, as assessorias de imprensa notabilizaram-se pelo ideal de dar transparência às entidades assessoradas e o quadro legal conseguiu separar Publicidade de Relações Públicas, estes dois de Assessoria de Imprensa. Nos demais países, não há muita diferença do perfil desses profissionais, e a ação de algumas empresas estrangeiras que chegaram recentemente ao Brasil mostra que o parâmetro delas consiste no que popularmente é chamado de "marqueteiro" e tende a “contaminar” o modelo brasileiro de Jornalismo Corporativo.85

Na maior parte dos países,86 a Assessoria de Imprensa (AI) é domínio exclusivo dos profissionais de Relações Públicas. Fayard (2002) critica essa peculiaridade da profissão de jornalista no Brasil e seus domínios

É inimaginável no modelo europeu um jornalista atuar como divulgador, porque a carta (similar ao nosso registro profissional) é dada a pessoas vinculadas a órgãos de imprensa e, por isso, não podem atuar em atividades relacionadas às relações públicas em (DUARTE, 2002. p. 86).

A flexibilidade em relação aos domínios da atividade jornalística, no Brasil, influencia diretamente a estruturação da carreira e o processo de profissionalização.

85 SANT‟ANNA, Francisco. Mídia das fontes: o difusor do Jornalismo Corporativo. Disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/santanna-francisco-midia-fontes.pdf. Acessado em 12-12-2011 86 Em Portugal, o jornalista que vai trabalhar em uma organização não-jornalística é obrigado a afastar-se do sindicato e, portanto, perde o direito de exercer a profissão. O que leva a crer que “a origem do profissional e o uso de técnicas jornalísticas não implicam que a assessoria de imprensa seja Jornalismo, uma profissão essencialmente crítica e independente caracterizada pela atuação em veículos de comunicação autônomos” (DUARTE, 2002, p.86)superficialmente, nos complexos mecanismos de apoio a clientes que pagam para ter uma boa imagem perante a opinião pública. Esse mesmo número de profissionais, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), ocupa cargos em redações de rádio, TV, revistas, jornais e internet, considerando seus dados de 2004, quanto havia cerca de 40 mil profissionais atuantes no país (MARQUES, 2001).

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A profissionalização do jornalismo no Brasil também está intimamente ligada ao fator de emprego e desemprego. O trabalho do jornalista como assessor de imprensa, durante a Ditadura Militar, era meramente empregatício de caráter provisório. Entretanto, passou a ser encarado como pertencente ao domínio profissional, de forma permanente. Destaca-se que a aglutinação da Assessoria de Imprensa ao rol de fazeres jornalísticos, no Brasil, está ligada ao cotidiano e não à formação profissional. Tanto que as grades curriculares não têm grande ênfase nas atividades de AI mesmo sendo estas responsáveis pelo emprego de boa parte da categoria. Na avaliação de Marques (2007),

Como a maioria das escolas de Jornalismo ainda não maculou seus currículos com cadeiras de assessoria de imprensa, a grande maioria dos 20 mil jornalistas que atuam em assessorias, universidades ou como frilas não estão tecnicamente habilitados, já que do ponto de vista legal essa habilitação não existe, para trabalhar em assessoria de imprensa. Esses profissionais, que já pagaram altas mensalidades para conseguir o diploma e contribuem religiosamente com os sindicatos de jornalistas para serem considerados como tais, viram alvos fáceis de editoras que lançam obras produzidas para introduzi-los.

Duarte (2002, p. 85) destaca o depoimento do jornalista Antônio Alberto Prado que considera sobre a classe jornalística: “nós, jornalistas, muitas vezes vemos nossa profissão como uma espécie de religião. Como para um padre, também para nós é muito difícil deixar a batina. No entanto, eu descobri que a enorme bagagem que os repórteres reúnem estava repleta de ferramentas fundamentais, desejadas, apreciadas e melhor pagas nas indústrias e em outras empresas não-jornalísticas”.

Diploma Universitário Desde o Decreto-lei 972/1969, o diploma universitário tornou-se exigência para atuação profissional na área do jornalismo. A profissão de jornalista foi criada, no Brasil, por meio desse marco regulatório. Entretanto, já existia compilação de direitos trabalhistas que contemplava a atividade jornalística, desde 1943, na Consolidação das Leis Trabalhistas, CLT. A CLT definiu o jornalista como trabalhador intelectual que tem função de buscar informações e redigir notícias e artigos. O Decreto-lei 972/1969 deu status

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profissional ao jornalista e instituiu nos parâmetros legais a divisão do trabalho: editor, repórter, revisor, ilustrador, desenhista, fotógrafo, arquivista. O Governo Militar submeteu o exercício da atividade ao registro no Ministério do Trabalho e o controle de exercício da profissão era feito pela emissão de carteiras portadoras do status de “provisionado” e “profissional” (SALVIANO, 2006. p. 18). Nos anos 60, existia a necessidade política de controlar a atividade jornalística e a preocupação econômica de gerenciar as instituições de comunicação em um sentido mais empresarial. Havia os seguintes posicionamentos: os provisionados repudiavam a ideia de acesso à carreira pela via exclusiva do diploma e os empresários reivindicam cada vez mais os jornalistas profissionais, por terem perspectiva da notícia como produto (referencial de Objetividade). Nos anos 70, os próprios empresários que haviam reivindicado os jornalistas profissionais passaram a substituí-los por estagiários. Foi quando o Decreto nº83.284/1979 alterou alguns artigos do marco regulatório de 1969. As entidades de classe dos jornalistas formularam mudanças na legislação com o intuito de coibir a exploração da mão-de-obra estudantil nas empresas pela via do estágio universitário. A partir dessa época, o contexto passou a ser outro. A grande oferta de cursos de graduação na área e os 10 anos de regulamentação em lei contribuíram para a quantidade de jornalistas profissionais ser maior que a de provisionados naquele período (Idem).

Entretanto, os posicionamentos no campo do Jornalismo se inverteram. Os jornalistas que repudiavam o profissionalismo passaram a defendê-lo em vista das proteções legais instituídas e a força sindical que a classe ganhou nos anos 70. E os empresários que promoveram o profissionalismo passaram a atacá-lo, pois não conseguiam ter mais tanta autonomia sobre o trabalho dos jornalistas em vista do amparo legal.87

87 “O jornalista novato começava como pombo-correio (office-boy , para outros) e, com os ensinamentos, com o contato com os repórteres mais experientes, ia aprendendo as técnicas. Nas décadas de 1960 e 1970, a formação de jornalistas era feita, principalmente, dentro das redações. O diploma não era indispensável. Mas não era só a pessoa novata que ia para a redação, também pessoas de nível cultural mais elevado. A formação do jornalista dentro das redações terminou no Brasil com outro ato autoritário: o golpe militar de 1964. Mas as empresas só começam a se preocupar em dar fim à obrigatoriedade do diploma profissional após o enfraquecimento do golpe militar. Por que acontece isto? Censura? Luta para pagar menos salário?” (PENA, 2006. p.41)(que responderiam por eles), e de onde mais grassam erros jornalísticos – tais como reportagens sem a objetividade necessária, ou seja, sem ouvir o outro lado, 179

Segundo Abramo (1991, p. 110), na ausência da obrigatoriedade d o diploma, o único definidor de quem é o jornalista é o patrão. Esse é o objetivo final. Se o patrão define quem é o empregado, define também qual é a composição social, política, cultural do sindicato a que pertence. Acaba definindo também quem deve ser a liderança sindical dos seus próprios empregados. Sobre a questão, Salviano (2006, p. 30) entende que a defesa do diploma não é por corporativismo, mas uma tentativa de se evitar irregularidades. O autor não acha que a obrigatoriedade do diploma deva ser discutida com base no princípio constitucional da Liberdade de Expressão, retirando a credencial de autonomia do campo. Para o autor,

Existe um pouco de preconceito quando se debate a questão, pois se perguntarmos a quem quer que seja sobre a possibilidade de se trabalhar como engenheiro, dentista ou médico sem diploma de ensino superior, todos respondem que não; agora, na questão do jornalista, na qual a graduação ensinará técnicas de redação, ética redacional, entre outras matérias essenciais ao desempenho da profissão, há divisão nas respostas, principalmente em cidade que têm diversos jornais, sem jornalistas formados em suas redações

A problemática em torno do diploma está diretamente relacionada à realidade brasileira, principalmente do interior. Os jornalistas provisionados não são apenas figuras dos anos 60 e 70, do processo de transição profissional. Trata-se de um tipo de jornalista com inserção permanente no mercado de trabalho, devido à ausência de escolas de habilitação na área e de oferta da mão-de-obra. De acordo com o Decreto 83.284/1979, a admissão de provisionado é permitida nos municípios onde não exista curso de jornalismo reconhecido na forma da lei e comprovadamente, não haja jornalista domiciliado, associado do sindicato representativo da categoria profissional, disponível para contratação.88

e/ou notícias inverídicas, pois aqueles que se dizem jornalistas não forma checar a realidade dos fatos, entre outros aspectos (idem). 88 Artigo 16 do Decreto 83.284, de 13 de março de 1979.Há uns cinquenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia- se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação no qual a moral era conservada em seu lugar. Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo mundo fazia uma pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redação para 180

O fato é que pessoas sem formação universitária são admitidas até hoje como jornalistas, o que contribui para a perpetuação do processo de profissionalização, sem o alcance de consolidação. Desta forma, o argumento de que não é necessário ter o diploma para exercer a profissão torna-se sempre válido, pois mesmo nos 40 anos de vigência da obrigatoriedade do diploma (1969-2009), houve um extrato realmente de jornalistas diplomados. Os provisionados sempre foram admitidos, de forma permanente, mas se estabelecendo como permanente. Existem provisionados com registro provisório há 30/40 anos. Sobre este tema, Martins (2007) entende que

A questão do diploma para a prática do jornalismo acabou engendrando radicalismos de todos os lados. A corporação dos próprios jornalistas, embora no estrito cumprimento da lei, em vez de conquistar o direito de regular e regulamentar legalmente as exceções ao diploma, preferiu encastelar-se no clássico argumento da impermeabilidade de outras profissões a incursões externas. Exemplo típico e histórico: advogado podia ser jornalista, mas jornalista não podia ser advogado. Em lugar de atuar para a reformulação da lei, no que ela perdeu em legitimidade, lutou por fazê-la cláusula pétrea (MARTINS, 2011).

O escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez já foi jornalista e, certa vez, discorreu sobre a vocação e a capacitação necessária para exercer a atividade jornalística. Na análise de Márquez (2007),

Quer dizer: as empresas empenharam-se a fundo na concorrência feroz da modernização material e deixaram para depois a formação de sua infantaria e os mecanismos de participação que no passado fortaleciam o espírito profissional. As redações são laboratórios assépticos para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar- se com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante (...) (MÁRQUEZ, 2011).

tomar café. Era uma tertúlia vaberta em que se discutiam a quente os temas de cada seção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na realidade não o eram. (...)A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional. Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de sobra para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo - como nós a chamávamos. (...)No caso específico do jornalismo parece que, além disso, a profissão não conseguiu evoluir com a mesma velocidade que seus instrumentos e os jornalistas se extraviaram no labirinto de uma tecnologia disparada sem controle em direção ao futuro.

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A obrigatoriedade do diploma polemiza não só a questão da formação universitária em jornalismo, mas os critérios utilizados na definição do que é ser jornalista no Brasil e, também, na existência de uma identidade profissional.

Fim da obrigatoriedade do diploma (que nunca foi tão obrigatório assim) O Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista no dia 17 de junho de 2009, depois de 40 anos de regulamentação da profissão. A questão era a recepção do Decreto-Lei 972/69, editado durante a Ditadura Militar, e a sua legalidade perante a Constituição de 1988. Dois meses antes desse episódio, a Lei de Imprensa também foi derrubada evocando os mesmos argumentos de: não-receptividade pela Constituição. Quando o STF decidiu pelo fim da obrigatoriedade do diploma, os jornalistas e sindicatos de classe imediatamente se sentiram diminuídos e prejudicados pela decisão. A reação destes foi a de entender o resultado do julgamento como uma ofensiva. Isso deu espaço ao início de uma guerra metafórica, na qual, os jornalistas circunstanciaram a queda da obrigatoriedade justificando-a apenas pela decisão do STF, o evento final de um processo que judicialmente já corria há 8 anos. Logo após a decisão judicial, no noticiário de todo o país, sociedades de pesquisa, entidades patronais e de classe, não ouve sequer a menção ao fato de que o fim da obrigatoriedade do diploma seja resultado da própria validação que o campo profissional nunca deu ao diploma, pois em 40 anos de exigência, ele não foi tão obrigatório assim. Os conflitos internos ao campo mostram certo desentendimento entre os próprios integrantes do grupo social. Tal fato, pode não ocorrer em relação a outros campos (como é o caso dos advogados, médicos, engenheiros, arquitetos etc.). Contudo, um campo vê o outro. No caso específico do jornalismo, Bourdieu (1998) ressalta que

O mundo do Jornalismo é um microcosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre da parte dos outros microcosmos. Dizer que ele é autônomo, que tem sua própria lei, significa dizer que o que nele se passa não pode ser compreendido de maneira direta a partir de fatores externos (BOURDIEU, 1997, p.55).

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A representação da identidade do jornalista não existe só dentro do campo profissional do Jornalismo. Até porque as referências internas (internalidade) ao grupo são exteriorizadas (exterioridade) para a sociedade e outros grupos. A representação social do que é o jornalista só existe no ambiente social se for validada e reconhecida pelo outro. Logo, será que apenas o STF achou que não era necessária a obrigatoriedade do diploma de jornalista ou os próprios jornalistas não exteriorizaram esse tipo de representação para a sociedade e outros campos (como o da magistratura, o do direito constitucional, no caso do STF)? Segundo Oliveira (2005, p. 18), essas representações circulam não apenas no campo profissional, mas também no universo social mais amplo, no qual os jornalistas estão inseridos. No entanto, o contato com esse sistema simbólico é reforçado a partir do processo de socialização dos sujeitos no campo jornalístico (que tem início, via de regra, nos cursos universitários) marcando o indivíduo ao fornecer-lhe uma identidade sociocultural.

Lopes (2007, p. 29) acredita que muito do que a sociedade percebe da identidade jornalística está relacionado ao reconhecimento do tipo de atividade que os jornalistas exercem. Quando vemos um âncora na televisão, ou um repórter com seu gravador diante de um entrevistado, ou um amontoado de fotógrafos ao redor de um político, supomos que ali estão indivíduos pertencentes ao grupo dos jornalistas. Seus modos de trabalhar são fontes de reconhecimento por parte das outras pessoas, o que caracteriza, portanto, uma delimitação da abrangência de ação de um grupo a partir de julgamentos externos. Para a autora, internamente, o “savior faire” também organiza fronteiras do grupo profissional. Quando os agentes reúnem-se em torno das práticas típicas do Jornalismo, estão, assim, partilhando o Habitus, ou seja, realizando suas ações (individuais ou coletivas) dentro de variadas relações de poder e de estruturas organizantes do espaço que ocupam. O fazer diário da profissão engloba mais que as atividades a serem realizadas cotidianamente, abrangendo também os diversos contextos atrelados a esse fazer. Podemos dizer que, pelo discurso jornalístico (cujo formato, regras e gêneros também são fruto de ordenamentos e rearranjos), os jornalistas negociam seu poder, sua credibilidade, sua aceitação e a abrangência de sua atuação no espaço social.

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Desta forma, ressalta-se que a representação da identidade do jornalista (com ou sem diploma) não existe só dentro do campo. A representação só existe no ambiente social se for validada e reconhecida pelo outro. Essas representações circulam não apenas no campo profissional, mas também no universo social mais amplo no qual os jornalistas estão inseridos. Por isso, não se pode colocar os ministros do STF como algozes do Jornalismo, nem mesmo os sindicatos patronais etc. Estes só são atores, dentro de um processo de referencialização, exterior ao campo profissional de Jornalismo, que compartilham da representação do próprio campo jornalístico de que o diploma não necessite ser obrigatório. Quando a FENAJ diz que vai fazer uma campanha de conscientização do valor do jornalista diplomado entre os jornalistas, nas entrelinhas, está reconhecendo que os próprios jornalistas não acham que esse tipo de jornalista tenha importância e nem as questões concernentes a ele (formação humanística, teoria). Até porque uma campanha de valorização visa exatamente quem desvaloriza (e não quem já valoriza). E esse desmerecimento, figura dentro das categorias de interioridade e exterioridade que cristalizam representações simbólicas na sociedade e nos grupos. Como os jornalistas não valorizam o diploma como único meio de acesso à profissão, a sociedade comunga deste mesmo entendimento.

Conclusão

O artigo não tem a ambição de resolver tensões inerentes ao processo de profissionalização do Jornalismo, tais como:

 jornalistas profissionais x provisionados;

 redações x assessorias de imprensa; e

 sindicatos patronais x sindicatos de classe.

Buscamos apenas resgatar alguns contrastes para evidenciar que muitos elementos no Jornalismo tiram de seu escopo o status de profissão forte, para muito além do fechamento do mercado profissional via obrigatoriedade de diploma:

 formação técnica x formação humanística;

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 prática versus teoria;

 interesse público versus privado; e

 informação x opinião.

O intuito com os contrastes foi também o de evidenciar a fragilidade da profissão, pois segundo os de Freidson (1997) que elaborou na Sociologia das Profissões um tipo ideal de estruturação das profissões ditas “fortes”, estipula como requisitos:

1) A aplicação de um corpo especializado de conhecimento na prática da atividade, dentro do mercado de trabalho formal, para o sustento dos praticante, requerendo familiaridade com conceitos abstratos e teorias, o que lhe confere certo status 2) Os integrantes do campo profissional devem possuir jurisdição sobre o corpo do conhecimento necessário a sua prática e sobre a organização da forma particular de divisão do trabalho que a atividade possui. 3) Os integrantes devem possuir mecanismos de proteção dos praticantes no mercado de trabalho, através da concessão de credenciais que afirmem a sua competência para exercer tarefas 4) A profissão deve ter programas de treinamento, ou cursos, que têm lugar fora do mercado de trabalho, em faculdade associadas a universidades. Seus currículos são estabelecidos e controlados pelos membros da profissão (FREIDSON, 1995. p..23).

Em analogia à tipologia de profissão forte de Freidson (1997), passando pelo nosso tema em apreço, podemos identificar que, no contexto brasileiro, toda a questão da profissionalização do Jornalismo e a polêmica do diploma resvala no ponto 3 (Os integrantes devem possuir mecanismos de proteção dos praticantes no mercado de trabalho, através da concessão de credenciais que afirmem a sua competência para exercer tarefas) e no ponto 4 (A profissão deve ter programas de treinamento, ou cursos, que têm lugar fora do mercado de trabalho, em faculdade associadas a universidades. Seus currículos são estabelecidos e controlados pelos membros da profissão). E com um seríssimo agravante: o Jornalismo, como profissão, não conseguiu jamais fechar realmente o acesso ao mercado de trabalho mediante diploma, nem mesmo fazer das escolas e cursos acadêmicos o único centro de formação de jornalistas. O ensino prático e os cursos corporativos (como o curso Abril de Jornalismo) são exemplos disso.

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O jornalismo em território indígena: breves considerações sobre a presença da mídia na festa da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol89

Vângela Maria Isidoro de MORAIS Antonia Costa da SILVA Sandra Maria de Moraes GOMES90

Resumo: O presente trabalho analisa alguns aspectos de interesse jornalístico, suscitados a partir da presença de vários meios de comunicação durante a cobertura da comemoração da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), em Roraima. Intitulada festa dos “Netos de Makunaimî91”, a celebração desse reconhecimento territorial levou um grande número de pessoas, autoridades e repórteres à comunidade indígena Maturuca, a 350 km da capital do Estado, Boa Vista, um ano após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em favor da homologação contínua dessas terras. Mais do que a dimensão tecnológica em observar a diversidade de veículos de comunicação na distante terra indígena, o aparato de uma cobertura local, nacional e internacional leva-nos a pensar na dimensão de sentidos construídos nesse contato entre profissionais da imprensa e lideranças indígenas. As tensões estabelecidas no momento da autorização e formas de uso das imagens da festa é um exemplo dos sentidos negociados entre jornalistas e os representantes das comunidades indígenas. A perspectiva da análise está centrada em respostas oferecidas pelos jornalistas em um breve questionário que inspira a reflexão sobre questões de fundo da prática jornalística.

Palavras-chave: cobertura jornalística; indígenas; terra; homologação.

Esta análise restrita a alguns aspectos da cobertura jornalística dispensada no dia da festa da homologação da TIRSS, em Roraima, volta-se para a construção da história da mídia dos nossos dias. Por isso mesmo, a reflexão que aqui se apresenta traz as marcas de um tempo recente, submetida às intempéries de uma tentativa de apreensão em movimento, em elaboração. Por outro lado, o debruçar-se sobre acontecimentos como esse é uma oportunidade singular para dinamizar o tempo, para buscar dimensões que não se limitam

89 Trabalho destinado ao GT Historia do Jornalismo. 90 Professoras do Curso de Jornalismo da UFRR. 91 Makunaimî, expressão em língua nativa para designar a principal referência mitológica dos Macuxi. O sol era apaixonado pela lua, mas quis o destino que eles nunca se encontrassem. Enquanto a lua nascia no horizonte o sol se punha. O tempo passou, e a natureza decidiu então tornar este encontro possível através de um eclipse. Deste encontro nasceu Macunaíma, índio guerreiro, herói da tribo macuxi que teve como berço o imponente Monte Roraima. 187

ao presente dos fatos, promovendo inevitavelmente o que a antropóloga Paula Montero (2006, p. 15-16) assinala: “[...] os que trabalham com o presente precisam decompor as evidências etnográficas de modo a perceber as várias ‘camadas históricas’ depositadas na superfície enganosamente plana que se oferece ao olhar do observador direto”. A primeira camada a destacar forja-se na escalada de duas interrogantes: Por que o ato administrativo e jurídico da homologação da TIRSS tornou-se motivo de festa e por que esta comemoração mobilizou diferentes meios de comunicação dentro e fora do Brasil? A homologação da TIRSS no ano de 2005, pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deu-se após três décadas de disputas acirradas entre os índios e não-índios da região, foi uma das ações políticas mais significativas para o Estado de Roraima naquele ano. A determinação da saída dos não-índios da TIRSS foi o prenúncio de mudanças em alguns setores da sociedade local, com a determinação do remanejamento de famílias que residiam na área,além da resistência de maior repercussão dos rizicultores que se utilizavam de parte da terra indígena para a sua produção. Um marco do desagravo do poder político local foi a atitude do então governador, Ottomar de Souza Pinto, (PTB), ao decretar luto oficial de sete dias devido ao reconhecimento da TIRSS. O governo de Roraima com o apoio dos rizicultores, entrou com uma ação contra a União para tentar tornar nulos os efeitos da portaria nº 543 do Ministério da Justiça, que culminou com a assinatura do decreto presidencial homologando a TIRSS em área contínua. Entre petições de ações encaminhadas para Brasília e depois de várias tentativas da Fundação Nacional do Índio, Funai, para retiradas de arrozeiros e não-índios da região, no mês de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal, STF, mandou suspender as operações e anunciou que decidiria a questão. Com o intuito de evitar possíveis confrontos e garantir a segurança no Estado, o Governo Federal enviou uma força-tarefa com o nome Upatakon que significa “nossa terra”, na língua Macuxi. Esta força-tarefa reunia centenas de policiais federais e rodoviários federais, além de contar com a participação da Aeronáutica e do Exército Brasileiro. Enfim, nos dias 18 e 19 de março de 2009, o STF anuncia, definitivamente, a

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sentença favorável à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em área contínua. Dos 11(onze) votos, 10(dez) foram favoráveis e 01(um) contra. A área indígena da Raposa Serra do Sol92 localiza-se na fronteira com a Guiana e a Venezuela, a noroeste de Roraima, e possui uma área de 1,67 milhão de hectares onde vivem aproximadamente 19 mil índios de cinco etnias: Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Taurepangue e Patamona. Conforme lembra Morais (2013, p.32), além da cronologia,os sentidos se reelaboram por interesses divergentes. “Parafraseando o relator do processo sobre a demarcação no STF, ministro Carlos Ayres Brito, em torno da temática da TIRSS, há uma “toada de intermináveis dissensos”93. Os argumentos contrários à homologação contínua se basearam em dois pólos de entendimento: o de que a destinação das terras de forma contínua impediria o desenvolvimento do Estado, por retirar áreas produtivas; e o de que a homologação desta terra, situada em área de fronteira (com a Venezuela e a Guiana), colocaria em risco a soberania do país diante da cobiça de outras potências mundiais e da ameaça de internacionalização da Amazônia. Os argumentos em favor basearam-se na garantia constitucional do direito de posse permanente e exclusiva de suas terras pelos povos indígenas, na sobrevivência de culturas milenares e na preservação do meio ambiente. Os índios, organizados ou não em associações representativas, assumiram posturas divergentes. As duas mais importantes organizações, o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima (Sodiurr) preservam diferenças de concepção sobre o uso da terra. O CIR, oriundo desse processo de aproximação com a Igreja Católica, defendeu a homologação contínua. A Sodiur, um movimento que mantém uma maior aproximação com os programas do governo estadual, defendeu a homologação em “ilhas”, espaços fragmentados que permitiriam a convivência com populações não indígenas. Esse contexto de embates e resistências torna a celebração da homologação

92 No Brasil, a TIRSS é uma das maiores áreas destinadas a usufruto exclusivo dos indígenas. Em Roraima, essas áreas correspondem a 46,37% das terras do estado. 93A íntegra do voto do relator consta nos arquivos virtuais do site do Superior Tribunal Federal. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. de 2011. 189

contínua digna de nota. Tem-se aqui uma nova e importante camada histórica a destacar. Silva (2009), em sua dissertação de mestrado,lembra que nas lutas pelo direito à terra, a Raposa Serra do Sol chamou a atenção do Brasil e do mundo. Principalmente após a decisão em área contínua. Na época, O Conselho Indigenista Missionário, Cimi Norte I, reconheceu que esse foi um dos passos mais significativos para assegurar o futuro desses povos. Diante disso, a festa das comunidades indígenas desperta, por suas características históricas, alto interesse dos meios de comunicação. O Conselho Indígena de Roraima (CIR) decidiu realizar a festa em comemoração a homologação em área contínua no dia do índio, em 19 de abril de 2010, cinco anos após a assinatura da homologação. Como dito, embora o decreto tenha sido assinado em 15 de abril de 2005, a festa não se realizou na época, devido aos conflitos gerados na região. A própria natureza sócio-cultural da festa, insinua um processo comunicacional, a colocar em suspenso o cotidiano e a atividade produtiva, e a preencher esse espaço de ludicidade, agradecimento e alegria, em distintas formas de apresentação, por meio de músicas, cantos, danças, oralidades, comidas e bebidas, evocando tradições, mitos, crenças religiosas e heroísmos. Pode-se dizer que a festa das diferentes etnias indígenas em Maturuca94 produziu uma grande mensagem coletiva para a qual se voltou parte significativa da mídia. Essa linha de interpretação apóia-se no que José Marques de Melo95 convoca como elementos que destacam a força fomentadora dos meios de comunicação diante das festas em três fluxos convergentes: a) A festa enquanto ativadora das relações humanas, produzindo comunhão grupal ou comunitária em torno de motivações socialmente relevantes. Trata-se de um fluxo de comunicação interpessoal. b) A festa enquanto mobilizadora das relações entre os grupos primários e a coletividade, através das mediações tecnológicas propiciadas pelas indústrias midiáticas, em espaços geograficamente delimitados - locais, regionais, nacionais. Trata-se de um fluxo de comunicação massiva.

94 A comunidade Maturuca é considerada o principal centro das ações políticas desencadeadas em defesa dos territórios indígenas no estado. Parte das lideranças fundadoras do CIR origina-se desta maloca ou aldeia. 95MELO, José Marques de. As festas populares como processos comunicacionais: roteiro para seu inventário, no Brasil, no limiar do século XXI. Disponível em: http://www2.metodista.br/unesco/PCLA/revista11/projetos%2011-1.htm. Acesso em 05 de março de 2014. 190

c) A festa enquanto articuladora de relações institucionais, desencadeando iniciativas de entidades enraizadas comunitariamente e antenadas coletivamente, que decidem o que celebrar, em que circunstâncias, com que parceiros. Trata-se de um fluxo de intermediação comunicativa, produzindo a interação das comunicações interpessoais e massivas. É importante dizer que todos os aspectos que construíram a história de organização e luta dos indígenas da região nos últimos trinta anos constituem a memória da festa dos “Filhos de Makunaimî”. A festa mobilizou um grande número de convidados, notadamente dentre os que apoiaram a causa indígena. Naquele dia, Maturuca tornou-se a upata96de todos os povos indígenas, a casa de todas as etnias. As residências e terreiros dispostos em semicírculo em torno do pátio central foram ocupadas por pessoas, bagagens, redes, barracas e equipamentos. As setenta e duas famílias Makuxi que ali residem se misturaram aos diferentes rostos, expressões e idiomas. Com a festa, a aldeia obteve o fornecimento de energia feito a motor. A água, descida das serras, chega encanada às casas, graças a um projeto liderado pelo tuxaua e financiado por uma organização estrangeira. A comunidade possui um telefone público, que deixa de funcionar a cada temporal que se abate sobre a região. Situada na região das serras, de acesso por estradas precárias, Maturuca inibe o isolamento apenas por meio do “orelhão” e do equipamento radioamador disponível no posto de saúde, que se interliga à unidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) em Boa Vista. Estas são as únicas formas de comunicação entre a aldeia e o seu exterior. Na arquitetura do lugar se destacam um templo novo da igreja católica, especialmente erguido pela comunidade para celebrar a conquista da terra, e, na praça central, dois grandes malocões (estruturas artesanais, uma com dez e outra com 14 metros de altura, sustentadas em grandes esteios de madeira, com cobertura de palhas de buriti, sem paredes e de chão cimentado) que, ao abrigarem preferencialmente festas, reuniões e assembleias desta e de outras comunidades indígenas da região, constituem-se como um dos mais importantes espaços políticos da aldeia. Um malocão é denominado de

96Termo utilizado por alguns Makuxi, falantes de sua língua, para designar a própria aldeia, isto é, a aldeia de nascimento e a aldeia em que residem, o que pode ser traduzido por meu lugar, minha casa ou mesmo lar. (SANTILLI, 2007, p. 29) 191

“Demarcação” e o outro, o maior, é conhecido por “Homologação”. Foi nestes malocões e em torno deles que os cinco dias de festa transcorreram, com destaque para a presença de convidados ilustres, como o presidente da república, Luis Inácio Lula da Silva e sua comitiva. De acordo com informações do CIR, órgão responsável pela coordenação do evento, inclusive e especialmente, a parte jornalística -, havia 30 jornalistas cadastrados para a cobertura do evento. Destes eram imprensa nacional -10, imprensa local, 7 e 13 da imprensa internacional. Além disso, nem todos os presentes faziam parte de órgãos de imprensa, havendo registros de produtores independentes de documentários e filmes.

1.1 Critérios da notícia e o incidente nas relações entre mídia e assessoria É sabido que a notícia, embora de difícil definição, é a matéria-prima do jornalismo. A publicação dos fatos é que tem o poder de visibilidade. E todos dependem deste produto, a notícia, para emitir valores, opiniões, definir planos de ação, investimentos, projetos de governo. É particularmente evidente que o que sabemos sobre numerosos assuntos de interesse público depende enormemente do que nos dizem os veículos de comunicação. Somos sempre influenciados pelo jornalismo, e incapazes de evitar esse fenômeno”, (William L. Rivers e Wilbur Schramm, apud Mário Erbolato p. 51). A informação da atualidade reflete a realidade que nos cerca, num processo através do qual surge a opinião pública, explica Angel Benito (apud Erbolato p. 51). E o serviço de informação é essencial para o homem e para o tecido social que compõem o grupamento humano, numa busca constante por informação. Portanto, é incontestável que este tema é notícia, não apenas para o Estado de Roraima. O assunto também gera interesse por parte de segmentos diversos em todo o mundo, sobretudo ligados às questões indígenas. Entre Organizações não Governamentais, organizações ligadas aos direitos indígenas, cientistas, cineastas e, claro, jornalistas, todos têm interesse no tema. Critérios elementares para definir a importância de uma notícia podem ser listados respeitando, de acordo com Mário Erbolato: a originalidade, a proximidade e marco geográfico; a importância; expectativa; o interesse ou impacto, especificando que quanto

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mais pessoas possam ter sua vida afetada pela notícia, mais importante ela é; apelo, ou seja, quanto maior a curiosidade que uma notícia possa despertar, mais peso ela tem; além de empatia e proximidade. Este é o fato que se pretende destacar, pois quanto maior a proximidade geográfica entre o fator gerador da notícia e o leitor, mais importante ela se torna. (2003, p. 60 a 65). Dessa forma, destaca-se uma questão que gerou polêmica por parte da imprensa, sobretudo dos órgãos locais de comunicação: a exigência da organização indígena(CIR) de cessão de direito de imagens do evento, que seriam cedidas por apenas seis meses e deveriam ser copiadas e entregues à coordenação de comunicação. Essa atitude foi vista por alguns jornalistas dos meios de comunicação do Estado, inscritos para a cobertura da festa, como uma forma de censura e controle, havendo quem se recusasse a dar continuidade ao trabalho. A medida foi revertida pelo gabinete da Presidência da República, pouco antes do início do auge da festa, na manhã do dia 19 de abril. Em relação à postura tomada pela organização do evento, no que indica as tensões entre jornalistas e assessores de imprensa, consideramos o que Eugenio Bucci lembra que o código de Ética de Jornalismo, em sua nova versão, aprovada em Congresso da categoria em 2008, estabelece no artigo 4, que: “ O compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação”97. Ele ainda faz um questionamento se esse princípio normativo tem validade também para os assessores de impressa e diz que a resposta é duvidosa, parece ser negativa, de acordo com o próprio código e destaca a evidência dessa ambigüidade que aparece, também no artigo 4, inciso I, onde diz que o jornalista deve: [...] ressalvadas as especificidades da assessoria de imprensa, ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, o maior número de pessoas e instituições envolvidas em uma cobertura jornalística, principalmente aquelas que são objeto de acusações não suficientemente demonstradas ou verificadas.

Em contrapartida, Chaparro defende como avanço a experiência brasileira de profissionais da imprensa atuando como fontes, em assessoria de imprensa, sendo

97 Artigo O que é ser jornalista?, Disponível em www.observatoriodaimprensa.com.br. Acesso em 03 de jun de 2010

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reconhecidos como jornalistas. Essa discussão, para o autor, remete ao fato de que o jornalista é um educador, organizando as relações entre jornalistas assessores de imprensa e jornalistas das redações. Para ele, atuando em campos diferentes, “mas em função de um objetivo maior, comum, o da confiabilidade da informação, da análise e da elucidação jornalística”98. Para defender e preservar a confiabilidade do jornalismo – como processo e linguagem – é preciso que os próprios jornalistas se comportem como tal, qualquer que seja o lugar ou a instância em que atuem. Quem está nas redações, que não se limite à reprodução do que as fontes dizem e fazem, mas que, sem a destruição dos discursos particulares, faça aflorar os conflitos que interessam à construção da democracia. Quem atua nas fontes, que assuma o seu papel e a sua responsabilidade de interface honesta e criativa entre quem produz os fatos e quem os deve relatar e comentar para a sociedade.

1.2 A pesquisa com os jornalistas Foram aplicados onze (11) questionários durante a festa dos “Filhos de Makunaimî”, por ocasião da cerimônia oficial, com a presença do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. A distribuição dos questionários foi feita de forma aleatória para os jornalistas integrantes da cobertura. Com doze perguntas, as questões foram de múltipla escolha, sendo oito (8) fechadas e quatro (4) com espaço para comentários. Os questionários não foram identificados. Como as questões de mediação e de contato entre os profissionais da imprensa oferecem um nível de complexidade maior, sobre o qual um questionário dificilmente poderia dar respostas mais profundas, optou-se por extrair deste instrumento metodológico apenas algumas inscrições que ajudassem a traduzir, pelo trabalho técnico, o lugar do jornalismo nesse tecido social. De acordo com as respostas obtidas, preferiu-se abordar neste artigo as questões pertinentes à cobertura do evento. Assim, os questionários identificaram que a televisão foi o veículo mais presente, com seis (6) repórteres, seguido de rádio e impresso, com três (3) jornalistas cada um, sendo que revista e internet tiveram apenas dois (2) jornalistas de cada

98 Blog “O Xis da Questão”, de Manuel Chaparro. Disponível em http://www.sinprorp.org.br/Clipping/2005/296.htm. Acesso em 08 de jul. 2010.

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veículo, respectivamente. Apenas um questionário registra a cobertura para duas mídias: rádio e impresso. A maioria dos jornalistas respondeu não conhecer até então a comunidade Maturuca, local onde foi realizada a festa. Apenas quatro (4) já conheciam o local, contra sete (7) que disseram não conhecer. Isso cria uma expectativa acerca do ambiente e das condições disponíveis para trabalhar, tais como infra-estrutura para produção e envio de dados, por exemplo. Quanto a um dos princípios básicos da cobertura jornalística, que refere-se a pauta, seis (6) responderam não ter sido pautados pelo veículo. Apenas cinco (5), responderam que foram pautados. Na pergunta seguinte, oito (8) responderam não ter mudado a pauta recebida, um (1) respondeu ter mudado e dois (2) não responderam. A pesquisa também determinou quais as fontes são utilizadas pelos jornalistas para obter informações sobre a Raposa Serra do Sol. Foram dadas cinco opções: três (3) responderam que se informam através da imprensa internacional; seis (6) através da imprensa nacional; três (3) pela imprensa de Roraima e sete (7) pelo site do CIR. Cinco (5) responderam Outros. Seis (6) marcaram mais de uma alternativa. Em relação às exigências da coordenação de comunicação sobre as imagens produzidas durante a festa, quatro (4) se disseram satisfeitos com a medida; três (3) responderam estar Nem satisfeito nem insatisfeito; e 2 Insatisfeito e Muito insatisfeito. Cada um com uma resposta em cada questão. Estas respostas parecem contraditórias, já que se referem ao cerceamento de utilização do material produzido. Para explicar tal fato, é pertinente relatar que no início da festa ocorreu um fator determinante: Durante a manhã do dia 19 de abril, quando da aplicação do questionário, a exigência de restrição de uso das imagens foi revista. Sua utilização foi liberada, após determinação do gabinete da Presidência da República. Embora os repórteres tenham ido ao evento após assinar o termo de compromisso de restrição de uso, havia claramente um conflito nessa decisão. Avalia-se que as respostas, que registram uma contradição, traduzem esse momento. De acordo com o CIR, a decisão de restrição de uso das imagens partiu das lideranças de algumas comunidades ligadas à região onde foi realizada a festa, a região das serras. A coordenação do evento foi dividida entre diferentes grupos, responsáveis por cada

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etapa da festa, como por exemplo, a comunicação. De acordo com entrevista concedida após o evento, o assessor de imprensa do CIR, Jessé de Souza, relata que a cobertura não alcançou a amplitude esperada, detendo-se mais na repercussão local e institucional, sobretudo pelo gabinete da Presidência da República. Quanto aos documentários e filmes, a repercussão só será feita posteriormente, uma vez que, esse tipo de registro requer mais tempo para ser editado e divulgado. O CIR destaca a ampla cobertura dada pela imprensa local. E reconhece a importância da Assessoria Oficial da Presidência da República que transmitiu a festa.

Considerações Finais As festividades tiveram como característica mais forte a expressão cultural das etnias presentes, contemplados pela riqueza cultural dos povos indígenas de Roraima, numa reafirmação dos seus valores culturais. Comemorar através dos cantos e danças tradicionais, como por exemplo, a dança do parixara99. Um rito alegre, simbolizando a expressão de um momento histórico, festejando a reconquista da terra que para eles significa a revalorização da cultura e retorno da dinâmica social tradicional dos povos100. Retomar uma área como a Raposa Serra do Sol, significa a certeza da volta da terra- mãe, de acordo com suas crenças. A festa foi uma expressão de revalorização de costumes, línguas, crenças, danças e tradições que faz ressurgir a auto-estima, o sentir-se gente. A homologação da Raposa Serra do Sol reforçou esse processo. Dessa forma, as lideranças indígenas hoje priorizam nas comunidades a cultura dos antepassados, que estava caindo no esquecimento. Atualmente se percebe uma valorização cada vez maior do trabalho dos pajés, das músicas e festas, das pinturas e do artesanato. No dia-a-dia e nas festas, consome-se a bebida tradicional, o caxiri101. A hibridação das culturas trouxe para o meio dos povos indígenas o forró, dança trazida pelos nordestinos, a maioria dos migrantes do Estado. Os indígenas já assimilaram o estilo musical, formando suas próprias bandas musicais, como a banda “macuxi na cuia”, que inclusive apresentou-se no evento. As letras são voltadas para relatos indígenas,

99Dança tradicional do povo macuxi, uma das maiores etnias do Estado, geralmente realizada em solenidades festivas, com a presença de convidados, que são chamados a participar da dança. 100 NBR (TV oficial do Governo Federal), ao vivo, via satélite 101Bebida fermentada tradicional, feita de mandioca. 196

tratando do cotidiano e da luta dos povos. Isso demonstra que a batalha pela sobrevivência da sua cultura está ativada Todavia, se compreende que essa questão envolve fatores étnicos, culturais, sociais e antropológicos, temas amplos e complexos, que vão além dos objetivos deste trabalho. O fato é que o CIR ocupa hoje um espaço político importante na representatividade dos direitos e interesses dos povos indígenas diante da sociedade local, nacional e internacional. Os principais resultados da organização foram a libertação das comunidades indígenas da opressão dos fazendeiros, a afirmação das identidades culturais dos diferentes povos e a reconquista territorial. Além do registro da festa pela diversidade de meios de comunicação presentes,faz- se notar que a realidade da imprensa roraimense nem sempre reporta os povos indígenas como protagonistas de sua história. Há relatos de preconceito e controle por parte de grupos políticos que detém os maiores meios de Comunicação, Porém, os meios de comunicação em Roraima estão se diversificando, e nos últimos dez anos, ampliou-se o número de canais de rádio, jornais impressos e, timidamente, veículos on-line. O jornalismo em Roraima está em desenvolvimento, ainda com forte teor institucional, numa economia onde o governo estadual é a maior fonte de renda. Há um número maior de rádios e televisões, estas últimas com uma programação local bastante diversificada, distribuída sobretudo entre o jornalismo. Nos veículos impressos, muitas notícias ganham projeção nacional, como o “Escândalo dos Gafanhotos”, em 2004; o escândalo da pedofilia em 2008 e, mais repetidamente, as questões indígenas, prioritariamente em relação às reservas indígenas. O caso da Raposa Serra do Sol é o que ultimamente, recebeu maior destaque. Há muito ainda a percorrer, para desenvolver um jornalismo independente e mais crítico, com linguagem objetiva e maior análise e interpretação dos fatos. No que se refere a relevância e ao interesse, estes podem ser considerados como os atributos de definição do jornalismo. Só é notícia o relato que projeta, desperta ou responde a interesses. Esse atributo de definição pode alcançar maior ou menor intensidade, dependendo da existência, em maior ou menor grau, de atributos de relevância no conteúdo (CHAPARRO,1994 p. 119).

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Esse conceito pode servir como base para o relato do assessor de imprensa do CIR, quando reclama da pouca divulgação dada à festa de homologação, embora tenha se declarado satisfeito com a cobertura local. As exigências feitas pela coordenação do evento aos veículos de comunicação tiveram a conotação de censura, e vão de encontro aos preceitos do jornalismo, da liberdade de informação. Essa atitude, embora tendo sido tomada por uma parte da coordenação do evento, como foi apurado nesta pesquisa, coloca os profissionais de imprensa em posição de não merecedores de confiança, de não poderem exercer seu papel profissional com isenção. De resto, esta é uma queixa feita pelas próprias comunidades ao se referir a parcialidade dos veículos de comunicação locais ao tratar das questões indígenas. A queixa é que estes veiculam a visão institucional do governo estadual e empresários, em detrimento dos valores étnicos, uma visão que nega o direito à terra como valor fundamental da cultura dos povos indígenas. Aqui, pretende-se levantar, como questionamento, os motivos para este comportamento, transformado em ciclo vicioso, onde a resistência dos indígenas ampara-se na história de escravidão e exploração, que formam um elo da questão. Por outro lado, o discurso desenvolvimentista de utilização das terras para pecuária e agronegócio, defendido pelo governo estadual, empresários, fazendeiros e alguns veículos de comunicação de Roraima, que colocam a causa indígena como a responsável pelo processo de estagnação econômica. Com a homologação das terras indígenas abre-se uma nova possibilidade de diálogo, num longo e difícil processo. Porém, entende-se que o avanço só pode ser alcançado a partir da mudança de comportamento entre os dois discursos, onde os limites e interesses de cada parte sejam respeitados.

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O percurso da mídia impressa no Pará: uma viagem até Cametá do século XIX102

Jessé Andrade Santa BRÍGIDA103 Lorena Saraiva da SILVA104 Thaís Christina Coelho SIQUEIRA105 Netília Silva dos Anjos SEIXAS106

Resumo:A imprensa paraense, assim como a de outros estados do país, é repleta de lacunas em sua história. O artigo integra pesquisa maior que busca contribuir para estudos nacionais no campo da história da mídia. Para tanto, visa analisar os jornais do interior do Pará em prosseguimento aos estudos que são realizados sobre a imprensa da capital. O ponto inicial desta pesquisa é a cidade de Cametá (PA), que abrigou o primeiro jornal fora da capital paraense e o jornal de maior duração que não circulou na cidade de Belém, no século XIX. Cametá ainda se destaca por ser a cidade, depois de Belém, que mais apresenta acervo disponível para consulta na Biblioteca Pública Arthur Vianna, em Belém. A proposta é identificar os passos percorridos pela imprensa na cidade de Cametá no século XIX, para entender como a palavra impressa se desenvolveu no interior do Pará e quais os caminhos que tomou na sua consolidação no cenário Amazônico. Este artigo integra as pesquisas do projeto “A trajetória da imprensa no Pará”, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido na Faculdade de Comunicação e no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará.

Palavras-chave: Jornalismo; História da Imprensa; Pará; Cametá; Século XIX.

O presente artigo integra os estudos realizados no âmbito do projeto de pesquisa "A trajetória da imprensa no Pará" (SEIXAS, 2012), desenvolvido na Faculdade de Comunicação Social e no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará.107 O projeto visa pesquisar a imprensa paraense, buscando preencher lacunas ainda existentes em relação aos 191 anos de seu percurso, e se

102 Trabalho apresentado no GT de Jornalismo, integrante do 3º Encontro Regional Norte de Pesquisadores da História da Mídia, 2014. 103 Bolsista PIBIC-UFPA do projeto “A trajetória da imprensa no Pará”. 104 Colaboradora do projeto. 105 Bolsista PIBIC-UFPA do projeto. 106 Coordenadora do projeto. 107O projeto “A trajetória da imprensa no Pará” é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital Universal 2012. 201

somar aos estudos sobre a história da mídia no Brasil. Na perspectiva de estudar e analisar os passos dessa imprensa, o projeto busca entender como se deu o desenvolvimento dos periódicos nos municípios do interior do Estado do Pará. No levantamento dos dados, foi usada a ficha de análise desenvolvida pela Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (ALCAR), com a finalidade de identificar o formato gráfico e de conteúdo dos jornais, bem como de sistematizar os dados. Neste estudo, foram utilizados os dados colhidos em relação à cidade de Cametá (PA), que possui o jornal mais antigo - Teo-Teo (1840) - do interior do Estado disponível para consulta, assim como o jornal mais duradouro - O Commercial (1882-1901) -, com 19 anos de publicação, com início no século XIX. A escolha da cidade se justifica também pela disponibilidade de outros periódicos à consulta no acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna, em Belém (PA). Este artigo é o ponto inicial da pesquisa, que ainda conta com dados de outras cidades do interior.

Percursos da imprensa no Brasil As discussões a respeito dos impressos brasileiros iniciam no questionamento sobre qual foi o primeiro jornal a existir no Brasil, se a Gazeta do Rio de Janeiro, cujo primeiro exemplar circulou em 10 de setembro de 1808, ou o Correio Braziliense, editado por Hipólito José da Costa em junho do mesmo ano, mas na cidade de Londres, portanto, muito distante de terras brasileiras. Também permeiam os estudos sobre a imprensa escrita no Brasil as questões econômicas, políticas e sociais, as quais são apontadas como as causas do atraso da circulação de jornais no país, sobretudo em comparação a outras colônias da América Espanhola (BARBOSA, 2010). Para Morel (2008),nem o atraso, a censura ou o oficialismo sustentam uma explicação para a dificuldade de instalação da imprensa na época. De acordo com o autor, era grande o alcance dessa imprensa, seja ela combativa ou oficial.

(...) o surgimento da imprensa periódica no Brasil não se deu num vazio cultural, mas em uma densa trama de relações e formas de transmissão já existentes, na qual a imprensa se inseria. Ou seja, o periodismo pretendia, também, marcar e ordenar uma cena pública que passava por transformações nas relações de poder que diziam respeito a amplos

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setores da hierarquia da sociedade, em suas dimensões políticas e sociais. A circulação de palavras - faladas, manuscritas ou impressas - não se fechava em fronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade que se tornaria brasileira, não ficava estanque em um círculo de letrados, embora estes, também tocados por contradições e diferenças, detivessem o poder de produção e leitura direta da imprensa (MOREL, 2008, p. 25).

De acordo com o autor (2008), o padrão que a Gazeta seguia era semelhante ao das gazetas europeias do Antigo Regime, caracterizadas por “circular na esfera do estado absolutista, campo de disputas simbólicas e não de referências monolíticas” (MOREL, 2008, p.30-31). É importante recordar que alguns estudiosos, como Marialva Barbosa (2010), enxergam os documentos redigidos antes do primeiro jornal brasileiro como práticas jornalísticas, os quais continham informações reais a respeito da colônia portuguesa na América. No entanto, como explica Barbosa (2010),

(...) só existe imprensa, no sentido estrito do termo, a partir do momento em que a transmissão de informações regular se torna pública, ou seja, acessível ao público em geral. Até então as novidades ou opiniões publicadas, sem qualquer regularidade, não eram transformadas em notícias. Existe troca de informações, mas não existe imprensa. Só há imprensa quando a ideia do público como espécie de abstração-concreta se torna o desejo dominante das publicações. Não importa que tipo de público: se os próprios jornalistas, se os poderosos do reino, se os comerciantes e os militares de altas patentes. Há jornalismo quando há publicização no sentido mais amplo do termo (BARBOSA, 2010, p. 20).

Nesse sentido, a autora (2010) vai caracterizar a Gazeta do Rio de Janeiro como periódico oficial, uma vez que inaugurou a impressão no país, passando a imprensa a alcançar um público maior. No entanto, o conteúdo dessas publicações era limitado pelos interesses do Estado, pois tinha sua manutenção ligada aos privilégios da Impressão Régia. Mesmo assim, a Gazeta já noticiava assuntos do cotidiano fluminense e de interesse da população. O modelo de jornalismo desse periódico iria inspirar grande parte dos jornais que dominaram o Brasil no século XIX (COELHO, 2008). Já o Correio Braziliense era um jornal clandestino que trazia questionamentos e fazia críticas ao sistema colonial, sofrendo, por esse motivo, restrições e perseguições do governo português. Barbosa (2010) define esse o marco do que ainda hoje se pode perceber no jornalismo brasileiro: a oposição entre a imprensa oficial do Estado e o

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jornalismo combativo ao poder público.

Os primórdios da imprensa no Pará Em 1822, a Gazeta do Rio de Janeiro deixou de circular. Nesse mesmo ano, surgiu no cenário paraense o primeiro jornal impresso que se tem notícia no Norte do Brasil, fundado por Filippe Alberto Patroni Martins Maciel Parente. O periódico O Paraense vem à luz da sociedade de Belém no dia 22 de maio daquele ano,colocando, assim, o Estado entre os primeiros do Brasil a conhecer a imprensa (SEIXAS, 2011). Coelho (2008) enumera jornais como o Astro da Lusitânia (1820-1823), Mnemosine Constitucional (1820-1821), O Indagador Constitucional (1821), O Português Constitucional (1820- 1821) e os Diários das Cortes como periódicos portugueses que inspiraram Filippe Patroni na elaboração de O Paraense, pois várias deles circularam em Belém antes do surgimento da imprensa no Pará.108

O futuro criador de O Paraense possuía uma visão de mundo contingenciada pelos valores eleitos pelo liberalismo como inerentes ao homem civil e seus direitos naturais, daí o porquê de o projeto intelectual, mas também a estratégia política de Filippe Patroni no Pará tenham sido reflexivos da sua condição de sujeito de um tempo de rupturas (COELHO, 2008, p. 29).

Nascido no Pará, Filippe Patroni era um jovem estudante de Direito em Coimbra, Portugal. Em 1820, deixou Portugal após alguns anos de estudo e chegou a Belém trazendo ideias e discursos espelhados no movimento vintista, entre elas, a liberdade de imprensa (COELHO, 1993). Já em abril do ano seguinte o Pará foi elevado à condição de Província de Portugal, situação que facilitaria a implantação do projeto de criar o jornal O Paraense. O jornal surge em um período de grande movimentação política. Coelho (2008) reitera que o aparecimento do periódico marcou a vida pública da época e impactou diretamente diversos segmentos da sociedade. De acordo com o pesquisador, várias correspondências eram enviadas do Pará para Lisboa informando desses impactos. Segundo o autor (2008), “de uma maneira geral, esses documentos vão relacionar a ação da imprensa à ideia de anarquia, inclusive por parte da população escrava, assim como atrelá-

108 Também chamados de “folhas”, esses jornais eram publicações portuguesas que foram levadas para Belém, enquanto que O Paraense, desde o seu primeiro exemplar, foi produzido e publicado no Pará. 204

la ao espírito de dissidência que avançava no Rio de Janeiro (...)” (COELHO, 2008, p. 35). O Brasil iria declarar Independência de Portugal no dia 7 de setembro de 1822, mas a adesão do Pará só ocorreria em 11 de agosto de 1823, sendo escolhida a data de 15 de agosto como o dia oficial da adesão (SALLES, 1992). Salles (1992) afirma que, após esse fato, “o Pará se integraria ao Brasil pela adesão à Independência, mas conservaria inalterado o status quo colonial”. Em meio a problemas de conjuntura social, política e econômica, vários levantes surgiram em diversas partes do país, como a Guerra dos Farrapos, no ; a Balaiada, no Maranhão; e a Cabanagem, no Pará (SALLES, 1992). Marcada por ser o único movimento do período que chegou ao poder, a Cabanagem teve início em 1835, com a invasão de Belém pelos cabanos. Diz Salles:

A Cabanagem exprimiu realmente luta de classes num ambiente que primou durante muito tempo em manter rígidas, tensas e antagônicas as situações de classes. As insinuações para o desvio deste enfoque são inúmeras, porém, ponderáveis, desde mesmo os seus começos. Ele se torna claro na medida em que aprofundamos a análise do movimento e do contexto que abrangeu (SALLES, 1992, p. 140-141).

Figueiredo (2008) enumera outros jornais, como o Correio Official Paraense (1834-1835), de Bernardo Lobo de Sousa e redigido pelo cônego Gaspar de Siqueira Queirós, e o Sentinella Maranhense na Guarita do Pará (1834), sob responsabilidade de Camilo José Moreira Jacareacanga e redigido pelo maranhense Vicente Ferreira Lavor Papagaio, como importantes jornais do período de resistência cabana. Já a partir da década de 1870, a ampliação da imprensa alterou significativamente o cenário e o processo de circulação dos jornais na capital, o que contribuiu para a disseminação de vários novos títulos, os quais, segundo Figueiredo (2008), alcançaram a marca de 300 periódicos. Belém teve 845 jornais impressos no século XIX, configurando-se, assim, como principal produtor de jornais no norte (BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ, 1985). No interior do Pará, a produção de periódicos foi intensa, com jornais que duraram 19 anos ou que tiveram correspondência com outros municípios do Estado, constituindo redes de comunicação. Como mostra o Quadro 1, no Pará houve uma intensa produção de jornais em quase todos os municípios.

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Quadro 1 – Cidades do interior do Pará e respectiva produção de jornais no século XIX.

Cidades do interior do Pará Número de jornais publicados nas cidades Abaetetuba 32 Afuá 2 Alenquer 7 Altamira 1 Baião 7 Barcarena 2 Benevides 2 Bragança 20 Breves 3 Cachoeira do Arari 1 Cametá 53 Capanema 1 Castanhal 8 Chaves 1 Conceição do Araguaia 1 Curralinho 1 Curuça 1 Gurupá 2 Icoaraci 3 Igarapé-Açu 3 Igarapé-Miri 3 Irituia 1 Itaituba 1 Marabá 2 Maracanã 5 Marapanim 2 Mocajuba 3 Monte Alegre 9 Mosqueiro 3 Muaná 12 Óbidos 3 Ourém 1 Peixe-Boi 1 Ponta de Pedras 3 Portel 3 Porto de Moz 1 Santa Izabel do Pará 5 Santarém 33 Santarém Novo 1 São Caetano de Odivelas 3 São Domingos de Boa Vista 1 São Felix do Xingu 1 São Miguel do Guamá 1 Soure 3 Tucuruí 1 Vigia 35 Viseu 1 Fonte: Biblioteca Pública Arthur Vianna.

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O acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna contém poucos exemplares dos jornais que circularam nos municípios do interior do Pará. Dos exemplares existentes há poucas edições, algumas danificadas ou ilegíveis.

A cidade de Cametá Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (s.d), Cametá é o mais tradicional e antigo município “dos baixos rios do ”, sendo a segunda localidade a ser fundada no Estado do Pará.

Em 1617, o Frei Cristóvão de São José subiu o Rio Tocantins, a mando de Jerônimo de Albuquerque [governador do Maranhão e Grão-Pará] para reconhecimento e catequese dos índios Camutá. Após árduo trabalho de catequização, Frei Cristóvão fez nascer a povoação dos Camutás às margens do Tocantins, em 1620, estabelecendo, dessa forma, os princípios da colonização dos Camutá. Em 24 de dezembro de 1635, Feliciano Coelho de Carvalho ancorou sua caravela na primeira porção de terra forme da margem esquerda do Tocantins. Encontrou a tribo dos Camutás já pacificada pelo Frei Cristóvão de São José e fundou a Vila Viçosa de Santa Cruz do Camutá, a primeira cidade no baixo Rio Tocantins. Mais de três séculos e meio depois, Cametá é um dos portos mais importantes do Pará (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, s.d., não paginado).

Somente no ano de 1848, conforme a Lei Provincial nº 145, de 24 de outubro de 1848, a vila foi elevada à condição de cidade com o nome de Cametá, cujo significado é explicado pelo IBGE (s.d):

Que a palavra Cametá é de origem tupi dúvidas não há, diferem, portanto, algumas interpretações. Por isso, cumpre-se arrolar algumas delas: segundo Jorge Hurley, deriva de caá – mato, floresta e mutá ou mutã – espécie de degrau ou “palanque” instalado em galhos de árvore feitos pelos índios para esperar a caça ou para morar. Para Carlos Roque, o significado literal de Cametá é “degrau do mato”, abonado inclusive por Victor Tamer, pois derivaria de Camutá. Luiz Tubiriçá trata o vocábulo como derivado de caá + mytá – choupana suspensa em árvore para espera de caça. No Dicionário Toponímico da Microrregião do Camutá acrescentamos ao significado de Jorge Hurley, o hábito dos índios Camutás de construírem suas habitações tão altas quanto as árvores, ou quem sabe até nas copas destas. (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, s.d., p.1).

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Em 1986, a cidade tornou-se Patrimônio Histórico Nacional, segundo a Lei nº 7537, de 16 de setembro de 1986 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, s.d.). Atualmente, a Secretaria de Estado de Transportes do Governo do Estado do Pará (s.d) informa que Cametá pertence à Mesorregião do Nordeste do Pará e à Microrregião de Cametá e que a distância rodoviária entre a cidade e a capital Belém é de 212,80 km.

O percurso dos jornais impressos em Cametá no século XIX Do total de 33 jornais publicados na cidade de Cametá no século XIX, apenas sete fazem parte do acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna e estão disponíveis para consulta em microfilme. O primeiro jornal e, assim, o mais antigo dos jornais do interior do Pará, é o Teo-Teo,de Cametá. Apesar de aparecer no Catálogo Jornais Paraoaras (BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARÁ, 1985) como sendo um jornal de Belém, o Teo-Teo é proveniente de Cametá. Em razão da disponibilidade, foram analisadas as edições do período de quatro de julho a 27 de outubro de 1848. O jornal tinha quatro páginas, com exceção da edição de número 39, do dia 27 de outubro de 1848, que trazia seis páginas. Não apresentava caderno ou suplemento. O Teo-Teo (1840) era jornal semanal, impresso na cidade de Cametá, na Typografia de Santarém e Filho, localizada na Rua do Espírito Santo, n. 16 e tinha como epígrafe: “Não tenhas muza medo delles. Vai batendo de rijo fogo nelles”, de autoria de J.A Macedo. Não foram encontrados dados que indicassem o local de venda ou distribuição. A venda avulsa e os valores de assinatura não foram apontados em nenhuma das edições analisadas, mas o jornal aceitava assinaturas. É interessante salientar que o jornal não possuía publicidades. O jornal tinha como principais seções Pará, Aviso, Correspondência e Editoria. Não tinha colunas, apenas as seções se repetiam em todas as edições analisadas. A seção Correspondência publicava cartas, porém não eram assinadas nem deixavam transparecer os locais de onde eram endereçadas. As notícias, na sua maioria, eram de cunho político, mostrando mais a visão do editor do jornal em relação às políticas públicas que eram aplicadas à cidade. Essas notícias não tinham manchetes. O periódico não editava nenhuma espécie de chamada e as

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matérias que iniciavam o jornal eram longas e se estendiam às paginas seguintes. Na questão gráfica, o jornal não editava fotografias, apenas desenhos. Por exemplo, o desenho do mascote do jornal, o pássaro teo-teo, vinha sempre no alto da primeira página. As duas colunas que formavam o jornal eram divididas por uma linha de espessura fina, assim como o cabeçalho inicial com o nome do jornal, a data. O número da edição era separado do corpo do texto também por uma linha. Outro jornal da cidade de Cametá foi O Incentivo (1851). Há apenas uma edição disponível, com 36 páginas, do dia 01 de fevereiro de 1851. Não são informados o local de impressão e as dimensões do jornal nem foram observados cadernos ou suplementos. Os locais de distribuição, os valores de venda avulsa ou assinatura também não foram encontrados. Assim como o Teo-Teo, O Incentivo não tinha publicidades e não indicava apoio de nenhuma instituição ou órgão. O periódico tinha como principais seções Literatura, Variedades, Poesia, Enigma, Chronologia, Bibliographia e Epigramma. A tipologia dos textos é, em sua maioria, de cunho literário. Não havia publicação de cartas. Ilustrações também não foram encontradas. Os textos eram longos e se estendiam para o interior do jornal. No topo da primeira página, o periódico se declarava como sendo "Recreativo e de Instrução". Apesar de ser de cunho literário, o jornal publicou na edição analisada histórias sobre civilizações antigas da América Latina, de antes da colonização. Os dados apresentados na matéria em questão eram baseados em estudos feitos pelo religioso "Padre Ribas". O Jasmin (1873) também foi publicado na cidade de Cametá. Constam no Setor de Microfilmagem da Biblioteca Pública Arthur Vianna as edições do período de 26 de janeiro de 1873 a 13 de fevereiro de 1876. O jornal era composto por quatro páginas, com a ilustração da flor de jasmim na primeira página. Não foram informadas as dimensões do periódico. Em relação à localização e impressão do jornal, podemos observar que foi impresso, primeiramente, na Typographia do Conservador, no Largo das Mercez. Depois, na Typographia De Cancela & Filhos, ainda no Largo das Mercez, no bairro da Cana, em Cametá. No que diz respeito à periodicidade do jornal, era semanal, publicado aos domingos. Consta apenas uma publicidade no período analisado, no dia 09 de fevereiro de 1873. No início, o valor de assinatura para os assinantes da cidade era de 320 réis o mês, já

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para os de fora de Cametá, o valor era de 360 réis. O Jasmin não informa o local de distribuição ou venda. As seções mais frequentes encontradas foram O Jasmin, A pedido, Variedades, Annuncios e Noticiario. O jornal tinha um padrão editorial com textos mais voltados aos "bons costumes" e a moral. O jornal, então, colocava-se como uma folha religiosa, noticiosa e crítica, que parou de circular por um tempo não determinado, mas que na edição analisada fica claro ser uma segunda etapa do jornal.

Depois de uma tam grande e prolongada ausencia, meu caros leitores, eis outra vez o nosso jovial, amavel e jocundo jornalzinho, ‘O Jasmin’ gosando de suas perrrogativas de estima e sympatia geral. Raiou pois o dia 26 e com elle suavissimo perfume por todos aquelles que nos fasem a houra aprecial-o. O Jasmin é como sabes o symbolo da inocencia e da puresa, por isso o nosso jornalito sendo orgulhoso e querendo ser sem reserva um verdadeiro e Candido Jasmin vos aparecera sempre perfumado de bellas narrações, poesias e anedotas juviaes e agradaveis.’ (O JASMIN, 26/01/1873, n1, p. 1).

No ano de 1882, surgiu na cidade O Commercial (1882 - 1901), pertencente ao órgão Republicano de Tocantins. Foi o mais longo que a cidade conheceu no século XIX: durou cerca de 19 anos, porém apresenta muitas faltas no acervo disponível, o que dificultou o trabalho de análise do padrão editorial e do conteúdo. No início, a tipografia era localizada à Rua Formosa, n. 8, Cametá. Ao longo das edições, esse endereço se modificou; no ano 17 do periódico, o endereço não aparece mais. O jornal apresenta publicidade, porém não indica valores cobrados, nem para a assinatura nem para venda avulsa. As principais seções que perpassaram os 19 anos de duração do jornal são O Commercial, Gazetinha, Zig-Zag, Expediente, Commercio, A pedido, Annuncios, Editaes e Communicado. Os textos, em sua maioria, falavam do cotidiano da cidade, principalmente no que tange a economia. Também era comum encontrar folhetins e textos de cunho mais literário. Diferente dos jornais supracitados, O Commercial não apresentava ilustrações, era mais simples, sem logo e sem epígrafe. Devido às faltas, as informações sobre o jornal são precárias, apenas se sabe que no ano de 1887 o periódico teve como editor-chefe Agapito Lopes Paes e no ano de 1900, um colaborador principal chamado Joaquim de Campos Malcher.

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Continuando no percurso da mídia impressa em Cametá, há o jornal A Reacção (1886-1891?), analisado no período de 01 de março de 1891 a 27 de dezembro de 1891. Era um jornal pequeno, com dimensões de 34,5 x 44, 5 cm, quatro páginas, impresso à Rua Formosa, na própria cidade de Cametá. O primeiro número foi no dia 12 de dezembro de 1886, com uma periodicidade semanal. A assinatura trimestral era no valor de $3.000 réis. Ainda publicava publicidade e não declarava ligação com nenhum grupo ou classe. A maioria dos textos era de cunho político e voltava-se mais para as notícias que envolviam a cidade. Tinha como slogan "Ordem e Progresso". Suas principais seções eram A Recção, Secção política, Noticiario, Solicitados, Commercial e Annuncios. O que se pode perceber é que o comércio da cidade foi se fortalecendo e a publicidade foi se fazendo mais presente no decorrer da publicação. Ainda há mais dois jornais disponíveis do final do século XIX, que apontam para um movimento mais cultural e industrial pelo qual a cidade parece ter passado. São eles O Artista (1891) e O Industrial (1895). O Artista surgiu no cenário cametaense no ano de 1891, no dia sete de julho, e deixou de circular seis meses depois, em 19 de dezembro. Há apenas duas edições no acervo da Biblioteca Pública Arthur Vianna: as dos dias 2 de junho e 28 de setembro de 1891. O jornal tinha quatro páginas, com três colunas, cada uma. Era vendido avulso no valor de 120 réis e as assinaturas mensais custavam 500 réis. Circulava semanalmente com os assuntos tanto da cidade de Cametá, quanto das notícias de Belém. Também eram publicados folhetins e textos mais literários. Havia publicidades ao final do jornal, mais especificamente na seção Annuncios, além de mais duas outras seções, O Artista e Noticias. Do ponto de vista gráfico, o jornal não apresentava nenhum desenho ou imagem. O proprietário do jornal se chamava Izidoro C. D’Assumpção. Por último, O Industrial é outro jornal da cidade de Cametá disponível para consulta em microfilmagem. Com as dimensões de 47 x 33 cm, o periódico apresentava quatro páginas e era vendido avulso no valor de 400 réis, com assinatura semestral de seis mil réis. A data exata do primeiro número do jornal não é conhecida, porém, sabe-se a partir do Catálogo do Jornais Paraoras (1895) que passou a circular no ano de 1895, sendo publicado até o dia sete de julho de 1907. A redação e a oficina do jornal eram localizadas na Rua 15 de novembro e tinham

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como proprietário Joaquim T. P. Malcher. O jornal possuía circulação semanal. Em suas páginas, as notícias, na maioria, eram sobre política e vinham dispostas nas seções O industrial, Perolas, Expediente, Telegrama, Editaes, Assinantes, Acre, Zig Zag e Folhetim. A epígrafe “Jure suo qui utittur menini injuriam facit” não apresentava autor e vinha sempre na primeira página do jornal. Era simples e não apresentava desenhos ou imagens de nenhuma espécie, sóbrio e dividido em duas colunas, separadas por linhas não muito espessas. Os jornais da cidade de Cametá consultados eram, em sua maioria, de cunho político ou literário, trazendo sempre como pauta principal a própria cidade, seus contextos sociais e pensamentos que evocavam a necessidade de avanço e urbanização. A partir das observações ao longo da pesquisa, percebeu-se um caráter mais local, mas isso não excluiu notícias da capital Belém ou mesmo do restante do Estado ou do Brasil. Encontramos nos jornais também estudos sobre povos indígenas e sobre a cultura latino-americana pré-colonização, pesquisas realizadas por padres jesuítas e que foram publicadas nas folhas no jornal. Para mais próximo do final do século, os jornais publicavam mais notícias de outros países, textos sobre o movimento feminino pelo qual a Europa passava naquele momento, incluindo o direito de voto das mulheres. Com essas notícias, deixava transparecer que, no final do século XIX, Cametá começava a receber mais notícias do exterior.

Considerações finais Das cidades paraenses, Cametá dispõe do maior número de títulos em acervo e se constitui no local que abrigou o jornal mais antigo e o mais longo do interior do Pará no século XIX. Com relação aos jornais cametaenses analisados, percebe-se que alguns no início os jornais eram mais voltados a questão política, um pertenciam a partidos políticos, sendo utilizados como órgãos oficiais para expressar as ideias dos partidos, dividir informações entre os membros e relatar os acontecimentos da cidade. Já no final do século os jornais voltam-se mais para a questão literária, sendo assim eles a maioria dos disponíveis no acervo da Biblioteca Pública do Pará. Mesmo diante das dificuldades da ausência de algumas edições no acervo, foi possível desenhar um percurso da mídia impressa da cidade de Cametá no século XIX,

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onde muitos jornais surgiram e desapareceram ao longo desse período histórico. Esses jornais mostram o cotidiano e as discussões em volta de diversos assuntos da cidade. Os dados que compõem esta pesquisa foram retirados de um banco de informações maior, que conta com periódicos de outros municípios do interior do Pará, e que ainda aguarda publicação. Este artigo, assim, socializa os primeiros resultados da pesquisa em uma cidade mais afastada da capital paraense.

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FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. Uma história impressa: os jornais paraenses, 1822-1922 (primeira parte). ZYG360.com. Publicação trimestral da Fundação de Telecomunicações do Pará. P. 36-38, Ano I, nº 4, nov. 2008.

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MOREL, Marco. Os primeiros passos da palavra impressa. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 23–44.

SALLES, Vicente. Memorial da Cabanagem. Belém: CEJUP, 1992.

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SECRETARIA DE ESTADO DE TRANSPORTES DO GOVERNO DO ESTADO DO PARÁ. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2014, [s.d.].

SEIXAS, Netília Silva dos Anjos. A trajetória da imprensa no Pará. Projeto de pesquisa CNPq, Edital MCT/CNPq N º 14/2012 - Universal - Faixa A. Belém: UFPA, 2012.

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_____. Panorama da imprensa em Belém: os jornais de 1822 a 1860. In: FILHO, Otacílio Amaral; LIMA, Regina Lúcia Alves de; MALCHER, Maria Ataíde; SEIXAS, Netilia Silva dos Anjos (orgs.). Comunicação midiatizada na e da Amazônia. Belém: FADESP, 2011, p.225- 248.

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Sequestro do ônibus 174 e a mudança de padrões na transmissão de grandes coberturas109

Lorena Saraiva DA SILVA Luiz Gustavo Dias FERREIRA Thaís Christina Coelho SIQUEIRA Luciana Miranda COSTA

Resumo: Neste artigo, procuramos realizar um estudo de caso do sequestro do ônibus 174 para discutir a presença da mídia e a influência desta instituição no desfecho de casos de grande alcance e repercussão, mas também procuramos dimensionar a influência que os próprios acontecimentos têm sobre o processo de construção do fazer jornalístico e dos modos de transmissão. Os critérios de noticiabilidade, interesse público, as características das grandes coberturas ao vivo e as definições de micro e macroacontecimento são alguns dos conceitos discutidos no decorrer da análise para auxiliar a compreensão.

Palavras-chave: Jornalismo; Documentário; Notícia; Sequestro; Ônibus 174.

12 de junho de 2000. Uma tarde tranquila de segunda-feira no Rio de Janeiro. Até que, por volta de duas e meia da tarde, um ônibus da linha 174 foi tomado por um sequestrador, no bairro Jardim Botânico, um dos mais nobres e importantes da capital fluminense. O nome dele era Sandro Barbosa do Nascimento. Na ocasião, dez pessoas foram feitas reféns. O sequestro durou aproximadamente quatro horas, invadiu a noite e terminou tragicamente, com as mortes da refém Geísa Firmo Gonçalves e do criminoso. Este caso se tornou um dos mais emblemáticos do telejornalismo brasileiro nos últimos anos. A cobertura televisiva do fato foi marcante por diversos aspectos, como aquele que o cineasta José Padilha apresentou no documentário Ônibus 174, de 2002. No filme, Padilha parte do sequestro para contar a história de Sandro, seus dramas e traumas familiares, o massacre da Candelária110, ao qual sobreviveu, dentre outras nuances.

109 Trabalho apresentado no GT de Jornalismo, integrante do 3º Encontro Regional Norte de Pesquisadores da História da Mídia, 2014. 110 Na madrugada do dia 23 de julho de 1993, seis menores de idade e dois maiores, moradores de rua que dormiam no entorno da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, foram executados por policiais militares. Cinco pessoas foram indiciadas pelo massacre, sendo três julgadas, porém estão em liberdade atualmente. O militar considerado como o principal responsável, Marcus Vinícius Emmanuel Borges, recebeu indulto da 215

No documentário, o papel da imprensa, em especial da televisão, é exposto como fundamental para o próprio andamento do crime, durante as longas e angustiantes horas de duração. Neste artigo, serão discutidos, a partir dos conceitos de estrutura da notícia, de Nilson Lage (2011), narração do fato, de Muniz Sodré (2009), e interesse público e interesse do público, de Alexandre Carvalho (et al.2010), como a imprensa interferiu no decorrer do sequestro, a ação da polícia do Rio de Janeiro e o próprio posicionamento de Sandro perante as câmeras.

A estrutura da notícia Um dos principais conceitos do jornalismo é a notícia, definida por Bistane & Bacellar (2010) como assuntos importantes à medida que despertam o interesse de um grande número de pessoas e que geram algum tipo de impacto ou que afetam a vida da população. A notícia também agrega outros conceitos importantes para a área como apuração, objetividade, interesse público e credibilidade. No meio de comunicação televisa, a mensagem é reforçada pela utilização das imagens, como afirmam as autoras:

Imagens também dão credibilidade e força à notícia, sobretudo às denúncias. Ler que Waldomiro Diniz, ex-subchefe da Casa Civil, exigiu propina quando era diretor da Loterj, no Rio de Janeiro, tem um peso. Vê- lo e ouvi-lo estipulando o quanto eu queria receber causou muito mais impacto. (BISTANE & BACELLAR, 2010, p.41-42).

O chamado furo de reportagem também faz parte do cotidiano jornalístico, sendo desejado diariamente por todo veículo na disputa de divulgar em primeira mão determinada informação. Entretanto, é preciso realizar uma apuração minuciosa antes de disponibilizar informações primeiro que a concorrência:

Divulgar uma informação exclusiva antes da concorrência dá prestígio a um veículo de comunicação. Demonstra agilidade e competência, mas a credibilidade vem da precisão da notícia (...). É importante saber que divulga melhor uma notícia quem a apura direito, e não quem informa

Justiça e foi liberado após 18 anos de prisão, mas o Ministério Público do Rio de Janeiro recorreu da sentença e o indulto foi suspenso, passando a ser declarado como foragido. Marcos Aurélio Dias Alcântara e Nelson Oliveira dos Santos Cunha foram condenados a mais de 200 anos, mas também foram indultados e hoje estão soltos. 216

primeiro. De que adianta oferecer em primeira mão uma informação equivocada e ter que desmentir depois? (BISTANE & BACELLAR, 2010, p. 82-83).

Silva (2004) compreende noticiabilidade como todo e qualquer fator com potencialidades capazes de atuar no processo de construção da notícia, que inclui desde o julgamento do jornalista, a cultura da categoria, a relação com as fontes até as circunstâncias históricas. Silva (2004) ainda a divide em três eixos: origem do fato, tratamentos dos fatos e visão dos fatos. O primeiro eixo apresenta a seleção inicial dos fatos e considera os atributos típicos de uma notícia, que podem ser reconhecidos por profissionais da área. No segundo já é abordado o tratamento dos fatos considerando fatores como a qualidade do material jornalístico apurado, prazo para o fechamento, formato do produto, infraestrutura, entre outros. Já no último eixo são apresentados os conceitos de objetividade, imparcialidade e veracidade, essenciais para a construção da notícia e atuam concomitantemente a assuntos abordados no primeiro e no segundo eixo. Wolf (1999) também conceitua noticiabilidade como um processo que engloba várias características cotidianas do jornalismo:

A noticiabilidade é constituída pelo conjunto de requisitos que se exigem dos acontecimentos - do ponto de vista da estrutura do trabalho nos órgãos de informação e do ponto de vista do profissionalismo dos jornalistas - para adquirirem a existência pública de notícias. Tudo o que não corresponde a esses requisitos é «excluído», por não ser adequado às rotinas produtivas e aos cânones da cultura profissional. Não adquirindo o estatuto de notícia, permanece simplesmente um acontecimento que se perde entre a «matéria-prima» que o órgão de informação não consegue transformar e que, por conseguinte, não irá fazer parte dos conhecimentos do mundo adquiridos pelo público através das comunicações de massa. (WOLF,1999, p.83).

Outros conceitos importantes no processo de produção da notícia são os valores- notícia, que são as características próprias do fato como a origem, o acontecimento isolado, as características intrínsecas na informação. Entretanto, os valores-notícia não atuam isolados, eles são utilizados juntamente com os fatores de formato do produto, linha editorial, qualidade da imagem e público-alvo. Para Wolf (1999), de modo geral, os valores-notícia são um componente do processo de noticiabilidade e são usados para responder a perguntas do tipo: quais

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acontecimentos são considerados suficientemente interessantes e relevantes para se tornarem notícias? O autor ainda esclarece que o critério de importância é identificado no momento da seleção das notícias, porém, é utilizado em todo o processo, mas de forma e relevância diferenciadas. E complementa afirmando que os valores-notícia são regras práticas que englobam um conjunto de conhecimentos profissionais, que de modo implícito e frequentemente explícito, expõem os procedimentos operacionais das redações. Após os conceitos apresentados podemos considerar o sequestro do ônibus 174 como uma notícia, pois se trata de um fato relevante e de interesse público para a sociedade, já que envolvia pessoas da comunidade e era algo “fora do comum”.

Grandes coberturas ao vivo Podemos entender por grande cobertura um trabalho jornalístico caracterizado pela duração maior do que o comum e pela relevância social do acontecimento, que pode ser previsto, como Copa do Mundo e Olimpíadas, ou inusitado, como catástrofes naturais, acidentes e sequestros de ônibus. Para Carvalho (2010):

Algumas notícias mexem com a rotina das pessoas, mudam os hábitos da população e se tornam o principal assunto de quem as assiste. Em geral, são histórias cercadas de tragédias e dramas pessoais (...). E é essa mistura de notícia, audiência e crime que se transformam em grandes lições do jornalismo: quando erramos o tom (CARVALHO et al., 2010, p. 119).

Ainda de acordo com o autor, é importante que as emissoras de televisão e os jornalistas tenham cautela na divulgação e exibição dessas informações, pois a exposição na mídia pode gerar proporções maiores que a própria situação. Carvalho (2010)analisa o caso da jovem Eloá Cristina111, que foi mantida refém por quase 100 horas em casa pelo ex-namorado Lindemberg Alves, na cidade de Santo André - SP, em 2008. As principais emissoras de TV do país acompanharam todos os passos do sequestro in loco, com

111 O sequestro de Eloá durou teve reviravoltas e a presença ininterrupta da imprensa no local, sempre com entradas ao vivo durante a programação. O desfecho do sequestro, no dia 13 de outubro de 2008, foi mostrado em tempo real pela TV Globo, e resultou na morte da refém, alvejada por dois tiros de seu sequestrador, Lindemberg Alves, ex-namorado da vítima. 218

plantões ao vivo durante a programação e entrevistas com o sequestrador112. Nas grandes coberturas, há dois determinantes temporais importantes: o primeiro corresponde à duração da abordagem do tema pela mídia, sua repercussão e desdobramentos; o segundo refere-se à transmissão ao vivo de um acontecimento e o tempo de exibição. O sequestro do ônibus 174 foi transmitido por mais de quatro horas, de maneira ininterrupta, no canal por assinatura Globo News. Segundo Carvalho (2010):

Não há fórmulas que definam o momento certo de entrar ou sair do caso. O que há são princípios que devem ser construídos de forma coletiva em uma redação, tendo como horizonte sempre o interesse público. Não é possível dar as costas para a notícia, mas é imprescindível tratá-la com dignidade, fugir do sensacionalismo barato (...). O público não é uma massa uniforme e há telespectadores que querem mais que isso (CARVALHO et al., 2010, p. 125).

Outro ponto importante a ser considerado é o cuidado que a mídia deve ter, em transmissões ao vivo, no que tange à validade dos conteúdos, evitando que o calor dos acontecimentos e a necessidade do jornalismo contemporâneo em estar sempre à frente e dar o chamado “furo”, provoquem desvios de intenção ou mesmo erros de informação.

Interesse público e a construção da notícia O princípio básico da notícia leva em consideração o que é de interesse público. De acordo com Lage (2011), vários problemas envolvendo a ética decorrem da forma de divulgação de certas informações, que pode dar um novo sentido ao que de fato ocorreu. O autor exemplifica com os casos de investigações policiais, cujas informações devem ser mantidas em segredo ou na questão de processos financeiros que podem tornar vulneráveis as instituições. Segundo Lage (2011), nesses e em outros casos semelhantes, a divulgação de informações pode ser considerada fora dos padrões da ética jornalística, mas é preciso observar o limite dessa postura. Para o autor,

Deve-se considerar que a informação pública não é apenas uma questão dos jornalistas, mas também de suas fontes, particularmente as institucionais. (...). Aconselha-se aos jornalistas – tanto repórteres policiais quanto cronistas políticos e analistas econômicos – o ceticismo quanto ao valor ético de decisões institucionais, ainda quando cobertas de

112 No dia 18 de outubro de 2010, a apresentadora Sônia Abrão entrevistou Lindemberg Alves por telefone, em seu programa “A Tarde É Sua”, da RedeTV! 219

legalidade (LAGE, 2011, p. 99-101).

Lage (2011) explica que, em geral, os veículos de notícia possuem padrões de noticiabilidade, como a não divulgação de suicídios para evitar que as pessoas imitem essa ação, nem roubos ardilosos, entre outras ações ilícitas. Mas, segundo o autor, “levado às últimas (mas necessárias) consequências, tal critério impediria a divulgação de todas as notícias negativas, construindo na imprensa um mundo maravilhoso, de comportamentos corretos e éticos – só que, lamentavelmente, imaginário” (LAGE, 2011, p. 101). O autor afirma que o conceito de notícia pode ser substituído pela expressão “informação jornalística”, e que é composto não apenas na estruturação dos dados que são mais convenientes, mas principalmente pela exposição do maior número de dados possíveis, de modo que a narrativa seja abrangente e mais compreensível. Lage (2011) explica que, nesse aspecto, a informação jornalística difere da notícia, pois ela está ligada a rompimento ou mudança dos fatos normais e deve ser mais rápida, sintética e fragmentária. Para Lage, “quanto maior o interesse jornalístico, maior a abrangência do público a que a informação se possa destinar” (LAGE, 2011, p. 113). O autor ainda caracteriza a notícia como uma narrativa que contém ineditismo, intensidade, atualidade, proximidade e identificação. Trata-se de uma disfunção de algum sistema, independente das intenções dos jornalistas em tratar o assunto. É divulgada com diferentes graus de profundidade, é breve, pouco durável e ligada à emergência do fato. Já a informação corresponde a um assunto determinado ou não por um fato gerador de interesse e decorre da intenção do jornalista em noticiar. É mais extensa, densa e completa. Requer pesquisa ainda mais aprofundada e uma filtragem de informação menos exigente. Carvalho (et al., 2010) explica que é necessário tomar cuidado em pautar em um telejornal, por exemplo, somente o que é de interesse do público. Para o autor,

O bom telejornal é aquele que responde, sim, às expectativas do telespectador, mas que também possibilita que ele levante novos questionamentos, perceba que há outras formas de ver a notícia em questão. Ou seja, não podemos estar desconectados daquilo que importa ao público, mas devemos nos perguntar sempre se o assunto que interessa ao público é de interesse público (CARVALHO et al., 2010, p. 19).

O autor destaca a busca incessante pelo factual como a principal responsável por

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fazer com que os jornalistas deixem de publicar questões que são notícia em potencial – como a crise do sistema aéreo brasileiro, por exemplo – para dar atenção somente ao que já está acontecendo – como a queda do voo 3054 da TAM, em julho de 2007, ao lado do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Essa superficialidade dos fatos é criticada pelo autor, que defende que os jornalistas precisam se preparar mais para o mercado, estar melhor informados e dispostos a aprender constantemente. A questão da superficialidade e o factual podem ser percebidos dentro das transmissões sobre a história de Sandro Nascimento. Em contrapartida, o documentário de José Padilha busca alcançar uma visão mais completa da situação, trazendo inúmeras informações sobre a vida do jovem, o massacre da Candelária, a morte da mãe, os amigos que fez durante a vida, entre outras informações.

A mídia no caso A cobertura in loco do sequestro do ônibus 174 mobilizou um grande número de jornalistas de diferentes veículos ao bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. Dezenas de profissionais de rádios, jornais impressos, portais de notícias e emissoras de TV acompanharam o crime, o comportamento de Sandro Nascimento, a apreensão dos reféns, a curiosidade das pessoas aglomeradas em volta e a atuação da Polícia Militar e do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) do Rio de Janeiro. Flageul (2000) diz que o acontecimento responde a alguns critérios, como acidentalidade, improbabilidade, unicidade e singularidade (FLAGEUL, 2000, apud. MUNIZSODRÉ, 2009, p. 33). Muniz-Sodré acrescenta que “mesmo que ocorra na esfera do possível, o acontecimento guardaria um momento e uma parte excessivos frente àquilo que o condiciona” (MUNIZSODRÉ, 2009, p. 36). A duração do evento e a intensa cobertura da mídia pode caracterizar o sequestro de junho de 2000 como um macroacontecimento, dentro da definição de Muniz Sodré (2009):

Há (...) grandes e pequenos acontecimentos, hierarquizados em razão de sua previsibilidade dentro de um sistema determinado. Macroacontecimentos, por exemplo, são o assassinato do Presidente John Kennedy, a destruição por terroristas das torres gêmeas em Nova York, o tsunami no sul da Ásia, etc. Já o assassinato de um cidadão comum por

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terroristas, um terremoto de pequenas proporções, etc. são microacontecimentos. (MUNIZ SODRÉ, 2009, p. 34).

Durante as quatro horas do desenrolar do sequestro, Sandro Nascimento oscilou entre momentos de bastante furor e descontrole e espasmos de tranquilidade, e em várias oportunidades interagiu com as câmeras que registravam o fato. A imprevisibilidade de um acontecimento como esse teve um impacto na transmissão ao vivo. O site Memória Globo, acervo multimídia de todos os produtos da TV Globo ao longo de quase cinco décadas, fala sobre a cobertura da emissora:

Enquanto a Globo News ficou no ar, sem interrupções, ao vivo, com imagens dramáticas do episódio, a Globo manteve sua programação normal, inserindo flashes em seus intervalos comerciais. Por receio de que o sequestro terminasse com um desfecho violento (o que de fato ocorreu), a empresa preferiu não deixar a transmissão ao vivo ininterrupta na TV aberta, para evitar que o público fosse surpreendido por imagens impactantes (MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 327).

A presença da TV Globo perante o desenrolar incerto do sequestro foi um exemplo de como a mídia no local influenciou, de certa forma, a atuação da polícia, considerada desastrosa pela própria imprensa logo após o fato. Muitas críticas foram destinadas contra a Polícia Militar e o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) do Rio de Janeiro, considerados despreparados técnica e taticamente. As câmeras registraram as falhas no sistema de segurança do Estado, desde faltas básicas como a inexistência de rádios de comunicação, a erros estratégicos como o desfecho trágico do sequestro, com a morte de Geísa, a refém, alvejada por um policial, e de Sandro, asfixiado por cinco homens da PM do Rio no camburão. Mais do que isso, a presença da mídia, no início renegada por Sandro, se tornou a sua janela de sobrevivência, de uma visibilidade que nunca teve. Nas palavras do antropólogo Luiz Eduardo Soares no documentário, Sandro “redefiniu, de alguma maneira, o relato social. O relato que dava a ele sempre a posição subalterna, de repente, é convertido numa narrativa em que ele é o protagonista”. O sequestro do ônibus 174 foi um marco para as políticas federais de segurança. Uma semana após o incidente, o Governo Federal criou um Plano Nacional para reestruturar a segurança pública em todo o país. Além disso, foi um momento de transição

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também para o próprio posicionamento da mídia em casos semelhantes. A TV Globo, que decidiu não transmitir de maneira ininterrupta o sequestro, mudou de opinião. O então diretor da Central Globo de Jornalismo, Evandro Carlos de Andrade, explica a decisão da emissora:

Nós tivemos dúvida em relação à TV aberta, uma vez que havia o receio de o sequestrador estourar a cabeça de uma das reféns e nós mostrarmos a cena. Entendemos, depois, que nossa decisão de não dar continuidade à cobertura foi um erro. O que nós devíamos ter feito (...) era alertar permanentemente o público, os pais, as famílias, para o risco de mostrarmos uma cena muito chocante. Cabe às famílias tomarem medidas de cautela. Nós achamos que devemos transmitir os acontecimentos. E, se fosse hoje, levaríamos ao ar também na TV aberta, porque é um fato que causa expectativa. E, se nós temos acesso, o público também deve ter. Caso contrário, estaremos censurando a informação. (ANDRADE, in MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 327).

Desde então, a emissora começou a abrir a programação para situações com um grau de imprevisibilidade similar ao caso do ônibus 174, como no sequestro do apresentador Sílvio Santos em sua casa, em São Paulo, no dia 30 de agosto de 2001, os atentados terroristas contra o World Trade Center, em 11 de setembro do mesmo ano, e o sequestro da jovem Eloá Cristina, em Santo André-SP, no mês de outubro de 2008. Podemos perceber que a presença dos veículos de comunicação no “front” do Jardim Botânico naquele 12 de junho de 2000 provocou alterações em várias esferas: desde a apropriação cênica e sociológica de Sandro do alcance das imagens, passando pela reflexão sobre as condições da polícia no Rio de Janeiro e em todo o Brasil, chegando até a mudar o ponto de vista da maior emissora de televisão do país, em relação a acontecimentos como o sequestro.

Conclusão Com base nos argumentos propostos, podemos inferir que as grandes coberturas possuem uma dinâmica diferente das transmissões comuns, sendo essenciais para a divulgação de notícias cujo interesse ultrapassa o local, o restrito. Contudo, o processo de transmissão dos fatos é composto por critérios básicos do jornalismo que não podem ser negligenciados pela imprensa no momento de uma grande cobertura, ou seja, a pressa em divulgar determinado acontecimento não deve prejudicar o 223

processo de apuração, por exemplo, e nem o próprio desenrolar do caso, principalmente quando estiverem em questão vidas humanas. O caso do sequestro do ônibus 174 é considerado neste trabalho como notícia, dentro dos critérios estabelecidos e discutidos por Bistane & Bacellar (2010), por se tratar de uma situação que despertou o interesse nacional e teve certo impacto na vida de muitas pessoas, sobretudo na sociedade carioca. Mesmo sendo considerado um acontecimento inusitado, na definição de Carvalho (et al., 2010), o sequestro do ônibus 174 também pode ser caracterizado como um macroacontecimento no sentido de ser algo até de certa forma previsível, com base na história de vida de Sandro Nascimento, e nas questões sociais implícitas no fatos. Essas questões sociais, destacadas amplamente no documentário de José Padilha, tornam o caso do sequestro – ou qualquer outro atentado que jovens como Sandro podem direcionar à população devido às condições de vida e falta de orientação - o que o autor chama de “notícias em potencial”.Desta forma, acreditamos que o caso do sequestro se enquadra também nesse conceito. Como afirma Lage (2011), a escolha das notícias a serem divulgadas pela imprensa deve considerar as consequências dessa transmissão – como na questão de suicídios que não são divulgados para que essa prática não seja incentivada, aspecto que reforça a influência da mídia no caráter psicológico do indivíduo. Todavia, o autor reitera que se a imprensa se limitar a noticiar apenas notícias positivas, poderá ser criado um mundo perfeito onde nada de ruim acontece, portanto, um mundo falso. Nesse sentido, o caso do sequestro é considerado nesse trabalho como uma notícia que deveria ser – como foi – amplamente divulgada, para que a população nacional tomasse conhecimento dos fatos explícitos e implícitos da situação, mesmo que muitos fatos implícitos não tenham sido realçados inicialmente com tanta intensidade como o foi a imagem de Sandro como o grande vilão da história. Finalmente, tomamos como base o caso do sequestro para ressaltar a mudança de padrões de transmissão de uma das maiores emissoras do país, devido a relevância e alcance do acontecimento. O sequestro dividiu opiniões, revelou falhas na segurança policial de uma grande metrópole, trouxe à tona questões de cunho psicossocial que afetam os jovens não só dessa cidade, mas de todo o país, e determinou a mudança de postura de

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jornalistas, assim como também mostrou a influência da mídia no desfecho de acontecimentos de grande e pequeno alcance.

Referências ANDRADE, Evandro Carlos de. A notícia ao vivo. In. MEMÓRIA GLOBO. Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

BISTANE, Luciana; BACELLAR, Luciane. Jornalismo de Tv. São Paulo: Contexto, 2010.

CARVALHO, Alexandre... [et al]. Reportagem na TV: como fazer, como produzir, como editar. São Paulo: Contexto, 2010.

LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2011.

MEMÓRIA GLOBO. Sequestro do ônibus 174. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2013.

______. Jornal Nacional: a notícia faz história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

ÔNIBUS 174. Direção: José Padilha. Zazen Produções. Rio de Janeiro – RJ, 2002. 150 min. Son, Color, Formato: 16 mm.

SILVA, Gislene. Para pensar critérios de noticiabilidade. Artigo apresentado no II Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, da Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – SBPJor. Bahia, 2004.

SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis: Vozes, 2009.

WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

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A Polamazônia e o discurso desenvolvimentista durante o Regime Militar

Marineide da Silva Ribeiro113 Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro114

Resumo: O trabalho consiste numa análise sobre a Polamazônia e o discurso de desenvolvimento econômico no período do regime militar. Trata-se de uma fase que vinculava propaganda de desenvolvimento econômico sadio, a partir de planos econômicos que visavam integrar todo o território Nacional, baseados no ideal de “vazio demográfico”, “ocupariam” a região através de correntes migratórias, e desta forma fortalecer as fronteiras. O discurso binário sobre a Amazônia gerou muitos conflitos entre empresários e indígenas, camponeses e recentes migrantes que atuaram muitas vezes de forma efetiva como sujeitos históricos, se impondo frente aos projetos de grandes envergaduras como construções de rodovias, hidrelétricas dentre outros. Assim, as tensões que foram geradas em meio a todos esses projetos principalmente pela disputa de terras, reafirmam a presença das pessoas comuns no processo histórico como atores essenciais nas mudanças sociais.

Palavra -chaves: Ditadura militar, Desenvolvimento, Amazônia e Migração

Esta análise tem como intenção compreender o discurso de desenvolvimento econômico lançado sobre a região amazônica pós-1964, quando a Amazônia se vinculava ao Projeto de Integração Nacional. Assim, podemos dizer que a região abrilhantava os olhos dos empresários que enviavam as grandes empresas capitalistas na ânsia de explorar recursos naturais e mão-de-obra barata, vínculos feitos entre o governo e capital. Entretanto, não foram fáceis as instalações dos grandes projetos: percebemos que os moradores não foram inertes às mudanças impostas pelo ambicioso plano econômico, eles resistiram se articularam dentro de organização consciente pela tomada de território.

O discurso desenvolvimentista As décadas de 1960/70 foram profundamente marcadas por grandes mudanças históricas no cenário brasileiro: tempos de golpe militar, repressão, movimentos feminista,

113 Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM-Manaus) e Bolsista Capes (CNPq). Email: [email protected] 114 Doutor em História Social pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo, Professor associado da Universidade Federal do Amazonas e Bolsista Produtividade do Conselho do Desenvolvimento Cientifico Nacional (CNPq). 226

instaurações de Atos Institucionais, governo autoritário, “defesa” do Estado Nacional, política de Integração Nacional entre outros que poderíamos aqui citar. O Estado brasileiro vivenciava os altos índices do crescimento econômico a partir do famoso “MILAGRE ECONÔMICO” (HABERT,1994:7).Sobreposto no pós-golpe militar de 1964, o governo criou medidas para região Amazônica no propósito de bloquear uma possível invasão de ordem varsoviana. Pois em meio ao cenário da Guerra Fria, ou os países aliavam-se aos Estados Unidos que adotava o capitalismo ou à URSS que seguia com o comunismo. “Este dualismo era alimentado pelas duas partes para tirar proveito, no caso do Brasil a obrigação era ser em prol do capitalismo norte – americano”(COMÉRCIO, Manaus, 23 de outubro de 2006,Ed. Comemorativa:90) A grande atração do capital para a Amazônia ocorreu a partir da Polamazônia - uma proposta governamental com objetivo de inserir quinze “pólos de desenvolvimentos”, cada um desses pólos centralizavam atividades especializadas,essa corrida para o capital alterou os números populacionais para a região norte.Na década de 1960 a população era de aproximadamente 1,9 milhão, e em 1980 eram quase 6 milhões, atraindo expressivas levas de migratórias. A maioria desses migrantes trabalhavam lavrando a terra e tinham saído de diversos lugares do país, como a exemplo do sertão nordestino, tendo sido forte impacto que modificou a vida de quem morava e de quem chegava na região (BRASIL,1997:62 ) Nesse bojo foi aplicado o plano de ação econômica -PAEG – com início para os anos de 1964-1966.O plano teria que ser conveniente com a economia de mercado. Assim traçou uma política para submeter os condicionantes de intervenção a um aumento acelerado da economia. Para tanto, o plano em vigor objetivou o decréscimo da inflação, a partir daí o PAEG era responsável de “desenvolver um sistema econômico sadio” Assim, o PAEG foi caracterizado como política de desenvolvimento para a Amazônia, exercendo uma nova função, a de intervenção e ampliação de órgãos federais que estimulassem e prestassem total exclusividade às novas estratégias norteadas à região amazônica. Diante das exigências supracitadas, destacamos o início da chamada Operação Amazônica em 01 de Fevereiro de 1966, na cidade de Macapá, onde vários governadores e ministros se fizeram presente na solenidade “a fim de apoiar o fortalecimento” econômico para a região. O então presidente Marechal Castelo Branco também esteve presente,

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afirmava no seu discurso as preocupações do seu governo com a expansão econômica para o espaço amazônico:

[...] Dai esta colocado no primeiro plano das preocupações do governo o fortalecimento econômico da região, a sua ocupação nacional, o fortalecimento das suas áreas de fronteiras e integração do espaço Amazônico no todo nacional. Com esse propósito, estudou-se completa reformulação da política nacional até agora seguida e que devera ser mudada de acordo com a as experiências dolorosamente acumuladas. [..] (FERREIRA,1994:79)

O discurso de desenvolvimento econômico para a região tinha aparentemente boas intenções, imbuído de estratégias envolventes, seduzindo muitos migrantes que ouviram nas rádios, nos jornais ou mesmo ouviam falar, que na Amazônia o governo distribuía terras, casas entre outros benefícios. Mas o discurso além de ser uma fala proferida para o público, uma exposição didática de um determinado assunto, traz consigo uma ‘’ inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence inquietação de sentir sob essa atividade todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina [...](FOUCAULT, 1996:8)”. O discurso tem sua essência perigosa, é verossímil, carrega consigo a vontade de verdade, que segundo Foucault é uma vontade desejada, é uma vontade de possuir o desejo e o poder. O verdadeiro discurso é o que se liberta do desejo e do poder, contraria a vontade de verdade, e não a reconhece (Ibidem, FOUCAULT, 1996:20 ). A Política de Valorização da Amazônia sinaliza uma antiga “preocupação” com uma nova roupagem. Ela nos faz rememorar o passado dos antigos e legítimos habitantes da floresta que viveram experiências dolorosas na chegada dos colonizadores/exploradores, passado esse rastreado de desgraças e genocídios, mas também resistências e lutas. Com a chegada do estranho-estrangeiros, empresários foram atraídos e convidados para a região norte, através das propagandas dos governos federais e estaduais com o propósito de construir rodovias, hidrelétricas e planos de colonização, causando perdas irreparáveis e irreversíveis ao meio ambiente. Todas essas providências anteriores foram tomadas no objetivo de explorar as riquezas naturais, e conseqüentemente fizeram com que a estrutura e o modo de vida das populações locais mais uma vez fossem alterados drasticamente (MARTINS, 1989:16).

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A região norte foi visualizada como povoação letárgica e onerosa para os cofres públicos. Assim,a principal ação governamental foi estimular os imigrantes de potencial econômico a investirem em empreendimentos nos setores de mineração e agropecuários.A implantação das grandes empresas iriam colaborar para o crescimento socioeconômico da região. Por este edital, a Companhia de Recursos Minerais -CPRM, Sociedade de Economia mista vinculada ao Ministério das Minas e Energia de acordo com a autorização dada pela pelo Art°.6, parágrafo 2°, do Decreto-Lei n° 764 de 15 de agosto de 1969 e pelo Art° 7, parágrafo 2° de seus Estatutos, oferece, em licitação pública, os direitos em resultados das pesquisas realizadas em 10 áreas de 1.000 hectares [...].As referidas pesquisas revelam importantes depósitos de Caulim, sendo a reserva total, conforme o Relatório de Pesquisa aprovado pelo Departamento Nacional da Produção Mineral de 566.819.314 toneladas de reserva [...]. A área onde se localizam as jazidas goza de incentivos fiscais e facilidades de capacitação relacionados com a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - SUDAM[...].Outros incentivos fiscais possíveis são:Isenção do Imposto de Importação e do Imposto de Produtos Industrializados (IPI) para os bens de capital[...] Poderão participar da licitação do objeto deste Edital, empresas ou grupos de empresas que tencionem associar-se sem qualquer delas esteja registradas como empresa de Mineração [...] (DIARIO OFICIAL DA UNIÃO, 30 de setembro de 1974:3677)

No entanto, não estava nas ações do governo o modo de vida das populações pré- existentes, ou mesmo o que foi planejado não condizia com a realidade local. A partir desse momento iniciam-se os conflitos entre os grandes empresários, camponeses e indígenas pela disputa da terra. É evidente que, as representações 115 acerca da terra diferem entre esses grupos. Para os empresários, a terra tem sentido econômico de exploração, já para os indígenas além da subsistência ela tem sentido espiritual, e para os camponeses está direcionada ao plantio e cultivo. Quando os projetos foram engendrados no seio da região amazônica, cerceou-se o direito de viver bem entre nativos e camponeses. Foi como se os amazônidas não tivessem sensibilidade humana. O menosprezo da autoridade brasileira para com essas populações foi nítido, sendo como se elas nãos tivessem condições de equacionar seus problemas sociais, econômicos, culturais e políticos, as suas ações como sujeitos históricos foram invisibilizadas. Assim, seus costumes e modo de vidas não foram reconhecidos, ignorados

115 “As representações apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social.”( Pesavento, 2003:41 ) 229

condenados a partir da visão eurocêntrica .

Não se trata de introduzir nada na vida dessas populações, mas de tirar- lhes o que tem de vital para sua sobrevivência, não só econômica: terras e territórios, meios e condições de existência material e política . É como se elas não existissem, ou existindo, não tivessem direito ao reconhecimento de sua humanidade (MARTINS,1989:16)

A percepção sobre a invisibilidade dos povos amazônicos em relação ao crescimento do capital, fez parecer que esses homens e essas mulheres não tivessem, não fizessem e não construíssem a sua própria história, quando muitas vezes novas fontes historiográficas nos denunciam que os homens e mulheres amazônicos se impuseram de forma efetiva no combate a exploração e apropriação da terra pelo capitalismo (Ibidem,MARTINS,1989:18). Não parece ser diferente da análise feita por Edward Thompson sobre A Economia Moral inglesa no século VXIII, onde enfatiza os motins de fome na Inglaterra, aborda a falta de resgate dos agentes sociais classificados como pessoas comuns, que não eram vistos como atores participantes no cerne das transformações sociais antecessoras à Revolução Francesa.As pesquisas historiográficas do período supracitado eram orientadas sob uma visão espasmódica da cultura popular, que não concebia pessoas comuns atuando como agentes históricos, e de forma que se elas surgissem esporadicamente em cena, eram em momentos corriqueiros de profunda perturbação social, quando sinalizada a presença dessas pessoas comuns, essas aparições eram irreprimíveis que conscientes ou auto-ativadas: não iam além de incitações econômicas. Thompson crítica os estudos superficiais que alguns historiadores fizeram concernente a cultura popular, ele enfatiza os motins de fome que ocorrem nesse período, se opõem a visão espasmódica, diz ser possível identificar na maioria das ações populares do século XVIII, noção legitimadora . Por noção de legitimação, assim ele elucidou a trajetória dos homens e mulheres da multidão acreditavam e defendiam direitos e costumes de suas tradições.; e que geralmente eram apoiados pelo consenso comunitário. [...] (THOMPSON, 1998:150-150), Envolvidos nesse imaginário116 acerca da região é que o governo e as empresas puderam avançar no processo de desenvolvimento capitalista e devastador. Um dos

116 “entende-se por imaginário ” um sistema de ideias e imagensde representação coletiva que os homens, em todas as épocas , construíram para si , dando sentido ao mundo (PESAVENTO:2003.p.43) 230

primeiros passos foi a colonização dos lugares e o assentamento de muitas famílias. Não é de hoje que o país adota esse tipo de processo objetivando solucionar problemas de cunho socioeconômico em vários lugares do país. Assim, transferem de um lugar para o outro milhares de famílias mas não solucionam as problemáticas advindas com os migrantes. Em 1970 cria-se o INCRA- para controlar e fomentar a distribuição de terras, o órgão foi uma promessa de reforma agrária sob o controle do Estado Nacional.

A colonização como forma planejada de proceder à ocupação de uma área é um processo que vem sendo adotado no Brasil há pelo menos dois séculos, respondendo a objetivos econômico-sociais e/ ou políticos- militares, e operando em áreas estratégicas. É sob a égide do Incra, criado em 1970 com a finalidade de promover, executar e controlar a reforma agrária, que se monta todo um esquema de colonização em larga escala para a maior porção do espaço nacional, a Amazônia . Na verdade, trata-se de distribuir a terra sim, mas sob o controle do estado, estimulando, orientando e/ ou prevenindo os movimentos espontâneos da população. A colonização é uma estratégia que retira o controle da terra dos governos estaduais para o governo central; é entendida como capaz de solucionar conflitos sócias, absorvendo produtores sem terra, povoar a fronteira inclusive em locais estratégicos e ao mesmo tempo criar bacias de mão-de-obra locais (BECKER,1998:31-32 )

Guiados pelo entusiasmo de desenvolvimento, um dos vários incentivos amparados pela lei foi o incentivo fiscal, consolidando as metas para a valorização da região.Essas leis firmavam o processo de “integração nacional” para com as demais regiões brasileiras. Observemos algumas leis que foram elaboradas para consolidar tais propostas:

Lei nº 5.173 de 27.10.1976: extinguiu a SPVEA, criou a superintendência do desenvolvimento da Amazônia – SUDAM e dispôs sobre o plano de valorização econômica da Amazônia. Lei nº 5.172 de 27.10.1966: dispôs sobre a transformação do BCA em banco da Amazônia S.A – BASA; Lei de nº 5.174 de 27.10.1966, dispôs sobre a concessão de incentivo fiscais em favor da região amazônica, consolidando-o e criando novos incentivos, isenções e deduções tributarias e outras providencias correlatas; Decreto – Lei nº 288. De 28.02.67, e Decretado – Lei de nº 340, de 22.12.1967: alteram as disposições da Lei de nº 3.173, de 06.06.1957, e regularam a reorganização da Zona Franca de Manaus, como uma área de livre comercio e de incentivos fiscais especiais; Decreto- Lei nº 291, de 28.02.1967: constituiu e delimitou a área da Amazônia Ocidental e estabeleceu incentivos para a Faixa de Fronteiras.

231

(Apud,OLIVIERA,1998:36)

A Operação Amazônica efetivou as ações militares baseadas nas leis e decretos vigentes. As forças militares ocuparam a região com fins de integração à economia nacional, resguardando a terra e fortalecendo as fronteiras. Por trás de todas essas “preocupações”, o Estado afirmava sua soberania na Amazônia, através do possível sucesso econômico que camuflava o processo ditatorial, uma forma de ideologia, irmanada no pensamento nacionalista, no intuito de percorrer todo território nacional. A ocupação regional estava firmada nas bases das alianças que marcaram a nova fase do sistema capitalista no Brasil, ficando registrada “no toque de clarim da “ Operação Amazônia”.

Governo e homem de empresa do Brasil, reunidos na Amazônia sob a inspiração de Deus e norteados pelo firme propósito de preservar a unidade nacional como patrimônio, que receberam indiviso, conscientes da necessidade de promover o crescimento econômico acelerado da Região, como processo indispensável, para atingir esse objetivo valorização do homem que a habita. (OLIVEIRA,1998:34)

A ocupação demográfica foi a saída encontrada para justificar o arsenal de projetos voltados para explorações minerais, posse de terras, mão-de-obra barata e desapropriação dos antigos moradores, todas essas ações oportunizaram a ideologia de “desenvolvimento sadio”, se assim fosse concentrada e polarizada, a ocupação de fronteiras ficavam a cargo de expressivas levas migratórias. O emblemático ‘’Integrar para não Entregar”, foi uma falácia para quem realmente habitou a fronteira, contraditória ao discurso de prosperidade e mudança na qualidade de vida, quando INTEGRAR significava da abertura ao capital internacional,ambicioso e devastador por onde tem passado, que em troca das explorações traria suas grandes empresas para “alavancar” e disseminar o processo capitalista na região,assim como também solidificar uma espécie de colônia de exploração abastada de uma numerosa mão-de-obra barata e desqualificada, logo suas despesas seriam abatidas pela metade, até mesmo a localidade de instalação das grande fábricas e multinacionais as quais mantinham ligações estreitas e livre acesso com a fronteira brasileira, ou seja, não ENTREGAR para quem?, nós os amazônidas?

232

Estava, portanto, inserida na lógica do endividamento externo, o “desenvolvimento” da região Amazônica sob signo militar da geopolítica da Escola Superior da Guerra. Definida a estratégia, começou a ação. “Estava “deflagrada “Operação Amazônica”, substanciada na ideologia que serviu de lema ao projeto Rondon” Integrar parar não entregar”. Na realidade na lógica de ideologia da Escola Superior de Guerra estava inscrita a passagem dos tempos das “fronteiras geográficas” para os da “fronteira ideológicas”, “era necessário entregar aos americanos para não entregar aos comunistas” (sic). Desta forma integrar significava abrir os caminhos, criar condições para que fosse possível a exploração dos recursos naturais para os grandes monopólios multinacionais, ao que tudo indica que este lema aparentemente inscrito, e por muita gente interpretado como produto da ideologia geopolítica das “ fronteiras geográficas” [...] deve ser interpretado como produto da ideologia das “fronteiras ideológicas”. O Estado brasileiro criou toda a sorte de políticas para implementar a internacionalização da economia brasileira. (OLIVEIRA,1998:31-32)

As multinacionais estadunidenses já estavam atuando sem reservas e quase que sem limites.Os principais interesses vinculados a “operação Amazônica” foram externados na primeira “Reunião de Investidores da Amazônia”, ocorrida num “cruzeiro” a Bordo do Navio Rosa da Fonseca, passaram nove dias fazendo o reconhecimento das área a serem exploradas, nesta viagem os empresários do Centro-Sul, estavam entusiasmados, firmaram o compromisso junto a ação militar, de exploração numa terra tão virgem quanto rica.

[...] a opinião geral dos participantes da viagem, quando se chegou a Belém, era a de que se tinha conseguido o milagre de redescobrir a Amazônia para as lideranças empresariais brasileiras, que despertavam, assim, não apenas para um dever de ocupação, mas, também para oportunidades novas de bons negócios numa terra tão virgem quanto rica. (Ibidem,OLIVEIRA,1998;32)

As populações indígenas e camponesas mostraram o seu poder de articulação e consciência coletiva em prol de seus interesses, confrontando as empresas por vários momentos, de forma que conseguiram ameaçar, paralisar e desestruturar os trabalhos das construções na medida em que são implantados os grandes projetos econômicos. Porém, alguns cientistas sociais vivem um dilema que tem privilegiado a área econômica e/ou tecnológica nas pesquisas acerca dos indígenas e camponeses, aceitando, de forma natural e irremediável suas mudanças e o desaparecimento desses grupos. Numa análise reversa, esses grupos são vistos numa tentativa de sobrevivência e resistência, articulam-se como sujeitos do processo social e histórico (Ibidem, MARTINS, 1989:17), para manter vivas suas raízes, 233

modos de vida e o direito de pleitear a terra. Os conflitos sociais na Amazônia nasce no cerne de eventos históricos autoritários como o da Ditadura militar, que de uma forma violenta contactou e fragmentou uma variedade de grupos étnicos que viviam na Amazônia:“pelo menos 34 tribos indígena foram atraídas e conectadas na Amazônia. A partir de 1965, entre tribos até então desconhecidas e facções arredias de grupos já conhecidos, sem contar tribos fragmentadas em grupos dispersos.”(MARTINS,1996:35 )Uma das leis que serviu de escudo para os grande fazendeiros donos de fábricas foi a tutela117 imposta para cercear a liberdade de ir e vir (voltar para casa, adentrar as matas, caça, pescar, praticar rituais entres outros costumes). Quando impõe limites no território, é mais o encarceramento do que uma proteção, típico de quem incomoda o outro. Essa foi a solução mais cômoda encontrada pelo Estado autoritário para repudiar os antigos habitantes da região. O território que foi limitado para os indígenas, parece ser mais uma negociata ambiciosa entre militares e oligarquias paras possuir a maioria das terras “[..] essa solução e essa tentativa resultaram do pacto entre o capital e a propriedade da terra, promovidos pelos próprios militares, conseqüência da associação entre militares e oligarquias ”(MARTINS,1989:23) para coibir os índios que não se intimidaram ao ver o capital avançar, revestindo-se de coragem, lutaram dando muitas vezes suas próprias vida, como aconteceu com embargo da BR 174 que liga o estado do Amazonas ao estado de Roraima, pelos Waimiris e Atroaris, na região do rio Alalaú, os dois grupos travaram uma luta com os trabalhadores da empresa licitada a executar a abertura da estrada, o resultado desses conflitos foi a morte de muitos indígenas e muitos brancos (A CRÍTICA, 14 de setembro de 1970). O certo é que os nativos se opuseram como sujeitos do processo histórico e não como objetos. Tanto foi que o Jornal a Crítica circulou a seguinte notícia:

A BR 174, que ligará Manaus a Boa vista, poderá ter seu traçado alterado para desviar-se da região habitada pelos índios Waimiris e Atroaris que, em novembro de 1968, liquidaram com a expedição do padre João Calleri, encarregado de pacificar os indígenas, para possibilitar o prosseguimento das obras da rodovia. Se aprovado, o novo traçado que está sendo estudado pelo engenheiro Wenceslau Minsk do DNER, apesar de aumentar o trajeto em cerca de duzentos quilômetros, solucionará possíveis choques com os indígenas e apresentará outras vantagens sem

117Tutela- lei criada para proteção do território indígena 234

que a rodovia custe mais caro(À CRITICA, 14 de setembro de 1970)

Os conflitos pela terra não se deram somente entre os empresários e indígenas, mas também entre os camponeses, moradores de muito tempo, ou migrantes recentes Todos eles foram apanhados e desrespeitados pelos gananciosos donos de terras: perto de seiscentos camponeses foram assassinados em exaustivos conflitos entre os anos de 1964 e 1985.118 O que podemos entender desse processo histórico acerca da região amazônica e suas conseqüências é que os planos só conseguiram provocar a desarmonia na região. A intencionalidade governamental de fazer grandes construções, perpassando em todo território nacional por meio da transamazônica, assentou mais de cem mil famílias, tendo como intenção a colonização, assim mediante a abertura das rodovias é que se provocou o movimento migratório em vasta escala (OLIVEIRA,1998:65) As conseqüências drásticas refletiram no abandono de milhares de famílias ao longo das entradas do Pará ao Acre, de Rondônia a Roraima, aquelas promessas de esperança e prosperidade, o sonho de quem chegava acabara como um pesadelo. As falsas propagandas acarretaram uma série problemas sociais que até hoje refletem na região. É visível que a violenta migração ocorrida nos decênios de 1970 e 1980 foi mais uma tentativa de minimizar as tensões pelo país a fora e esconder as disparidades sociais. Assim, a Valorização da Amazônia não foi além de interesses e alianças particulares entre ações do governo militar e empresários na ânsia de explorar não só as riquezas naturais, mas também as pessoas comuns que em meio a todas as represálias dificuldades não baixaram a guarda, agiram em muitos momentos como sujeitos do processo históricos, a fim de afirmar e legitimar suas ações na luta de terra.

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118 de 1964-1985, quase 600 camponeses foram assassinados em conflitos na região amazônica, ver no artigo de José de Souza Martins (1996:25-70) 235

BRASIL, Marilia de Carvalho,Os fluxos migratórios na região Norte na décadas de 70 e 80: uma analise explorativa. Disponível em http://www.fundaj.gov.br/geral/texto%20online/amazonia/brasil.pdf Acessado em:05 de maio de 2013 FOUCAULT,Michel, A ordem do discurso aula inaugural no Collègue de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3ª Ed. Loyola,São Paulo, 1996.

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Jornal do Rio Branco (1916-1919): O projeto beneditino de civilização na vila de Boa Vista do Rio Branco

Luís Francisco Munaro119 Maurício Elias Zouein120

Este artigo propõe, antes de perceber as consequências historiográficas da publicação do Jornal do Rio Branco, investigar os objetivos e desdobramentos políticos que uma tipografia exerceu na vila de Boa Vista do Rio Branco por meio da construção de um pano de fundo histórico. Revela-se nisso a proposta de que a cultura letrada transmitida por meio do jornalismo exercia um papel importante no fornecimento de uma consciência e identidade vinculadas aos sentidos de organização e civilidade (ANDERSON, 1989). O jornal, nesse sentido, exprimia o sentimento e a vontade da população local de ingressarem na grande nação que, na alvorada do século XX, estava sendo forjada. A República e suas promessas revelavam planos grandiosos de urbanidade da qual os amazônicos negociavam sua participação, seja através do seu ingresso na cultura letrada ou através da promessa de aderir a costumes urbanos e civilizados, adequados a uma nação que buscava se libertar do estigma do atraso. Esta proposta de estudo, noutras palavras, é investigar os desdobramentos da inserção da cultura letrada em Boa Vista a partir de duas janelas de leitura: na primeira, nos fixamos às relações de poder religioso e político na vila de Boa Vista do Rio Branco durante as duas primeiras décadas do séc.XX; na segunda parte, proporcionamos ao leitor uma reflexão sobre o impacto das buscas civilizatórias na produção do Jornal do Rio Branco, no bojo do qual reside uma preocupação sempre constante com a inclusão de Boa Vista na civilização brasileira. A construção da identidade na Amazônia foi atravessada, durante o período republicano, por ambiguidades que resultaram na incompatibilidade da paisagem regional com a identidade nacional. Esse, aliás, tornou-se o grande problema do século XX: a maioria dos grandes projetos nacionais de integração foram incapazes de penetrar as

119Professor do Curso de Jornalismo da UFRR. 120Professor do Curso de Jornalismo da UFRR. 237

fronteiras instáveis ou nem sequer imagináveis da Amazônia. Alguns desses equívocos são retratados, de forma emblemática, pelas produções artísticas de Hahneman Bacelar121(1948-1971). Suas pinturas retratam a subserviência de uma Amazônia vista como celeiro, raiz de um povo cuja miscigenação apagou os traços autóctones de expressão e manifestação histórica (Apud. SOUZA, 1977). O historiador Márcio Souza acrescenta que o processo de construção de uma civilidade branca resultou no apagamento gradativo da identidade do amazônico: num primeiro momento, diante da metrópole portuguesa, na encarnação das atividades missionárias e expedições militares; num segundo, diante do discurso nacional que, a tudo vinculando, incorporou em sua estrutura povos de atrações e fisionomias bastante diversificadas.Para entendermos esse fracionamento da identidade, a História do papel escrito possui valor fundamental. No percurso de criar uma nação e dar corpo a um conjunto de histórias, a Amazônia foi cuidadosamente pintada e repintada, segundo pressões pragmáticas exercidas muitas vezes “de cima para baixo”. Parte desse problema da construção da história amazônica se dá em virtude de uma relação precária com a própria concepção de história, incapaz de perceber as tensões implícitas em discursos que mencionam a mansidão, resiliência ou mesmo a preguiça do índio. Essas pressões que soterraram a identidade amazônica tiveram como principais eixos as atividades missionárias e militares. É curiosa, nesse sentido, a sensação transmitida pelo colonizador Aguirre122 que, retratado por Werner Herzog (1942-), distribui significados para o mato indistinto, na esperança de fundar um novo reino tropical. Ocupar a terra erma era fundar e situar espaços, criar sentidos específicos, por meios tão diversificados quanto operações cartográficas e abertura de picadas123. Paralelo ao grande drama amazônico que se desenrolou nas margens do Amazonas, uma grande variedade de narrativas são deixadas em segundo plano. São os dramas dos sertões... A ocupação de Boa Vista124 exprime um destes dramas. Vinculada ao crescimento

121Pintor amazonense que cometeu suicídio na cidade de Belém no dia 22 de Fevereiro de 1971. 122Aguirre foi conhecido por El Loco e tornou-se célebre por sua última expedição que desceu o Rio Amazonas a procura do El dorado. 123 Pequenos caminhos abertos em mata fechada por meio de facões e enxadas. 124Em 1858 o comandante do Forte São Joaquim era Inácio Lopes de Magalhães que possuía uma fazenda de nome Boa Vista às margens do rio Branco, onde, no dia 9 de novembro, desse mesmo ano, a freguesia de Nossa Senhora do Carmo situada na foz do rio Catrimani é transferida conforme a lei no 92. Em meado do séc. XIX o forte São Joaquim entra em declínio e apenas o povoamento de N. Sa do Carmo já com o nome de 238

de Manaus, a cidade foi oficializada durante o ciclo da borracha, sendo responsável por fornecer produtos agropecuários para os pólos produtores do ouro branco. Essa ocupação revelou, numa escala menor, os próprios conflitos que implicavam a chegada da civilização nas regiões remotas da selva amazônica. A capital de Roraima na época denominada vila de Boa Vista do Rio Branco permaneceu durante muito tempo um experimento agropecuário, clamando às autoridades situadas em Manaus pelo contato mais frequente com a civilidade. Em janeiro de 1907, D. Miguel Kruse enviou ao Cardeal Merry Del Von, secretário de Estado do Papa Pio X, um relatório em que descrevia as condições precárias do trabalho missionário no vale do Rio Branco. D. Miguel afirmava, na ocasião, que [...] “tribos” inteiras já teriam caído, presas dos "missionários da heresia", como preferia dirigir-se aos pastores anglicanos que se estabeleceram na fronteira do Brasil com a Guiana Inglesa a partir da segunda metade do século XIX (VIEIRA, 2007, p.89). A organização jurídica das prelazias foi determinada em 1903 garantindo sua autonomia frente às dioceses. Nesse mesmo ano, o Bispo do Amazonas propôs aos monges Beneditinos, recém chegados da Alemanha para os mosteiros brasileiros, que evangelizassem os povos indígenas no Vale do Rio Branco. Somente a partir de 15 de agosto de 1907, com o decreto pontifício E Brasiliana e Reipublica e dioecesibus aconteceu a primeira divisão eclesiástica no Amazonas com a criação da prelazia do Rio Branco. A Paróquia de Nossa Senhora do Carmo foi entregue aos beneditinos pelo padre Manuel Furtado em 1909 (Fotografia 01) onde encontraram as tensões políticas, econômicas e culturais orquestradas por meio do poder, da posse da terra e do gado. Os principais beneditinos foram D. Acário Demynk, D. Adalberto Kaufmelh, D. Beda Goppert, D. Boaventura Barbier e o Bispo prelado do Rio Branco D. Gerardo van Caloen, que em 1916 passou a ser o editor do Jornal do Rio Branco. Os padres recém-chegados puseram-se a trabalhar em prol de uma grande reforma na pequena capela (Fotografia 02), que durou por volta de quatro anos até seu término em 1913. Foi nesse momento que a Matriz de Nossa Senhora do Carmo começou a ganhar seu contorno em estilo germânico.

Boa Vista continua a existir. O Município de Boa Vista é criado com o decreto 49 em 9 de julho de 1890. O então governador do Amazonas, Algusto Ximeno de Ville Roy, promove a freguesia de Nossa Senhora do Carmo à vila de Boa Vista do Rio Branco tendo como primeiro prefeito o senhor João Capistrano da Silva, isso em 25 de julho de 1890. 239

Fotografia 01 – A matriz de Nossa Senhora do Carmo,a princípio, foi uma pequena capela construída por padres franciscanos em 1892. Fonte: Acervo pessoal, prof. Maurício Zouein.

Fotografia 02 –“As obras da egreja Matriz de Boa Vista continúam paradas até hoje pela absoluta falta de officiaes. Já estão preparados os madeiramentos e aas telhas para o edifício” (Jornal do Rio Branco’ nº 3 de janeiro e fevereiro de 1917). Fonte: Acervo pessoal prof. Maurício Zouein.

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Em 1904, o governador do Amazonas, Constantino Nery (1859-1924), o fotógrafo Georg Hüebner, juntos com o engenheiro militar Alfredo Ernesto Jacques Ourique (1848- 1932) subiram o Rio Branco, a bordo do Vapor Mararyr125e documentaram a vida ribeirinha e a criação de gado bovino nas grandes fazendas nacionais no Rio Branco, “São Marcos” e “São Bento”, origem da maior parte da carne que abastecia Manaus. A vila de Boa Vista do Rio Branco estava situada...

(...) na margem occidental, foi fundada ha, mais ou menos, trinta annos, quando para o ponto em que Ella está se transferiu a pequena povoação de S. Joaquim que demorava á sombra das baterias do forte do mesmo nome. É cabeça da Comarca do Rio Branco, Capital do Municipio, e mantem, com regular frequencia, duas escolas primarias para os dous sexos.Além dessas, ha duas outras escolas no Alto Rio Branco, uma na Capella e outra no Igarapé Grande do Uraricoera.Do seu commodo porto, cortado pela natureza em curva regular no barranco da margem, sobe-se por suave ladeira até o chapadão, em pleno campo, onde está construida a villa.Seu conjuncto apresenta perspectivas em geral encantadoras e, de alguns pontos de vista, realmente bellas.Possue boas casas, algumas de alvenaria e uma capella edificada singellamente, mas com relativa elegancia.Pode-se considerar Boa Vista como o centro mais importante de todo o movimento commercial, industrial e agrícola do Alto Rio Branco (OURIQUE, 1906, p.13)

Doze anos depois, por volta de 1916 ou 1917, a vila de Boa Vista contava com 164 casas e por volta de 1200 habitantes. Contudo, os esforços civilizatórios de guiar esse pequeno grupo, afastando-o do concubinato com as índias, das práticas espíritas e religiões apócrifas, e da manutenção da civilidade branca e cristã, levou à criação também de um pequeno jornal que só recentemente veio ao lume historiográfico. Trata-se do Jornal do Rio Branco: Órgão mensal dos interesses dos moradores do Rio Branco 126(Imagem fac- similar 01), de propriedade da Prelazia do Rio Branco e Dias Medeiros e Cia, que surgiu e circulou entre os anos de 1916 a 1919. Impresso na oficina tipográfica São Bonifácio na Vila de Boa Vista, em posse dos missionários beneditinos. O jornal possuía quatro páginas divididas entre as colunas fixas “Parte Editorial”, assinada pelo bispo Gerardo Caloen;

125 “Tomemos a lancha a vapor de pequeno calado como meio de conducção, por ser o mais empregado naquelle rio, visto poder augmentar facilmente sua capacidade de transporte, pelo additamento de batelões apropriados a essa navegação, além de outras vantagens. De ordinario a lancha navega com um só batelão amarrado ao costado, lateralmente, levando tambem uma ou mais montarias a reboque” (OURIQUE 1906, p.9) 126Ascópias microfilmadas do Jornal do Rio Branco (1916 a 1919) encontram-se no Centro de Documentação e Apoio a Pesquisa – CENDAP na Universidade Federal do Amazonas. Para esse trabalho utilizaremos o cervo digital(do ano de 1917) disponível no Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia. 241

“Parte Diocesana”, com reflexões sobre o espiritismo e divulgando os nomes das pessoas que contribuíram com esmolas para a Matriz; “Parte Variada”, com decretos municipais e audiências públicas e, por fim, as colunas de informações nacionais e internacionais “Várias Notícias do Brasil” e “Várias Notícias do Estrangeiro”. Afinal de contas, como uma vila tão distante e pouco habitada conseguiu uma tipografia para conduzir a impressão de um periódico? Cabe a nós, pesquisadores nas áreas de Comunicação e História, a difícil tarefa de responder a tal pergunta. O que se sabe é que a necessidade de incorporar elementos arredios à civilização, produzindo uma identidade uniforme e letrada vinculada à consciência nacional é vista como extremamente necessária pelas autoridades locais. O jornal, nesse sentido, funciona como um espaço de sociabilidade que permite a troca de experiências, a organização do espaço urbano, seja por meio do anúncio de propriedades, realizações de festas ou bailes em determinadas localidades.

1. Organização política de Boa Vista: a Maçonaria e a Igreja O esforço acadêmico recente tornou a história de Roraima mais compreensível para os seus moradores. Este esforço vincula o crescimento urbano de Boa Vista à atividade agropecuária, fundamento econômico da região na virada dos séculos XIX e XX. Essa atividade era então dependente da existência de um mercado crescente no Amazonas que, sobretudo a partir do ciclo da borracha, tornou-se atrativo para migrantes nordestinos. Com a lei 132 de 29 de julho de 1865, as terras a partir das corredeiras do Rio Branco até o Norte, passaram a pertencer à freguesia de Nossa Senhora do Carmo, vinculada à província do Amazonas, município de Moura. No relato de Henri Coudreau, durante sua viagem em 1887 pelo rio Branco, "a população de Boa Vista compõe-se de brancos, mamelucos e índios. Esses últimos prestam serviços domésticos e trabalham para os brancos". Foi somente a partir da seca nordestina que a população passou a assumir mais elementos étnicos, pois...

(...) o fluxo migratório chegou a alcançar o rio Branco. Inicialmente vieram grupos originários do Maranhão e, sucessivamente, famílias inteiras de todo o Nordeste brasileiro (...) A relação dos índios com os brancos foi de evidente submissão. Os índios foram obrigados a aprender o português e a trabalhar em troca de comida, roupa e ferramenta, muitas vezes em situação de escravidão (FERRI, 1990 p. 22).

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Em meados do século XIX, o forte São Joaquim entrou em declínio e apenas o povoamento de Nossa Senhora do Carmo, já com o nome de Boa Vista, continuou a existir. Com a República Brasileira instituída, o Município de Boa Vista foi criado com o decreto 49 em 9 de julho de 1890. O governador do Amazonas na ocasião, Algusto Ximeno de Ville Roy, promoveu a freguesia de Nossa Senhora do Carmo à condição de vila de Boa Vista do Rio Branco, tendo como primeiro prefeito o senhor João Capistrano da Silva em 25 de julho de 1890. Um ano mais tarde, a Constituição favorecia a ocupação fundiária no Vale do Rio Branco. A inexistência de vias terrestres e a limitação da navegação no Rio Branco dificultaram de integração da vila de Boa Vista ao restante do Estado. Como lembra Barros (1995), “subordinada ao Estado do Amazonas até o ano de 1943, Boa Vista não detinha a função de sede de decisões políticas. Era somente um apêndice, uma ponta de ocupação. A povoação era uma malha com três ruas paralelas à margem do Rio Branco” (Apud VERAS, 2009, p. 57). Essa povoação teve como principal origem a dispersão de migrantes nordestinos em busca de melhores condições de vida (NETO, 2011, s/p), seduzidos pelos discursos inerentes ao ciclo da borracha – na ocasião, a atividade agropecuária em Boa Vista pode ser vista como um desdobramento do ouro branco – e, num segundo momento, pela própria crise da extração da borracha. As formas de ocupação do vale do Rio branco, entre elas a grilagem das terras estatais, favoreceu o enriquecimento das famílias proprietárias dos grandes rebanhos bovinos. Tais fatos preocupavam os missionários beneditinos, podendo ser percebidos nas seguintes recomendações de D. Gerardo van Caloen:

O primeiro interesse dos monges deve ser o cuidado espiritual dos cristãos da diocese, através das visitas às fazendas e lugares habitados. Devem fundar um colégio para os filhos dos fazendeiros e ter mansidão e paciência para ganhar os corações de todos. Devem também manter boas relações com o Sr. Bento Brasil, autoridades e fazendeiros (VANTHUY, 2000, p.79).

O desejo de “manter boas relações” com a oligarquia local foi dissipado logo na chegada dos beneditinos à vila de Boa Vista. A tensão vivida pelos monges em relação à ocupação da terra e à propriedade do gado bovino teve início em 1906, quando D. Gerardo

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solicitou ao governo brasileiro a área da fazenda São Bento127 para a organização da missão beneditina128. Porém, em 1909, ao chegarem à vila de Boa Vista os monges sentiram...

(...) na pele que o elo de todos os entraves e questões no rio Branco é o gado e a fazenda. Primeiro quando solicitaram os bens (gado) da fazenda da paróquia, da qual era procurador aquele que d. Gerardo recomendava de ter boas relações, Bento Brasil, o mesmo não quer devolver, pois terra não havia. Em busca do lugar chamado S. Bento, que havia sido requisitado ao governo federal para o mosteiro e primeiro núcleo missão, descobriram que estava retalhado por usurpação e apropriação de vários fazendeiros. D. Gerardo aconselha-os a não brigarem com ninguém, pois desde maio estava a espera do parecer do inspetor de Manaus, para que o ministro assinasse o pedido. Os fazendeiros não aceitam muito esta idéia de padres fundarem missão no meio de índios. Aqui está o raiz das futuras perseguições (VANTHUY, 2000, p.80)

Antes de descrevermos os desdobramentos deste conflito é importante colocar o leitor a par do sentimento pouco harmônico existente entre a igreja católica e os maçons na região. Entre 1861 e 1890, a igreja na Amazônia era composta por apenas uma única diocese estabelecida no Pará. Nesse período, D. Antônio de Macedo Costa era, no interior do clero, aquele que incentivava a independência da igreja frente ao Estado e opositor ferrenho da Maçonaria. D. Macedo interditou duas entidades religiosas no Pará por abrigarem maçons. Dom Pedro II, ele mesmo maçom, solicitou que a interdição fosse anulada, mas D. Macedo manteve sua posição e, em virtude disso, foi sentenciado em 1874 a 4 anos de trabalhos forçados. Com a desanexação da prelazia do Rio Branco da diocese do Amazonas,o patrimônio da Capela de Nª. Sª. do Carmo na Vila de Boa Vista passou a ser gerenciado pelos beneditinos. Um desses patrimônios foi a Fazenda de São Bento, entregue ao vigário da prelazia do Rio Branco no dia 19 de maio de 1909, durante ato solene na Matriz de Manaus com a presença do Coronel Bento Brasil, até então administrador da Fazenda. Outro fator que contribuiu para a tensão vivida pelos missionários estava ligado à

127 Em meados do séc. XVIII a Coroa Portuguesa, fundou três fazendas Reais no Vale do Rio Branco, são elas: A fazenda do Rei com o nome de Fazenda de São Bento, entre o rio Uraricoera e o Rio Branco. A segunda foi criada as proximidades do Forte São Joaquim com o nome de São José. A terceira conhecida por Fazenda São Marcos foi fixada entre o rio Uraricoera e o Tacutu. 128“A administração desta fazenda passou ao vigário geral; da Prelazia, quando no dia 19 de maio de 1909 lhe foi entregue o governo da dita Prelazia pela autoridade diocesana do Amazonas. O ato da entrega realizou— se na matriz de Manaós e em presença do proprietário Snr. Bento Brasil, procurador da fazenda”. 244

fundação, em 1909, da loja maçônica “Paz e Progresso do Rio Branco” com 48 membros pertencentes ao ciclo das amizades do Coronel Bento Brasil129 (CIRINO, 2009, p. 61). De acordo com D. Achaire Demuynck a autoridade da loja maçônica na vila de Boa Vista era duvidosa, pois...

(...) fora instituída por um aprendiz de 30 grau e não tinha relação com a Grande Ordem do Amazonas. Os beneditinos concluíram, então, que a criação da loja tivera o propósito de neutralizar as atividades da missão. Diante das circunstâncias, eles decidiram mudar para Fazenda Calunga e ir à Vila apenas para o exercício das atividades pastorais e reservaram o restante do tempo para realizar viagens apostólicas nas áreas indígenas (CIRINO, 2009, p. 61).

A situação tensa entre os beneditinos ficaria pior quando, no dia 20 de novembro, após a celebração da missa na Capela de Boa Vista por parte do R.P.D. Alberto, um senhor mencionando ser padrinho de uma criança veio-lhe pedir o batizado. Até então, as perguntas de praxe tinham sido prontamente respondidas: se o homem era casado, religioso etc. Quando, contudo, o senhor disse que ser maçom, D. Adalberto interrompeu as perguntas e explicou que a igreja proibia os padres de aceitarem padrinhos maçons. O senhor respondeu rudemente ao padre. Esse senhor era Adolfo Brasil, filho do Coronel Bento Brasil. A partir daí a peleja estava pronta, opondo de um lado o poder religioso e de outro o político. No que concerne aos aspectos sociais e urbanos, a configuração do povoado de Boa Vista, segundo o eclesiástico Joaquim Gondim, apesar da sua limitação populacional ainda subsistia de forma estável, possuindo até disponibilidade de energia elétrica:

Não é grande o movimento comercial e industrial da localidade, mas está de acordo com as necessidades da população, que é de seiscentas e vinte e uma almas, segundo o último recenseamento. Boa Vista conta com quatorze mercearias, um botequim, uma pharmácia, duas oficinas de ferreiro, uma carpintaria e funilaria, uma barbearia e o importante estabelecimento “canto da fortuna”, do Senhor João Secundino Lopes, que explora, conjuntamente, o comércio de fazendas, miudezas e estivas, além da indústria da panificação e do fabrico de sabão, servindo-se no preparo de seus produtos, de machinismos especiais. O seu

129 Para maiores informações a respeito das divergências entre os beneditinos e a oligarquia do Rio Branco ver: “Archiasbadia Nullins de Nossa Senhora do Monserrate do Rio de Janeiro.Relatório da perseguição dos Missionários e chonicado Rio Branco.Novembro de 1909 até abril de 1910”.

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estabelecimento, o único que possui bombeamento d’água, achava-se provido de instalações elétricas (1922, Apud VERAS, 2009, p. 70).

As estimativas feitas por visitantes podem variar, nunca ultrapassando a margem de 1500 habitantes. Entre estes estão portugueses, brasileiros, mestiços, índios e negros vindos da Guiana Inglesa (Apud VERAS, 2009, p. 71). As casas eram simples, de pau-a- pique, construídas através dos recursos então mais fáceis de encontrar na região e até hoje comuns em algumas das ruas da cidade. Segundo D. Pedro Eggerath, em 1920 a cidade se organizava às margens do Rio Boa Vista, ao redor da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, que constituía então o centro da cidade, ajudando a demonstrar o poder exercido pelo clero local:

O aspecto das casas, construídas em parte de pedra e cal, cobertas de telhas e dispostas ao longo de ruas largas, é difícil de descrever, muito embora esteja a sede deste enorme município representado apenas por 200 edificações, entre casas e barracas, distantes umas das outras, o que explica a razão das muitas ruas e o fato de parecer Boa Vista, de longe, muito maior do que realmente é. A sua população que se pode estimar em 1300 habitantes, compõe-se na sua maioria de famílias de fazendeiros do Rio Branco. Perto do lugar de desembarque, vê-se em uma das praças a Igreja de N. S. do Carmo, de construção antiga e, até sendo concertada dignamente. O edifício da municipalidade fica logo em frente ao porto; é de feitio simples, mas sólido. As demais edificações são em sua maioria casas de famílias, afora alguns negócios e barracas (Apud VERAS, 2009, p. 72).

O contexto de formação e dispersão do povoado, portanto, está ligado a alguns fatores principais ainda na década de 1920: o fornecimento de gado vivo para o mercado de Manaus (NETO, 2011, p. 8), a extração de minérios ao norte de Boa Vista e a crise da borracha. Um primeiro impulso mais substantivo aconteceria apenas a partir do final de 1930, concentrado na Tríplice Fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela (NETO, 2011, p. 12). Por outro lado, as tensões religiosas e políticas, vinculadas às heresias que preocupavam as autoridades eclesiásticas.

2. O que foi o Jornal do Rio Branco? A assinatura do Jornal do Rio Branco acontecia na Casa Sempre-Serve pertencente ao cidadão Mizael Guerreiro. A Igreja, que funcionava como núcleo da cidade, também orientava o caráter da publicação, buscando assimilar os vários habitantes da localidade, 246

evitando, por exemplo, as práticas consideradas abusivas (inclusive aquelas relacionadas ao espiritismo e à mancebia). A organização do poder local girava em torno dos caciques que monopolizavam a oferta de terras, acabando por reproduzir o sistema de poder da República Velha e sua política de disputa das migalhas do poder central (VIEIRA, 2003, p. 8). Tratava-se, portanto, de uma sociedade fundamentalmente agrária, fator que só começou a ser revertido a partir das iniciativas de urbanização da década de 40. Presume- se também que, em virtude do poder financeiro, também esse era o público principal do jornal local entre 1916 e 1919.

Imagem fac-similar 01 - Medindo 30cm por 40cm o Jornal do Rio Branco era dividido em quatro colunas. Fonte: Acervo do Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia

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O jornal e sua proposta civilizadora implicavam colocar os habitantes de Boa Vista em conexão uns com os outros e, mais importante, com o país que o Governo Republicano estava criando. Isso dizia respeito a ter em mente alguns requisitos civilizatórios capazes de organizar toda a atividade do tipógrafo: a busca pela inserção harmônica e racional da religião católica no cotidiano boa-vistense, a organização social baseada na urbanidade, a moralização e desenvolvimento de costumes sociáveis e monogâmicos, o estabelecimento de conexão de identidade com o resto do país e o desenvolvimento de políticas educacionais de maior alcance. O jornal possuía quatro páginas, cada uma delas com quatro colunas. Segundo o redator, a tipografia era proveniente da Itália, motivo pelo qual não tinha disponível o sinal gráfico “til” (Janeiro-fevereiro de 1917, p. 1). O redator define-se ainda como um jornalista cujo propósito é integrar o Rio Branco ao resto do país sob o signo da religião católica já que, além de jornalista, também é um bispo (Junho de 1917, p. 1). Para ele, o dever de jornalista é ser porta-voz da opinião pública, convertendo o seu conhecimento em suporte para o desenvolvimento da comunidade como um todo. Ele define o seu papel pedagógico, por exemplo, alertando a população para a necessidade de ferver a água:

É nosso estrito dever de jornalista preocupado do bem geral deste povo, de insistir novamente sobre esta recomendação tão séria do sábio clínico, que aliás, o ‘Jornal’ tinha feito já aos seus leitores. Pedimos, pois, encarecidamente, a todo o povo do Rio Branco, de nunca mais beber água que não tenha sido fervida (Janeiro de 1917, p. 3, grifos nossos).

Ao contrário do modelo jornalístico que se desenvolveria mais tarde em torno dos padrões de escrita objetivos, o papel do jornalista ainda é visto como um comprometimento patriótico e religioso com a comunidade que está sendo construída, vinculando-a aos modelos de cidades em torno de um poder centralizado. Sendo O Jornal do Rio Branco o único periódico a circular na região e proveniente da única tipografia no Extremo Norte do país, o jornalista não precisa ser imparcial: ele deve se envolver diretamente com o bem estar do Rio Branco, abrindo o espaço para as iniciativas evangelísticas e antimaçônicas. Apesar dos conflitos nítidos na instalação dos beneditinos no povoado, o jornal mantém distanciamento quanto a tocar diretamente nos temas da Maçonaria. Não é segredo que a doutrina kardecista/espírita estava entranhada de alusões aos princípios de deísmo ou desrespeito ao clero, implícitos na “Ordem Universal” da Maçonaria (RIMMÔN, 2013). A

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forma possível dos beneditinos atacarem os influentes indivíduos maçons foi sugerindo a observância estrita da religião correta, baseada nos princípios do sólido catolicismo orientado pelo Vaticano. O jornal traz, desta forma, em todas as suas edições uma “parte diocesana”, voltada para o ensinamento da doutrina. Essa preocupação não deve assombrar o leitor, dada a grande presença de elementos sincréticos provenientes da cultura negra e indígena, ainda hoje uma característica da região e, sobretudo, elementos maçônicos, considerados, como já se observou, uma das principais heresias no contexto da fundação de Boa Vista. Dada a imagem arranhada dos padres na vila, percebidos não incomumente como gananciosos e exploradores, a tipografia tinha também o objetivo de refazer sua reputação, reforçando os vínculos do boavistense com as iniciativas beneditinas de organização social:

os padres não são estes inimigos do povo, malfeitores e gananciosos, como muitos aqui no Rio Branco, pervertidos por más feituras, e sem o acreditarem eles mesmos, o dizem publicamente; 2º que a representação do Prelado do Rio Branco, feita em 1909, era bem fundada a tal ponto que foi atendida pela dita Assembleia, e que escapamos assim, no Rio Branco, a mil misérias e dificuldades administrativas, a não falar nos erros do Correio (Abril/Maio de 1917, p. 3).

Nesse sentido, o jornalista e bispo admite ser seu dever, em primeiro lugar, o serviço prestado à religião católica e, num segundo, o amor devotado à pátria. Assim, suas atividades exigem bastante preparo intelectual na hora de evitar o risco de contágios com a Maçonaria e espiritismo: “Somos patriotas assim como somos católicos. Nosso dever é amar a Pátria, sustentá-la, defender sua honra, como amamos e defendemos a Santa Igreja Católica nossa mãe” (Junho de 1917, p. 1). Os costumes sincréticos, desviados da conduta orientada pela civilidade, eram vistos como perigosos para a construção da cidade. Não apenas os costumes estariam se desviando do catolicismo quanto os diversos elementos sincréticos presentes na região estariam impossibilitando a formação de famílias católicas ou elementos leitores de classe média. O bispo, assim, fazia o alerta:

Qual será o fim de uma geração que amanhã virá a ser a população de uma cidade, desde que seus pais sejam homens corruptos, homens sem escrúpulos, homens sem moral e que não procuram aprender com os mais moralizados o bom caminho da moral? (março de 1917, p. 4).

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Evidentemente, educar-se a partir dos padrões morais católicos e urbanos implicava num esforço sistemático de alfabetização por parte das autoridades. De nada adiantaria o bispo esforçar-se para inserir “doutrinas corretas” no cotidiano da população se esta nem sequer estava apta para a leitura. Dada a negligência das autoridades com relação a esses benefícios letrados, o bispo previa a formação de várias gerações de “idiotas úteis”, ou “analfabetos perfeitos”:

Nunca se falou tanto no analfabetismo e na necessidade de combatê-lo pelo ensino público, como nos nossos tempos. Nunca, porém, foi tão negligenciado o ensino público, no nosso Rio Branco como agora. E é de prever, que, se as coisas não mudarem, ou se o ensino particular não chegar a substituir o ensino público, teremos em breve aqui uma geração de analfabetos perfeitos, o que não constitui título de glória (Abril/Maio de 1917, p. 1).

Enfim, o prospecto lançado neste primeiro ano de jornalismo em Boa Vista não é nada vantajoso para os nativos segundo o jornal: a influência maçônica e espírita, o analfabetismo, o candomblé, a mancebia com as índias, a bebedeira, enfim, a falta de costumes familiares que levava o bispo a lamentar a distância de Roraima com relação à autoridade central. Nas poucas vezes, nesse sentido, em que o governador do Estado Pedro Bacellar fez menção em aparecer, foi saudado como se fosse uma substância regeneradora, pronta a, com sua presença politicamente poderosa, ajudar a colocar a vila nos eixos:

De diversas pessoas que falaram com o Exmo. Dr. Pedro Bacellar, Governador do Estado do Amazonas, soubemos que S. Ex. mostrou grande interesse para com nossa região do Rio Branco, e pretende até nos visitar brevemente, talvez já no mês de junho que vem. Nenhuma notícia podia nos ser mais agradável. Pois, além do nosso prazer e da honra que todos teremos em conhecer a primeira autoridade do Estado, e de entrar em relações pessoais com ele, podemos estar certos de que, uma vez conhecendo a situação desta terra, ele não deixará de empregar seus esforços para melhorar as condições de vida no Rio Branco. Seja bem- vindo o Exmo. Sr. Governador (março de 1917, p. 3, grifos nossos).

Enfim, a distância política dos centros de poder decisório é percebida como um dos principais problemas para a civilização no sertão. As utopias construídas pelo bispo são sempre narrativas vinculadas aos projetos de construção de autoestradas, portos e ferrovias, únicos instrumentos capazes de fazer a nação republicana penetrar em Roraima. Dirigindo-

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se ainda ao governador Bacellar, o bispo escreve:

S. Excelência parece que tem a intuição de que o levantamento do Rio Branco será o caminho mais seguro para chegar ao levantamento do Estado inteiro; pois o Rio Branco, há dois séculos que se escreve isto, é destinado a ser o celeiro do Amazonas, e o Amazonas há de ser o celeiro do mundo, como disse o grande sábio Humboldt (Abril/Maio de 1917, p. 4).

Considerações finais Durante o período colonial, a região amazônica foi disputada por missionários, percebidos, num contexto de barbárie indígena, como politicamente importantes para integrar a selva ao reino português. Antes dos projetos de ocupação econômica do século XX, foram eles os principais atores brancos a intercambiar e manter relações cativas com os indígenas. Em Boa Vista, os projetos de ocupação que se deslocam da fortaleza de São Joaquim para a recém fundada vila de Boa Vista carregam essa herança missionária mas se debatem, contudo, com a “negligência salutar” dos coronéis que foram se instalando na região na condição de posseiros. Dispostos a transformar esse histórico de negligência, no início do século XX, os missionários chegados à região deram início a uma série de propostas de moralização e urbanização da vila, buscando conectar Boa Vista à administração central e garantindo ordenação na ocupação e exploração econômica da região. Um de seus principais projetos, embutidos na proposta missionária, é a alfabetização. Não é segredo que as missões indígenas abriram, no Brasil inteiro, um vasto espaço para a construção de relações duradouras entre índios e brancos, ainda que sob a forma de aculturação. Da mesma forma que, ainda no século XVI, o Padre José de Anchieta compilava um livro catequético na linguagem nheengatu, os missionários beneditinos em Boa Vista levaram consigo uma tipografia italiana, através da qual imaginavam alcançar os quatro cantos dos sertões do extremo Norte brasileiro. Se os primeiros contatos entre os beneditinos e os coronéis foram pouco amistosos, dada a indisposição dos missionários diante das práticas maçônicas, espíritas e outras formas de conduta consideradas desviadas, o processo de levar uma civilidade católica pode ter se concentrado, como aconteceu a partir de 1916, em iniciativas mais sistemáticas na direção da educação pública. Mesmo, contudo, tendo fundado um periódico para esclarecimento, doutrinação e orientação prática

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da vida coletiva, os missionários se debateram com o intenso analfabetismo e negligência das autoridades centrais com relação à educação. Dessa forma, o bispo responsável pelo Jornal do Rio Branco lamentava:

Bem longe vivemos aqui do coração de nossa Pátria! Brasileiros somos, porém, brasileiros sinceros, apesar de desprezados, ciosos pelo soerguimento do Brasil, consolados, quando aparece algum sinal de regeneração e de levantamento para esta nação da qual somos parte (Abril/Maio de 1917, p. 1).

Bibliografia ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.

BARBOSA, Reinaldo Imbrósio. Ocupação Humana em Roraima. Do histórico colonial ao início do assentamento dirigido. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldii. Belém, 1993.

BONATTO, Fabio. 2002. http://www.viconsaga.com.br/lageop/teses/fabio%20bonatto.pdf

Jornal do Rio Branco, Boa Vista, 1917.

CIRINO, Carlos Alberto Marinho. A “boa nova” na língua Indígena: contornos da evangelização dos Wapichana no século XX. Boa Vista: Editora da UFRR, 2008.

FERRI, Patrícia. Achados ou perdidos a imigração indígena em Boa Vista.Goiânia: 1990.

LUCKMANN, Donato. História e geografia do Município de Boa Vista. Série: Roraima Através dos Municípios. Vol. 1. Apoio: Prefeitura Municipal de Boa Vista, FECEC, 1989.

NETO, Manuel Aires da Silva. Migração de nordestinos para o vale do Rio Branco (RR) entre 1890 e 1930. Monografia apresentada na UFRR, 2011.

OURIQUE, Jacques. O Valle do Rio Branco: estado do Amazonas. Manaus: G. Huebner & Amaral, 1906.

RIMMÔN, Sérgio. “Allan Kardec e a Maçonaria”. 2013. Disponível em: http://www.blumenews.com.br/site/index.php/colunas/colunas/item/8185-allan-kardec-e-a- maconaria (Acesso em Março de 2014).

SOUZA, Marcio. Expressão Amazonense. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.

VANTHUY NETO, Raimundo. Dirigir almas e servir ao jeito de muitos: A missão dos Beneditinos junto aos povos indígenas de Roraima – 1909/1948, São Paulo, 2000. 257 f.

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Dissertação (Mestrado em TeologiaDogmática). Pontifícia Faculdade de Teologia de Nossa Senhora da Assunção, São Paulo,2000.

VERAS, Antonio Tolrino. A produção do espaço urbano de Boa Vista – Roraima. Tese apresentada na USP, 2009.

VIEIRA, Jaci Guilherme. Missionários, fazendeiros e índios em Roraima: a disputa pela terra. Boa Vista: Editora UFRR, 2007.

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A editoria de Meio Ambiente em Jornais impressos de Roraima: uma breve análise histórica

Otacílio Gabriel Trajano MONTEIRO130 Sonyellen Fonseca FERREIRA131

Resumo: O desenvolvimento econômico causou uma busca desenfreada por recursos naturais, acarretando assim em danos, às vezes, irreversíveis à natureza. A ausência de políticas públicas eficientes, a ganância dos empresários e a acomodação dos cidadãos são as razões de tantas agressões. Nesta medida, perceber mais miudamente as ligações do homem com seu meio natural é fundamental. O papel do jornalista é crucial nesse sentido. Ele é o termômetro que percebe as alterações decorrentes da exploração inadequada do meio ambiente, na medida em que, teoricamente, está atento às mudanças mais sensíveis na vida das pessoas. Como essa sensibilidade é inadequada ao ritmo de trabalho industrial a que os jornalistas são costumeiramente submetidos, muitas mudanças no ecossistema social e ambiental acabam passando em branco ou recebem uma cobertura inadequada. Repensar a cobertura do meio ambiente jornalístico é repensar também aquilo que Sylvia Moretzschon (2007) chamou de “suspensão do cotidiano”. A capacidade de refletir com integridade as mudanças é também a capacidade de se deslumbrar continuamente diante do novo, escapando às rotinas profissionais.

Palavras-chave: Jornalismo, editorias, meio ambiente, jornalismo em Roraima.

1. Contextualização histórica das editorias jornalísticas Antes da invenção da escrita e da criação da imprensa, a notícia (assim como a História) era propagada na sociedade de vizinhança, por meio do relato oral. Após Gutenberg, deixou de ser narrada pelas pessoas e sua comunicabilidade (transmissão e difusão) ficou a cargo dos jornais e dos demais meios de comunicação (BAHIA, 1990). A especialização do trabalho foi promovida pelo processo de industrialização. Nas fábricas, no início da Revolução Industrial, a divisão do trabalho foi criada para facilitar e aumentar a produção. Cada operário ficava responsável por uma tarefa. “O maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultados da divisão do trabalho” (SMITH, 1985, p 41).

130 Graduado em Comunicação Social – UFRR/ RR [email protected] 131 Mestranda em Letras - PPGL-UFRR/ RR [email protected]

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Comprovado o êxito da experiência, a ideia foi transferida para o mercado de trabalho. “A divisão do trabalho, na medida em que pode ser introduzida, gera, em cada ofício, um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. A diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em decorrência dessa vantagem” (SMITH, 1985, p 42). A sugestão de Adam Smith foi estendida a todas as empresas, inclusive as de comunicação. Nas redações, o trabalho também começou a ser distribuído entre os funcionários.

A especialização do trabalho jornalístico é uma consequência lógica da divisão do trabalho nos veículos de comunicação. A exemplo do que ocorreu na produção industrial, os veículos de comunicação departamentalizaram as redações nos anos 1960 com a criação de editorias especializadas, encarregadas da cobertura jornalística de atividades ou setores específicos (LUSTOSA, 1996, p 109).

A departamentalização das funções promoveu uma reorganização dentro dos meios de comunicação. Os jornais deram início à separação do conteúdo jornalístico por temáticas (ou seja, por editorias). As modificações no visual dos jornais trouxeram benefícios ao leitor, que passou a encontrar rapidamente as matérias que lhe interessam; e aos editores, que puderam esquematizar o processo de estruturação dos jornais. A invenção de editorias começou a ser observada nos anos 60. No Brasil, a década é marcada pelo regime militar. E esse período político está diretamente relacionado com o nascimento dos espaços segmentados. Com o poder de governar o país nas mãos, os militares suspenderam a democracia. Os jornais foram obrigados a excluir praticamente todas as informações sobre questões político-partidárias e de temas relacionados com os conflitos sociais. As greves, por exemplo, não eram divulgadas. Apesar da censura da imprensa, os jornais continuavam circulando e precisavam de material para ser publicado. Com isso, os assuntos econômicos começaram a ganhar espaço nos jornais. Assim:

Durante o regime militar, com o esvaziamento da esfera política, os jornalistas, mais do que nunca, foram obrigados a trabalhar com assuntos especializados, principalmente econômicos. Os tecnocratas falavam difícil, citando sempre uma ou mais expressões em inglês, em cada cinco palavras que pronunciavam. O jornalista passou a se especializar ainda mais, a fim de traduzir a linguagem dos tecnocratas e, com isso, ampliou-

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se o espaço destinado aos assuntos econômicos (LUSTOSA, 1996, p 111- 112).

Com o fim da ditadura militar, os jornais passaram a ter espaços próprios para tratar de assuntos especiais, com discurso ou codificação específicos (LUSTOSA, 1996). Segundo Erbolato (2008), as editorias podem ser permanentes ou transitórias. Ele cita exemplos de permanentes: Esportes, Interior, Ecologia, Transportes, Educação, Polícia, Artes, Política, Suplementos, Minérios e Saúde. As transitórias aparecem quando um assunto é atual e importante, como: Meningite, Inundações, Geada, Seca, Contratos de Risco, Itaipu, Presidente da República no Exterior ou Reforma Constitucional. Mesmo que o mercado de hoje exija a multifuncionalidade do jornalista, a especialização do profissional é avaliada por muitos estudiosos como importante para a qualificação do material jornalístico produzido pelos jornais. Um deles é Clóvis Rossi. Para o autor, “a qualidade da informação seria muito maior se os assuntos pudessem ser tratados por um jornalista com razoável background deles” (ROSSI, 2000, p 70). O jornalismo ambiental pode ser considerado uma das muitas especializações do trabalho jornalístico. Conforme o jornalista Roberto Villar, em artigo publicado no site agirazul:

A reportagem de meio ambiente tem que ser "vendida" como qualquer outra matéria. Deve ser novidade e de interesse público. A linguagem tem que ser simples. Deve procurar contextualizar o homem dentro da natureza, e sempre apresentar os problemas com as soluções ambientalmente sustentáveis.

Entre as suas atribuições específicas estão: produzir informações que permitam ao público obter com clareza, precisão e objetividade, um retrato não fragmentado sobre as questões ambientais. “Deve ainda informar sobre as opções existentes de desenvolvimento sustentável, promovendo o acesso da população a uma melhor qualidade de vida sem causar prejuízos ao meio ambiente” (LUFT, 2005, p 53). Para o professor Wilson da Costa Bueno:

Podemos conceituar o Jornalismo Ambiental como o processo de captação, produção, edição e circulação de informações (conhecimentos, saberes, resultados de pesquisas, etc.) comprometidas com a temática ambiental e que se destinam a um público leigo, não especializado. O Jornalismo Ambiental desempenha inúmeras funções, mas é possível

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ressaltar de imediato três delas: 1) a função informativa; 2) a função pedagógica e 3) a função política (BUENO, 2007, p 34-35).

Contudo, atividade jornalística, principalmente a concernente ao meio ambiente, suscita discussões a respeito de suas funções. O jornalismo atual desenvolveu uma característica peculiar: a pressa na confecção da notícia. Pautas sobre meio ambiente exigem conhecimento multidisciplinar e o jornalista perde menos tempo na produção das reportagens quando conhece o assunto abordado.

Diante da complexidade do tema ambiental, é essencial que se forme profissionais, no caso da mídia, jornalistas especializados, garantindo a produção de matérias mais qualificadas e completas, pois são informações em demasia, produzidas em um curto espaço de tempo, as quais dificilmente alguém que não esteja ligado à área terá condições de acompanhar (BARBOUR, 2003, p 51).

Percebendo, sobretudo, como o meio ambiente não se insere na velocidade da notícia diária, podemos concluir que seu evoluir é lento e sua abordagem calma e modesta. Isto porque os jornalistas geralmente carecem de embasamento para tratar de temas que exigem maior grau de especialização. Por conta disso, a imprensa não tem agido com eficiência na conscientização (educação) da sociedade e a informação não chega aos cidadãos que, de forma indireta, têm contribuído para a manutenção do cenário ambiental mundial atual. Segundo o jornalista ambiental Roberto Villar e o professor Wilson da Costa Bueno, a imprensa brasileira dificilmente trata dos problemas ambientais com profundidade. As exceções são fruto de um esforço pessoal e isolado. O meio ambiente só é manchete ou ganha espaço e tempo no jornalismo diário quando acontecem desastres, ou quando os assuntos repercutem no exterior.

2. O jornalismo ambiental em Roraima Roraima pertence à região norte do Brasil, que detém a maior parte da Floresta Amazônica e possui uma das mais ricas faunas e floras. O Estado apresenta uma superfície de 230.104 km², recortado por uma grande rede fluvial integrante da Bacia Amazônica, destacando-se o Rio Branco, com 640 km de extensão, afluente do Rio Negro (DOMINGUES, 2005, p 64). Entretanto, em toda sua extensão territorial o estado conta atualmente com três empresas de jornalismo impresso: Folha de Boa Vista, Roraima Hoje 257

e Jornal de Roraima, que monopolizam a atenção do público leitor. Este último entrou em circulação no ano de 2013, sendo assim, as considerações elaboradas neste artigo acerca da editoria de meio ambiente dirigem-se aos jornais mais antigos no estado analisando a produção dos jornais no período de 2011 e 2012. O primeiro dos jornais analisados, Folha de Boa Vista, possui 29 anos de existência. Segundo dados oficiais da empresa, disponíveis em matérias da versão on-line do jornal:

A Folha foi a primeira tentativa em Roraima de um jornal estruturado, que obedeceu ao estilo dos grandes jornais, com uma linha de produção que começa na captação da notícia e termina na distribuição dos exemplares impressos. Foi também o primeiro jornal-empresa do Estado, visto que em sua estrutura foram introduzidos departamentos até então inexistentes em outros periódicos locais, como Administração, Finanças, Redação Gráfica (SILVA e VIEIRA, 2010. Apud PIMENTEL, 1996, p. 27).

Situado na Rua Lobo D'almada, nº 21, bairro São Francisco, o jornal foi fundado pelos jornalistas Fernando Estrela, Cosete Spíndola, Sônia Tarcitano e Cícero Cruz Pessoa. Sua primeira edição foi veiculada em 21 de outubro de 1983. Devido à falta de estrutura física adequada e experiência da equipe, circulava apenas uma vez na semana com um único caderno, sendo impresso fora de Roraima, que ainda era Território Federal. O segundo jornal analisado é o Roraima Hoje, que tem sua sede localizada na Alameda dos Girassóis, nº 77, bairro Pricumã. Sua história é recente: tem apenas seis anos de existência, fundado em 07 de dezembro de 2006. De propriedade do empresário Flávio Rabello, inicialmente tinha tiragem de 800 exemplares. Uma parte era distribuída gratuitamente e a outra comercializada. A estratégia objetivava tornar o veículo conhecido entre os consumidores e anunciantes. E se tornou conhecido. O público, de imediato, associava o jornal ao sensacionalismo da editoria de Polícia. As primeiras edições tratavam as notícias policiais com muito bom (mau) humor. Às vezes, o tom bem humorado chegava a chocar os leitores. Trocadilhos e linguagem popular eram as principais características. Por isso, o veículo alcança principalmente as camadas C e D.

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Sobre os resultados da apreciação de ambos os periódicos, pode-se, de forma geral, sugerir um resultado similar ao observado por Luís Fernando Angerami, em sua obra “Meio Ambiente e Meios de Comunicação” (1996). Nela, o autor investiga como a imprensa brasileira cobriu a Conferência Mundial do Meio Ambiente de 1992, a Rio 92:

O que se observou é que, de maneira geral, as matérias publicadas no período pesquisado privilegiaram, basicamente, um determinado enfoque político-econômico da problemática ambiental, reduzindo a dimensão multidisciplinar da questão por praticamente ignorar os seus elementos sociais e científicos. (RAMOS, 1996, p 153).

Em particular no jornal Folha de Boa Vista ficou evidente o posicionamento contrário do veículo em relação a uma abordagem ampla e participante das temáticas ambientais. Temas indígenas não são muito frequentes, apesar da forte herança indígena da população local. O tema “Homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol” foi destaque no período pesquisado; contudo, relativamente a notícias que se referiam às insatisfações dos “desintrusados” (não-índios retirados da Terra Indígena Raposa Serra do Sol). Estes reclamavam do “calote” que levaram do Governo Federal que ainda não tinha resolvido o problema das indenizações. Essas matérias eram veiculadas principalmente na editoria de Política. O tema estava presente no dia 01 de junho e em outras edições do Roraima Hoje, como na de Sábado/Domingo, 04 e 05 de junho de 2011: “Violência no campo: Quartiero culpa política ambiental pela situação. Chamou de programa neocolonial impedindo o Brasil a se desenvolver, ter soberania e ser grande potência” (Política, p. 3). A questão ambiental quase sofreu a distorção pretendida pelos produtores de arroz retirados da Reserva. Tais notícias só evidenciam a predominância de alguns setores da sociedade que têm acesso privilegiado aos meios de comunicação tendo, consequentemente, mais condições de manifestar seus interesses por meio da imprensa e, assim, influir na formação de opinião (RAMOS, 1996, p 148). Eles alegavam que a demarcação das terras só favorecia um dos lados dos envolvidos e que o Governo Federal estava despreocupado com os moradores de Roraima. O argumento várias vezes fornecido era de que as demarcações destinavam boa parte do

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território do estado para as reservas e que por isso sobravam poucas terras para o desenvolvimento da agroindústria no estado. As demarcações de terras em áreas indígenas estão sempre cercadas de polêmica e as discussões estão presentes em todo o país, como contextualiza Gonçalves (2001):

A apropriação desigual das terras é um dos fatores mais importantes responsáveis por grande parte dos conflitos sociais que ocorrem no país e está na origem da desigualdade de poder político, econômico e de prestígio na sociedade brasileira como um todo. A Amazônia não foge a esta regra constitutiva de nossa formação social. O que causa estranheza é que os conflitos pela terra sejam graves numa região sempre apresentada como de vasta disponibilidade de terras e caracterizada como de densidade demográfica baixa. No entanto, com toda certeza, há muita terra para pouquíssimos latifundiários. (GONÇALVES, 2001, p 50).

Em estudo sobre o poder de influência dos jornais locais na formação da opinião pública em Roraima, Silva e Vieira (2010) concluíram que “a homologação da Área Indígena Raposa Serra do Sol, em área contínua, sempre sofreu constantes ataques por parte da imprensa, em particular, do Jornal Folha de Boa Vista, que era determinantemente contra a sua homologação, inclusive destinando espaço a artigos de opinião e promovendo seminários” (SILVA, VIEIRA, 2012, p 156-157). Conduta abominada por qualquer defensor da ética, como o autor Alberto Dines:

Repórteres não incorporaram ainda ao seu comportamento a atitude de ouvir os dois lados de uma questão no mesmo dia, na mesma matéria. Dirigentes ou proprietários de jornais, com exceções é claro, nem sempre se libertaram da onipotência, seja institucionalizando as “listas negras” (assuntos e pessoas que não podem aparecer no jornal), seja abraçando interesses, sem adotar qualquer isenção diante de causas e pessoas (DINES, 1986, p 62).

A estratégia de desvirtuar a realidade também foi tentada pelos madeireiros. Em 15 de junho de 2012, na seção Cidade do jornal Folha de Boa Vista, matéria informava que madeireiras continuavam bloqueadas e sem funcionar, e os trabalhadores do setor reivindicavam soluções (Folha, p. 11). Uma operação intitulada “Salmo 96:12” investigou crimes ambientais cometidos pelas madeireiras. Na verdade, o escândalo referia-se ao esquema de corrupção envolvendo esses crimes. Vários setores públicos participavam de uma rede de corrupção que liberava licença ambiental para madeireiros desmatarem à vontade em áreas proibidas. As fontes, os 260

próprios empresários, quiseram tirar os crimes ambientais dos holofotes e criar uma situação na qual a operação em benefício do meio ambiente fosse vista como prejudicial ao desenvolvimento de Roraima. Consequentemente abafaram o debate. Uma recomendação básica dos manuais de ética no jornalismo foi posta de lado pelos repórteres: a checagem minuciosa das informações oferecidas pelas fontes, como explica Rossi (1980):

Para compor uma reportagem, o jornalista vale-se, fundamentalmente, de fontes de informação, conhecedoras do tema, mas também nele interessadas (direta ou indiretamente, política ou economicamente, em busca de prestígio, vingança ou qualquer outro motivo). Extrair dessas fontes informações que as prejudiquem é, evidentemente, muito difícil, se não impossível. Cabe, então, ao repórter, pesar cada informação passada pelas fontes, confrontá-las com outras, oriundas de outros informantes, avaliá-la em função de seus próprios conhecimentos ou informações anteriores sobre o tema – e, assim, compor o seu próprio quadro (ROSSI, 1980, p 50-51).

O atraso econômico também foi motivo para os empresários do Estado se posicionarem contra a preocupação com o meio ambiente quando começaram as especulações sobre a votação do Novo Código Florestal Brasileiro. De novo, o argumento foi de que as novas regras diminuíam muito a quantidade de terra liberada para a produção econômica. Em nenhuma destas situações os jornais se posicionaram a favor do debate, propondo que o leitor tirasse suas próprias conclusões, depois de esgotados os argumentos de ambos os lados, respeitando a multidisciplinaridade inerente ao jornalismo ambiental. Pode-se assim argüir, com Ramos, que,

Nesse contexto (mau uso da ecologia) se encaixam discursos que afirmam que a defesa do meio ambiente vem sendo usada pelos países ricos como uma estratégia para “inibir o crescimento nacional”, quer como instrumento de uma “orquestração internacional” cuja finalidade é impedir a utilização dos nossos recursos naturais, quer como instrumento de protecionismo para dificultar o nosso o livre acesso ao comércio internacional (RAMOS, 1996, p 154).

É relevante constatar a presença significativa de matérias defendendo o ponto de vista de que, apesar dos problemas ambientais que vivemos, a relação homem/natureza deve ser mantida nas mesmas bases para não ameaçar o desenvolvimento da humanidade e a continuidade do que se credita como progresso. Esse discurso encontra amparo na argumentação de que o ambientalismo estaria promovendo uma suposta

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“supervalorização” da natureza, num processo no qual o ser humano seria excluído da natureza e não teria mais os mesmos “direitos” sobre ela. Em decorrência, essa postura reforça “a crença de que o homem domina plenamente a natureza, dificultando, assim, a conscientização dos problemas ambientais no conjunto da sociedade, bem como os efeitos e consequências das intervenções humanas no meio ambiente” (RAMOS, 1996, p 155). No que concerne à “Semana do Meio Ambiente”, as matérias relativas aos primeiros dias do mês eram diárias. O assunto ainda gerou matérias até o final do mês. Mas estas versavam sobre os trabalhos desenvolvidos nas escolas como, por exemplo, a edição do dia 25 de junho de 2012 da Folha de Boa Vista. A página 10 trazia a manchete: “Agenda 21 movimenta escola no fim de semana”. E o subtítulo: A Agenda 21 brasileira é um instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável do país. A data é muito utilizada. Principalmente na primeira semana do mês, a “Semana do Meio Ambiente” é a “cartola” mais empregada. Durante essa semana todas as atividades relacionadas ao meio ambiente são divulgadas. A agenda do poder público é a principal fonte. Praticamente todos os dias, durante a “Semana do Meio Ambiente”, sai uma notícia sobre um evento organizado pela prefeitura de Boa Vista ou pelo governo do Estado de Roraima. Particularmente sobre a programação estadual, descobriu-se que ela se estende por mais uma semana. Matéria publicada no jornal Folha de Boa Vista do dia 03 de junho de 2011, por exemplo, informa sobre a “Quinzena Ambiental” que naquele ano terminaria no dia 10 de junho. O texto esbarra na estrutura básica adotada pelos jornais locais quando a pauta refere-se a eventos: limita-se a passar informações sobre programação, objetivos dos projetos, presença de autoridades, etc. Exemplos consistem em: Folha de Boa Vista, dia 21 de junho de 2012, editoria de Cidade, página 10: “Muro ecológico é inaugurado e alunos premiados” e “Ulysses Guimarães: Alunos desenvolvem ação de meio ambiente na praia do Cambará”. Fica assim evidente, nas análises de conteúdo dos jornais, que os eventos da Semana (ou Quinzena) do Meio Ambiente são tratados com esse enfoque meramente informativo. A fórmula é a mesma adotada para todas as seções: quais são os parceiros organizadores, quais os objetivos, qual a programação, etc. Pode-se mencionar, para auferir estas conclusões, as edições de Sábado e Domingo 04 e 05 de junho de 2011, Folha de Boa

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Vista, Editoria Cidade”, sob a manchete: “Instituições fazem ações em favor do meio ambiente”. A estrutura da matéria é assim composta:

O Ministério Público Federal em Roraima (MPF-RR) promove de 05 a 11 de junho a 2º Semana do Meio Ambiente da Procuradoria da República em Roraima. O evento conta com a parceria do Instituto Chico Mendes (ICMBio), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Estação Ecológica Ilha de Maracá (Esec Maracá) e Universidade Federal de Roraima (UFRR). O objetivo é sensibilizar as pessoas quanto à importância do engajamento social nas ações de preservação do meio ambiente (p. 11).

A matéria segue com a divulgação da programação, procedimento para efetuar as inscrições e conta o tema da edição. Os setores cobertos regularmente pela imprensa são, quase exclusivamente, organismos oficiais, organismos do aparelho de Estado – e não organismos da comunidade em si (ROSSI, 2000, p 18-19). Em se tratando de jornalismo ambiental, isso se evidencia na impressa local. O material jornalístico institucional deveria funcionar na prática como fortifica a teoria: uma sugestão de pauta. No “kit”, que inclui texto e fotos, enviado às redações, estão informações prévias que apenas apresentam a notícia. Apesar de constituírem-se em matérias “prontas”, os releases geralmente mencionam episódios futuros. Ou seja, fornecem os dados que ajudarão o repórter a entender o fato que ainda irá acontecer a fim de facilitar a produção da reportagem. O tema lixo é o mais esporádico. Ele aparece nas denúncias dos leitores. Na maioria das vezes por causa de ruas e avenidas sujas. Mas é comum também ler sobre a falta da coleta de lixo e terrenos abandonados cheios de entulhos. Neste sentido, os dois jornais conseguiram atuar como prestadores de serviço, divulgando a agenda do programa Operação Cidade Limpa. Por outro lado, fracassaram com relação à educação ambiental. Conforme destacou a revista UFRR Notícias de março de 2010, “A população é responsável por 90% da poluição e destruição dos igarapés, rios e lagos, jogando lixo e criando esgotos clandestinos”. A ausência de aprofundamento do tema é preocupante porque o lixo é um dos mais graves problemas enfrentados pelas cidades brasileiras como expõe Reinaldo Canto em seu blog cantodasustentabilidade.blogspot.com.br:

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São poucos os municípios que encaram esse problema com a urgência e relevância que o assunto faz por merecer. A maioria das cidades permanece distante dessa discussão. De acordo com o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, divulgado pela Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), a quantidade de resíduos sólidos gerados no Brasil em 2011 totalizou 61,9 milhões de toneladas, 1,8% a mais do que no ano anterior. Do total coletado, 42% do lixo acabaram em local inadequado. Em 2011, foram coletados 55,5 milhões de toneladas de resíduos sólidos. Sendo que 42% desses resíduos foram parar em locais inadequados como lixões e aterros controlados. E, ainda pior, cerca de 10% de tudo o que é gerado acaba tendo destino ainda pior em terrenos baldios, córregos, lagos e praças.

Dentre os aspectos positivos observados, está a editoração esporádica da rubrica Meio Ambiente no “Caderno B” do jornal Folha de Boa Vista, por pelo menos quatro vezes: 03 de junho de 2011, 10 de junho de 2011, 17 de junho de 2011, 24 de junho de 2011. Em todas as vezes que o jornal apresentou mais qualidade nos textos, como interpretação e aprofundamento foram nestas quatro edições especiais.

Considerações finais As temáticas ambientais não são abordadas de forma aprofundada pelos veículos de comunicação analisados por este trabalho. Há uma deficiência na produção jornalística dos dois jornais. E os critérios de noticiabilidade são parecidos, repetindo, de forma redundante, muitas das pautas. Durante o mês de junho, dos anos 2011 e 2012 dos jornais Folha de Boa Vista e Roraima Hoje, os assuntos são muito similares: programação da semana do meio ambiente, denúncias referentes ao lixo e a abundância de chuvas. Nos dois anos foram muito presentes os três tópicos. Em junho de 2012, dois outros tópicos entram para a lista, a conferência sobre meio ambiente, a Rio+20 e a votação do Novo Código Florestal. A programação da semana do meio ambiente ficou por conta do trabalho das assessorias de imprensa da prefeitura de Boa Vista e do governo do Estado de Roraima. Ambas são responsáveis por divulgar os projetos dessas instituições. E neste período do ano são desenvolvidas as principais atividades de educação ambiental. Com a pesquisa realizada nos dois jornais, verificou-se que a ausência de um jornalismo efetivamente fiscalizador e preocupado com a temática ambiental tem origens bem peculiares em Roraima. A especialização do jornalista resta, nesse

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sentido,extremamente necessária. A sugestão é recomendada por um dos pioneiros nos estudos sobre jornalismo ambiental no Brasil, o professor Wilson da Costa Bueno. A editorialização gera um corpo de preocupações explícitas relativamente a determinados temas. No caso dos dois jornais citados, comprovou-se uma multiplicação das pautas ambientais, bem como o engrossamento da percepção acerca do meio ambiente, nas edições de junho de 2011, do Folha de Boa Vista, quando o jornal trouxe em seu Caderno B a rubrica Meio Ambiente. Em quatro edições do mês, dias 03, 10, 17 e 24, o periódico apresentou textos mais bem produzidos e aprofundados. O que evidencia que o espaço fixo dedicado às temáticas ambientais influencia diretamente na qualidade do material jornalístico produzido pela imprensa local. Os temas abordados nessas edições não incluíram nenhuma denúncia ou reportagem investigativa, apesar disso, valorizou-se a educação ambiental. Isso, considerando que as matérias trouxeram a programação da semana do meio ambiente, a preocupação com a reciclagem e exaltação de uma paisagem natural local, a Estação Ecológica de Maracá. Assim como em muitos lugares do país, Roraima possui uma imprensa atrelada a grupos empresariais que utilizam seus veículos de comunicação para transmitir seus ideais e vetar os que vão contra seus interesses. Os donos dos dois jornais estudados estão diretamente vinculados aos principais atores envolvidos com as temáticas ambientais no estado. O que impede o engajamento dos diários na cobertura crítica e independente das questões ambientais. Mas, ao mesmo tempo, a educação ambiental, exercitada pelo Folha de Boa Vista, como foi percebida, não prejudica os interesses das empresas jornalísticas. O que demonstra que esses jornais podem, efetivamente, contribuir para um progresso na cobertura das temáticas ambientais, mesmo que limitados a um trabalho de educação. O leitor carece de informação sobre desperdício de água potável, queimadas em perímetro urbano, poluição de ruas e igarapés, despejo de lixo eletrônico, etc. O jornalismo brasileiro se consolidou como um meio informativo que prioriza o alheamento na transmissão da notícia. Elementos essenciais ao bom exercício da profissão como a investigação e a interpretação foram postos de lado em função do comodismo

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proporcionado pelo hábito de informar sem comprometer-se, adquirido em decorrência da mudança da direção dos jornais que passou de jornalistas para empresários.

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O Ethos de cada um: limites e associações entre a ética profissional de

jornalistas e corporativa de empresas de Comunicação

132 Robson DIAS

Resumo: A ética profissional trata da dimensão do dever-ser. No artigo, consideraremos dois referenciais éticos: o Ethos do Jornalista; e o Ethos do Jornalismo e discutiremos a relação dialética entre as possibilidades da ética e as limitações da prática tanto do profissional (a responsabilidade social, o compromisso com a verdade, a pluralidade de opiniões, a função de informar a sociedade, trabalho em prol do interesse público, a Liberdade de Imprensa e a autonomia do jornalista), quanto das organizações jornalísticas (critérios de Objetividade, a neutralidade, imparcialidade, além do ideal de obtenção da informação em primeira mão).

Palavras-chave: Ética, Ethos, Jornalista, Jornalismo, Organização

No artigo, não temos interesse em trabalhar a significação filosófica das diferentes abordagens e conceituações sobre ética, mas fazer uma compilação das representações sociais da eticidade relativas à profissão e ao mercado de Jornalismo. Tomamos como referencial o pensamento de Kant relativo à Deontologia, postulante de um ethos do dever ser. Até porque entendemos os juízos de valor do jornalista contextualizados num mundo pós-moderno, marcado pela fragmentação do indivíduo, crise da verdade na ciência (com a decadência do empirismo) e ascensão do construtivismo. Estes aspectos são tomados como estruturais e objeto de estudo histórico como formação do campo profissional.

132 Doutor em Comunicação, formado pela Universidade de Brasília (Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação, PPGFAC/UnB) a partir do vínculo com os seguintes projetos de pesquisa credenciados no CNPQ: A ideia do pós-Jornalismo (2010-2013), O Jornalismo como Teoria Democrática (2006-2010) e Como o Terceiro Setor pauta a mídia (2003-2006). Atualmente, é professor titular do mestrado Stricto Sensu em Comunicação da Universidade Católica de Brasília (PPGSSCOM/UCB): [email protected] . A revisão teórica e problematização apresentadas, neste artigo, serviram de base para o enfrentamento do trabalho empírico da pesquisa de mestrado A influência do prêmio Jornalista Amigo da Criança sobre o profissional de jornalismo: um estudo de caso, trabalho feito sob a orientação da Profª Drª Dione Oliveira Moura (presidente SPBJor: gestão 2011-2013). O autor recebeu bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).

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O jornalista e o referencial teórico da Ética Os estudos sobre ética são inúmeros. Alguns modelos que fazem o panorama das diferentes concepções sobre o tema são:

1. A Ética Grega – a virtude não obrigatória, exigindo requisitos e apresentando-se de forma distinta em relação a certos papéis sociais, achando-se dissociada do saber. O Mito da Caverna representa a idéia do bem. Alcançar o bem indica atingir o mais alto nível de sabedoria 2. A Ética da Salvação – elaborada durante a Idade Média, assim denominada por ter interpretado a ética Grega de ângulo teológico, dando precedência à vida eterna. Para Aristóteles o fim da moral é a ação dos homens. Para São Tomás de Aquino o fim do homem não se encontra na relação com o homem, mas na pessoa, no sentido de uma natureza espiritual 3. A Ética Social – elaborada nas nações protestantes, na época Moderna, com o propósito de fixar critérios para a incorporação de princípios morais à sociedade, já que a moralidade básica é entendida como sendo individual e dizendo respeito a uma relação com o Criador que não admite mediações. 4. A Ética do Dever – formulado por Kant, que circunscreve o problema ético ao da fundamentação da moral, preconizando uma solução racional, sem recurso à divindade. Separação entre moral e religião. Imperativo categórico: age como se a tua ação se possa transformar numa lei universal. O homem é um fim em si mesmo e não pode ser usado como meio. 5. A Ética Eclética – propõe-se a conciliar o racionalismo kantiano com a simultânea admissão de inclinações morais nos homens, adotada pelos neotomistas [adeptos da filosofia de São Tomás de Aquino] 6. A Ética dos Fins Absolutos – “os fins justificam os meios”, que sem abdicar dos pressupostos cientificistas que a fazem renascer na época moderna, veio a ser encampada pelos marxistas [adeptos da luta armada] 7. A Ética de Responsabilidade – proposta por Max Weber, que pretende fazer renascer a tradição kantiana, no que respeita à eliminação da dependência à religião reelaborando-a para abandonar os vínculos porventura tivesse estabelecido com a suposição de uma sociedade racional (SILVA, 2003, p. 10)

Silveira (1993) considera que o fato do espaço público passar a ser agenciado por uma lógica de mercado é efeito do referencial de Objetividade e dos valores profissionais, oriundos da cultura organizacional, que circundam o campo do jornalismo. Para a autora, a ética, aplicada ao campo jornalístico, é contextualizada da seguinte forma:

Na mudança do paradigma mecanicista para o novo paradigma holístico, sistêmico ou orgânico, a ética jornalística precisa mudar 269

também passando a se basear na consciência social e não no deslize ou outras formas de sensacionalismo durante o processo de seleção e edição das notícias. A nova ética passa pela responsabilidade no sentido weberiano do termo, ao qual veículos de comunicação resistem baseados no argumento de que a ética da responsabilidade no jornalismo implicaria num risco de autocensura, uma vez que caberia ao veículo decidir sobre o que é bom ou mal para a opinião pública. Quando a imprensa coloca todo o seu trabalho em termos de mercado está “marketizando” o espaço público e substituindo o seu produto por imagens. Não é mais a notícia que chega às bancas, é a “notícia- verdade”, que usa a objetividade e suas derivações para sustentar essa imagem. Com a ética do marketing, os resultados de mercado ganham o patamar de signo, quando deveriam ser considerados um valor (SILVEIRA, 1993, p. 162-163).

Existem implicações éticas peculiares a cada tipo de juízo valorativo, seja de ordem pessoal ou coletiva. Silva (2003) as distingue utilizando o seguinte referencial:

Nem sempre as orientações difundidas no meio de uma corporação encontram apoio nas convicções individuais. A Ética da Convicção, portanto, volta-se mais para o indivíduo, enquanto que a Ética da Responsabilidade diz mais respeito às coletividades. A primeira está relacionada aos deveres (deontologia = tratados dos deveres); a segunda, aos fins (SILVA, 2003, p.12).

Desde a universidade, a formação de jornalistas tem forte foco na deontologia. Considerando cursos com currículos humanísticos. Muitas vezes, currículos tecnicistas contribuem para a socialização, desde a faculdade, com a ética oriunda da prática jornalística no mercado noticioso. O conflito ético no campo do Jornalismo geralmente reflete a distância entre teoria e prática; universidade e mercado. O referencial deontológico, de implicação pessoal, comungado pela cultura profissional, muitas vezes fica no plano teórico e não é aplicado na prática. Com a influência de valores egressos da realidade cotidiana, subsidiários do mercado de trabalho e da socialização de princípios em dada cultura organizacional, fazem com que os profissionais tenham certa dificuldade nas tomadas de decisão. Para Fittipaldi (1998),

Nas redações, o que vemos em geral é que os jornalistas vagam entre um ideal de objetividade e isenção e seu oposto - a interpretação do fato - o que em si também significa tomada de partido, compromisso

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fechado com a verdade. Diante de um acontecimento, porém, o profissional da imprensa pode processar o fato de duas formas: de maneira redutora e ideológica (ou como se o que ele escreve fosse uma verdade absoluta ou interpretando à sua maneira os fatos) ou, ao contrário, de forma intensiva, aberta, dinâmica. É claramente a segunda atitude a que, ética e ontologicamente, nos parece coerente com a ética como a entendemos. Através dela, o jornalista reconhece que, ao lidar com um acontecimento, mergulha na verdade intensiva, muitas vezes, paradoxal ou mesmo contraditória, em que a atuação do jornalismo é sempre um recorte possível, nunca totalmente objetivo, cientificista, como pretendem os clássicos da objetividade (FITTIPALDI, 1998, p.128).

Andrade (2004) diagnosticou as condições nas quais são ministradas as disciplinas de ética em cursos de graduação no sudeste do país. Na amostra do estudo, o curso de Jornalismo estava incluso. A autora investigou a dimensão do ethos regulativo (dever ser), além do punitivo (no caso das profissões que têm conselhos) da realidade profissional. O objetivo foi o de verificar a distância entre a teoria e a prática. A autora concluiu que existe hipervalorização do ensino de ética na graduação como sendo a única solução para os problemas éticos do cotidiano profissional. E que o ensino da disciplina produz efeito, mas parece não ter o alcance esperado fora dos domínios da universidade. Ainda para a autora,

Podemos citar muitos assuntos que estão ligados à ética, como: liberdade, valores, limites, respeito, responsabilidade, honestidade, mau, bem, felicidade, hedonismo e muitos outros. Com a pesquisa observou-se que o discernimento para todas as questões acima não depende apenas da educação escolar – mesmo porque, muitos relatos nos mostram que o setor educativo está desprovido deste tipo de ensinamento – mas depende muito mais da família, da origem, dos costumes e hábitos desta. É preciso salientar que o ensino, na maioria das vezes, tem boas intenções e vem surtindo resultados positivos, porém, o que se pretende nesta argumentação é deixar registrada a esperança de uma maior colaboração de cursos e escolas em prol da reflexão sobre Ética Profissional (ANDRADE, 2004, p. 116;119).

Karam (2007) discorda dessa perspectiva defendida por Andrade (2004). Em se tratando de formação ética para o jornalista, o autor postula que o "ideal", para quem propõe um conhecimento tão enciclopédico quanto atualizado seria, para uma "boa" formação jornalística, que o currículo tenha 400 disciplinas, distribuídas em 27.700 horas- 271

aula, o que equivaleria “a 40 anos em bancos escolares”. O aluno, portanto, ingressaria “aos 18 anos e se formaria aos 58 anos, pronto para a aposentadoria”, com um amplo conhecimento sem possibilidade de aplicação.133

Dever ser como dimensão ontológica Os discursos deontológicos dominantes sobre o dever ser jornalístico estão sedimentados por um conjunto de valores referenciais da profissão, tais como: o caráter de responsabilidade social, a busca da verdade e a missão de esclarecer à sociedade sobre os fatos que têm relevância pública. Tais elementos da dimensão da ética jornalística têm influência sobre a representação social e identitária do jornalista. Oliveira (2007, p. 01) considera que o jornalista seria uma espécie de representante da sociedade, da voz popular, defensor dos valores democráticos e do direito social à informação. Para a autora, os jornalistas como

Herdeiros de postulados iluministas, levam crer que o profissional da imprensa, ao fazer uso de critérios objetivos, seria capaz de revelar cotidianamente a verdade dos fatos, sem a prevalência de interesses de qualquer ordem, que não os do próprio público.

OLIVEIRA (2007) declara que, em decorrência disso (posicionamento como porta-voz da sociedade), pode-se considerar que os jornalistas constroem seu discurso identitário estabelecendo um sentido de vinculação com a profissão a partir do compromisso com um nobre mandato, uma missão social. De certa forma, essa visão idealizada confere ganhos simbólicos aos agentes dessa atividade e legitima o lugar diferenciador dos profissionais da imprensa no conjunto social. E, nesse sentido, os jornalistas vivem e continuam a reivindicar o status de um trabalho que seria dono de uma aura particular, “não como os outros”. O jornalista considera que seu referencial ético é o mesmo do cidadão. Para Abramo (1997), o jornalista não tem ética própria. O que o autor considera até “um mito”.

133 KARAM, Francisco. Formação e Ética Jornalística. Disponível em www.jornalismo.ufsc.br/. Acesso em 05-12-2011. Sem registro de data de produção do artigo.Assim, por meio da mediação dos jornalistas, a imprensa refletiria a realidade imediata, cobrindo os acontecimentos dotados de relevância social (idem).

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A ética do jornalista seria a ética do cidadão. Ainda para o autor, o que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista.134 Oliveira (2007, p. 3) afirma que o fato de vincular a ética profissional à ética cidadã coloca a atividade jornalística como um ato desinteressado de sua natureza econômica e interessado na função social da profissão, cujo compromisso com o interesse público lhe atribuiria uma espécie de nobre mandato. A autora conclui que

Os códigos de ética, manuais de redação e livros sobre jornalismo, que reiteram os valores idealizados da profissão, atuam, em muitos momentos, como operadores de sentido na transfiguração do caráter econômico da atividade jornalística. Nesse contexto, o jornalismo é exaltado não como um bem econômico (o que não é dito), mas como um bem simbólico (o que é dito), no qual o profissional é reconhecido e tem recompensas simbólicas, entre elas, ter uma função social nobre na sociedade, ser o representante da verdade, mediador do interesse público, etc, e todo o status decorrente dessas imagens.

Muitos valores legitimados no campo profissional jornalístico, a partir de postulados, princípios deontológicos, e discursos idealizados, contribuem para um processo de mitificação da atividade. Oliveira (2007, p. 11) acha que esses princípios deontológicos e discursos idealizados, como valores, estão recheados de ambigüidades e incongruências, as quais só reforçam sua fragilidade. Para a autora, ao não interrogar e reproduzir discursivamente as incongruências legitimadas pelos princípios dominantes do ideário jornalístico, os agentes sociais desse campo só fazem eximir-se da reflexão moral necessária para que se possa agir de outra forma, encontrar soluções para o jornalismo que hoje é praticado. E essa postura acaba reduzindo as discussões sobre a prática profissional em propostas de boas intenções.

Códigos Deontológicos - norte do Ethos do Jornalista No fim do século XVIII, os movimentos libertários na França e nos Estados Unidos, além da Revolução Industrial, provocaram uma reviravolta na relação entre a imprensa, censura e interesse público. Três fatores foram muito importantes quanto às mudanças: os avanços tecnológicos passaram a permitir a produção em larga escala de

134 ABRAMO, Cláudio. Observadores de Carteirinha. Acesso em 05-12-2011. Disponível em www.observatóriodaimprensa.com.br. 273

jornais e publicações (1), a Liberdade de Expressão (2) e a Liberdade de Imprensa (3). Nos EUA, a partir de 1840 até o início do século XX, o aperfeiçoamento das técnicas de impressão, o acirramento da concorrência entre empresas, além do descompromisso ideológico com causas sociais, culminou em um processo de sensacionalização do conteúdo do noticiário. O estilo de jornal (ao qual se convencionou chamar de popular) era caracterizado pela falta de veracidade nos relatos e irresponsabilidade social. Sobre esta questão, Nogueira (2001) afirma que o clima de “vale tudo” teve um saldo que se costuma considerar positivo: o surgimento dos códigos de ética da área de Jornalismo. Temendo que os limites fossem impostos pelo Estado (com caráter restritivo), os empresários do setor decidiram estipular eles próprios suas regras de conduta. Para a autora, é curioso notar que essa normatização de princípios foi muito mais movida pela força das circunstâncias do que por uma demanda espontânea (ibidem). O primeiro código foi intitulado Cânones do Jornalismo. A partir da edição do documento, foram criadas as bases para a noção de Objetividade, a ser desenvolvida posteriormente. Sobre tal fato, Nogueira (2001, p. 74) considera que, em grande parte, essa noção de codificação ética decorreu da estratégia dos empresários de transformar o jornal em produto vendável, despindo-o de conteúdos ideológicos (a aparência de completa neutralidade garante o status de porta-voz do interesse público), que se queria (e se quer até hoje) atribuir à imprensa. No Brasil, os Códigos de Ética começaram a ser editados pelas organizações jornalísticas e pelos próprios jornalistas (como categoria profissional). O primeiro Código de Ética dos Jornalistas data de 1949, como resultado do II Congresso Nacional de Jornalistas. O texto sofreu alterações em outros congressos da categoria realizados em 1968, 1986 e 2007. Para Nogueira (2001, p. 75), a codificação deontológica em jornalismo melhorou as condições de trabalho na área (perspectiva dos jornalistas) e a gestão do mercado noticioso (perspectiva dos empresários de comunicação). A autora afirma que os membros do campo jornalístico assumiram o compromisso com a veracidade dos fatos e com a responsabilidade dos relatos, tendo em vista a importância da informação na vida em sociedade. Nogueira (2001, p. 81) declara que existe “uma verdadeira edição” de códigos sem implicação prática. A crítica da autora é a de que

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De um lado, segue-se à risca recomendações que interessam imediatamente às empresas e não custam muito esforço. Entre elas, as óbvias: lutar pela liberdade de imprensa, defender a livre iniciativa e garantir a autonomia econômica dos veículos. De outro, relega-se pontos que, aparentemente, são incompatíveis com a lógica predominante, que é a de mercado. Os jornalistas, por sua vez, invocam a deontologia para, por exemplo, resguardar o sigilo das fontes, mas ignoram-na completamente quando convém a seus interesses próprios (NOGUEIRA, 2001, p. 81-82).

Nogueira (2001, p. 81) constata certa dependência dos jornalistas em relação às empresas de comunicação na demarcação de território ético junto ao público. Para a autora, a excessiva preocupação com o vínculo empregatício gera descompromisso ético, perceptível, por exemplo, na “naturalização de condutas contrárias ao que postulam os documentos de princípios elaborado pelas próprias categorias”. Nesse aspecto, a autora afirma que

Um dos reflexos deste estado de coisas [cumprimento de tarefas anti- éticas para assegurar o emprego] é a criação de um círculo vicioso: com medo de perder a autonomia sobre suas ações, veículos e profissionais elaboram regras morais; forçados pelas características do mercado, abrem mão desses preceitos; exageram na dose e sofrem ameaça de censura; então, reassumem formalmente compromissos éticos que, muitas vezes, não estão dispostos a cumprir. Por outro lado, a história da filosofia nos mostra que as questões éticas e os dilemas morais não são privilégios da sociedade contemporânea. Desde tempos remotos, a busca da felicidade e o dever. Em diferentes contextos históricos – alguns tão complexos quanto o nosso – filósofos, com Kant, desenvolveram teorias voltadas exatamente par essa questão. Mas, de forma alguma, o assunto foi dado por encerrado (NOGUEIRA, 2001, p. 82).

Fittipaldi (1998, p. 153) acredita que escrever novos princípios para os códigos de ética não inibe transgressões. A codificação formal fornece apenas um horizonte ideal no campo ético. Além do que, as transformações éticas não podem se resumir à punição dos que transgridem códigos (“há muito mais em jogo”). Para a autora, a passagem ao ético, que é muito mais que o reconhecimento das normas, é ao mesmo tempo cultural, política e ontológica.

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Cotidiano profissional - emergência do Ethos do Jornalismo Oliveira (1996, p.73) afirma que a questão ética está relacionada com a competência, o apuro profissional e o espírito da independência individual do jornalista que não ocorre sem levar em conta a aceitação da “regra do jogo”, isto é, da produção da notícia como resultado de atividades realizadas dentro de uma estrutura hierárquica profissional e de uma empresa jornalística. Para o autor, embora o jornalista preste um serviço público, a atividade jornalística não deixa de ser vinculada a empreendimentos comerciais que impõem aos profissionais parâmetros para sua atuação. Consideramos que os princípios deontológicos (Ethos do Jornalista) podem entrar em conflito com exigências empresariais e interesses corporativos (Ethos do Jornalismo). Nesse aspecto, Martino (2007) postula que ter uma atitude ética ou não é uma decisão baseada na vontade do jornalista, mas no contexto em que isso for possível.135 Consideramos o referencial ético obtido pelo jornalista no processo de formação universitária perde espaço para valores de ordem prática da cultura organizacional, devido a um processo natural de socialização do profissional na instituição. Silveira (1992, p. 163-164) considera “efeito de contaminação” da ética da formação universitária pelos valores corporativos da empresa de comunicação da seguinte forma:

O jornalista, ator individual que enfrenta dilemas morais no cotidiano de seu trabalho, sofre com a razão monológica das empresas jornalísticas, contextos sociais estruturados, que tiram de suas mãos a escolha e a concepção final sobre as notícias publicadas. Mas, ao jornalista não cabe se acomodar numa posição de simples componente da máquina de produção, isento de toda responsabilidade dentro da empresa e diante da sociedade. A física quântica abriu dois caminhos para os cientistas: o que leva a Buda e o que leva à bomba, enfatizando que os cientistas são responsáveis por suas pesquisas, não só no campo intelectual, como no moral. Quando se abandonou a divisão cartesiana, caiu com ela a descrição objetiva da natureza e a ciência isenta de valores. Portanto, os valores do cientista “contaminam” seu trabalho. A mesma regra pode ser aplicada ao jornalismo, embora ainda escondido sob a venda de técnicas cartesianas, que consolidam éticas pouco democráticas (Idem).

135 MARTINO, Luis Mauro Sá. A ética como estratégia no campo jornalístico. XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Santos – 29 de agosto a 2 de setembro de 2007. Disponível em www.intercom.org.br. Acesso em 12-12-2011. 276

Silveira (1992) afirma que exista um cartesianismo ético que opere no cotidiano das redações. Para a autora, apesar da formação humanística balizada pela ética deontológica, os jornalistas profissionais não fazem uso apenas desse referencial na rotina de trabalho. O conflito ético, segundo a autora, se estabelece do seguinte modo:

A partir de tudo isso constrói-se uma ética iluminista, sempre atualizável pelo processo comunicativo e voltada para todos. Mas, esse legado iluminista na imprensa brasileira é parcial e insípido porque o jornalista tem sua razão tutelada por um poder tão obscurantista como a religião. As práticas autoritárias do jornalismo, expressas em conceitos como ao objetividade e suas derivações, quer limitar o jornalista enquanto sujeito que exerce um trabalho que envolve aprendizado, reflexão e ação moral. É uma tentativa de alijá-lo de um projeto ético de humanização de significados, levando-as à práxis reducionista, que vê o mundo a partir do ângulo de procedimentos técnicos. É uma ética cientifista que exclui o subjetivo, o emocional e as paixões eu que são as responsáveis pela vivificação do mundo moral (SILVEIRA, 1992, p. 165-166).

As transgressões éticas no campo do jornalismo são muitas. Para Silveira (1992), os procedimentos antiéticos mais comuns:

1) Assessoria Pirata – trata-se de um jornalista que atua na redação como um assessor dos interesses de seu outro emprego. Por exemplo, trabalha numa editora e escreve sobre livros no jornal. 2) Campanha – o veículo usa de seu poder de persuasão para convencer um administrador público ou empresário a endossar um projeto comercial. 3) Chantagem – similar ao anterior, só que o argumento é um dossiê negativo que possui contra o administrador ou empresário e que ameaça publicar. 4) Emprego público – o jornalista completa o salário trabalhando num órgão público, o que compromete sua independência. 5) Mordomias – concessão de viagens, almoços, ingresso grátis etc. 6) Presentes – também chamados de “jabás”, vão de simples (geralmente aceitos) até valiosos (que podem causar constrangimentos a quem recebe). 7) Plantação de notícias – o jornalista recebe da fonte para publicar determinada matéria. 8) Publicidade oficial – aumenta na mesma proporção que a cobertura de determinada administração pública (SILVEIRA, 1992, p. 94-95).

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SILVEIRA (1992, p. 90) acredita que os jornalistas estão vinculados mais ao Ethos que emerge da prática num ambiente organizacional do que ao deontológico. Para a autora, o entendimento se faz durante o processo, pois os jornalistas acreditam que os juízos de valor acontecem no exercício da profissão, na dimensão prática. E não nos bancos escolares, na dimensão teórica. Silveira (1992) fez uma compilação das falas sobre ética de jornalistas renomados, tais como: Danton Jobim, Barbosa Lima Sobrinho, Carlos Lacerda, Cláudio Abramo e Alberto Dines. Nessa amostra de jornalistas ícones, a autora quis evidenciar a falta de um referencial comum do que é ética. Não houve o intuito de sugerir que esses profissionais não soubessem o que é ética. Longe disso. O foco era o de dimensionar a disparidade, em suas falas, do que é ética. Danton Jobim (1992) considera que a ética no jornalismo é definida pela vinculação do jornalista à verdade (sua patroa): “o que se pode pedir do jornalista é que não use de má-fé com seu público, induzindo-o a erro em matéria de fato, seja pela falsificação das notícias, seja pela sua omissão” (SILVEIRA, 1992, p. 90). Barbosa Lima Sobrinho (1992) alerta para o conhecimento integral do papel social do jornalista (sua finalidade maior). E ironiza quanto à regulação dos preceitos deontológicos: “no dia em que o jornalista tiver a noção completa de sua responsabilidade e de sua atuação social, provavelmente se sujeitará a normas escrupulosas de ética” (Idem). Carlos Lacerda (1992) ataca o sensacionalismo e reivindica o interesse público: “aqui não é apenas a tecla do sensacionalismo que estamos ferindo, mas a da irresponsabilidade na imprensa. Há jornalistas, que nunca conseguiram compreender a responsabilidade de sua função – e cuidam que o jornal que têm nas mãos se fez par a impingir ao público os seus amigos e denegrir, aos olhos desse mesmo público, por todos os modos, em todos os terrenos, sob todas as formas, os seus desafetos” (Idem). Cláudio Abramo (1992) evoca a cidadania, em vista da natureza pública e finalidade social da atividade: “não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão. Onde entra a ética? O que o jornalista não deve fazer que o cidadão comum não deva fazer? O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir” (Idem).

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E Alberto Dines (1992) defende a preparação profissional, pois gera convicção e ética no trabalho: “no jornalismo a ética faz parte da técnica. O chefe de Reportagem exige que se ouçam os dois lados, mas só o treinamento na escola, sem as pressões cotidianas, permite que a regra torne-se convicção. É conhecido o caso de um famoso editor de revista que escrevia a declaração de alguém famoso e depois mandava o repórter extrair do entrevistado aquela frase. Textos nota dez, ética nota zero” (Ibidem). A disparidade de referenciais éticos pode afetar a noção de limite e aplicação dos princípios deontológicos. Hernandes (2005) inclusive condiciona o Ethos do Jornalismo como resultante da soma de concepções do Ethos do Jornalista. Para o autor, o ethos de uma mídia aparece como conseqüência de uma intrincada relação com outros sujeitos que também têm um ethos.136 Martino (2007, p. 3) postula que um princípio ético só tem valor quando tende a um máximo de aplicações. Para o autor, um ethos orientado exclusivamente de acordo com as circunstâncias imediatas é contraditório em si, exceto se este ethos for compreendido como o único princípio universal, agir de acordo com os interesses do momento. Em sua análise, é possível ser médico e militante de um partido sem que as paixões políticas interfiram no momento de operar alguém. Da mesma maneira, o alfaiate evangélico cose tão bem quanto seu correlato umbandista. Em vista deste mosaico ético, Martino (2007, p. 10) declara que

Tanto o “peão de redação” quanto o “editor-todo-poderoso” são elementos de um mesmo campo, regido pelos mesmos critérios, diferenciando-se por uma apropriação momentânea desigual do capital simbólico referente ao cargo e necessário para a formação de redes de relações e capitalização de contatos da mesma maneira, mas em um nível diferente de qualquer foca. As condições do vínculo duplo no jornalismo armam-se em virtude de sua própria existência. Não é à toa a preocupação constante com os elementos éticos dentro do jornalismo: eles não existem como categoria específica, mas reproduzem-se diretamente, quase como uma cópia, dos parâmetros sociais (Idem).

Martino (2007) acredita que a conduta aprovada como ética em um determinado cenário apresenta-se à apreensão sincrônica como a resultante de uma série

136 HERNANDES, Nilton. Jornais e Ethos: como a marca vira um “ser” que discursa. EstudosLingüísticos XXXIV, p. 780-785, 2005. [ 780 / 785 ] 279

de interesses específicos voltados para um equilíbrio de interesses comuns. Para o autor, o princípio da ação garante uma possível igualdade de condições nas práticas cotidianas, pois a normatização de um preceito ético é a objetivação dessa igualdade, ressaltada a cada momento pelas denúncias de quebra ou de interesse. Martino (2007) considera que os valores éticos da empresa jornalística não são arranhados pela sintonia com o mercado, mas os do jornalista sim. Para o autor, dessa relação resulta a ética do jornalista como contraponto à instituição, quando evidenciado na convicção de princípios deontológicos; do contrário, o jornalista tende a explicar a adesão à ética da empresa jornalística utilizando-se de argumentos baseados na prática profissional, contextualizada pela realidade de mercado. Karam (2004. p. 129) trabalha a especificidade ética do jornalismo na universalidade humana, além do que chama de retórica e cinismo ético em discursos empresariais jornalísticos. O autor postula que a lógica ética no jornalismo opera da seguinte forma: quando se afirma a validade universal de determinados valores, por uma retórica convincente que não corresponde a uma prática social, surgem dois perigos imediatos: o discurso tornar-se prática social dominante e reforçar os comportamentos narcísicos e cínicos em geral e, ao mesmo tempo, cimentar a apropriação particular dos valores consagrados como patrimônio da humanidade. Certamente, o discurso empresarial jornalístico, ao tornar códigos “trapos de papel”, ao privatizar o uso da esfera pública e de conceitos correspondentes, contribui par ao que o cinismo avance.

Conclusão Desenvolvemos, neste artigo, breve discussão sobre princípios éticos da atividade, em caráter compilativo. Tomamos a opção de abordar elementos enquadrando- os no que chamamos de Ethos do Jornalista e Ethos do Jornalismo, apenas para familiarizar o leitor com a distinção entre preceitos e práticas de decoro (dever ser), inerentes ao campo do Jornalismo, e que muitas vezes são confundidas. O intuito do artigo não era o de trabalhar com novas idéias, teorizar algo. Mas o de refletir sobre a questão deontológica levando o leitor á assimilação deste contraste entre valores éticos do profissional e das empresas jornalísticas.

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Referências Bibliográficas

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SILVEIRA, Santa Maria. Ética: esta Lei pega? Apontamentos sobre a moralidade que a imprensa prega e pratica. Tese (Doutorado em Comunicação), USP. 1993. p. 162-163

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Curso de Comunicação da UFRR: as Dificuldades para a formação do Jornalista137

Cyneida Menezes CORREIA138 Paulo Felipe MEDEIROS139 Thaila Alexandra ROSAS140

Resumo Este trabalho fez uma análise do Curso de Comunicação Social, dificuldades e avanços, principalmente no que se refere à evasão de alunos. Pretende-se analisar a formação do profissional do curso a partir da realidade encontrada no Estado, objetivando analisar se as diretrizes constantes no Plano Político Pedagógico (PPP) da UFRR estão sendo cumpridas e quais as dificuldades que o curso de Comunicação Social enfrenta para a formação do jornalista, avaliando ainda os índices de desistência do curso. Como objetivo específico analisa-se se o referido curso atende as necessidades dos egressos. Utiliza-se como questionamento inicial quais os problemas que efetivamente contribuem para a desistência dos alunos do curso de Comunicação Social. Conclui-se que apesar de algumas diretrizes constantes no PPP do curso estarem sendo cumpridas, ainda se tem muito a melhorar.

Palavras-chave: Curso de Comunicação Social; Evasão de Alunos; UFRR

Formalmente, o funcionamento dos cursos de Jornalismo no Brasil foi autorizado em 1943, por decreto do presidente Getúlio Vargas. Apesar dos 64 anos de consolidação, ainda não se atingiu a excelência da formação acadêmica, condição difícil de ser alcançada pela maioria dos cursos de comunicação, em especial, nesse caso, pelo curso da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Segundo o Plano Político Pedagógico (PPP-2006), baseado na Lei de Diretrizes e Bases (LDB nº 9.394/96), o Curso de Comunicação Social da UFRR tem por missão formar profissionais que atuem no mercado de trabalho providos de instrumentos teóricos e

137Trabalho inscrito no III Encontro Regional de História da Mídia, GT de Jornalismo. 138 Acadêmica do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima. [email protected] 139 Acadêmico do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima. [email protected] 140Acadêmica do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima. [email protected]

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práticos que lhe deem subsídios para a compreensão, análise e interpretação dos fatos em nível local, nacional e internacional, de forma ética e qualificada. Nesse trabalho, tem-se como objetivo analisar a formação do profissional do Curso a partir da realidade encontrada no estado, verificando se as diretrizes do PPP estão sendo cumpridas e quais as dificuldades que o curso enfrenta para a formação do jornalista, avaliando ainda os seus índices de desistência. Verifica-se como objetivo específico verificar se o referido curso atende as necessidades das exigências legais, particularmente referentes à legislação da profissão de jornalista. Utiliza-se como questionamento inicial quais os problemas que efetivamente contribuem para a desistência dos alunos do Curso de Comunicação, levantando como hipótese se os estudantes abandonam a universidade devido à falta de condições estruturais; se a falta de investimentos pode servir de obstáculo à boa formação do profissional de jornalismo e se a formação do profissional do Curso a partir da realidade encontrada no Estado influencia nos índices de abandono. Por esse aspecto, justifica-se este estudo pela necessidade de se fazer uma análise das dificuldades para a formação do jornalista e do que pode ser feito para que o ensino de comunicação social melhore de qualidade na Universidade Federal de Roraima.A partir das conclusões, serão delineados os aspectos concernentes ao tema, sempre tendo em conta a relevância social do trabalho jornalístico. Pretende-se ainda utilizar este trabalho como subsídio para o desenvolvimento de novos estudos e pesquisas nesta área de conhecimento

1. Roraima e o contexto de criação da UFRR A UFRR foi criada pela Lei nº 7.364, de 12 de setembro de 1985, e instituída através do Decreto nº 98.127, de 08 de setembro de 1989. Com a missão de oferecer à Região Norte um ensino de qualidade que atenda as demandas de formação profissional de nível superior, a UFRR está inserida na realidade local, dentro de uma visão global que venha permitir atuar no moderno cenário competitivo no Brasil e no mundo. Analisando a existência da Universidade Federal de Roraima no espaço geopolítico regional, o Plano Político Pedagógico do Curso de Comunicação Social (PPP, 2006), explica o importante papel que a formação de nível superior desenvolve em um Estado que soma hoje 23 anos de criação. Roraima, antes Território, passa à condição de Estado da

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Federação pela Constituição de 1988, herdando carências e necessidades de desenvolvimento, onde a presença da Universidade constitui um fator de peso para o debate e o atendimento dos interesses da região. O jornal há mais tempo em circulação é de 1983 (Folha de Boa Vista); a primeira emissora de TV chegou em 1970; e a emissora de rádio pioneira é a Difusora de Roraima (AM), que transmite desde 1957. A UFRR e o curso de Comunicação Social nascem, portanto, com os traços e a fisionomia de Roraima - o Estado amazônico no extremo Norte do Brasil, tornando impossível desconsiderar a necessidade de entrelaçamento entre os elementos formadores da região (a variedade de ecossistemas, a forte presença da população indígena e suas etnias, a rede hidrográfica, a mineração, as fronteiras, as altas taxas migratórias, dentre outros) e as ações no campo científico, tecnológico e da Comunicação.

1.1 A implantação da Universidade Federal de Roraima Almeida (2007) explica que a UFRR foi implantada em 1989, quatro anos após ter sido autorizada pela Lei nº 7.364/85, sendo a primeira Instituição Federal de Ensino Superior a instalar-se em Roraima e considerada uma das mais novas do País com apenas 22 anos de existência. A Instituição conta com três campi: Paricarana, Cauamé e Murupu. Possui 43 cursos de graduação nas mais diversas áreas do conhecimento, além do Colégio de Aplicação (CAp) e a Escola Agrotécnica (EAgro). Na pós-graduação, oferece 10 cursos de mestrado: Agronomia, Física, Química, Recursos Naturais, Letras, Geologia, Desenvolvimento Regional da Amazônia, Ciências da Saúde, Sociedade e Fronteiras, Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional, e um Doutorado pela Rede Bio Norte. Tem atualmente núcleos e unidades de pesquisa, como: Núcleo de Práticas Jurídicas (NPJ) Núcleo Amazônico de Pesquisas em Relações Internacionais (NAPRI), Núcleo de Recursos Naturais (NUREN); Biofábrica; Núcleo Histórico Socioambiental (NUHSA); Núcleo de Estudos Comparados da Amazônia e do Caribe (NECAR); Núcleo de Estudos Semióticos da Amazônia (NUPS); Núcleo de Estudos de Línguas Estrangeiras (NUCELE); Núcleo de Pesquisas Energéticas (NUPENERG), Núcleo de Pesquisas Eleitorais e Políticas

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da Amazônia (NUPEPA), Núcleo de Estudos do Empreendedorismo, Inovação e Desenvolvimento Sustentável (NEEDS) e Núcleo Observa RR. Conta ainda com o Instituto Insikiran de Formação Indígena, responsável por um dos projetos mais inovadores do País: a formação intercultural para professores indígenas. Para promover ações afirmativas e discussões sobre inclusão, foi criado o Núcleo Construir de Acessibilidade.A UFRR oferece ainda programas de bolsas nas áreas de ensino (Monitoria, Mobilidade Acadêmica e Educação Tutorial - PET), de pesquisa (PIBIC, PIBIC Jr., PICI) e extensão (Conexões de Saberes,trabalho, alimentação, transporte urbano). Segundo o mesmo Almeida:

Os programas e projetos de extensão da UFRR estão presentes em 100% dos municípios de Roraima e seus professores tem mais de 1.500 publicações em jornais e revistas especializados, tanto nacionais quanto internacionais. As duas bibliotecas (Paricarana e Cauamé), somam mais de 45 mil livros, além da biblioteca virtual com 30 bases de dados nacionais e estrangeiros. Implantou a Editora e livraria da UFRR, que em poucos anos de existência já publicou e comercializou mais de 40 obras de autores locais. Atualmente a UFRR conta com 456 professores e 284 técnicos servidores.(ALMEIDA, 2007)

1.2 A Implantação do Curso de Comunicação Social Numa breve caracterização do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima (UFRR), destaca-se como marco referencial o cruzamento de jovialidades entre o curso, a instituição de ensino e o Estado que o abriga. O Curso de Bacharelado em Comunicação Social foi criado pela resolução 025/91 - CUNI, em 26 de novembro de 91 e tem prazo mínimo de 03 anos e máximo de 06 anos para ser concluído. A oferta é de 35 vagas por ano para seleção no vestibular. Atualmente, o curso tem 31 alunos matriculados no semestre 2014.1. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Jornalismo escritas pelo MEC (2009), afirma-se que é impossível desprezar a força dos meios de comunicação na evolução humana, onde a mídia ocupa lugar central na construção da sociabilidade.

E sendo a universidade o espaço destinado ao conhecimento, ao aperfeiçoamento democrático e a construção da cidadania, cabe ao curso de Comunicação Social, dentro deste contexto, a tarefa de auxiliar no desenvolvimento da região, entendendo o jornalismo como um conjunto

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de técnicas especiais e como um campo estratégico de produção de sentidos(MEC, 2009).

Almeida (2007) afirma que o objetivo geral do Curso é formar bacharéis para atuação no ensino fundamental, médio e superior, bem como produzir profissionais que possam atuar em suas áreas de conhecimento com domínio de técnicas básicas. O currículo de ensino de graduação está assentado no tripé ensino, pesquisa e extensão, enquanto principio pedagógico, para construir novos processos de relação como o conhecimento. A coordenação funciona a partir do trabalho de dois funcionários, o Coordenador e a Secretária, que dividem os horários de atuação. Almeida (2007) especifica ainda que o sistema tecnológico utilizado pelo curso de Comunicação Social é retrógado e não é totalmente adequado para o curso se desenvolver com decência e agilidade na tecnologia avançada de hoje. O autor esclarece que o curso tem apenas um núcleo de pesquisa: Núcleo de Pesquisas Semióticas da Amazônia, criado durante alterações no Projeto Político Pedagógico (dezembro/2003), já implantado e responsável por parte significativa dos programas de extensão desenvolvidos no âmbito da Universidade. A situação descrita pelo autor foi confirmada pelos autores, que a partir de informações fornecidas na coordenação do Curso de Comunicação descobriram que o Curso conta com cinco laboratórios: Um de Planejamento Gráfico com 40 computadores , sendo que apenas 15 estão sendo usados por falta de cadeiras adequadas aos alunos; um de Webjornalismo, com 36 computadores sendo 12 disponíveis aos estudantes; um de Rádio Jornalismo, utilizado como sala de aula, por não ter equipamento necessário nem técnicos para operacionalizarem as máquinas; Os laboratórios de Radiojornalismo II e Telejornalismo foram construídos pela administração da UFRR mas não foram repassados ao Curso de Comunicação. Almeida (2007) explica ainda que o primeiro Projeto Político-Pedagógico (PPP) do curso de Comunicação Social (habilitação Jornalismo) da Universidade Federal de Roraima é de 1991, e somente em 2003 uma comissão foi nomeada para reformular o PPP, que foi implantado em 2006 e é válido até hoje. Há um novo PPP, produzido no ano passado (2013), que não foi implantado em virtude de trâmites burocráticos e ainda não tem data para implantação. Este projeto entrou em vigor a partir do primeiro semestre de 2004 e sua introdução define como missão:

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Formar profissionais que atuem no mercado de trabalho providos de instrumentos teóricos e práticos que lhe deem subsídios para compreensão, análise e interpretação dos fatos em nível local, nacional e internacional; de forma ética e qualificada. (2003, p. 9)

Na organização do novo Projeto Pedagógico (PPP, 2013)o Curso atenderá a cinco eixos de formação, distribuídos em 2.580 horas de aulas presenciais; 160 horas de atividades complementares; 120 horas de Trabalho de Conclusão de Curso e 200 horas de Estágio Supervisionado. O curso terá duração mínima de oito e máxima de 12 semestres. Mas a principal mudança seria a implantação do Curso noturno, e para que isso ocorra sem ter de reduzir a carga horária de pelo menos duas disciplinas, a oferta de disciplinas deverá ser estendida para as quartas-feiras e sábados. Esse novo PPP deve ser implantado até 2015. Ao longo de 20 anos de funcionamento o curso apresenta como principais ações:A semana dos alunos de comunicação, projetos interdisciplinares com temáticas sociais,jornal-laboratório, apoio à participação de docentes e discentes em eventos científicos,programas radiofônicos semanais, entre outros. Quanto à infraestrutura, o curso dispõe de um laboratório de redação e editoração, com computadores conectados em rede; um laboratório de radiojornalismo em desuso atualmente; laboratório de fotografia analógica (máquinas analógicas e máquinas digitais); e um Núcleo de Rádio e TV Universitária (afiliada TVE), também pouco utilizado pelos acadêmicos, inclusive a emissora de TV está vinculada diretamente a reitoria e não ao núcleo de comunicação e a emissora de rádio está lacrada pelo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel), desde 1997. O acervo bibliográfico é composto de pouco mais de 650 livros, 8 folhetos, 14 referencias,3 teses e dissertações, 1 DVD, e 37 periódicos impressos e 346 eletrônicos. “O desafio mais urgente é destinar ações que assegurem melhorias quantitativas e qualitativas, com a aquisição e atualização do acervo bibliográfico” (PPP, 2006, p. 64).

1.3 Alunos e Mercado de Trabalho - mudanças na caminhada Segundo informações da Coordenação do Curso de Comunicação (entrevista com o atual coordenador Vilso Santi), com 31 alunos regularmente matriculados no semestre

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2014.1 (em desenvolvimento) 141, o Curso de Comunicação Social da UFRR procura conviver com as marcas da sua gênese, pontuadas, principalmente, pelas dificuldades com que foram dados os primeiros passos para a sua implantação142. Segundo a pesquisa acadêmica mais recente realizada sobre o assunto143, o trabalho de levantamento histórico do Curso confronta-se com a ausência de dados e arquivos organizados sobre o tema, o que pode ser mais um elemento de ressonância das dificuldades iniciais. O levantamento atual do número de egressos do curso144 leva a pensar, dentre outras questões, o impacto e as possíveis alterações no mercado de trabalho. Observa-se que aos poucos as redações dos diferentes meios de comunicação passam a considerar como um dos critérios para a contratação dos profissionais de imprensa, a formação universitária. Alterações lentas, mas visíveis. Uma espécie de reconhecimento gradativo da competência técnica dos egressos e a percepção democrática da necessidade de um espaço livre para produção de informação. Na área de Comunicação, Roraima dispõe, na atualidade, de oito canais de televisão, sete emissoras de rádio – sendo três AM e quatro FM, além de uma rádio comunitária e dois jornais impressos. Abre-se paralelamente a esse cenário, o mercado das assessorias de imprensa, viabilizado, principalmente, pelas instituições públicas nas esferas federal, estadual e municipal. E não é só o mercado que tende a mudar. As alterações de perfis são sentidas, sobremaneira, na composição do corpo discente do curso de Comunicação Social. Dados comparativos entre os estudantes da primeira turma (1991.1) e os da turma do segundo semestre de 2007 (perfil socioeconômico realizado pela CPV no vestibular 2007), demonstram, dentre outros aspectos, mudanças que evidenciam o ingresso de alunos cada vez mais jovens (75% deles têm até 22 anos); a predominância de alunos solteiros; e a dependência do apoio financeiro dos pais. No início da década de 90, a implantação da UFRR possibilitou o ingresso de centenas de pessoas que há muito tempo haviam concluído o segundo grau e, por falta de oportunidade, não

141 Fonte: Departamento de Registro Acadêmico/ DERCA-UFRR; 142 Até 1992, o curso de Comunicação Social tinha um único professor para ministrar e coordenar as atividades administrativas e didáticas, a professora Maria Goretti Leite de Lima. 143 Objeto de monografia de Selmar Levino, intitulada O curso de Comunicação Social: uma fisionomia que se revela lentamente, UFRR/DCS, 2002 : 51. 144 Desde a primeira turma em 1994, o curso de Comunicação Social da UFRR graduou 303 profissionais na área de Jornalismo. 288

tinham o curso superior. ‘Esse fato ajuda a explicar porque os alunos da primeira turma do curso de Comunicação Social tinham mais idade, predominavam os casados e levavam mais tempo para ter acesso ao ensino superior’ (LEVINO, 2002: 92) Segundo a pesquisa, feita em 2001, 77.8% dos que ingressam no curso não exercem nenhum tipo de trabalho ou estágio na área de comunicação. Contudo, 61.1% dos alunos da turma mais recente pesquisada afirmam ter grande interesse em atuar na área de Jornalismo e desejam adquirir uma boa formação teórico-prática.

1.4 O Corpo Docente e a síntese das últimas conquistas O DERCA/UFRR informou ainda que quanto aos recursos humanos disponíveis para o atendimento da atividade docente, o Curso tem hoje um quadro formado por quatorze professores efetivos, em regime de dedicação exclusiva, e um professor substituto com contrato de 40 horas. O Projeto Político Pedagógico (2006) que busca a melhoria e o desenvolvimento do curso de Comunicação Social, afirma em seu texto que o Curso deve promover a qualidade no ensino de graduação, o que está justamente vinculado à capacitação dos professores. O plano identifica prioridades para a titulação dos professores desde 2005, numa perspectiva de que - pela formação de uma massa crítica de excelência - o Curso possa consequentemente dar uma melhor resposta à sociedade, desempenhando em plenitude o seu papel formativo e crítico. O Curso de Comunicação Social da UFRR possui sete professores com doutorado, três finalizando o doutoramento em 2015, três mestres e um especialista. (dados de 2014). Quanto ao corpo docente, a Tabela 1 mostra a sua composição, titulação,situação funcional e regime de trabalho. Vale observar que todos os professores efetivos têm regime de trabalho de 40 horas com dedicação exclusiva e os professores substitutos tem regime de 20 horas e/ou 40 horas.

TABELA 1: CORPO DOCENTE: TITULAÇÃO, SITUAÇÃO. Titulação Situação Especialistas Mestres Doutorandos Doutores Efetivo Substituto 2 3 3 7 14 1 Fonte: Departamento de Comunicação Social – UFRR (2014)

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2. Procedimentos metodológicos

Para analisar de forma correta o tema, avaliou-se material didático do Curso como o PPP (Plano Político Pedagógico) e buscou-se informações no núcleo responsável, utilizando para isso uma pesquisa do tipo quantitativa, avaliando a quantidade de alunos que abandonam o curso e a quantidade de alunos que se formam em comunicação neste período estudado. A parte qualitativa foi feita com entrevistas com alunos, ex-alunos e professores do Curso além de levantamento de dados. A pesquisa de informações do referido curso foi feita na única fonte possível,qual seja, o arquivo do Departamento de Comunicação Social. O Curso não dispõe de uma biblioteca específica, na instituição há apenas uma Biblioteca Central que atende todos os cursos da UFRR e que não recebe este tipo de documento. O que parecia, à primeira vista, viável e sem muitos obstáculos, acessar informações sobre o curso de jornalismo em Roraima, revelou-se tarefa nada fácil, devido ao fato de tanto a Coordenação de Comunicação quanto o DERCA não terem informações completas e organizadas sobre o referido curso superior. Assim, mapear e reunir todo o conhecimento de forma completa constituiu-se uma missão impossível, apesar do Curso já funcionar desde 1991. Porém, a falta de uma pesquisa completa sobre o abandono do curso nos impossibilitou analisar a totalidade de anos como previsto inicialmente. Apesar disso, analisou-se os dados do curso até 2014, utilizando-se dados disponíveis no registro do Departamento de Comunicação Social da IFES, apenas parte dos dados dos egressos e concluintes. Apesar de toda a problemática envolvendo este tipo de estudo, assumiu-se como parte da metodologia de pesquisa que todas as informações encontradas fariam parte do levantamento. Para atingir o objetivo de desenvolver a parte teórica que subsidiou o trabalho, um esforço significativo foi empregado no levantamento bibliográfico, pois “toda pesquisa deve basear-se em uma teoria” (MARCONI e LAKATOS, 2002, p. 17).

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3. Análise dos dados

3.1 Entrevistas com professores sobre a situação do curso de Comunicação Nessa pesquisa feita em 2011 com dados atualizados em 2014, conversou-se com vários professores a respeito da situação do Curso de Comunicação, abordando questões como evasão escolar, estrutura do curso, formação e atuação de discentes. Alguns trechos foram separados e constam como importantes para o desenvolvimento e entendimento desse artigo. O atual coordenador do Curso de Comunicação Social, professor Vilso Santi, explicou que a evasão de alunos é muito alta se comparada a outros lugares onde trabalhou.

Na minha primeira turma, um terço dos alunos evadiu. Acredito que entre as causas, o perfil do aluno que ingressa e o fato dele fazer vestibular em novembro e entrar em agosto do ano seguinte, os problemas estruturais e questões relacionadas ao quadro de pessoal. Precisamos convencer o aluno a passar mais tempo dentro da universidade, precisamos de laboratórios abertos em tempo integral e falta um projeto de Curso comum pelo qual valha a pena lutar e isso é um complicador imenso. Mas vamos tentar melhorar nossa estruturação e a partir daí termos melhores condições de manter o estudante na Instituição (SANTI, 2014)

A ex-coordenadora pró-tempore do curso de comunicação social em 2011, professora Sandra Gomes, quando questionada sobre o que leva o aluno a desistir do curso, afirmou que não existem fatores objetivos e o Curso vem crescendo nas últimas duas décadas.

Nesse decorrer do curso nós já tivemos turmas aqui, pessoas bem mais velhas que já trabalhavam no mercado e vinham apenas fechar sua formação, sua qualificação na academia, que é o que se deseja de todo jornalista, essa formação acadêmica, que amplia o seu conhecimento acerca de todas as ciências que são necessárias para um bom desenvolvimento do trabalho do jornalista, do comunicador. Tivemos turmas também em que os alunos haviam passados em concursos e então optavam em fazer o curso apenas como uma progressão funcional e não tinham como meta desenvolver as atividades jornalísticas. E ultimamente temos visto um diferencial, são alunos mais jovens e que optam realmente pela carreira de jornalista. Então temos passado por toda essa mudança (GOMES, 2011).

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A ex-coordenadora esclareceu que, em relação à desistência dos alunos do curso, acredita que ela ocorra principalmente por motivos como a falta de vocação, o ritmo das disciplinas, sobretudo em relação à parte prática, pois o curso de comunicação cobra dedicação quase em tempo integral do aluno e tem um tratamento diferenciado para as atividades práticas. Outro ponto destacado pela Coordenação foi em relação à questão do funcionamento nos dois horários, pois para alguns alunos é difícil conciliar as atividades acadêmicas com os exercícios profissionais, o que deve ser resolvido após a aprovação do novo Plano Pedagógico, que tornará o Curso noturno.

A instituição tem uma política de priorizar a qualificação do professor, então nessa priorizar a qualificação do professor, o curso de comunicação busca não deixar o aluno sem aquela disciplina. Então sempre tem um professor que vai ministrar a disciplina, a gente procura não deixar nenhuma disciplina sem ser ministrada naquele semestre, e com isso os professores substitutos tem um papel, tem desempenhado um papel fundamental, mesmo porque os professores substitutos veem do mercado. Eles hoje são nosso ponto de ligação maior com o mercado de trabalho. Essa política no curso também veem mudando com essa política de qualificação do quadro docente, que veem se especializando, cada professor veem se especializando num área e traz isso pra sala de aula, consequentemente um olhar sobre cada área do jornalismo, tem que ser aprofundados porque tem crescido. O ponto agora que vai ser mais enfatizado é a pesquisa científica, é esse olhar mais aprofundado e com maior porte teórico, (GOMES, 2011).

O Professor Maurício Zouein, Coordenador do Núcleo de Semiótica foi um dos que se formaram pelo Curso de Comunicação da UFRR em 2001 e no mesmo ano ingressou na instituição na condição de professor substituto. Quando questionado sobre quais as dificuldades do aluno se manter interessado no Curso, o professor respondeu que acredita no aperfeiçoamento da técnica e no interesse pela própria profissão, à medida que o aluno conhece o jornalismo mais a fundo.

É difícil para o aluno, porque aluno não está no mercado e tem muita gente que quando entra no mercado, já entra por estar “fechado”. A universidade tem que dar ferramentas, mas eu acho que o interesse do aluno não deve ser na universidade e sim na profissão. Eu não conheço os alunos que desistem, eu só dou aula para aqueles que persistem. Para mim o investimento tem que ser humano e monetário. Humano porque nós temos que ter maior apoio no sentido de nos qualificarmos melhor (ZOUEIN, 2011).

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A Professora Maria Goretti Leite de Lima, em entrevista concedida em Outubro de 2011 explicou que ela começou a trabalhar quando o Curso de comunicação social iniciou em Roraima, ajudando a criação do primeiro Curso, juntamente com outros professores de diversas áreas, como Economia, Filosofia, História, Letras. Ela conta que o Curso de Comunicação começou com muitas dificuldades e que hoje ela tem preocupação com a evasão escolar e com os motivos que levam o aluno a desistir do curso.

O primeiro ponto que eu acho que esta fazendo o aluno a desistir é a falta de esclarecimento com relação à exigência o diploma de jornalista. Era necessário fazer uma pesquisa, pegar todos esses alunos que desistiram visitá-los e saber com mais profundidade por que esse aluno desistiu. Eu digo aos calouros que não desista, pois o seu sonho precisa ser completado. Eu tinha um sonho, eu tinha um sonho muito grande, de fazer minha graduação, de fazer meu mestrado, de fazer meu doutorado, eu tive muita luta, eu tive muita batalha, eu fui muito mal entendida e mal compreendida, mas eu não desisti, eu fui até o fim (LIMA, 2011).

Para o Professor Avery Veríssimo, que é docente efetivo do Curso de Comunicação, as dificuldades para manter o aluno interessado no Curso são diversas. Segundo o docente, faltam investimentos na graduação:

O curso ser diurno, ter disciplinas (modelo curricular) que não condizem com o jornalismo, a queda do diploma e o mercado que aproveita apenas estagiários e poucos graduados, ganhando salários baixos, são algumas das causas que podemos citar para a evasão dos estudantes do curso. Mas a infraestrutura melhorou. No entanto, ainda não temos internet confiável e acesso às redes sociais. Estamos tentando melhorar (VERÍSSIMO, 2014)

Após solicitação do DERCA\UFRR (Departamento de Registros Acadêmicos), recebeu-se várias informações pertinentes aos alunos do Curso de Comunicação. No primeiro momento em que a pesquisa foi feita em 2011, todos os dados diziam respeito apenas a partir do ano de 2004, quando os números foram digitalizados, o que inviabilizou a pesquisa completa sobre os 20 anos do Curso como um todo. Descobriu-se que nem o DERCA, nem o departamento de Comunicação da UFRR tinham dados referentes aos anos anteriores do Curso de Comunicação de forma a serem pesquisados devido à troca de sistema de informática. Na atualização dos dados, feita em 2014, este problema foi contornado de forma parcial e conseguiu-se todas as informações necessárias mais atuais

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para o andamento da pesquisa. Constatou que desde a criação até 2014, 843 alunos entraram no Curso de Comunicação Social, dos quais 303 se formaram e 279 ainda estão cursando. Observou-se ainda que após a queda da exigência do diploma em 2009, o numero de concluintes caiu de forma impressionante retomando seu ritmo a partir de 2012. Segundo o DERCA/UFRR, os alunos que entraram e não abandonaram o curso e nem se formaram são exatamente os alunos com situação regular no curso.

TABELA 2 - RELAÇÃO DOS FORMADOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 FORMADOS 25 17 20 16 5 27 1 7 10 12 Fonte: Departamento de Registro Acadêmico- DERCA/ UFRR (2014)

Outro dado interessante refere-se à evasão de alunos. Apesar de notadamente se observar que pelo menos metade dos estudantes do Curso de Comunicação desistem antes do término da faculdade, observa-se que oficialmente o índice de evasão é muito pequeno. Isso ocorre pelo fato de alunos desistirem, mas nunca oficializarem sua situação junto ao DERCA/UFRR. Portanto, oficialmente, apenas 39 estudantes se evadiram do curso de Comunicação. Segundo tabela fornecida pela coordenação do Curso de Comunicação Social, feita em 2013, houve 39 transferências, 217 abandonos, 16 cancelamentos, 3 saídas a pedido e 6 mudanças de curso, um total de 281 evadidos. Um numero maior que o total fornecido pelo DERCA de evadidos do Curso.

TABELA 3 - DEMONSTRATIVO DE EVASÃO NO CURSO ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 EVADIDOS 13 11 10 5 0 0 0 0 0 1 Fonte: Departamento de Registro Acadêmico- DERCA/ UFRR (2014)

Observa-se na próxima tabela que o índice de evasão era bastante alto até o ano de 2007, mas, repentinamente, nos últimos quatro anos, os alunos pararam de se evadir oficialmente do Curso de Comunicação Social. O DERCA/UFRR não tem informações sobre esses estudantes, já que oficialmente eles continuam matriculados.

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TABELA 4 - COMPARATIVO ENTRE FORMAÇÃO E EVASÃO

ANO 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 FORMADOS/ 55% 70% 50% 30% 0 0 0 0 0 1 EVADIDOS Fonte: Departamento de Registro Acadêmico- DERCA/ UFRR (outubro / 2011)

Conclusão Este trabalho fez uma análise do curso de Comunicação Social, dificuldades e avanços, principalmente no que diz respeito à evasão de alunos. Observou-se que, apesar dos avanços estruturais dos últimos três anos,o Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima ainda deixa muito a desejar, devido à falta de condições estruturais da UFRR. Os estudantes, de modo geral, não têm muitas vezes a oportunidade do envolvimento em um processo de aperfeiçoamento e adequação a rotinas de produção vinculadas à prática do Jornalismo, devido à falta de condições estruturais na instituição de ensino superior. Isso deve ser modificado com a aprovação do novo PPP (2013) que segue as orientação das diretrizes curriculares nacionais do curso de jornalismo, em seu artigo 12, que afirma: “O Estágio Curricular Supervisionado é componente obrigatório do currículo, tendo como objetivo consolidar práticas de desempenho profissional”. Segundo o novo PPP, as atividades de estágio supervisionado são obrigatórias e realizadas nos “períodos finais do Curso”. O curso de jornalismo da Universidade Federal de Roraima determina que este seja desenvolvido no 6º ou 7º semestres, proporcionado ao aluno um maior entrosamento com as práticas apreendidas nas disciplinas e laboratórios do curso, de modo que não prejudique o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso. São consideradas modalidades de estágio, atividades exercidas em ”instituições públicas, privadas ou de terceiro setor, ou na própria instituição de ensino, em veículos autônomos ou assessorias profissionais”, e devem ser acompanhadas por um jornalista profissional. Estas atividades devem ser rigorosamente compatíveis com as habilidades práticas e profissionais do campo jornalístico de redação, planejamento, editoração e assessoria. O Estágio Supervisionado deve ser realizado num total de 200 horas, desconsiderando atividades complementares, de disciplinas e laboratórios do curso, e legitimando 295

práticas de acompanhamento de cobertura, edição, revisão, planejamento e assessoria jornalística. O estagiário deve cumprir a carga horária total em uma única empresa ou instituição (PPP, 2013, p. 13).

No caso da Universidade Federal de Roraima, faltam laboratórios específicos de rádio e TV, uma sede própria para o curso, convênios com empresas para estágios dos estudantes e profissionais qualificados para o ensino superior. Conclui-se que apesar das Diretrizes constantes no Plano Político Pedagógico do Curso estarem sendo em grande parte cumpridas, ainda se tem muito a melhorar. Em relação à analise dos índices de desistência do Curso, não foi possível fazer um trabalho como se desejava, visto que não existem informações pertinentes a todo o período de 20 anos do curso e os dados existentes não refletem a realidade que se observa em sala de aula. Dos 843 alunos que entraram no Curso desde a criação, 303 se formaram e 279 ainda estão cursando, ou seja, 261 alunos desistiram , abandonaram, foram transferidos, mudaram de curso, evadiram-se de uma forma ou de outra do curso. Esse índice se aproxima de 37%, um número considerado alto, destacando como razões a falta de investimentos, o curso ser diurno, ter modelo curricular não condizente com o jornalismo, a queda do diploma, o mercado de trabalho, a qualificação do quadro docente e o perfil do aluno que ingressa que muitas vezes não ter certeza do que quer. Pretende-se ainda utilizar este trabalho como subsídio para o desenvolvimento de novos estudos e pesquisas nesta área de conhecimento.

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ZOUEIN, Mauricio. Curso de Comunicação da UFRR. Entrevista concedida a estudante Cyneida Correia. UFRR, Boa Vista, 2011.

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Theodor Kock-Grünberg e George Huebner na Amazônia: pioneiros no fotojornalismoe a semiótica enquanto método de análise145

Berto Batalha Machado CARVALHO146 Maurício Elias ZOUEIN147

Resumo: Este artigo é resultado de pesquisas na Universidade Federal de Roraima junto ao Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia, onde buscamos demonstrar a relação do pesquisador Theodor Koch-Grünberg com o fotógrafo George Huebner e os fatos que levaram a inserção de dez fotografias no jornal alemão Berliner Illustrirte Zeitung. Sendo esse acontecimento marcante para a história do fotojornalismo na Amazônia. Tanto por divulgar a cultura amazônica na Europa como sendo o início da utilização da fotografia produzida em Roraima no jornalismo internacional. Durante o estudo destas imagens, que são símbolos representativos, foi utilizada a semiótica peirciana como método, trazendo uma abordagem sobre a história deste estudo e sua contribuição para a análisedo conhecimento imagético.

Palavras-chave: Amazônia, Fotojornalismo, Fotografia alemã, Semiótica, Roraima

História da Semiótica: o estudo dos signos A busca para a compreensão da mente humana requer analises.O estudo das linguagens do cotidiano está relacionado à semiótica, que se trata da ciência que estuda signos. Estes símbolos estão presentes no pensamento de cada ser humano, durante o ciclo vital.Como representações observadas, sentidas e caracterizadas por cada indivíduo. Esta teoria, denominando-a assim, existe há aproximadamente dois mil e quinhentos anos - desde a Grécia e Roma Antiga. Sua origem vem do termo grego-romano semeion (signo).Platão148foi pioneiro na busca para entendimento do signo. Em sua pesquisa, reflete a respeito da interpretação das coisas de um ponto de vista de cada

145GT3 – Audiovisual 146Graduando do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Aluno pesquisador do Núcleo de Pesquisa Semiótica na Amazônia (NUPS/UFRR). E- mail: [email protected] 147Orientador do trabalho. Professor efetivo do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Coordenador no Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia (NUPS/UFRR). Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Cultura e Tecnologia (LCT/NUPS/UFRR). E- mail: [email protected] 148Platão nasceu em Atenas (427 – 347 a.C.). Foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental 299

interpretador, assim, ele encontra ou cria os processos significativos, tratando alguns aspectos dos signos, dividindo-os num modelo triádico:

Platão tratou vários aspectos da teoria dos signos; definiu signo verbal, significação e contribuiu com ideias críticas para a teoria da escritura. O modelo platônico do signo tem uma estrutura triádica, na qual é possível distinguir os três componentes do signo:  o nome (ónoma, nómos)  a noção ou ideia (eidos, lógos, dianóema)  a coisa (prágma, ousía) à qual o signo se refere (NOTH, 2003).

Platão buscou por meio de investigações saber a relação entre os três componentes do signo: nome, ideias e as coisas. Diante de tal pesquisa, sua duvida baseava-seno processo,se era natural ou dependia de questões sociais. Assim, definiu

1) signos verbais, naturais, assim como convencionais são só representações incompletas da verdadeira natureza das coisas; 2) o estudo das palavras não revela nada sobre a verdadeira natureza das coisas porque a esfera das ideias é independente das representações na forma de palavras; e 3) cognições concebidas por meio de signos são apreensões indiretas e, por este motivo, inferiores à cognições diretas (NOTH, 2003).

Por este caminho, podemos ter noção do que realmente signo é. Como definiu Platão, no primeiro contato, os signos são representações de algo. No segundo momento é a palavra de cada indivíduo, o que essa representação significa para cada um, não para todos, por isso ele afirma que “não revela nada sobre a verdadeira natureza das coisas”. No terceiro momento, mostra as ideias como interpretações do indivíduo, por isso, menos importantes do que realmente é. Seguindo a mesma linha de pesquisa, o modelo de signo de Aristóteles149 é triádico, assim como o de Platão, porém, traça uma diferenciação entre o que chama de signo incerto e signo certo, onde um resulta no outro, como uma ideia ou conhecimento que a partir daí origina uma conclusão.

Em geral, definiu o signo como uma relação de implicação: se (q) implica

149Aristóteles (384-322 a.C.). Foi um filósofogrego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a física, a metafísica, as leis da poesia e do drama, a música, a lógica, a retórica, o governo, a ética, a biologia e a zoologia. 300

em (p), (q) atua como signo de (p). Na Primeira Analítica (II, 70a, 7-9), explica tal definição: Pois aquilo que procede ou segue o ser ou o desenvolvimento duma coisa é um signo do ser ou do desenvolvimento dessa coisa. Além disso, Aristóteles descreveu o signo como uma premissa que conduz a uma conclusão: O signo [...] quer ser uma proposição bem certa ou necessária ou também corresponde a uma opinião(NOTH, 2003).

Os Estóicos150 possuíam como base de sua teoria um modelo triádico do signo, assim como Aristóteles e Platão. Eles dividiram o signo em três partes, criando outras noções para a teoria, colaborando epistemologicamente para seu desenvolvimento. Segundo Noth, assim o símbolo repartido:

1) semaínon, que é o significante, a entidade percebida como signo; 2) semainómenon, ou lékton, que corresponde a significação ou significado; e 3) tygchánon, o evento ou objeto a qual o signo se refere (NOTH, 2003).

Para eles, semaínon (signo) e tygchánon (objeto) são conceitos materiais, que vemos e podemos tocar ou nos aproximar. Já o semainómenon (significado) é uma ideia, uma conclusão daquilo que se observa, que se analisa, algo não-corporal (imaterial). Por um caminho diferente, mas com características parecidas, os Epicuristas151 procuravam desenvolver um modelo diádico do signo, indo contra o modelo triádicosignico dos Estóicos, para tal teoria, eles sugeriram o estudo do signo haver apenas dois elementos: o semaínon(significante) e o tygchánon (objeto). Desta maneira, os epicuristas não acreditavam na necessidade de uma carga de experiências já existentes na mente humana para se chegar há uma conclusão, pensavam que o ser age e obtém conhecimento, sem relacionar o conhecimento anterior deste para com o objeto.

Considerando esse aspecto do processo semiótico, o modelo estóico do signo contém, em verdade, uma terceira dimensão semelhante aos

150Os estoicos(300 a.C. – 200 d.C.),preocupavam-se com a relação activa entre o determinismo cósmico e a liberdade humana, e com a crença de que é virtuoso manter uma vontade (denominada prohairesis) que esteja de acordo com a natureza. 151Epicuristas (ca. 300).Epicurismo é o sistema filosófico ensinado por Epicuro de Samos, filósofoateniense do século IV a.C., e seguído depois por outros filósofos, chamados epicuristas. 301

modelos triádicos do signo. Essa ideia de uma imagem mental antecipando uma cognição atual, aliás, está bem de acordo com as teorias modernas da ciência cognitiva, ao passo que a base materialista da teoria epicurista parece hoje uma mera curiosidade da história da epistemologia (NOTH, 2003).

Aurélio Agostinho:152 foi com o trabalho dele que a teoria semiótica antiga atingiu seu auge. Agostinho concordava com as teorias dos epicuristas, porém, para definir signo, partiu dos conceitos estóicos, dando ênfase ao conhecimento e experiências encontradas na mente humana (interferência mental) como resultado do processo da semiose.

Método semiótico No projeto científico, é necessário delimitar o objeto para dar o primeiro passo. A pesquisa deste artigo propõe a análise da imagem digitalizada do jornal alemão Berliner Illustrirte Zeitung de 1924. Para, a partir dos registros fotográficos do pesquisador alemão Theodor Koch-Grünberg, que estão inseridos no jornal, compreender sua importância etnográfica e documental, suas representações e significados. Por isso, a linha de pesquisa é baseada em obras que conceituam a semiótica peirciana, pois, a semiótica é a ciência que estuda os tipos de linguagens ou signos, assim, qualquer tema é passível de interpretação. A imagem é um signo. Neste caso, foi utilizada a linguagem visual (imagem digitalizada - iconografia) para saber de que modo os signos das iconologias do jornal podem representar algo que está fora delas (a mensagem visual). O conceito semiótico parte do princípio da representação: algo, alguém ou alguma coisa -> que representa algo, alguém ou alguma coisa -> para algo, alguém ou alguma coisa. Por este caminho, esse pensamento, deve-se levar em consideração que cada indivíduo terá uma leitura diferente da imagem, de acordo com sua carga de conhecimento anterior à interpretação do objeto. Não se pode deixar de lado a imagem e sua importância documental. A utilização da imagem para o desenvolvimento e distribuição da informação, é um método que o ser humano adotou como forma de interação e relação simbólica com os demais indivíduos da sociedade.Cada fotografia representa o espaço e tempo de um determinado fato/cena ou acontecimento. Por isso, precisa ser analisada para que se extraia seu verdadeiro sentido,

152Aurélio Agostinho (354 – 430). Foi um bispo, escritor, teólogo, filósofo e é um Padre latino e Doutor da Igreja Católica. 302

não só como iconologia, mas também seus aspectos iconográficos (processos técnicos, químicos,equipamentos, etc.). É por meio da linguagem escrita que os trabalhos científicos são desenvolvidos. Alguns objetos de pesquisa não se apresentam escritos, como por exemplo, a fotografia.Porém, deve ser elaborado um texto para mostrar o caminho percorrido ou análise de qualquer objeto para ser considerado científico. A semiótica não procura relatar à realidade diretamente, mas sim, representá-la. Faz isso por meio do signo ou do texto - a partir do momento que são criadas as problemáticas e em seguida as hipóteses, para obter respostas. Vale destacar a maneira que a imagem digital do Jornal Berliner Illustrirte Zeitung é analisada neste artigo. Primeiramente é necessária a leitura visual da imagem, os sentimentos que passados por ela.Depois a interpretação desta (com base no conhecimento adquirido por meio de leituras sobre o tema envolvido e/ou experiências que sirvam como base teórica).Logo após, transformá-la em conceitos, em seguida, descrevê-la através de signos linguísticos verbais.Obtendo, assim, uma conclusão. Além disso, é necessário diferenciar percepções,refiro-me ao modo de interpretação, pessoais e coletivas, para dar um conceito relevante à sociedade. Considerando que o método semiótico não busca conclusões gerais. Há então, a possibilidade exploratória da pesquisa numa dimensão interdisciplinar, buscando ideias e aberto para opiniões de outras áreas. A teoria do falibilismo, de Charles Peirce, sugere a probabilidade de todo conhecimento está sujeito ao erro. De acordo com esse pensamento, deixo a pesquisa aberta para críticas e colaborações, sejam elas positivas ou negativas. Para direcionar a pesquisa, foram analisados os aspectos técnicos – não verbais (detalhes; enquadramento; perspectiva dos planos; a composição da imagem; utilização da luz, cores e sombra; algum elemento a ser destacado; ângulo da câmera; equipamento; etc.). E aspectos verbais, que são os valores significativos da imagem relacionados ao propósito e conteúdo da mesma. O método usado neste trabalho promove o diálogo entre paradigmas distantes, aproxima o fotojornalismo do início do século XX publicado na Alemanha com a importância científica de analisar e provar que a mesma imagem fotojornalística é a

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primeira produzida em Roraima.

George Huebner e Theodor Koch-Grünberg: utilização pioneira do fotojornalismo em Roraima Quando George Huebner chega definitivamente à Manaus, capital do Estado do Amazonas, em 1897, conhecer ao grande número de estrangeiros que ali vivia ou que estavam de passagem - pesquisadores, viajantes, etc. Pessoas ao redor do mundo vinham para Amazônia, pois neste período, Manaus vivia o auge do comércio da borracha, atraindo empresas, principalmente de fora do país.

Em 1897, quando Huebner se estabeleceu em Manaus, ele encontrou um diversificado e coeso grupo germânico que incluía, entre outros, imigrantes, viajantes, aventureiros e empregados de empresas estrangeiras. Em seus escritos publicados após as viagens ao Peru e ao Norte do Brasil, fez inúmeras referências aos alemães com os quais se relacionou (VALENTIN, 2009).

Estas empresas eram responsáveis pela atividade extratora do látex da seringueira - matéria prima utilizada para fabricação da borracha.Além disso, agiam na construção do processo de comercialização do produto.Junto a estas empresas nacionais e internacionais, uma considerável quantidade de trabalhadores estrangeiros emigrou para o Brasil. Dentre tantos estrangeiros e conterrâneos que ali encontrara, George Huebner conheceu Theodor Koch-Grünberg, pesquisador estudioso nascido na cidade de Grünberg, na Alemanha, em 1872. Seu amplo conhecimento em áreas diversas possibilitou a concretização da pesquisa de campo como o norte para suas expedições na Amazônia.

Theodor Koch nasceu no dia 9 de abril de 1872 em berço protestante na pequena cidade de Grünberg, região de Hesse, onde seu pai era pastor. Sua formação inicial foi como filólogo, historiador e geógrafo, o que lhe permitiu prestar exames para o magistério. Ele sempre gostou de índios e brincava com os amigos nos campos e florestas em volta de sua cidade natal (VALENTIN, 2008).

Koch-Grünberg, em sua adolescência interessava-se por povos indígenas, naturalmente possuía vontade de conhecê-los.Desta maneira, desenvolveu métodos para possibilitar a exploração da Amazônia brasileira.Também obteve informações necessárias

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para dar seguimento a sua linha de pesquisa, por isso é privilegiado -houve cientistas professores para apoiá-lo, ajudando-o na conquista de espaço, conhecimento,pois no local onde vivia a pesquisa etnográfica estava surgindo.

O trabalho de pesquisa investigativa realizado por Theodor Koch- Grünberg com povos indígenas no Brasil é representativo da escola de Etnologia, que se firmava na Alemanha já nas últimas décadas do século XIX e que teve no médico Adolf Bastian (1826-1905) um dos seus principais incentivadores (GALUCIO, 2009).

Esta experiência escolhida e vivida por Koch-Grünberg fez com que seja reconhecido até os dias atuais como um grande pesquisador de campo. Durante suas expedições à Amazônia produziu um amplo trabalho científico. Seu principal interesse era a diversidade cultural, as características dos povos nativos da região – seu objetivo era documentar as línguas indígenas antes da extinção destas, logo, registrou como anotações a tradução de algumas palavras do vocabulário específico de cada tribo. Seu amplo conhecimento sobre os índios habitantes da floresta Amazônica tornou- se concreto ao longo de três viagens organizadas por ele. Porém, antes de abordá-las, é importante destacar que Koch-Grünberg havia feito sua primeira viagem ao Brasil em 1898, como fotógrafo e pesquisador – acompanhando Hermann Meyer, que já fazia sua segunda expedição ao continente sul-americano. Este evento, provavelmente tenha o empolgado ainda mais para aprofundar sabedoria a partir de um objeto que permita usar a pesquisa etnográfica como fundamentação para seu trabalho.

Seu sonho de conhecer índios de verdade se concretizou quando, em 1898, ele participou como fotógrafo e pesquisador da segunda expedição de Hermann Meyer ao Xingu. Em 1901, de volta à Alemanha, ele abandonou o trabalho como professor e se apresentou como voluntário no Museu Etnográfico de Berlim. Em 1902, foi contratado como pesquisador assistente trabalhando sob a tutela do pesquisador Karl vonden Steinen. Nesse mesmo ano, ele obteve seu doutoramento na Universidade de Würzburg e, no ano seguinte, foi patrocinado pelo Museu de Berlim para empreender sua primeira viagem de pesquisa ao Brasil (VALENTIN, 2008).

Após voltar à Alemanha, abandonara seu posto de professore apresentou-se como voluntário no Museu Etnográfico de Berlim, por este caminho Koch inicia o planejamento de sua primeira viagem independente, que acabara sendo patrocinada pelo próprio museu. 305

Sendo assim, fez oficialmente sua expedição ao norte do Brasil, de 1903 a 1905, ao término desta,concluiu um livro,que traduzido para o português intitula-se “Tipos indígenas da região amazônica, a partir de fotografias próprias realizadas durante suas viagens ao Brasil”.

Em contraponto, o atlas tipológico do antropólogo Theodor Koch- Grünberg,“IndianertypenausdemAmazonasgebietnacheigenenAufnahmen währendseinerReise in Brasilien” é um livro em grande formato, contendo 141 fotogravuras de alta qualidade reproduzidas de fotografias realizadas por ele durante sua expedição de 1903-1905 ao alto Rio Negro (VALENTIN, 2009).

Foi durante esta primeira viagem que Koch-Grünberg conhece seu conterrâneo em terras brasileiras, George Huebner- dono do estúdio fotográfico denominado Photographia Allemã -cujo método seguia um pensamento parecido: a pesquisa de campo.Tornado a troca de informações saudável e prazerosa. Por morar em Manaus há alguns anos,e de fato,ter o conhecimento de como as coisas funcionam no Amazonas, Huebner fora como um informante, atualizador da situação no Estado e organizador das viagens de Koch. Além de amigo, era companheiro de pesquisa, dando auxílio com fotografias e ideias.

Huebner e Koch-Grünberg construíram amizade fraterna e sólida parceria de trabalho. O fotógrafo auxiliava Koch-Grünberg a organizar suas expedições e o assessorava em aspectos técnicos da fotografia, fornecendo-lhe materiais e processando imagens em seu laboratório. Huebner coletou, também, diversos apontamentos lingüísticos que foram utilizados por Koch-Grünberg em suas pesquisas (VALENTIN, 2007).

A partir daí, ao longo de aproximadamente vinte anos mantiveram relação profissional, principalmente por meio de correspondências, envio de imagens e de objetos etnográficos,provavelmente em função de suas respectivas pesquisas. Pois, além de estudiosos, ambos captavam fotos durante as explorações, acarretando ainda mais informação às anotações que documentavam - parte deste material pode ser encontrado em seus respectivos álbuns e livros publicados.

A maior parte da produção e da informação a respeito de George Huebner é conhecida através das cartas que foram enviadas por ele de Manaus e de 306

outras cidades - entre as quais Dresden, Belém e Rio de Janeiro - para Theodor Koch-Grünberg. Anexadas a essas cartas, George enviava fotografias, recortes de jornais, transcrições de vocabulários indígenas, amostras de plantas e até objetos etnográficos (VALENTIN, 2008).

Koch-Grünberg volta à Alemanha e continua seu trabalho de pesquisador, analisando suas anotações e descobertas. Sua próxima ida ao Brasil fora em 1911, desta,é importante destacar os três acompanhantes indígenas de etnias distintas que levara consigo: Taurepáng, Arekuna e Mayongóng. Esta iniciativa demonstrara seu conhecimento empírico rebuscado das viagens anteriores ao continente sul americano, uma vez que sabia o quão eles poderiam ajudar.

Em 1911, ele fez sua terceira viagem ao Brasil, patrocinada pelo Instituo Baessler de Berlim, dessa vez à região dos rios Branco e Orinoco, na fronteira com a Venezuela. Koch-Grünberg levou consigo apenas um auxiliar alemão, Hermann Schmidt, e três acompanhantes indígenas: Taurepáng, Arekuna e Mayongóng (VALENTIN, 2008).

Esses caboclos eram quem o ajudavam na locomoção (por conhecerem a região, os caminhos a serem percorridos) e também com as traduções do vocabulário das tribos ali encontradas, afinal, tinham contato com o não índio e com o índio, neste caso, puderam mediar à comunicação para a melhoria no desenvolvimento do projeto. Não é a toa que foram as pesquisas realizadas durante esta viagem que originaram a sua mais conceituada obra.

Dessa viagem, foi publicada “Do Roraima ao Orinoco” em cinco volumes no período de 1916 a 1928. É considerada obra de referência e de grande importância para a etnografia dos povos de língua Karib (hoje conhecida por Pemon) e a etnologia do norte amazônico (VALENTIN, 2008).

Koch-Grünberg permaneceu navegando pelos rios amazônicos até 1913. Após o término de sua exploração volta a sua terra natal, onde permanece por cerca de onze anos, trabalhando em suas pesquisas, buscando a publicação destas. Em 1924, decide voltar ao Brasil, dessa vez nunca mais voltara a seu país, o alemão morre em Vista Alegre, no atual estado de Roraima, após contrair malária durante espera de Hamilton Rice, para o que seria sua próxima peripécia.

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Em 1924, porém, perdeu seu posto no Museu que àquela época passava por problemas financeiros. Ele se juntou, então, à expedição do americano Alexander Hamilton Rice que iria percorrer a região do Orinoco. Poucos meses depois, faleceu (VALENTIN, 2008).

Para realização da pesquisa etnográfica, Koch-Grünberg produziu uma quantidade considerável de fotografia sem suas explorações na Amazônia brasileira, arquivando o maior número de informações possíveis. Retratara em suas obras momentos da excursão com sua equipe, convivência com os indígenas, e ao mesmo tempo as belezas na floresta,além das características de cada povo que encontrara habitando a região. Portanto, possibilitou o uso das informações colhidas como históricas para toda sociedade mundial, um seminário do século XX para o futuro.

A fotografia etnográfica pode estar inserida em trabalhos científicos, exposições ou diversos tipos de publicação. Pode ser caracterizada como objeto de estudo, pesquisa ou como mera ilustração. Esse tipo de trabalho contribui para que haja um resgate de informações relacionadas aos diferentes tipos de etnias (BONI, MORESCHI, 2007).

O uso da fotografia estava ramificando-se pelos cantos do mundo, a foto passara a fazer parte da sociedade. Por meio da câmera pessoas puderam guardar a imagem como uma lembrança do que acontecera no instante da produção, num determinado espaço e tempo. Portanto,ao percebê-la, o ser humano rebusca na memória histórias do que se passara naquele momento. A população que obtivera acesso empolgava-se com algo tão real, pois, até então, apenas as pinturas faziam parte do cotidiano. A utilização da fotografia também ganhara vigor em trabalhos antropológicos, em relação à iconologia da imagem, onde, as informações contidas podem determinar fatos históricos por meio documental (exemplo: fotos, anotações, cartas). Por este lado, permitiu a expansão das informações sobre diversidade cultural entre as sociedades existentes no planeta - passaram a ser conhecidas por mostrar as diferenças dos povos. Por fazer aproximação com a realidade, naquela época, o meio fotográfico causou fascínio, chamando atenção dos pesquisadores (antropólogos, sociólogos, etc.).

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No final do século XIX, quando avanços tecnológicos possibilitaram a captação de fotografias de maneira mais econômica, mais rápida e com melhores resultados, houve um incremento significativo na produção e circulação de imagens. Nesse amplo repertório, as fotografias “antropológicas” tiveram papel importante (VALENTIN, 2008).

Seguindo a linha de raciocínio anterior, Koch-Grünberg deu fruto às imagens que aqui são analisadas. As fotografias foram publicadas no jornal alemão Berliner Illustrirte Zeitung de 06/07/1924, portanto, são as primeiras produzidas em Roraima utilizadas como fotojornalismo. Estas, por sua vez, podem transmitir informações do que se passara naquele referente espaço e tempo, além da visão do fotógrafo sobre os povos nativos da região. Naquela época o estilo de fotografar em perfil (ou seja, o fotografado de frente para a câmera) era utilizado principalmente para fonte da pesquisa etnográfica, como maneira de documentar, neste caso, as diferenças culturais entre cada povo. Assim, seria viável para os pesquisadores da época identificar os indígenas de tribos diferentes, percebendo a roupagem e as características físicas de cada um.

A fotografia jornalística mostra, revela, expõe, denuncia, opina. Dá informação e ajuda a credibilizar a informação textual. Pode ser usada em vários suportes, desde os jornais e revistas, às exposições e aos boletins de empresa (SOUSA, 2002).

O jornal é impresso, entretanto, essa pesquisa baseia-se por meio de uma iconografia digitalizada do mesmo, este possui dez fotografias produzidas por Koch- Grünberg mostrando o perfil dos indígenas e o cotidiano de quem vivera com o mesmo durante expedição feita a Caracaraí, no rio Uraricoera. Há também a imagem de um mapa, que tivera a função de ilustrar o caminho percorrido pelo pesquisador. A matéria ou o texto do jornal possui o seguinte título: Das Geheimnis der Orinokoquellen (tradução própria: As fontes secretas do Orinoco). A iconologia desse material apresenta, inclusive, como notícia, as dificuldades encontradas pelo grupo durante a expedição feita em 1911. Percebe-se o uso da mão-de- obra indígena na travessia dos obstáculos no rio, mostrando as características daquele povo até então desconhecidas.

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Fonte:http://www.berliner-zeitung.de/archiv/das-ethnologische-museum-in-berlin-dahlem-zeigt-in-iner- usstellung-ueber-deutsche-brasilienforscher-seltene-sammlungsstuecke-abenteurer-im-dienst-der- issenschaft,10810590,9995876.html

Durante nossa pesquisa não encontramos registro de imagens produzidas em Roraima e utilizadas como fotojornalismo anteriores a 1920. Levando em consideração que George Huebener e Koch-Grünberg foram os primeiros a produzirem fotografias em Roraima. Podemos afirmar com alguma segurança que as imagens do Jornal BerlinerIllustrirteZeitung de 06/07/1924 são as primeiras fotografias de Roraima utilizadas como fotojornalismo em um jornal estrangeiro.

Referências Bibliográficas BONI, Paulo César; MORESCHI, Bruna Maria. Fotoetnografia: a importância da fotografia para o resgate etnográfico. Universidade Estadual de Londrina. Doc On-line, n.03, Dezembro 2007, www.doc.ubi.pt, pp. 137-157.

FRANK, Erwin H. Objetos, imagens e sons: a etnografia de Theodor Koch-Grünberg (1872-1924). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. [online]. 2010, vol.5, n.1, pp.

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153-171. GALUCIO, Ana Vilacy. Theodor Koch-Grünberg: documentando culturas indígenas no início do século XX. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 4, n. 3, p. 553-556, set.- dez. 2009.

NOTH, Winfried. Panorama da semiótica – de Platão a Peirce. E.3, 4ª edição, 2003.

PRATES, Eufrasio. Semiótica: uma suave introdução. Disponível em: www.robertotexto.com. Acesso em: 20/12/2012.

SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo, Uma introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa.www.bocc.ubi.pt. Porto, 2002. 161p.

VIEL, Maria Jesus Martinez. Semiótica: a noção do termo semiótica e o registro de representação semiótica na na percepção de professores da Rede Pública de Ensino. Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul). Programa de Mestrado Profissionalizante em Ensino de Ciências e Matemática.

VALENTIN, Andreas. O índio na fotografia de George Huebner. Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, 2007. 15p.

______. George Huebner e Theodor Koch-Grünberg: Diálogos na Amazônia, 1905- 1924. Porto Seguro, Bahia, Brasil, 2008. 26p.

______. Os “Indianer” na fotografia amazônica de George Huebner (1885-1910). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. Tese (doutorado em História), Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

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Linguagem na Amazônia: incursões no registro cinematográfico do alemão Koch-Grünberg153

Clarisse Martins dos SANTOS154 Maurício Elias ZOUEIN155

Resumo: Este trabalho apresenta os resultados iniciais da análise do filme Aus dem Leben der Taulipang in Guayana (1911), de Theodor Koch- Grünberg, produzido com intenção etnográfica junto aos nativos da região do extremo norte do Brasil. A partir das proposições de Lúcia Santaella em relação às matrizes da linguagem e do pensamento, pretendeu-se identificar, no trabalho do pesquisador alemão, indícios que justificam sua classificação como uma peça audiovisual que a um só tempo articula a linguagem verbal, visual e, apesar do caráter mudo da obra, a linguagem sonora. A reflexão proposta enquadra as questões na temática do cinema primitivo, etnológico e serve delas como pretexto para esclarecer os elementos cinematográficos presentes no filme.

Palavras-chave: audiovisual, linguagem, linguagem cinematográfica, etnografia

A Linguagem O ser humano é social por natureza e sua faculdade da linguagem é uma das características que diferencia dos animais. Através dela se organiza o mundo, construindo sentido para o que faz e aprende. Dondis afirma que

A linguagem ocupou uma posição única no aprendizado humano. Tem funcionado como meio de armazenar e transmitir informações, veículo para intercâmbio de ideias e meio para que a mente humana seja capaz de conceituar. (DONDIS, 2007, p.14)

Dessa forma a mesma pode ser definida como meio para a realização da comunicação. Sendo assim, ela é todo e qualquer meio sistematizado que usamos para comunicar, transmitir, receber e repassar ideias, informações e conhecimentos. A partir dessa comunicação, que desse meio de linguagem se forma a cultura.

153 Trabalho submetido ao GT Audiovisual no 3º Encontro Regional Norte de História da Mídia- Boa vista, RR. 154Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Roraima. 155Orientador do trabalho. Professor doutorando efetivo do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). 312

Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagens e de sentido (SANTAELLA, p.2).

Com a chegada das novas tecnologias e o avanço científico, verificamos que são múltiplas as formas e os recursos de interação disponibilizados no século XXI. Por meio delas construímos novos modos de ver, de estar, de se expressar e de agir no mundo a nossa volta.Esses meios surgiram para a difusão da comunicação propiciando a hibridização das linguagens.Apesar das inúmeras misturas e formas de linguagem (literatura, música, teatro, desenho, escultura, arquitetura etc.) que existem, Santaella postula que há apenas três matrizes de linguagem e pensamento a partir das quais se originam todos os tipos de linguagens e processos sígnicos que os seres humanos, ao longo de toda sua história, foram capazes de produzir.Ela relaciona-as de forma indissociável com o pensamento, pois os signos estão intrinsecamente ligados a ele, sendo imprescindíveis para que este ocorra. As três matrizes são, a matriz sonora, a visual e a verbal. A primeira decorre do sentido da audição, a segunda da visão e a terceira da capacidade de verbalização própria do ser humano. Vale ressaltar que a matriz sonora não quer necessariamente significar que a linguagem tem de estar manifesta com o som, assim como a matriz visual não deve estar associada só à imagem e podemos dizer o mesmo para a matriz verbal, que não necessariamente significa uma linguagem desponta em palavras. Ela ainda propõe uma espécie de categorização dos hibridismos, que ocorre através dos cruzamentos das matrizes, dividindo as linguagens híbridas em verbal-visual, verbal- sonoro, visual-sonoro, visual-verbal, sonoro-verbal, sonoro-visual e sonoro-verbal- visual.Essa disposição parte de um grau mais simples de interconexão para chegar depois à hibridização completa onde está inserido o cinema. Esse hibridismo, contudo, também está presente em todas as outras linguagens, pois não há linguagens absolutamente “puras”, para a autora todas as linguagens, uma vez corporificadas, são híbridas.

(...) cada linguagem existente nasce do cruzamento de algumas

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submodalidades de uma mesma matriz ou do cruzamento entre submodalidades de duas ou três matrizes. Quanto mais o cruzamento se processarem dentro de uma mesma língua, mais híbrida ela será (SANTAELLA, 2009, p.379).

Tomado esses conhecimentos, perguntamos em qual matriz se encaixa a linguagem do filme de Koch Grünberg, nosso objeto de estudo?

A linguagem do cinema primitivo A forma de comunicação que combina imagem e som é conhecida como audiovisual. Pode-se dizer que sua origem se deu por duas criações do século XIX, o fonógrafo criado por Thomas Edison, que já experimentava, mesmo sem êxito, a integração entre imagens e sons, e o cinematógrafo criado pelos irmãos Lumière que proporcionava o movimento da imagem, onde inúmeras fotografias eram postas em sequência e movimentadas a certa velocidade que permitia a ilusão ótica das mesmas. A origem do termo audiovisual surgiu quando, pela primeira vez, a imagem e o som concentraram para um mesmo meio. Os primeiros filmes produzidos não possuíam som sincronizado com a imagem, o único som emitido era o ruído do projetor. Alguns proprietários das primeiras salas de cinema recrutavam músicos para encobrir esse ruído. Portanto, nesse período do cinema mudo, as exibições eram frequentemente acompanhadas por música, com instrumentos disponíveis no local, e muitas vezes sem relação alguma com o que estava sendo apresentado. Porém algumas salas de projeção passaram a se preocupar com certa adequação da música tocada aos conteúdos dos filmes, nesse momento passa a serem selecionadas peças musicais específicas para os mesmos, tendo assim uma seleção menos aleatória de repertório. Apesar dessa positiva tentativa de buscar uma relação construtiva entre imagem e som, as personagens e suas ações ainda prosseguiam mudas. A sincronia entre o imagético e o sonoro foi sendo idealizada através de invenções e a partir de 1926, a Warner Bros e uma empresa chamada Vitagraph desenvolvem o sistema Vitaphone, equipamento que utilizava o som gravado em um toca-discos sincronizado com o cinematógrafo. Essa fase do cinema não falado (mudo) possuía características simples e estava misturado a outras formas culturais na época em que apareceu então inicialmente o cinema

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não possuía uma linguagem própria. Os filmes eram exibidos como curiosidade, nas feiras e em intervalos de apresentações ao vivo em circos, nas casas de espetáculos de variedades, nos quais se podia beber, comer e dançar, sendo assim uma atração entre outras tantas oferecidas, mas nunca exclusiva.

Nesse período, por estar misturado a outras formas de cultura, como o teatro, a lanterna mágica, o vaudevile e as atrações de feira, o cinema se encontraria num estágio preliminar de linguagem. Os filmes teriam aos poucos superado suas limitações iniciais e se transformado em arte ao encontrar os princípios específicos de sua linguagem, ligados ao manejo da montagem como elemento fundamental da narrativa. (COSTA, 2006).

Esse cinema de atração era considerado primitivo por haver característica experimental de descobertas , era visto como apenas um conjunto de desajeitadas tentativas e por ser carente de recursos, seus filmes eram composto por uma única tomada e poucos eram integrados a uma cadeia narrativa.

Noel Burch, um dos pesquisadores presentes em Brighton, descreveu o que considerava serem traços de um “modo de representação primitivo” nesses filmes: composição frontal e não centralizada dos planos, posicionamento da câmera distante da situação filmada, falta de linearidade e personagens pouco desenvolvidos. Os planos abertos e cheios de detalhes, povoados por muitas pessoas e várias ações simultâneas, são a marca desse tipo de representação, em que a alteridade em relação ao cinema que conhecemos é a característica mais forte. (BURCH apud COSTA, 2006, p. 23-24).

Nos inícios práticos do cinema a estética será dividida em duas vertentes, o cinema enquanto reprodução verossímil do real com os Lumière, originando o realismo documentário, e o cinema ilusionista e fantasioso de Georges Méliès, realizado em estúdios representaria a vertente ficcional do cinema.

(...) quando os irmãos Lumière fizeram aqueles primeiros filmes curtos, os seus temas provieram, como era natural, do meio físico imediato. O comboio, o bebé e o jardineiro com a sua mangueira. Mas como uma rapidez quase obscena a nova invenção encontrou também guarida em Georges Méliès, um mágico que viu no cinema a nova fonte de ilusão. Para ele, monstros, planetas e viagens no espaço (TUDOR, p. 21-23).

O predomínio de filmes de caráter documental, geralmente com plano único,

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ocorreu nos períodos 1894 a 1903, já a segunda fase, de 1903 até 1907, os de ficção começam a ter diversos planos.

Esse período das atrações tem duas fases. A primeira vai de 1894 até 1903 e é caracterizada pelo predomínio de filmes de caráter documental, as atualidades. A maioria dos filmes é de plano único. Inicialmente, filmes e projetores são fabricados pela mesma empresa, mas na virada do século aparecem os exibidores, que compram os equipamentos e filmes dos produtores para explorar economicamente a exibição de filmes. Na segunda fase, de 1903 até 1907, os filmes de ficção começaram a ter múltiplos planos e superar em números as atualidades. São criadas narrativas simples e há muita experimentação na estruturação de relações causais e temporais entre planos (COSTA, 2006).

É a partir desse período de 1907 a 1913 que o cinema se organiza de forma industrial, com a formação de grandes companhias produtoras e distribuidoras, transformando-se na primeira mídia de massa da história.

A etnografia e o cinema A etnografia é um método utilizado pela Antropologia, ciência que trata o Homem e a Humanidade, composto de técnicas e procedimentos para coleta de dados de um grupo social a ser estudado. Está associada a uma prática do trabalho de campo em que o pesquisador participa ativamente no ambiente da pesquisa com a finalidade de entender o modo de vida dos sujeitos que vivem e se relacionam nesse espaço.

O filme etnográfico ou o cinema etnográfico entendido no sentido mais amplo abarca uma grande variedade de utilização da imagem animada aplicada ao estudo do Homem na sua dimensão social e cultural. Inclui frequentemente desde documentos improvisados (esboços, ensaios fílmicos) até produtos de investigação acabados e de construção muito elaborada. Os métodos do cinema etnográfico são muito variados e associados a tradições teóricas diferenciadas como meios e procedimentos utilizados. Assentam no entanto em alguns princípios fundamentais: uma longa inserção no terreno ou meio estudado frequentemente participante ou participada, uma atitude não directiva fundada na confiança recíproca valorizando as falas das pessoas envolvidas na pesquisa, uma preocupação descritiva baseada na observação e escuta aprofundadas independentemente da explicação das funções, estruturas, valores e significados do que descrevem, utilização privilegiada da música e sonoridades locais na composição da banda sonora (RIBEIRO, 2007).

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O filme etnográfico surge em meados do século XIX, período marcado pela busca da compreensão e assimilação do mundo pelos europeus,possuindo o mesmo percurso da história do cinema, pois estabelecer qual foi o primeiro filme desse gênero é sempre arbitrário. Alguns estudiosos consideram como fundador do filme etnográfico o pesquisador Félix-Louis Regnault, médico especializado em anatomia patológica, que filmou com um cronofotógrafo uma mulher africana fabricando um pote de barro na exposição etnográfica da África Ocidental. Já o produtor francês de documentários etnográficos Jean Rouch, aponta o soviético DzigaVertov e o americano Robert Flaherty como os verdadeiros precursores do filme antropológico e do cinema documentário (COELHO, 2012). Flaherty em 1922 realizou o documentário sobre o quotidiano de um esquimó, Nanookof de North. Por apresentar uma abordagem diferente em relação à linguagem e ao método cinematográfico, este filme foi inovador para época. Para a prática desse trabalho, ele teve uma longa experiência no local. Instalou-se na baía de Hudson durante 15 meses e improvisou um laboratório para tratamento do filme, criando um processo de cooperação entre o protagonista.

Durante as filmagens, Flaherty inaugura um procedimento que mais tarde será resgatado por Jean Rouch como um dos pilares da chamada “antropologia partilhada”. Todas as noites, após as filmagens, Flaherty revelava os negativos num laboratório improvisado e os projetava para os protagonistas do filme, que assistiam e opinavam sobre as cenas, participando da construção do filme (COELHO, 2012).

Vertov, importante integrante da escola russa de cinema, vai começar sua carreira nessa área em 1922, quando propõe editar cinejornais, chamando-os de Cinema-Verdade. Formou uma prática cinematográfica nomeada como cinema observação e uma teoria da montagem denominada como teoria dos intervalos que contrapunha qualquer forma de ficção. Desenvolveu obras experimentais com o propósito de exercitar a montagem cinematográfica como linguagem que evolutiva para a narrativa. O seu filme The Man With a Movie Camera (1929), documentário etnográfico do quotidiano de uma cidade, constitui como exemplo de suas ideias sobre cinema e do processo de montagem. A etnografia assumiu diversas formas e significados, variando segundo suas

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relações com o contexto histórico e cultural e apesar das controvérsias e das diferentes produções cinematográficas, os filmes etnográficos buscavam entender a sociedade na totalidade das relações sociais e dos elementos que a constituem, tendo em comum à observação do real.Assim, a etnografia passa ser um método de interpretação das culturas.

Koch-Grunberg na Amazônia Theodor Koch-Grünberg foi um etnólogo alemão que nasceu no dia 9 de abril de 1872 na pequena cidade de Grünberg, região de Hesse. Foi também um experiente fotógrafo e um dos pioneiros da cinematografia etnográfica. Em 1899, aos 27 anos, acompanhou a segunda viagem de Hermann Meyer ao Xingu. De volta à Alemanha, ele abandonou o trabalho como professor e passou a trabalhar como voluntário no Museu Etnográfico de Berlim. Enquanto funcionário do museu berlinense planejou e realizou sua primeira expedição ao norte da Amazônia. A segunda exposição foi realizada dois anos depois ao longo da qual percorreu os cursos dos principais afluentes do rio Negro e do Japurá, colecionando uma infinidade de dados etnográficos, geográficos e linguísticos.

Durante dois anos ele percorreu o alto rio Negro, com o objetivo de coletar peças etnográficas, pesquisar os vocabulários de diversas etnias e, principalmente, explorar uma região até então desconhecida. O principal resultado dessa expedição foi a publicação de diversos artigos em revistas científicas e das obras “Começos da arte na selva” (1905); “Petroglifos sul-americanos” (1907), “Dois anos entre os indígenas: viagens ao noroeste do Brasil (1903-1905)” (1909,1921). (VALENTIN, 2008).

Sua terceira visita ao Brasil, de 1911 a 1913, patrocinada pelo Instituto Baessler de Berlim, foi na região entre as bacias do Rio Branco, no atual estado de Roraima. Nessa expedição ele elaborou o primeiro filme gravado sobre índios brasileiros, na aldeia Taurepang Koimélemong (Rio Surumu). Titulado Aus dem Leben der Taulipang in Guayana (Da vida dos Taurepang na Guiana), o filme possui oito minutos e dezoito segundos e narra algumas atividades executadas pela tribo como o preparo de milho e da mandioca, a tecelagem de algodão, brincadeiras e o ritual Parisherá.

Além das descrições lançadas nos 14 cadernos de diários, da coleta de objetos etnográficos, ele produziu novamente um grande número de fotografias, alguns preciosos minutos de filmes cinematográficos e

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gravou ainda fonogramas com vocabulários e cantos. Dessa viagem, foi publicada “Do Roraima ao Orinoco” em cinco volumes no período de 1916 a 1928. (VALENTIN, 2008).

Em 1915 ele é chamado para administrar o Museu Linden, em Stuttgart, porém no início dos anos 1920 o Museu é obrigado a fechar as portas por falta de recursos. Nesse momento que Koch Grünberg decide aceitar o convite de Hamilton Rice, médico, geógrafo e explorador, para participar de uma exposição às fontes do rio Orinoco, durante qual falece em decorrência de uma febre viral.

A linguagem cinematográfica Aus dem Leben der Taulipang in Guayana O objeto de estudo do presente trabalho é o filme etnográfico elaborado pelo alemão Koch- Grünberg. Produzido em sua terceira expedição no período em que o cinema estava em transição, quando os filmes começam a utilizar convenções narrativas especificamente cinematográficas, na tentativa de construir enredos autoexplicativos. O cinema se tornou linguagem graças a uma escrita própria que se encarnou em cada realizador sob a forma de um estilo, tornando se assim, num meio de comunicação, de informação.

Mas o que distingue o cinema de todos os outros meios de expressão culturais é o poder excepcional que lhe advém do facto de a sua linguagem funcionar a partir da reprodução fotográfica da realidade. Com efeito, com ele, são os próprios seres e as próprias coisas que aparecem e falam, dirigem-se aos sentidos e falam à imaginação: a uma primeira abordagem parece que qualquer representação (o significante) coincide de forma exacta e unívoca com a informação conceptual que veicula (o significado) (MARTIN, 2005).

Dessa forma a representação acaba por ser mediatizada, pois sendo uma linguagem que age com as imagens dos objetos e não com o objeto em si, as representações do mundo tornam-se elementos de um discurso. É nesse período que surge os planos de uma câmera, que pode ser definido como um recorte de uma imagem. Seu tamanho é determinado pela distância entre a câmera, o objeto e pela duração focal da cena utilizada. Tendo como finalidade a clareza da narrativa, o plano será a escolha de uma determinada imagem, dentro de um determinado tempo. É uma tomada de vista não interrompida, ou seja, é uma ação filmada em contínuo dentro de 319

um determinado quadro.Criada ainda quando o cinema era mudo, a linguagem de planos e movimentos tem o importante papel de desenvolver uma narrativa visual compreensível a todos.Por isso podemos dizer que nos filmes mudos, o significante é a imagem e não a construção fonética. A imagem fotográfica será o determinante do sentido. É possível, apesar das limitações tecnológicas, encontrar no filme de Koch Grünberg a utilização dos planos. O filme de Koch é uma sucessão de sete quadros, entrecortados por letreiros que apresentam o título do quadro seguinte, o eixo de filmagem é frontal e perpendicular ao cenário, correspondendo ao ponto de vista do espectador. A partir daí e, conforme a teoria de Santaella, podemos classificar o filme como uma linguagem visual-verbal, pois antes de cada fotograma, há uma descrição em alemão sobre o próximo fotograma. Porém ao seguirmos a definição de Lúcia Santaella, logo somos levados à reflexão quando ela aborda sobre o som implícito e imagético do filme. Por se tratar de imagens em movimento, mesmo quando não acompanhado de trilha sonora ou de qualquer tipo de som, o cinema, conforme a autora, já traz a lógica da sonoridade dentro de si, na sintaxe das durações de seus planos, nos seus cortes, nos ritmos que impõe às sequências. Então, mesmo quando mudo, o cinema já traz implícitas as características do sonoro. Por isso o cinema, está colocado na hibridização que Santaella chama de verbo-visuais-sonoras. Podemos verificar isso, ao analisarmos o fotograma dança de Parixara, a linguagem deixa de ser apenas visual-verbal e passa a ser verbo-visual-sonora.

Quando tem caráter narrativo, mesmo sem fala, a dança também se caracteriza como uma linguagem verbo-visual-sonora. É duplamente sonora, quando está acompanhada por som, o que é muito mais comum. Continua sonora, entretanto, mesmo sem som. (SANTAELLA, p.386)

A narrativa cinematográfica vai lidar com a composição entre o movimento da ação, com a seleção e registro desta dentro dos planos, produzindo uma forma, um movimento interno nesses enquadramentos, que quando prontos trazem consigo um ritmo determinado pelo andamento da ação, pontuados pelas mudanças de ponto de vista de um plano a outro.

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Por se tratar de imagens em movimento, mesmo quando não acompanhado de trilha sonora ou de qualquer tipo de som, o cinema já traz a lógica da sonoridade dentro de si, na sintaxe das durações de seus planos, nos seus cortes, nos ritmos que impõe às sequências. Se for narrativo, o que, na imensa maioria das vezes, ele é, mesmo quando mudo, o cinema já traz também implícitas as características do verbal. (SANTAELLA, p.386)

Grande plano geral (GPG) Plano abrangente, tendo como função situar o espectador a referência geográfica, ou seja, em que lugar a cena se desenvolve.

Imagem 01-Grande plano geral

Plano geral (PG) Geralmente é utilizado no início de uma sequência com a finalidade de passar referência do ambiente em que ocorre o ato.

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Imagem 2- Plano Geral

Plano geral aberto (PGA) Esse plano é utilizado para mostrar cenas localizadas em exteriores ou interiores amplos, mostrando de uma só vez o ambiente de ação.

Imagem 3-Plano geral aberto

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Plano geral fechado (PGF) Utilizado para mostrar a ação do ator em relação ao espaço cênico.

Imagem 4- Plano geral fechado

Plano inteiro (PI) A personagem é enquadrada da cabeça aos pés, deixando um pequeno espaço acima da cabeça e abaixo dos pés.

Imagem 5- Plano inteiro

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Plano de conjunto aberto Enquadra dois ou mais atores, que também possuem o mesmo papel dramático.

Imagem 6- Plano de conjunto aberto

Considerações Finais A partir do que foi investigado até aqui, pode-se considerar que no filme de Koch Grünberg, há indícios que justificam sua classificação como uma peça audiovisual que a um só tempo articula a linguagem verbal, visual e, apesar do caráter mudo da obra, a linguagem sonora.Em seu trabalho, o pesquisador busca superar as limitações da câmera fixa para adequar sua produção ao que se vinha fazendo no cinema em termos de linguagem e usa os quadros com textos para garantir certa coerência narrativa. Além disso, podemos reconhecer o trabalho do pesquisador como uma elaboração antropológica, e sua importância enquanto documento histórico que desponta nuanças simbólicas da comunidade representada. O filme se presta, assim, a ser um excelente instrumento heurístico, por meio do qual há possibilidades de conhecer a sociedade e sua cultura.

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VALETIN, Andreas. George Huebner e Theodor Koch-Grünberg: Diálogos na Amazônia, 1905-1924. Porto Seguro, Bahia, Brasil, 2008. 26p.

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(I)margem da história: A ideia de Amazônia nos signos euclidianos156

Emily Monteiro COSTA 157 Maurício ZOUEIN158

Resumo: Propomo-nos, neste trabalho, a realizar o cotejo entre a entrevista de Euclides da Cunha ao Jornal do Commercio, de 1906, e os argumentos que estão contidos logo nas primeiras páginas da obra "À margem da historia” de 1909. “Aqui, se quiser; agora se lhe convier”, disse Euclides da Cunha ao repórter desejoso de entrevistar o autor do já célebre “Os sertões”. O inquiridor teve apenas sete intervenções, pois o articulado homem das letras contou, precisamente, o que viveu na selva durante parte do Ciclo da Borracha (1850-1913) que reuniu europeus, nordestinos e índios em uma mesma missão de explorar o ouro branco das seringueiras no Amazonas, Pará e Acre. Ao realizar esse cotejo, percebemos a dinâmica e a forma incisiva dos signos euclidianos na ideia de Amazônia frente ao imaginário social no Brasil do inicio do Séc. XX. Inseridos na cultura visual, os leitores se veem entre a interpretação e a representação das palavras no afã da construção da imagem da Amazônia.

Palavras-chaves: Amazônia, Euclides da Cunha, Jornalismo, Literatura, Semiótica.

Euclides da Cunha na Amazônia Euclides da Cunha, escritor, engenheiro e jornalista, produziu, dentre outras, duas grandes obras literárias, “Os Sertões” e “À marjem da historia”. Livros que tratam de assuntos diversos, mas que possuem semelhança nos copiosos valores refletidos pelo fato de que, mesmo decorrido um século após as publicações, ambos reverberam como documentos de salvaguarda da história nacional, e, concomitantemente, disseminadores de conhecimentos científicos. A obra “Os Sertões”, publicada no alvorecer do século XX, foi fruto do trabalho profissional de Euclides. Pois foi a serviço do jornal “O Estado de São Paulo” que foi

156 Trabalho apresentado ao GT Audiovisual coordenador pelo Professor MSc. Maurício Elias Zouein do 3º Encontro Regional Norte da História da Imprensa. 157 Acadêmica do 4° Semestre do curso de Comunicação Social com habilitação em jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Aluna pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Semiótica na Amazônia (NUPS/UFRR). E-mail: [email protected] 158 Orientador do trabalho. Professor efetivo do Curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Coordenador no Núcleo de Pesquisa Semiótica da Amazônia (NUPS/UFRR). Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagem, Cultura e Tecnologia (LCT/NUPS/UFRR). E- mail: [email protected]

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enviado como correspondente para a Bahia. Lá, Euclides deveria cobrir os eventos desencadeados durante a Revolta de Canudos, um movimento de teor social organizado por Antônio Conselheiro. Quando retorna ao Rio de Janeiro, Euclides compila os textos que escreveu e reúne- os de maneira segmentada e com subtítulos de acordo com o assunto do qual se tratava. O resultado foi um compêndio fragmentado em três partes que descrevem desde o cenário físico do sertão, aos jagunços e às expedições que o governo liderou na busca pela tomada do poder das mãos dos revoltosos. Alguns anos após sua incursão pela Bahia durante a guerra de Canudos, Euclides da Cunha, ao contrário de muitos escritores da época, que produziam obras sobre o Brasil e em seguida se lançavam a viagens pelas cidades europeias, mostrava-se desejoso por conhecer seu próprio país, aventurar-se por terras desconhecidas e conhecer as mais diferentes culturas nacionais. Foi então que a misteriosa selva amazônica, tão explorada e definida nos escritos de Humboldt (1769- 1859) Emilio Goeldi (1859-1917), Alfred Russel Wallace (1823-1913), Henry Bates (1825-1892), John Mawe (1764-1829), e tantos outros que se aventuraram a conhecer e discorrer sobre a paradisíaca região, despertou-lhe o interesse. Pouco depois, Euclides, devido às amizades e contatos profissionais, conquista o posto de chefe da equipe brasileira da “Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus”159sendo nomeado pelo ministro das relações exteriores, José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912),o prestigiado Barão do Rio Branco. O objetivo da missão, a serviço do Itamaraty, era o de reconhecer o território alto Purus, isto porque tal área começava a ser requerida pelo Peru. De imediato, o governo brasileiro, que há pouco tempo havia assinado o Tratado de Petrópolis, achou por bem proteger-se de outro conflito territorial que devastaria ainda mais a economia do país. É em dezembro de 1904 que a excursão científica, a serviço do Itamaraty, inicia-se. Curioso, enfastiado, impressionado, assim Euclides se autodescreve durante todos os doze meses de viagem: “A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser

159 A Comissão mista brasileiro-peruana foi uma equipe encarregada de reconhecer o território do Alto Purus, que devido à localização fronteiriça, começava a ser disputado por Brasil e Peru. 327

esperado nem querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão” (CUNHA, 2006, p. 17) Intrépido desbravador, penetra numa Amazônia onde o homem, apesar das incansáveis tentativas de dominação da natureza pura e selvagem, é infimamente pequeno e frágil. Euclides, talvez pelo ofício de jornalista, vê com absoluta clareza a parcela minúscula que o homem representa em meio ao inferno verde, apresenta um retrato da Amazônia distanciado de conceitos fantasiosos e justamente por isso, um documento que flerta do começo ao fim com o cientificismo:

As páginas escritas por Euclides da Cunha sobre o homem e a sociedade na Amazônia não encontram paralelo na literatura brasileira. No tom reivindicante. Na revolta do espírito. No calor da acusação. Na fidelidade do retrato. Na agudeza da interpretação. Na originalidade e na força do estilo...(TOCANTIS, apud BRAGA, 2002, p. 74).

O escritor acaba por testemunhar com os próprios olhos o avanço do progresso,e suas conseqüentes mazelas, presencia o sofrimento contínuo dos migrantes nordestinos, os soldados da borracha, além de vivenciar as tentativas sucessivas de civilização do índio da Amazônia brasileira.

À marjem da Historia Alguns anos após o retorno da selva, Euclides publica no livro “À marjem da historia”, as amadurecidas ponderações desenvolvidas sob a ótica peculiar e crítica de um observador letrado, conhecedor e divulgador de ciência. Dividido em quatro grandes partes, a obra “À marjem da história” tem, assim como “Os sertões” agrupamentos por temas. No primeiro trecho, denominado, “Terra sem história”, Euclides disserta desde as primeiras impressões que teve no contato com a selva a minuciosos aspectos frutos de suas detalhadas análises. Interessante é verificar que grande parte do dito por Euclides nas primeiras páginas está contido em muitas de suas cartas. Uma demonstração de que sua escrita era trabalhada ao longo do tempo, numa busca constante pelo aperfeiçoamento.

Na Amazônia, Euclides da Cunha encontra um outro Brasil que ele fixa em palavras e imagens, como se fosse um escultor, um pintor, a quem

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não faltasse o generoso solidarismo social. Um novo Brasil em que a mestiçagem étnica afirma a presença do homem e sua verteria sobre o meio (...) Ele não vê o mestiço amazônico como descrevera o nordestino dos Sertões baiano, com incapacidade biológica fatal. Ao contrário, proclama as virtudes físicas e morais daqueles “caboclos rijos do Purus, que não são efeitos do meio, surgem a despeito do meio (TOCANTINS apud BRAGA, 2002, p. 75)

É nesse primeiro segmento que o autor inclui um dos mais aclamados textos do livro. O conto “Judas-Asvero" no qual se narra a história da malhação de Judas, realizada em meio aos barracões dos seringais. É nesse texto que, em pleno uso da linguagem literária, Euclides disserta sobre o homem renegado às paragens mais distantes e isoladas, o escravo de si mesmo que se auto flagela “da ambição maldita que o levou à terra; e desafronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia, recalcando-o cada vez mais no plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo à gleba empatanada dos traficantes, que o iludiram (CUNHA, 2006, p. 70) Na segunda parte da obra, intitulada “Vários estudos”, tal como o próprio nome já explicita, o autor conta sobre diversos aspectos físicos da Amazônia do princípio do século passado. No terceiro capitulo, Euclides disserta sobre o tema “Da independência à República” e relata fatos ligados à Amazônia, a terra sem história que era alvo de constantes investidas civilizatórias. Na quarta e última fração do livro, chega o trecho talvez mais complexo de toda a obra. Intitulado “Estrelas indecifráveis”. O segmento é dedicado a uma extensa redação sobre a o astro que guiou os três reis magos junto a Jesus. Para o pesquisador Luiz Fernando Valente, o texto contido no capítulo é um retrato da escrita que unia ciência à literatura (VALENTE, 2009). O meio e o homem são contemplados detalhadamente, mas a temática “O conflito” jamais chegou a ser escrita. Isso porque Euclides foi assassinado em 15 de agosto de 1909 pelo militar Dilermando de Assis (GALVÃO, 2010). Um mês após a morte de Euclides, o livro que estava sendo editado em Portugal pela editora do Porto foi publicado (GALOTTI, 2006). Mas a ideia de Euclides era produzir um livro que, tal qual o célebre “Os sertões”, vingasse a realidade dos seringueiros.

Pretendia sintetizar suas impressões da Amazônia em Um paraíso perdido, título que evocaria o poeta inglês John Milton, de Paradise lost.

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Seria, em suas palavras, o seu "segundo livro vingador" (idem, ibidem, p. 306). Queria integrar, como em Os sertões, uma ampla interpretação histórico-cultural ao clamor por justiça social e pela modernização do país. Sua morte repentina em 1909, em tiroteio com o amante de sua mulher, Ana, interrompeu a redação do livro. (Ventura, 1998).

O desejo de Euclides não se tornou realidade. Ao invés disso, o que temos é uma obra que, apesar de não ter obtido o prestígio de seu livro mais famoso, constitui-se um marco na literatura produzida sobre a Amazônia. Um retrato que mistura definições complexas, extenuantes e profundas a apontamentos pessoais, incompletos e etnocêntricos. Djalma Batista, escritor, médico, membro da academia amazonense de letras e figura constante na memória do povo nortista, definiu o livro euclidiano como uma espécie de ápice dentre centenas de obras até então escritas sobre a Amazônia: “Os reveladores da Amazônia – seus intérpretes contam-se por dezenas. Dentre todos, sobressai pelo seu porte majestático um nome que ocupa a primeira plana nas letras nacionais: Euclides da Cunha” (BATISTA, 1938 apud BRAGA, 2002, p. 70). A representação da obra de Euclides por Djama não é unitária dentre a de outros críticos sobre a produção de Euclides na Amazônia. Muito ao contrário disto, ela enfileira- se ao lado de muitas outras.

A Amazônia era sempre representada com a mais falsa e ridícula expressão, numa caricatura grotesca que, sobre ser imperfeita, não mostrava os traços reveladores da sua inconfundível fisionomia geográfica. Veio, por fim, o inimitável autor de À margem da História e, procurando fugir ao engano das aparências, deu-nos da grande terra, idéia tão concisa, que nos produziu o efeito de uma perturbadora revelação. Pareceu-nos estar ilustrando uma região que desconhecíamos completamente. (LADISLAU apud BRAGA, 2002, p. 70).

Explicitada a importância da obra literária, faz se necessário recorrer à entrevista que Euclides da Cunha concedeu ao Jornal do Commercio em 1906. É mister ressaltar que grande parte do que o escritor dissertou sobre a Amazônia ficou ofuscado pelo brilho de outras obras, entretanto, “Os ensaios amazônicos são a face menos conhecida de sua obra. Encontram-se dispersos em artigos e entrevistas de jornal, em crônicas e prefácios, em sua correspondência” (VENTURA, 1998, p. 133).

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A entrevista concedida ao Jornal do Commercio Inaugurado em 1º de outubro de 1827, o Jornal do Commercio é o mais antigo jornal em circulação de toda a América latina (JORNAL DO COMMERCIO: quase dois séculos de história, 2014). À época da primeira edição, o jornal era dirigido por Pierre Plancher. A proposta do jornal sempre foi auxiliar e manter bem informada a população em geral e ajudar em especial os ditos executivos e homens de negócios em seus momentos de tomada de decisões.

O Jornal do Commercio surgiu tendo como foco a economia, com base nas publicações Preços Correntes, Notícias Marítimas e Movimento de Importação e Exportação editadas por Plancher desde sua chegada ao Rio. Em pouco tempo, transformou-se em folha política e comercial, em um momento em que a situação do País, que vivia então os primeiros anos após a Independência, era inquietante. Pedro I, pressionado pelos portugueses, ia fazendo concessões que poderiam prejudicar os brasileiros e o Jornal do Commercio, assim, entrou em campo para defender os interesses nacionais, uma característica que preservou ao longo de sua história. (JORNAL DO COMMERCIO: quase dois séculos de história, 2014).

A edição do dia 14 de janeiro de 1906, poucos dias pouco depois de Euclides ter encerrado a missão de reconhecimento do alto Purus e voltado ao Rio de Janeiro, tinha logo na página dois estampado “Na Amazônia” (fig.01). O jornal anunciava a conversa que um repórter, que em nenhum momento da entrevista tem o nome citado, teria tido com o recém- chegado das terras distantes. A longa entrevista é precedida pela história que culminou na conversa entre repórter e entrevistado. Conforme o jornal, Euclides foi interpelado pelo jornalista que solicitou uma audiência com o viajante. Euclides aceitou de imediato e foi a um lugar mais calmo juntamente com o repórter. A primeira pergunta da entrevista foi "Qual sua impressão geral do Amazonas?". Para a qual Euclides responde "Não creia numa impressão geral acerca do Amazonas. Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia geralmente, no desembocar do Dédalo florido do Tapajaru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento" (CUNHA, Euclides. Na Amazônia, Rio de Janeiro, p. 2, 14 jan. 1906). Ora, não é o mesmo começo da obra "À margem da história?". No livro, o texto se inicia com "Ao revés da admiração ou do entusiasmo, o que nos sobressalteia geralmente,

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diante do Amazonas, no desembocar do dédalo florido do Tajapuru, aberto em cheio para o grande rio, é antes um desapontamento" (CUNHA, 2002, p. 17). O trecho é o primeiro de muitos idênticos. As semelhanças não se restringem a igualdades nas palavras, pontos, vírgulas, parágrafos, que são todos idênticos. Parece que da entrevista para o livro, houve pequenas alterações nas partes em que Euclides responde a perguntas, tal como no trecho acima no qual houve uma alteração mínima na ordem da afirmação do escritor. Não convém reproduzir ambos os textos neste trabalho, mas é possível afirmar que em média, 70% da entrevista está contida no livro e isso logo nas primeiras páginas. As principais diferenças entre os textos estão na última parte da entrevista. Nesse trecho bastante polêmico para a época, Euclides conta sobre a possibilidade de um conflito armado entre seringueiros, seringalistas e peruanos invasores. No livro, não há menção a essa parte. Logo, não seria esse o conflito reservado para o fim do livro que Euclides jamais chegou a escrever? Em 21 de janeiro 1906, Olavo Bilac comentando sobre um artigo de Euclides, fala da falta de reverberações que um magnífico artigo teve. Ele complementa:

Há nesse artigo – que é um grito de alarma, e um aviso generoso dado aos poderes públicos por uma alma reta e digna,- revelações que horrorizam. Os homens, que se engajam para trabalhar nos seringais, são escravos, verdadeiros escravos, tão dignos de compaixão como os que outrora eram comprados e vendidos para trabalhar nas fazendas[...] (BILAC apud GARCIA, 20013, p. 14)

O grito ao qual Bilac se refere diz respeito aos alertas que Euclides dá quando conta a situação dos nordestinos, os homens que trabalham para escravizar-se, que já chegam endividados à selva, que mal ganham o suficiente para se manterem de pé e buscar por borracha.

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Figura 01. Edição do dia 14 de janeiro do Jornal do Commercio com a entrevista de Euclides reproduzida na íntegra. Fonte: Jornal do Commercio.

Toda a entrevista publicada no Jornal do Commercio foi reproduzida na íntegra pelo jornal amazonense “Correio do Norte” entre os dias 4, 5, 6, 7, 8 e 9 de maio. Nem um

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trecho foi cortado, e decerto a entrevista deve ter causado bastante desconforto entre os seringalistas pois Euclides encerra-a dizendo:

Pois bem, o máximo das pretensões peruanas – e o meu parecer todo individual – será traduzido geometricamente pela linha que interferir o Purus na latitude média de ambos, 9°, 20’. É o máximo, insisto. Conversei longamente com os nossos rudes patrícios daqueles rincões; e sei que se insurgirão até mesmo contra nós – se aquiecermos num outro parecer mais desfavorável que o deste juízo elementar, de Salomão. [...] Imaginai aqueles 20000 “rifleiros”desencadeados em franca rebeldia - intangíveis no embaralhado dos igarapés e na penumbra das matas... Talvez, por sua vez, a exemplo dos “Boers”, eles possam espantar o mundo”. (CUNHA, 1906, p. 2)

Colocada a força que as palavras ditas ao jornal possuem, é de se espantar que não tenha havido nem uma espécie de censura ao contado pelo escritor. Outro fator no mínimo curioso relativo à entrevista está na participação do repórter sem nome. Nas sete vezes em que este desconhecido jornalista intervém, pouco, ou quase nada, interfere no curso da conversa. Em dado momento chega a questionar se Euclides escreveria um livro com a tese que desenvolveu durante a viagem. A essa pergunta, o escritor diz “Que farei, se m’o permitir a engenharia errante e torturada”. Em tréplica o repórter aduz com “Mas que lhe permitiu executar o recente encargo que lhe deram”. O diálogo em muito lembra os dilemas pessoais que Euclides vivia. Engenheiro, jornalista, escritor, diplomata, Euclides viva em conflito quanto às ocupações preferidas e às quais era obrigado a exercer. Em diversas cartas escritas ao longo da vida, ele menciona como sua engenharia errante o apartava da vida que sonhava levar. “Acho-me empregado como engenheiro ajudante nas obras públicas daqui (São Paulo); não tenho entretanto desejo de ser por muito tempo empregado público; aproveitarei a primeira oportunidade que tiver para exercer a minha profissão” (CUNHA apud COSTA, 2013). E continua “Continuo abraçado à minha engenharia e nas horas vagas – como a vida é difícil e é preciso repartir a atividade, escrevo no Estado que não quer aceitar a minha colaboração gratuitamente (CUNHA apud COSTA, 2013). Grande conhecedor dos dilemas de Euclides, o repórter o questiona com intervenções mínimas. Não extrai nenhuma informação que já não houvesse sido pensada ou descrita em cartas. Além disso, vale ressaltar que na época não havia gravadores para

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facilitar o ofício de entrevistador. Portanto, teria o repórter anotado tudo com tanta perfeição que o próprio Euclides optou por reproduzir tamanha parte do texto no seu livro?

Euclides e o Jornal do Commercio Na época da publicação do texto, o diretor do jornal era José Carlos Rodrigues. Curioso é lembrar que Euclides da Cunha e José Carlos Rodrigues, muito além de colaboradores, eram amigos. A amizade nasceu em 1888 quando o ainda jovem militar fazia o curso de Estado-maior e Engenharia Militar da Escola Militar. Euclides, à época republicano ferrenho, cometeu um ato de indisciplina contra um superior monarquista. Quando, em 1909, Euclides faleceu, o cortejo fúnebre passou por alguns lugares do Rio de janeiro, dentre esses, a sede do jornal do commercio.

O cortejo seguiu até a porta do Jornal do Commercio, antes de demandar do Aeroporto Santos Dumont, para homenagear o jornal que defendera o ato de rebeldia em 1888 e do qual se tornara colaborador, a convite de José Carlos Rodrigues. (VENÂNCIO, 2001)

Durante toda a vida, Euclides colaborou regularmente com o jornal. Após a visita ao arraial de Canudos e algum tempo antes da publicação de “Os sertões”, o escritor publicou diversos textos sobre a experiência adquirida como correspondente. Já após a viagem à Amazônia, a entrevista foi uma das principais colaborações do ano de 1906, mas em 1907 Euclides publicou diversos trechos de livros nas páginas do jornal do commercio.

Retomou, em 1907, os assuntos latino-americanos com uma série de artigos no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, reunidos no livro Peru versus Bolívia, que logo foi traduzido para a língua espanhola. Criticava as pretensões do Peru, que reivindicava parte da região do Acre, incorporada ao território brasileiro e boliviano, e tomava partido da Bolívia (VENTURA, 1998, p. 137).

Posto isso, o vínculo entre Euclides e o jornal ficam pulsantes. Mas muito além disso, é bem sabido que Euclides, desde que chegou à Amazônia, preparava-se para publicar em jornais as suas impressões acerca das solitárias paragens. Prova disso é a carta enviada ao amigo, José Veríssimo, datada de 13 de janeiro de 1905, na qual o escritor, após

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contar acerca das primeiras impressões que a selva lhe causou, diz que “Mais tarde, e talvez pela imprensa, direi a minha impressão integral” (BRAGA, 2002, p. 134).

A ideia de Amazônia nos signos euclidianos Quando falamos em imagem geralmente a coisificamos. Transformamos a ideia em algo que podemos ver e até segurar, como é o caso da fotografia. Porém, a imagem pode ser considerada com um processo de consumo das ideias que povoam uma determinada região. Nesse caso quando o leitor deste texto é levado a pensar em Amazônia a imagem mental é construída por toda uma história anterior a ele. Para os amazônidas, ou para aqueles que são de outras regiões, mas residem na Amazônia, essa construção mental é influenciada por elementos que compõem o cenário cotidiano. Contudo nosso trabalho possui em seu recorte temporal, as primeiras décadas do sec. XX mais precisamente 1909. O leitor do livro “À marjem da historia”, seja no Brasil ou em Portugal, onde o livro foi editado, fazia parte de uma elite cultural com poder econômico e status social. O leitor do jornal estava em um patamar econômico diferente, todavia o requisito básico era ser alfabetizado, pois o jornal poderia ser lido a qualquer momento. Ao dividirmos as classes consumidoras dos signos propostos por Euclides da Cunha para descrever a Amazônia naquele momento histórico, consideramos o nível de interpretação desses signos. A capacidade intelectual unida ao tempo de vida e experiências empíricas dos leitores determinaram a construção da ideia de Amazônia que experimentava a riqueza proporcionada pela comercialização da borracha e o projeto de civilização proposto pela recém-criada República brasileira. A Amazônia euclidiana era povoada por mestiços que buscavam na selva a esperança de uma vida melhor. Euclides encontrou a usurpação do ideal paradisíaco. A derrubada das árvores e a ostentação dos palácios. Erigidos aos moldes europeus os casarões, teatros e palácios em Manaus e Belém evidenciaram a desvalorização da cultura local para exibir o desejo de ser “civilizado”. Ao leitor do livro foi apresentado um lugar onde o encontro das culturas foi proporcionado ao som dos rios e igarapés, iluminado por filetes de luz que se esforçavam para penetrar a densa mata que ocultava a esperança daqueles que buscavam o ouro

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branco. O projeto civilizador brasileiro se impunha com mais vigor a Amazônia euclidiana. Era um lugar que inebriava os viajantes com os signos do paraíso há muito proclamado por várias seitas e religiões, mas que exalava o odor da terra molhada pelo suor do trabalhador que teimava em desconstruir a imagem que o ideal civilizador insistia em impor. Para o leitor do jornal, a Amazônia ainda dispunha daquele mistério que poderia ser desvendado, talvez pelo livro de Euclides. Mas as parcas informações contidas em apenas uma página do jornal já confirmavam, em certo aspecto, a imagem de um lugar ainda a ser explorado. Se estamos inseridos em uma cultura visual e a imagem da Amazônia proposta por Euclides reflete a esperança do letrado em descrever o lugar, representar o momento e dar significado à vida daqueles ele lá encontrou, acreditamos que os signos euclidianos não foram de todo desvelados, interpretados. Muitos questionamentos surgem. E os principais dentre esses dizem respeito à autoria e ao grande significado da publicação. Tendo em vista o plano de Euclides de publicar um livro semelhante ao "Os Sertões", dividido nas três partes e contemplando o meio, o homem e o conflito, não teria sido o fim da entrevista, a parte que justamente trata da luta entre seringueiros, seringalistas e peruanos, o terceiro segmento planejado para a obra "Á margem da história"? Outra pergunta tão importante quanto à primeira, está relacionada à autoria da entrevista publicada. Sabendo da amizade de Euclides com o diretor do veículo, e sua constante colaboração com o jornal, a extensão da entrevista, a semelhança com o livro, a perfeição na escrita, típica do letrado escritor, as perguntas que em muito lembram os próprios questionamentos de Euclides, surge a dúvida: não teria sido o próprio Euclides o autor da entrevista? As hipóteses carecem de pesquisas cada vez mais aprofundadas, especializadas, e por isso, este trabalho não pode fechar-se em si mesmo e, apesar de ter sido capaz de proporcionar os questionamentos, não é capaz de solucioná-los.

Referências bibliográficas ARRUDA, Maria Olivia Garcia Ribeiro de Arruda. Uma entrevista de Euclides sobre a Amazônia. In: Cultura Euclidiana. São José do Rio Pardo, 2013, p. 14-20.

BRAGA, Robério. Euclides da Cunha no Amazonas. Manaus: Editora Valer, 2002.

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COSTA, Nicola. Euclides da Cunha: autorretrato de um caboclo humanista e idealista. 2013. Texto inédito.

CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Martin Claret, 2002.

CUNHA, Euclides. Na Amazônia. Jornal do Commmercio, Rio de Janeiro, 14, janeiro , 1906, p. 2.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Euclides da Cunha: Militante da República. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. 2ª Ed. Manaus: Editora Valer, 2007.

VENTURA, Roberto.Visões do deserto: selva e sertão em Euclides da Cunha. In: história, Ciências, Saúde Manguinhos. Vol. V (suplemento), 133-147 julho 1998. Disponível em: . Acessado em 26 de janeiro de 2014.

VENÂNCIO, Alberto Filho. Ciclo Comemorativo do Centenário da Publicação de Os Sertões. 2001. Disponível em . Acessado em 30 de janeiro de 2014.

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Façanhas políticas de Roraima em quadrinhos (HQ)

Michel Sales FEITOZA160

Resumo: Este projeto investiga o jornalismo em quadrinhos, compreendido como uma manifestação particular que vincula uma prática jornalística tradicional a uma forma de expressão artística. Concentrando-se no caráter jornalístico busca-se ampliar a compreensão das características formais desse estilo de reportagem, propondo-se ao final do trabalho,construir um livro HQ sobre a política de Roraima, especificando as grandes façanhas ocorridas após a mudança do território para Estado. Analisam-se seis matérias publicadas no jornal Folha de Boa Vista. Para chegar às conclusões apresentadas utilizou- se a análise do discurso como pressuposto teórico e metodológico. A pesquisa bibliográfica inicial sobre as narrativas de histórias em quadrinhos selecionou obras de autores como Joe Sacco, e a parte exploratória, de natureza quantitativa, foi por pesquisa realizada no centro de documentação do jornal Folha de Boa Vista. A justificativa de se desenvolver este trabalho é verificar se os quadrinhos aproximam o leitor da notícia. Conclui-se que o jornalismo em quadrinhos ainda carece de representatividade de mercado e maior observação nas Universidades com incentivo a pesquisas.

Palavras Chave: Jornalismo - Política - Reportagem em Quadrinhos

As histórias em quadrinhos (doravante HQs) são uma mídia tradicionalmente associada a fantasia, já que suas primeiras histórias são baseadas em temas como o culto ao herói, a ficção científica, a aventura e o humor. Neste trabalho, analisam-se seis matérias publicadas no jornal Folha de Boa Vista que repercutiram nacionalmente envolvendo políticos de Roraima, sendo avaliadas as matérias publicadas e as charges relativas ao tema, além de se transformar as matérias em quadrinhos.Selecionados o caso Gafanhoto, a cassação de Flamarion Portela, Pedofilia, Correios, Farra dos Combustíveis e o envolvimento do político Romero Jucá no Mensalão. Dessa forma, o resultado é contextualizar os fatos e prover um novo saber didático.

160 Jornalista formado pela Universidade Federal de Roraima 339

Como problema da pesquisa questiona-se se é possível fazer com que o jornalismo em quadrinho facilite a aproximação do leitor com a notícia. Como objetivo geral pretende-se fazer um livro HQ sobre as façanhas políticas ocorridas após a mudança do território para Estado. Como objetivos específicos sintetizam-se as matérias de forma cronológica na HQ, mostrando uma forma de jornalismo alternativo para o público boa- vistense; mesclam-se fatos históricos na convergência da reportagem política para os quadrinhos e contextualizam-se os fatos de forma também a prover saber didático. Elegeu-se, portanto, o discurso da reportagem em quadrinhos como objeto de investigação. A pesquisa bibliográfica inicial sobre as narrativas de histórias em quadrinhos selecionou obras de autores como Joe Sacco e a parte exploratória de natureza quantitativa foi feita a partir de pesquisa no centro de documentação do jornal Folha de Boa Vista. Portanto, esta é a justificativa de se desenvolver a pesquisa. Analisar a partir dos resultados, mostrando como grandes reportagens podem ser transformadas em quadrinhos. Para privilegiar em uma publicação tal aspecto, deve-se considerar, principalmente, a carência de uma reflexão acadêmico-educacional nesse contexto, às críticas acerca da linguagem política na arte dos quadrinhos. É necessário refletir sobre a política local, seus grupos, alianças, formações, aspectos culturais e sua interligação com o jornalismo.

1. Jornalismo em quadrinhos

1.1 Tirinhas no Globo Em 1895, Yellow Kid (fig. 11), de Richard Felton Outcault, faz sua estreia no jornal The World, de Joseph Pulitzer, tornando-se uma publicação semanal, em 1896. A série mostra um menino que mora numa favela e os dizeres são escritos no seu pão amarelo. O uso da cor amarela foi um teste para experimentar a impressão em mais de uma cor e atrair mais leitores. Daí vem o termo “jornalismo amarelo” (correspondente a nossa “imprensa marrom”).

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Figura 1 - The Yellow Kid - o menino amarelo.

Fonte: mundo HQ (2008).

No cerne do movimento da contracultura, o jornalismo em quadrinhos ou jornalismo gráfico nasce oficialmente em meados da década de 1960, quando teve lugar um estilo de mobilização e contestação social utilizando novos meios de comunicação de massa, através dos quadrinhos marginais ou alternativos, ressalvando que tal narrativa é fruto do jornalismo cultural. O Jornalismo em quadrinhos pode ser considerado uma plataforma com potencial tanto à construção de uma estória imaginária, quanto ao relato ou a interpretação de fatos diários. Assim como no Jornalismo tradicional, o de quadrinhos se baseia no principio narrativo onde se responde as perguntas do lead (O quê? Como? Quando? Onde? Por quê? Quem?). Outros elementos da apuração jornalística também são encontrados no texto em quadrinhos como na pesquisa histórica, a presença in loco do repórter, o relato de testemunhas, a identificação de causas e motivos, a entrevista e até, na fotografia. Uma figura de enorme referência nas HQs de tiras é o americano Stanley Martin Lieber, mais conhecido como Stan Lee, escritor, roteirista, editor, publicitário, produtor e empresário, mas que por seus desenhos de heróis complexos e humanos, impôs razões sem limites à nona arte. Vasconcelos (2009) escreveu:

Guerrilheira da informação nos anos 60/70, quando os grandes jornais aderem ou calam diante da ditadura, a imprensa alternativa dá suas 341

estilingadas no regime no período mais bruto do arbítrio. E ajuda a abrir brechas na carapaça do sistema. (...) No embate liberdade Versus arbítrio, os alternativos não fogem da Peleia. Contudo, minguam quando, Afinal, as forças democráticas levam a ditadura a Boca do Inferno (VASCONCELOS, 2009, p.5).

Neste período atual, o maior representante do jornalismo em quadrinhos é o americano Joe Sacco. Ele combinou a reportagem tradicional às possibilidades das imagens com palavras dos quadrinhos. E sobre seu trabalho, Joe Sacco já recebeu importantes prêmios por seu estilo único de fazer reportagens em quadrinhos...

Esse é o domínio dele, a assinatura de Sacco. Foi ele quem fincou a bandeira na terra intersticial entre o jornalismo e os quadrinhos e trilhou um território de linguagens. E todas as outras linguagens, que são também utilizadas na construção metalingüística de gêneros como, o cinema, a fotografia, a fotonovela, a literatura, o documentário, etc. (GOMES, 2009, p.10).

As obras mais conhecidas são Palestina: Uma nação ocupada e Palestina: Na faixa de gaza e Área de Segurança: Gorazde (fig. 12), publicadas no Brasil pela Conrad Editora.

Figura 2 - Do livro Palestina, de Joe Sacco.

Fonte: Google Imagens.

Sacco lançaria as bases para a união entre os quadrinhos e o jornalismo, resgatando uma visão romântica da profissão e uma crítica ao jornalismo praticado na atualidade...

(...) Não estava pensando em criar uma nova forma de arte ou seja o que for. Não foi uma decisão consciente, foi meio orgânico. Pensei: vou viver essas experiências, falar com as pessoas, anotar e colocar isso junto. É claro, eu tinha o background jornalístico e isso teve impacto no formato, mas só depois comecei a pensar claramente no que estava fazendo. Foi na história sobre a Bósnia (Gorazde) que comecei a pensar conscientemente em jornalismo em quadrinhos (SACCO, 2010, p.15).

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1.2 Interpretação da HQ no jornalismo No Brasil, a proposta da interpretação da HQ como plataforma para matérias jornalísticas é relativamente recente. Realidade ainda mais contemporânea é a ampliação deste modelo para produções sequenciais, mesmo em publicações independentes, como revistas e livros dedicados. Paim (2007) defende que embora o Jornalismo em Quadrinhos viva uma importante expansão no Brasil, esse movimento carece de representatividade de mercado e maior observação nas Universidades como pesquisa. “Há quatro anos se contavam nos dedos o número de monografias sobre o tema. Hoje, em todas as Universidades do Brasil há pelo menos um aluno pesquisando a respeito”. (PAIM, 2007, p.12). A ausência quase total de obras mais extensas, como os livros-reportagem de Joe Sacco dentre os autores nacionais, também merece a reflexão do pesquisador:

Sei que o mercado não gira só em torno de qualidade. Há também critérios comerciais. Há gente que alia as duas coisas, como o Joe Sacco, que tem muita qualidade, mas também atende a uma demanda de interesse nos assuntos que ele aborda. A mim parece que falta no Brasil alguém com um tema realmente bom e relevante e com capacidade para fazer um trabalho quadrinístico maduro. De resto, já há vários jornais investindo em matérias ou reportagens em quadrinhos, mas não há o aprofundamento de um trabalho como o de Joe Sacco. Geralmente, são só matérias ilustradas, sem um uso mais elaborado do poder informativo e narrativo da linguagem dos quadrinhos (PAIM, 2007, p.13).

No Brasil, pode-se exemplificar a utilização dos quadrinhos no Jornalismo analisando-se reportagens integrais, matérias curtas, ou sequenciadas, reconstituições, apanhados históricos e até entrevistas. No caso da Folha, as matérias escolhidas para o recorte propiciaram ao leitor uma síntese de uma das versões.

2. Objetos da análise Nessa abordagem analítica sobre o jornalismo político e os quadrinhos, leva-se em consideração o enquadramento que os veículos dão as matérias, sendo feita a seleção de cinco principais fatos ocorridos em Roraima e que foram repercutidos pela imprensa nacional. A analise é superficial e gira em torno da postura do veículo estudado.

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2.1 Operação Praga do Egito

Desarticulado a partir da Operação Praga do Egito desenvolvida pela Polícia Federal, no dia 26 de novembro de 2003 em Roraima, o esquema de corrupção conhecido como ‘Gafanhotos’ consistiu na contratação de funcionários fantasmas que "comiam a folha de pagamento" do governo estadual. Cerca de 30 autoridades estaduais dos Poderes Legislativo, Judiciário (Tribunal de Contas do Estado) e do Executivo se beneficiaram do esquema que recebia por meio de procurações o pagamento de 6.000 servidores fantasmas, repassando aos titulares dos cargos (laranjas) apenas uma parte menor dos valores sacados. Estima-se o desvio de mais de R$ 230 milhões dos cofres públicos em Roraima. O caso que ganhou o rótulo midiático de ‘Escândalo dos Gafanhotos’’, esteve em pauta nas revistas semanais de informação entre novembro de 2003 e 2006. Foi o primeiro com maior extensão temporal de Roraima. A Folha publicou matérias sobre o esquema sempre em tom de denúncia, divulgando com exclusividade relatos sobre o conteúdo das fitas do grampo telefônico, depoimentos dados à justiça e à polícia federal. Fica nítido nas matérias analisadas o nível de envolvimento do jornal com a revelação das informações através da abordagem investigativa, a leitura temática das reportagens reforça ainda mais essa defesa ideológica e a diferenciação em termos de cobertura jornalística dos outros veículos de comunicação. Ainda que demonstre inclinação para o trabalho investigativo, sua busca por informações não chega a competir com o trabalho de apuração dos veículos nacionais, pelo menos nesse caso, demonstrando um trabalho investigativo incompleto. A proposta editorial da Folha busca na publicação de ‘entrevistas exclusivas’ com os principais personagens, outro caminho para o exercício do jornalismo que se propõe a interpretar os fatos. Isto representa uma forte marca de intencionalidade.

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Figura 3 – Capa da Folha de 2003 com a prisão do ex-governador Neudo Campos.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

Figura 4 – Charge da Folha de 2003 com a prisão do ex-governador Neudo Campos.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

2.2 Cassação do ex-governador Poucos estados brasileiros registraram mais escândalos políticos nos últimos anos que Roraima. Um dos maiores envolve a cassação do governador Flamarion Portela. O caso foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).A ação eleitoral tramitou desde o pleito de 2002, quando Flamarion Portela foi reeleito no segundo turno. alegou abuso de poder econômico. A decisão pela cassação aconteceu às 23 horas do dia 9 de novembro de 2004. Na madrugada do dia 10, o TRE de Roraima afastou o governador do cargo e em seu lugar empossou o deputado Messias de Jesus (PL), presidente do

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Legislativo. Em seguida, às 18 horas da mesma data, Ottomar Pinto assumiu como governador. Tudo aconteceu em menos de 24 horas mas o acórdão do TSE só foi publicado sete meses depois do julgamento. A decisão do STF virou jurisprudência, pois não existia caso semelhante na história do País. A Folha de Boa Vista apresentou um comportamento diferenciado na abordagem da cassação de Flamarion, se comparado aos casos envolvendo outros governadores como Ottomar e Anchieta Junior, nos quais o jornal assumiu um papel de protagonista, ou seja, agente participativo na deflagração das informações que ajudaram a instalar o cenário de crise no governo. Se nos outros casos a Folha denuncia, em virtude da oportunidade do furo informativo, neste caso, observa-se ao mesmo tempo, uma postura de espectador que relata os acontecimentos em termos factuais, e uma postura interpretativa, que abre espaço para a voz dos acusados com entrevistas exclusivas. No caso das atitudes consideradas desagradáveis, a argumentação do jornal girou em torno da forma como o caso foi deflagrado na imprensa, da comparação com casos paralelos ocorridos em outros estados e das consequências do caso para os personagens.

Figura 5 – Matéria da Folha de 2004 sobre a Cassação do governador Flamarion.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

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Figura 6 – Charge da Folha de 2004 mostrando o estado parado por conta da cassação.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

2.3 Pedofilia envolvendo deputados Reportagem da revista “Veja” trouxe a gravação de uma conversa telefônica, feita por escutas clandestinas, entre o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO). O principal assunto trata sobre o caso de pedofilia em Roraima, que motivou, inclusive, a vinda dos membros da CPI da Pedofilia ao Estado, da qual o senador é o relator. Ele cita na conversa inclusive a provável participação de um deputado federal de Roraima. O acusado no caso era o deputado federal Luciano Castro. A menina citada no grampo telefônico foi que revelou que tivera encontro sexual com o parlamentar roraimense. Ele teria pago R$ 500,00 pelo programa. A garota não está mais em Roraima. Foi incluída no Programa de Proteção a Testemunhas, do Ministério da Justiça. Cópias do processo foram remetidas ao Supremo Tribunal Federal para investigação. A Pedofilia rendeu a Folha de Boa Vista, a média de duas a três reportagens por semana, durante a fase propriamente dita, maior que a média de qualquer outro veiculo do estado no mesmo período do caso. Após um intervalo, houve um esfriamento na cobertura, mas com a divulgação da informação de que a CPI da Pedofilia viria para Roraima, o caso retornou ao ápice, com reportagens de tom especulativo, de denúncia e interpretativas, uma estratégia coerente com seu nível de envolvimento em relação à deflagração das informações.

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Nessa reportagem a Folha, ao contrário do caso Gafanhoto, consegue explorar a potencialidade das três funções na abordagem do caso Pedofilia em virtude de seu amplo envolvimento com a divulgação de informações que colocaram em jogo o cargo do deputado Luciano Castro, que concorria à prefeitura de Boa Vista. A leitura dos modos de dizer mostra que as matérias e os personagens envolvidos tiveram lugares bem demarcados pelo jornal, seja na forma de descrever as ações de maneira agradável/ desagradável/ risco, ou ainda na maneira como são qualificadas as ações.

Figura 7 – Matéria da Folha de 2008 sobre denúncias de pedofilia envolvendo deputado.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

Figura 8 – Charge da Folha sobre os casos de Pedofilia.

Fonte: Folha Boa Vista.

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2.4 Fraude nos Correios A fraude nos Correios ocorreu em maio de 2005, no Brasil, após denúncias de irregularidades praticadas na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. A crise iniciou- se quando uma fita de vídeo que mostrava um ex-funcionário dos Correios e Telégrafos, Maurício Marinho, negociando propina com um suposto empresário interessado em participar de uma licitação, e mencionando ter o respaldo do deputado federal Roberto Jefferson, do PTB do Rio de Janeiro.O prejuízo com o esquema foi estimado em R$ 30 milhões ao ano. Entre os presos estavam ainda o superintendente-executivo da Diretoria Comercial, Roberto Santana, e um diretor da regional da estatal em São Paulo. Os presos foram indiciados sob suspeita de extorsão, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva, advocacia administrativa, formação de quadrilha ou bando, falsidade ideológica e descaminho, entre outros crimes. As penas variam de 2 a 12 anos de reclusão. A Folha apresenta uma leitura do caso mais sucinta, assim como o volume das reportagens também é mais reduzido se comparado outros fatos analisados. Entretanto, a leitura observada com a análise é bem consistente em termos de intenção discursiva. Por exemplo: seja na função de descrição das atitudes, como na função de sedução (qualificação da imagem) é praticamente nula a existência de formações discursivas que levem o leitor a tomar posicionamento do caso. Como estratégia discursiva, a Folha utiliza amplamente adjetivos e verbos conjugados no pretérito imperfeito, gerando uma sensação de dúvida na argumentação, sem provar a autenticidade das suposições. Essa mesma estratégia é empregada pelo jornal para descrever as atitudes de Romero Jucá e suas relações com empresários e políticos, e em alguns casos, a estratégia do ‘levar’ a crer’ é reforçada pela presença de um sujeito oculto não revelado explicitamente no discurso. Apesar dessas incursões positivas da Folha em relação a Samir, o foco de sua argumentação é justamente a abordagem das imagens ‘negativa’ e ‘neutra’ no caso do envolvimento de Jucá nos Correios.

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Figura 8 – Matéria da Folha sobre a fraude nos Correios.

Fonte: Folha Boa Vista (2013).

Figura 9 – Charge sobre a fraude nos Correios.

Fonte: Folha de Boa Vista (2013).

2.5 Farra dos Combustíveis Deputados federais receberam R$ 41 milhões da Câmara, em 2005, como reembolso por supostos gastos com gasolina. É dinheiro suficiente para comprar 20,5 milhões de litros de combustível e rodar 2.560.000 quilômetros em carro médio que percorre oito quilômetros por litro.A gasolina que os deputados informaram à Câmara ter adquirido — e pela qual foram reembolsados —é bastante para 64 voltas ao mundo. Ou para uma quilometragem equivalente a seis viagens à Lua, ou três de ida e volta à Terra. Nesse caso, sobraria combustível para um trajeto extra de 220 mil quilômetros em solo terrestre. É o mesmo que rodar quase oito vezes os 36 mil quilômetros de estradas federais que o governo diz ter pavimentado. Ou dar mais sete voltas ao mundo. Na Folha de Boa Vista de 20/08/2005, saíram notas na coluna parabólica com o

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título de Gasolina (1, 2, 3) com um tom acido de critica sobre a apuração dos gastos dos parlamentares com combustíveis. As notas dizem que na lista dos investigados está o deputado federal Chico Rodrigues (PFL), que gastou R$ 60 mil com combustível entre janeiro e março deste ano. A denúncia foi feita pelo jornal “O Globo” e repercutida pelos demais. O deputado roraimense disse ao jornal que quando não consegue nota para ressarcir suas despesas com alimentação, apresenta notas de gastos com combustível.A reação foi imediata. O procurador-chefe do Ministério Público, Lucas Furtado, que atua no Tribunal de Contas da União (TCU), disse que Chico Rodrigues confessou um crime ao afirmar que usa notas de combustíveis para conseguir ressarcimento para outras despesas. Em relação ao personagem, a Folha de Boa Vista comenta sobre o comportamento de Chico Rodrigues e, principalmente, apresenta uma função de identificação. Nesta passagem destacada na imagem, especificamente, o jornal destaca o caso do combustível, com a marca implícita da ironia existente na coluna Parabólica, argumentando sobre a vulnerabilidade da imagem de Chico Rodrigues neste contexto de deflagração do fato. .A função de sedução como estratégia discursiva na Folha, assim como a função de identificação está associada principalmente à tonalidade da reportagem especulativa e a função de sedução é marcada pelo viés avaliativo no uso de adjetivos, verbos e expressões. A presença dessas marcas de intencionalidade está explícita nas imagens caracterizadas como ‘negativas’ ou ‘dúbias’, ao passo que as imagens qualificadas como ‘neutra’ ou ‘positiva’ são praticamente inexistentes. Ao longo da análise do corpus referente aos combustíveis, apenas uma formação discursiva foi identificada na caracterização da imagem de Chico Rodrigues diante da confirmação de sua participação nos gastos exagerados com gasolina.

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Figura 10 – Matéria sobre a farra dos Combustíveis.

Fonte: Folha de Boa Vista (2013).

Figura 11 – Charge retratando Rodrigues envolvido nos Combustíveis.

Fonte:Folha de Boa Vista (2013).

2.6 Envolvimento do senador Jucá no mensalão Relatório feito pela Polícia Federal (PF) confirmou denúncia do mensalão no governo Lula, e ligou o senador Romero Jucá (PMDB) ao esquema. Conforme o documento, uma das empresas de Marcos Valério, um dos “cabeças” do esquema, a DNA, teria pago R$ 650 mil à empresa Alfândega Participações, de Álvaro Jucá, irmão do parlamentar, em 2003. O assunto foi abordado em matéria da revista Época e ganhou repercussão nacional e local no jornal Folha de Boa Vista.

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O relatório foi elaborado pela PF, a pedido do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, relator do caso, e confirma a denúncia de pagamentos feitos aos aliados durante o governo Lula. Além de Jucá, o documento aponta o atual ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel (PT), como um dos envolvidos com o esquema. Cabe pontuar, que essas variações na tonalidade das reportagens e na escolha das estratégias discursivas que marcam o nível de intencionalidade da abordagem da Folha de Boa Vista não são qualificadas nessa analise como ‘positivas’ ou ‘negativas’. Ao contrário, a proposta investigativa consiste em reconhecer essas possibilidades discursivas que rompem com o tradicional tripé basilar da prática jornalística – imparcialidade, isenção e apuração.

Figura 12 – Matéria sobre o envolvimento de Jucá no Mensalão.

Fonte: Folha de Boa Vista (2013).

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Figura 13 - Charge sobre o Mensalão.

Fonte:Folha de Boa Vista (2013).

3. Metodologia Para atingir o objetivo de desenvolver a parte teórica que subsidiou o trabalho, um esforço significativo foi empregado no levantamento bibliográfico, pois “toda pesquisa deve basear-se em uma teoria” (MARCONI e LAKATOS, 2002, p. 17). Como base de estudos também foi feita leitura em artigos científicos e em material disponível por meio eletrônico. Para alcançar uma melhor fundamentação teórica neste trabalho, foram utilizados recursos como livros, monografias, artigos, revista científicas, sites como e outras fontes de pesquisa sobre jornalismo em quadrinhos, que tiveram o intuito de contextualizar ao máximo este trabalho. A pesquisa bibliográfica inicial sobre as narrativas de histórias em quadrinhos selecionou obras dos autores norte-americanos Will Eisner e Scott McCloud, além dos espanhóis Luis Gasca e Róman Gubern. Em jornalismo, procurou-se utilizar livros que tratassem sobre a escola norte-americana do new journalism e suas principais características.

354

A pesquisa gráfica também foi importante para levantar todos os exemplos de HQs citados nos capítulos, sempre procurando vincular a ideia representada no projeto ao exemplo selecionado para estabelecer uma boa conexão entre texto-imagem. Para se produzir um HQ a partir de reportagens jornalísticas sobre escândalos na política de Roraima, publicados nos meios de comunicação, que é o objeto deste estudo, foi realizada pesquisa exploratória de natureza quantitativa onde após a revisão da literatura foram investigados os principais grupos políticos existentes no estado, trajetórias e envolvimentos em escândalos que tenham tido grande repercussão tanto na imprensa local quanto nacional, como referenda o “caso gafanhoto”. Para análise em profundidade, optou-se pelo estudo de matérias selecionadas apenas nesse veículo, (STAKE, 2000) a empresa Folha de Boa Vista, situada no estado de Roraima, pois segundo Stake (2000, p.436), a pesquisa deve ser caracterizada justamente por esse interesse em casos individuais.A metodologia utilizada para chegar às conclusões apresentadas foi a de análise do discurso. Confrontando as obras e apontando suas características mais significativas, dissertou-se sobre as possibilidades de exploração do Jornalismo em quadrinhos como um novo gênero em relação aos outros meios de comunicação de massa.

Considerações finais Nessa abordagem analítica sobre o jornalismo político e os quadrinhos, leva-se em consideração o enquadramento dos veículos, sendo feita a seleção de seis principais escândalos ocorridos em Roraima e que foram repercutidos pela imprensa nacional. Para chegar às conclusões apresentadas utilizou-se a análise do discurso como pressuposto teórico e metodológico. Elegeu-se, portanto, o discurso da reportagem em quadrinhos como objeto de investigação. A análise foi superficial e girou em torno do discurso do veículo estudado. O recorte desta pesquisa possibilitou corroborar o papel político que a mídia desempenha no jogo de poder.Uma das possíveis formas de se entender o uso de mensagens políticas nos quadrinhos, é que eles tentam causar uma reação diferenciada no leitor, partindo para um sentido mais aguçado da sociedade, atraindo o olhar do publico sobre o mundo político e fazendo com que o leitor, a partir de um simples quadrinho, comece a observar melhor os fatos, a investigar o porquê das situações estarem daquele 355

modo na sociedade. Os quadrinhos fazem com que se percebam os elementos políticos de um fato que se feita a reportagem de outra forma, passariam despercebidas facilmente pela população. Cabe pontuar, que essas variações na tonalidade das reportagens e na escolha das estratégias discursivas que marcam o nível de intencionalidade da abordagem da Folha de Boa Vista não são qualificadas nessa analise como ‘positivas’ ou ‘negativas’. Ao contrário, a proposta investigativa consiste em reconhecer essas possibilidades discursivas que rompem com o tradicional tripé basilar da prática jornalística – imparcialidade, isenção e apuração. Na finalização do trabalho obteve-se uma sincronia entre o desenho e o fato noticiado, fazendo com que as reportagens em quadrinhos cumprissem sua função de transmitir informações com mais facilidade para os leitores, numa alternativa ao modo tradicional de se construir uma notícia. Por fim, conclui-se que o jornalismo em quadrinhos ainda carece de representatividade de mercado e maior observação nas Universidades com incentivo a pesquisas.

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Fotografia na Amazônia: Testemunho do tempo, do passado de alguns, da memória de um povo e da identidade de uma Nação.

Maurício ZOUEIN161

Resumo: Este convite à reflexão trata de um sujeito histórico – o seringueiro; de um objeto que torna possível mostrá-lo visualmente – a fotografia; de suportes capazes de arquivar as imagens – O álbum, o cartão postal e a fotografia; e de dois tempos – um relacionado a iconografia162 e outro a iconologia163. As imbricações existentes entre tempo e imagem são suscetíveis a descortinarem fronteiras interpretativas para historiadores. Neste texto a palavra tempo estará associada aos suportes e conteúdos das imagens entre a última metade do séc. XIX e a primeira década do séc. XX. Ou seja,no Brasil Império e, por conseguinte República,onde a ideia de país civilizado afetava por meio da “servidão humana” os destinos dos seringueiros e governantes; desprovidos e abastados; o destino dos homens livres, dos índios, negros e nordestinos que estavam, assim como a trama do tempo e do chicote, entrelaçados na história da Amazônia brasileira.

Palavras chaves: Amazônia brasileira, fotografia, seringueiros, tempo.

“O seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário.” (Euclides da Cunha 1909 p. 70)

O tempo da Fotografia

No Brasil foi natural entre a década de 1830 e meados da década de 1840 a subvenção de africanos livres para ocuparem-se em diversas frentes particulares de trabalho. Em 1832 o suíço George Leuzinger (1813-1892), um dos principais divulgadores das paisagens brasileiras por meio da fotografia chega ao Rio de Janeiro onde passou a ser proprietário da “Casa Leuzinger”, na época papelaria. Nos anos seguintes investiu na compra de equipamentos e contratação de auxiliares e fotógrafos. No decorrer deste texto veremos que um desses fotógrafos foi o responsável em registrar o cotidiano dos amazônidas. Em 1848 a Amazônia chamou a atenção pela exportação de 755,5t. de borracha.

161 Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro sob a orientação da Profa. Dra. Andréa Casanova Maia 162 Contexto histórico que envolve a produção da imagem. 163 Conteúdo da imagem. 358

Dois anos mais tarde, partir de 1850, a pretensão do governo imperial para os africanos passou a ser destiná-los a “trabalhar em instituições públicas e projetos de desenvolvimento nas fronteiras” (SAMPAIO, 2011 p.03). A sina “dos emancipados e o descaso praticamente completo pelas leis e acordos internacionais destinados a protegê-los faziam parte da síndrome nacional de corrupção causada pela escravidão, sintomas de uma doença que se estendeu por todos os cantos do país” (CONRAD, 1985 p.186). Em 1853 com a assinatura da Lei Eusébio de Queiróz164 as dificuldades para a obtenção de negros africanos tornaram-se maiores, contudo foi introduzida a navegação a vapor no Amazonas aumentando as condições de comercialização do látex. Os indígenas ainda eram a melhor opção para o cativeiro da borracha. No Amazonas e Pará165a segunda metade do século XIX foi marcada pelo contato entre índios e exploradores que se apoderaram de terras indígenas à procura do caucho166 (Fotografia 01a e 01b), do látex167 (Fotografia 02a e 02b) e criarem seringais. Casas destruídas, famílias desfeitas. Homens, mulheres e crianças foram separados e caçados para servirem em várias áreas de cultivo da seringueira (MONTEIRO, 2010). A partir de meados da década de 1850 com a utilização de novas técnicas a demanda de mão-de-obra cresceu. Nesse período o produto de exportação da Amazônia com maior lucratividade foi a borracha. Com a procura acelerada houve um grande impacto na alta dos preços da matéria-prima, cuja satisfação era sempre insuficiente. Buscou-se nos africanos a resposta para a exigência da produção gomífera, contudo a província do Amazonas possuía uma população escrava menor que a população escrava do Pará o que inviabilizou o tráfico intraprovincial (CAVIGNAC, 2011) e impossibilitou a transferência da mão de obra escrava para os recém-criados seringais do Amazonas.

164 Proibição do tráfico de escravos entre a África e o Brasil 165 Em 5 de setembro de 1850, D. Pedro II por meio da Lei 592 cria a Província do Amazonas desmembrada da Província do Grão-Pará.81254145. Porém a província do Amazonas somente é implantada dois anos depois em 1852. 166Caucho (Castillaulei)é uma árvore nativa da floresta amazônica cujo nome tem origem na língua indígena do Peru, káuchuk. O látex dela extraído é de baixa qualidade utilizado para a impermeabilização de tecidos, produção de potes, sapatos conhecidos por encauchados. Além da manufatura de adereços de corpo e brinquedos entre outros produtos indígenas. Era comum “o untamento dos recém-nascidos no látex para livrá-los do frio” (REIS, 1997, p. 81). 167 A extração do látex é realizada por meio de cortes ou sangrias na seringueira. Um recipiente é colocado para receber a seiva. Em seguida o látex é defumado e transformado em pélas – pelotas ou bolas – com o peso variando de 20 a 40 quilos. 359

Fotografia 01a - Cautchouc process no 2 Then they would fell tree. Fotografia 01b - Cautchouc process no 3 Themilk would coagulate and form large patches of caoutchouc on the ground.

Fonte: In theamazonjungle 1912, páginas 369 e 375 respectivamente. Fotógrafo: Algot Lange

A escassez das áreas de melhores acessos para o extrativismo ao redor de Belém e Manaus forçou aos seringalistas a buscarem as seringueiras nativas as margens dos rios Juruá, Purus e Madeira. Aos poucos foram criados povoados em locais estratégicos que trocavam de lugar para bem servir as necessidades da extração da borracha. Alguns desses povoados foram transformados em cidades (BITENCOURT, 1926)como é o exemplo de Carauari e Eirunepé no rio Juruá; Lábrea, Boca do Acre e Canutama no rio Purus; Manicoré e Humaitá no rio Madeira.

Fotografia 02a -" seringueiro" tapping a rubber tree Fotografia 02b -cautchouc process no i the mem set to work bleeding the base of the castilloa

Fonte: In theamazonjungle 1912, páginas 151 e 359 respectivamente. Fotógrafo: Algot Lange 360

A riqueza dos barões ou coronéis de barranco168 como eram conhecidos começava a transformar as paisagens amazônicas (Fotografia 03a e 3b).Foi o caso do Amazonas. Convencidos por parte dos ingleses169 os barões tentaram transformar Manaus na “Paris dos trópicos”170. O investimento foi direcionado para a construção do teatro amazonas, palácios, bondes, luz elétrica e na ostentação do dinheiro representada na compra de coisas e costumes inapropriados para a região. Nos ateliers fotográficos existentes à época as preocupações não se restringiram apenas aos equipamentos de captação da imagem. Foi preciso avançar na qualidade relativa à reprodução, pois a partir de 1862 as fotografias brasileiras participaram das exposições universais divulgando as riquezas humanas e materiais do Império Brasileiro.

Fotografia 03a -Rubber-workers’ home near lake innocence. Fotografia 03b - Kitchen interior.

Fonte: In theamazonjungle 1912, páginas 223 e 267 respectivamente. Fotógrafo: Algot Lange

Na década de 1860 George Leuzinger, outrora proprietário de uma papelaria, era um fotografo respeitável e fez publicar suas fotografias no livro “Viagem ao Brasil, 1865- 1866”, Dos Agassiz171. O naturalista suíço Jean Louis Agassiz líder da Expedição Thayer cria em 1865 na cidade de Manaus o Bureau d’Antropologie. Um estúdio fotográfico onde

168 Na época os donos de seringais construíam os barracões de estocagem nas barrancas dos rios amazônicos. Isso facilitava o transporte da borracha e o recebimento das mercadorias que eram vendidas para os trabalhadores. 169Pois assim os barões não investiriam em avanços tecnológicos, e se concentrariam na realização de grandes edificações. 170 Grifo nosso 171 Jean Louis Agassiz (1807-1873) e Elizabeth CaryAgassiz (1822-1907). 361

Walter Hunnewell (1844-1921), um dos membros voluntários, fotografou entre 50 e 60 habitantes da cidade. As pessoas representavam, de acordo com o vocabulário utilizado por Agassiz, as diferentes raças e os híbridos resultantes de suas misturas na Amazônia (KURY, 2001; SAMAIN, 2006). Enquanto Hunnewell produzia retratos dos populares amazônidas, o alemão Albert Frisch(1840-1905) que acompanhou até Manaus o engenheiro alemão Franz Keler-Leuzinger(1835-1890)172 se separa da expedição e segue rumo ao Alto Amazonas. Sua viajem principiou de vapor até a fronteira com o Peru e retornou para Manaus com uma canoa transformada em lar e laboratório onde as dificuldades se faziam presentes a todo o momento. A técnica era importante para uma boa fotografia, mas o espírito empreendedor, esse, era essencial no séc. XIX. Os problemas enfrentados devido a tecnologia da época eram muitos, porém o equipamento foi o melhor que o fotografo poderia utilizar para a façanha amazônica que rendeu a primeira série de fotografias sobre essa. Em 31 de julho de 1867 com o decreto 3.920 o império regulamentou a navegação internacional na Amazônia brasileira173. Com esse a toa exportação da borracha amazônica aumentou para 6.309t. Nesse mesmo ano o Brasil participou da “Exposição Universal em Paris” com 07 (sete) expositores (Quadro 01) e exibiu os tipos diferentes de borracha e processos de defumação (Fotografia 04ª, 04b e 04c). O proprietário da Casa Leuzinger foi o expositor de número 38 levando as “Photographias:Panorãma da cidade do Rio de Janeiro,de Nitheroy,da Ilha das Cobras. Vistas da cidade do Rio de Janeiro. Vistas da Tijuca. Álbuns com photographias pequenas. Photographias das oficinas da fabrica”. As fotografias de Frish, então membro da Casa Leuzinger, constavam entre aquelas contidas no álbum e receberam menção honrosa. Habilitados na eloquência do discurso civilizador (...) “os emissários do Brasil nas exposições universais esforçaram-se para projetar uma imagem de Brasil, mais próxima dos países do norte do que de seus vizinhos do cone sul” (MAUAD, 2010, p.135).

172 Genro de George Leuzinger 173Do Rio Negroaté Manaus, do Rio Madeira até Borba, do Rio Tocantins atéCametá e do Rio Tapajós até Santarém. 362

Quadro 01 –Expositores e os tipos diferentes de borracha que participaram da “Exposição Universal em Paris” em 1867

Fonte: “Breve notícia sobre o Império do Brasil” – 1867.

Ainda em 1867 o Jornal Diário do Pará anunciava as atividades de um retratista português Felipe Augusto Fidanza (1847-1903). Até então desconhecido, o photographo que recém chegara de Portugal, passou a chamar a atenção da sociedade paraense quando utilizou o sistema de plano e contra-plano na chegada de D. Pedro II ao Pará.

Fotografia 04a - Defumador, or smoking-hut. Fotografia 04b - Branding rubber on the sand-bar. Fotografia 04c - Smoking the rubber-milk.

Fonte: In theamazonjungle 1912, páginas 87, 111 e 155 respectivamente. Fotógrafo: Algot Lange

363

O atelier Fidanza & Cia investiu em contratação de fotógrafos, equipamentos e assessórios que fizessem o nome da empresa sobressair em relação a outros ateliers no mercado local. Entre as varias inovações que poderiam ser utilizadas na época, Fidanza deu preferência aos processos de revelação aprimorando a qualidade e nitidez das fotografias por meio do método de colódio úmido174, mas sua inovação foi em 1869 quando anunciou a utilização, pela primeira vez em Belém, da câmera solar175. Cientes da funcionalidade do álbum os governantes do Amazonas e Pará entenderam que a fotografia seria a solução para a demanda de representações mais precisas e fiéis da realidade e de seus projetos arquitetônicos, urbanísticos e principalmente no que se refere ao processo civilizador empregado nas áreas rurais. A fotografia deixou de ser fetiche para assumir o status de mercadoria. A economia permanecia no extrativismo, porém a goma passou a ser um produto de grande retorno financeiro. Em 1877 o aumento do preço da borracha no comércio exterior, a seca que devastava o nordeste brasileiro e a propaganda dos governos do Amazonas e Pará para recrutamento de mão de obra construíram o cenário propício à migração nordestina para os seringais amazônicos. Sem experiência de Amazônia os nordestinos foram obrigados a se adaptarem ao ambiente e a forma de trabalho. Dispensou-se, então, grande parte da força do trabalho indígena e dos trabalhadores autônomos, que por sua vez eram livres. Os exploradores da borracha amazônica haviam garantido o abastecimento local de mão de obra barata sujeita ao trabalho compulsório (OLIVEIRA, 2012). O então governador do Amazonas Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900) nomeia o engenheiro Lauro Baptista Bittencourt (1853-1916)176 membro da Comissão Expositora do Brasil, seção do Amazonas, como responsável na produção do álbum “A cidade de

174O processo de colódio úmido foi inventado pelo inglês Frederick Scott Archer (1813-1857) em 1848, mas difundido somente a partir de 1851. Este processo tinha esta denominação porque empregava o colódio (composto por partes iguais de éter e álcool numa solução de nitrato de celulose) como substância ligante para fazer aderir o nitrato de prata fotossensível à chapa de vidro que constituía a base do negativo. A exposição devia ser realizada com o negativo ainda úmido - donde a denominação colódio úmido - e a revelação devia ser efetuada logo após a tomada da fotografia. Fonte:http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_ verbete=3883. Acesso em: 19-09-2012 as 20:38. 175 Primeiros equipamentos empregados para a produção de ampliações fotográficas, tendo este nome porque empregava a luz do sol como fonte de iluminação. Fonte:http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/termos.cfm. Acesso: 19- 09-2012 as 22:25. 176 Diretor da Repartição de Obras Públicas do Amazonas. 364

Manáos e o paiz das seringueiras” para ser divulgado na Exposição de Chicago em 1893. Nesse álbum, 41 fotografias evidenciavam o processo civilizador que a elite manauara se dispunha a implantar na cidade de Manaus. Dessas 41 fotografias 06 mostravam a condição da comunidade Jamamady’s no rio Purus, entre elas a imagem de 02 índios com trajes de não índios e uma pequena índia enrolada em um pano, o que configura a produção da fotografia para satisfazer ao contratante do fotografo, no caso o governo do Amazonas. Em 1902 o atelier Fidanza publicou o “Álbum do Amazonas de 1901 a 1902”por iniciativa de Silvério Nery (1858-1934), governador do Amazonas (1900 a 1904). O álbum possui a capa em couro, gravado a ouro em baixo relevo e o miolo em papel acetinado; contêm 114 fotografias, tamanho 15,5 x 22 cm na cor sépia produzidas pelo fotografo comissionado Georg Hüebner (1862-1935). O texto foi redigido em três línguas, a saber, português, inglês e francês. As imagens desse álbum revelam uma Manaus moderna com um porto bem estruturado, bondes transitando por ruas largas e iluminadas por lâmpadas elétricas, o palácio da justiça e seu interior luxuoso, casas comerciais, bombas elétricas das águas que abastecem a cidade e os jardins do palácio do governo. Os poucos indígenas que aparecem nas fotografias se mostram em atividades subalternas. O Governador do Amazonas Antônio Constantino Nery177 (1859-1924) contrata o fotografo Georg Hüebner para subir o Rio Branco, a bordo do Vapor Mararyr em 1904, junto com o engenheiro militar Alfredo Ernesto Jacques Ourique(1848-1932), e documentarem a vida ribeirinha, as grandes fazendas nacionais do Rio Branco, “São Marcos” e “São Bento”, origem da maior parte da carne que abastecia Manaus (VALENTIN, 2009), as ruínas do forte São Joaquim, a fronteira do Brasil com a Guiana Inglesa e as paisagens naturais. A exemplo do “Álbum do Amazonas de 1901 a 1902” a população indígena aparece em atividades subalternas nas fazendas da região. Porém, por iniciativa própria, Hüebner, que acompanhou a edição do álbum, dedicou as três ultimas páginas para mostrar os indígenas da região, seus artefatos e modo de vestir. O álbum “Valle do Rio Branco” foi editado em Dresden na Alemanha ficando pronto em 1906178. Durante esse período o extrativismo impulsivo deu início ao conflito entre Brasil e Bolívia por conta da ambição daqueles que buscavam seringueiras bolivianas. O Barão do Rio Branco(1845-1912), junto com o embaixador Assis Brasil(1858-1933), financiados por

177 Irmão de Silvério Nery que o sucedeu no governo do Amazonas em 1904. 178Porém foi divulgado apenas em 1908 na Exposição Nacional no Rio de Janeiro. 365

barões da borracha ou coronéis de barranco, mediou as negociações entre os países. Em 17 de novembro de 1903, comprado por dois milhões de libras esterlinas, o Acre passa a ser território brasileiro.A “Questão do Acre”, como o processo foi intitulado, trouxe a exigência do governo boliviano para a construção de uma ferrovia sobre o rio madeira, assim a produção de borracha poderia alcançar o porto de Belém. Em 1907 a ferrovia Madeira-Mamoré começou a ser construída em Porto Velho capital de Rondônia. Cientes da funcionalidade do álbum os governantes do Amazonas e Pará entenderam que a fotografia seria a solução para a demanda de representações mais precisas e fiéis da realidade (BAETENS, 1998) e de seus projetos arquitetônicos, urbanísticos e principalmente no que se refere ao processo civilizador empregado nas áreas rurais. A fotografia deixa de ser fetiche para assumir o status de mercadoria. Seguindo a mesma proposta dos álbuns anteriores, o álbum “Pará” mostrava o progresso que o estado obtinha por intermédio da administração do governador Augusto Montenegro (1867-1915) entre os anos de 1901 a 1909.Suas 350 páginas medindo 38 cm x 29 cm com 292 fotografias fazem do “Pará”o maior de todos os álbuns produzidos na Amazônia até então. Esse álbum não possuía nenhuma imagem da cultura indígena, porém quando esses apareciam estavam trabalhando em fazendas e na descrição das fotografias continha a seguinte frase “pessoal do campo”. Entre os meses de janeiro e novembro de 1908 o Governo Federal realizou na cidade do Rio de Janeiro, então capital da jovem República,uma Exposição Nacional com a finalidade de comemorar o centenário da Abertura dos Portos e fazer um inventário da economia do país(PESAVENTO, 1997).A capital federal acabara de ser urbanizada pelo prefeito Pereira Passos(1836-1913) e saneada por Oswaldo Cruz(1872-1917). Esse era o objetivo político da Exposição: mostrar a nova Capital da República à diversas autoridades nacionais e estrangeiras. Enquanto o Brasil se esforçava por mostrar as outras nações que se livrará do molde colonial exibindo uma arquitetura moderna, empresas comerciais luxuosas, hotéis suntuosos, jornais liberais entre outras conquistas republicanas; o Amazonas e o Pará encontraram nos álbuns oficiais, fotografias e cartões postais os suportes materiais eficazes para expor seus projetos civilizadores à nação brasileira.

366

Tempo da fotografia O tempo revelado por parte do conteúdo nas fotografias de Walter Hunnewell, Albert Frisch, Felipe Augusto Fidanza e George Huebener é o pretérito.A fotografia indica que “Isso foi isso”(BARTHES 1984, p. 115).É nesse sentido que o olhar busca descobrir o referente, o algo, alguma coisa ou alguém enquanto objeto fotografado. Nesse sentido o olhar compõe um ritual vigoroso rumo à transcendência do tempo (AUMONT, 1993). A fotografia confessa ao presente que fez parte de um momento, de um instante no passado e que agora se submete a contemplação. Órfã de seu autor impõe em sua narrativa visual a conquista sobre o tempo do que foi fotografado.O historiador...

(...) vai tentar recuperar o passado, tal como ele chega até ele – sob a forma de textos e imagens – e, a partir daí, construir a sua versão. Mas o que chamamos de predisposição do olhar, aberta às novas possibilidades dadas para compreensão da história como representação, se acrescenta a um novo desejo: o de perseguir o resgate das sensibilidades passadas. (PESAVENTO, 1996, p. 109).

Perseguimos na história o tempo por meio da narrativa visual (APERTURE, 2000) nos suportes e conteúdos das imagens entre a última metade do séc. XIX e a primeira década do séc. XX. Invocamos a impossibilidade de visitar ou entrevistar os lugares e os sujeitos históricos que foram fotografados. Tal impossibilidade nos conduz a levarmos em conta as tradições e códigos desse período.O foco do olhar recai sobre uma representação, um símbolo. Ao invés de conhecermos o Sr. João visualizamos um seringueiro que representa a classe de trabalhadores da borracha (CORBIN, 1998), percebemos o tipo de barracão de comercialização, das casas e etc. Em 1865 no “Bureau d’Antropologie” da expedição “Tayer” em Manaus, Hunnewell fotografou os habitantes da cidade que, de acordo com Agassiz,congregavam visualmente as diversas “raças” e os “híbridos” que existiam na região (ISAAC, 1997; KOHL, 2006).A Amazônia foi transformada em uma espécie de laboratório de estudos sobre a mestiçagem brasileira. Porém os amazônidas impuseram o estilo próprio de vida onde as relações humanas sobrepujaram o preconceito e o racismo179. Se no séc. XIX as

179 “Não só Agassiz aumentou seus conhecimentos sobre os peixes, como teve ocasião de acumular uma soma de fatos novos e interessantes sobre as numerosas variedades produzidas pelo cruzamento de índios, pretos e brancos, e pode juntar às suas notas uma série bem completa de fotografias” (AGASSIZ 1975, p. 182). 367

imagens de Hunnewell (Fotografia 05) foram utilizadas como exemplo racial e cultural e ser evitado pela América do Norte (KURY, 2011) no século XXI elas garantem um lugar a esses sujeitos na história do povo Brasil. Manaus, 10 de novembro de 1865, Agassiz180 e Hunnewell181 buscaram entre os moradores aqueles que fotografados confirmassem a diversidade e hierarquia das raças humanas. Encontraram uma mulher simples de vestido adequado para a época. Colar e anéis eram elementos de adereço que manifestavam o cuidado com a aparência (DAOU, 1998). A narrativa visual proposta por essa seleção (Fotografia 05 e Fotografia 06) envolve combinações infinitas, em densidades variáveis e oscilantes, de interpretações.Por um momento ao olhar desatento do observador a atenção destaca o traje, a postura da mulher que posa para o retrato (BANTA, 1986). Em seguida o olhar retratado nos faz refletir sobre a imagem estruturada mediante um processo discriminatório. Processo que também se escora em múltiplas e infinitas combinações. Na fotografia 05 tentou-se criar um ambiente onde o tempo perdeu-se no desfocar do segundo plano. A face da mulher, carregada de comedimento revela a cumplicidade entre a fotografada e o fotógrafo. O diálogo silencioso entre ambos é fraturado, transgredido com olhar contemplativo de quem contempla a fotografia. A narrativa visual passa a ser construída tridimensionalmente. Agassiz e Hunnewell procuraram produzir fotografias tipológicas onde seus modelos estivessem desvinculados de elementos que caracterizassem a posição social que ocupavam. Tal intento não logrou sucesso, pois a postura, por exemplo, demonstra a condição social, em parte armada pelo fotógrafo, pois as mãos foram postas de maneira a servir para as análises comparativas futuras de forma e tamanho (ISAAC, 1997 p. 9). A servidão humana na Amazônia do Século XIX envolve a fotografia como instrumento de construção do sujeito histórico. O retrato [...] é, antes de mais, um signo cujo propósito é simultaneamente a descrição de um indivíduo e a sua inscrição numa identidade social (TAGG, 1988 p.37). A ausência de qualidade na técnica fotográfica de

180 Sobre a relação de Agassiz e Hunnewell com a fotografia ver Banta (1986) especificamente o capítulo BiologicalAnthropology: EvolutionfromDaguerreotypetoSatellite. 181 Hunnewell recebeu instruções de como utiliza o equipamento fotográfico na Casa Leuzinger (STEPAN 2001). 368

Hunnewell deixa de ser obstáculo quando entendemos que tais imagens são documentos. Nesse caso uma imagem-documento que priva ao sujeito histórico de um nome negando sua competência de indivíduo. Nega-lhe um tempo, pois o que interessa ao fotografo é a forma. Ao notarmos um pequeno número 40 ao lado da mulher imaginamos que 39 outras pessoas passaram por ali satisfazendo a necessidade “científica”182 da expedição.

Fotografia 05 -Série Mestiça. Retrato de um tipo racial, mulher não identificada.

Acervo: Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard.Fotografo: Walter Hunnewell. Manaus, 1865-1866.

O laboratório fotográfico era nitidamente improvisado183. O quintal da casa era utilizado para dar um pouco de privacidade e aproveitar a luz diurna. As vozes das pessoas que esperavam184 na sala eram percebidas como murmúrio. Tropeçando e esquivando-se dos restos de telhas quebradas pedras e galhos, sem a preocupação de um fotografo profissional,Hunnewell posicionava cada modelo em um lugar diferente deixando de lado a coesão do cenário e a distância entre a câmera e o modelo. A fotografia de Hunnewell

182 Grifo nosso 183Nosso antigo acampamento pitoresco na Tesouraria, trocado por um apartamento mais confortável em casa de Honório, serve agora de “atelier” fotográfico. Agassiz passa ali a metade dos dias, em companhia de Hunnewell, que tendo consagrado todo o tempo de sua estada no Rio a aprender os processos fotográficos, adquiriu certa habilidade na arte da “semelhança garantida” (AGASSIZ; AGASSIZ, 1975 p. 171). 184 Muitos ainda falavam o nheengatu, idioma dos indígenas da Amazônia. 369

opera de modo diferenciado quando refletimos sobre o espaço e o tempo. Percebemos no cenário a preocupação com a luz, ao contrário da composição do ambiente. Janela quebrada, paredes descascadas e entulhos no chão. Ao selecionar o local que serviria de fundo para seus modelos incutiu-se a transformação da realidade. O corpo da mulher estava exposto (Fotografia 06), envolvido pelo descuidado no ambiente que dividia a experiência de ser registrado185.

Fotografia 06 -Série Mestiça. Retrato de um tipo racial, retrato frenologico, mulher não identificada.

Acervo: Museu Peabody de Arqueologia e Etnologia da Universidade de Harvard.Fotografo: Walter Hunnewell. Manaus, 1865-1866.

185Fui, então, para o estabelecimento fotográfico e lá fui cautelosamente admitido por Hunneweel com suas mãos negras. Ao entrar na sala, encontrei o prof. ocupado em persuadir 3 moças, às quais ele se referia como sendo índias puras, mas as quais eu percebi, como mais tarde se confirmou, terem sangue branco. Elas estavam muito bem vestidas em musselina branca, tinham joias e flores nos cabelos e exalavam um excelente perfume de pripioca. (Machado 2006, p.206) 370

A mulher despida que aparece na fotografia 06 não se tratava de uma índia cuja vestimenta e os adornos deixavam em exposição grande parte do corpo. Era uma mulher que a 45 fotografias anteriores186 estava utilizando com um traje ao molde ocidental. O tempo está confesso no processo de desnudamento da mulher quando notamos abaixo da janela suas roupas amontoadas no chão. Outras pessoas aguardavam na sala, Hunnewell não possuía tempo para perder. A luminosidade era preciosa demais. O cenário estava pronto, era só chamar... Entretanto a nudez não era um estado natural dos habitantes da Amazônia e alguns não gostaram de terem seus corpos utilizados para tal serventia187. Continuando nosso percurso saímos da capital do Amazonas, onde o comércio da borracha prosperava, para seguirmos rumo aos seringais. Albert Frisch foi um excelente profissional. Homem culto capaz de manusear com destreza seu equipamento para captação de imagens e conhecedor de química na manipulação do material empregado para revelação de suas fotografias. Os envolvimentos com a materialidade e o tempo são uma espécie de assinatura do profissional em seu trabalho final. Quando a crônica visual Frischiana foi montada por Leuzinger houve a preocupação de respeitar o trajeto percorrido por parte do fotografo188. Foram 98(noventa e oito) imagens produzidas em 1867 que retratam a fronteira do Brasil com o Peru passando pelo rio Solimões e por fim o Rio Negro. Em meio à floresta amazônica entre sumaúmas, castanheiras e andirobas o seringueiro montou seu Tapiri189. O odor de terra e a umidade estavam impregnados por toda a parte. A pouca sombra indicava o meio dia. O tempo era quente, as folhas paralisadas manifestavam a ausência do vento. Poucos pássaros cantavam naquele momento. O som da floresta se limitou ao cuinchar de um macaco prego, o assoviar de uma paca e o zunir de vários carapanãs. Frisch olhava fixamente aquela cabana que contrastava com o cenário natural. Solitariamente contava os segundos de exposição para que sua máquina captasse aquele instante. A estrutura armada (Fotografia 07) demorou no mínimo 10 (dez dias) para ser

186 Perceba que na fotografia 06 ao lado da mulher encontramos o número 95. 187 O fato foi registrado pela polícia manauara, conforme ofício n˚ 787 expedido em 24 de outubro de 1865. 188 Ver pagina 04 deste texto 189Cabana construída com pequenos troncos, cipós e folhagens. 371

concluída. Sob ela uma rede suspende um homem, um seringueiro cuja família estava longe.Pensava em casar com a mulher que contratou, com a autorização do patrão (REIS 1953), para ficar com ele durante a safra da borracha190. A mulher casada com o seringueiro descia o barranco com o filho pequeno carregado nos quadris para lavar as roupas no igarapé. Quando secas eram passadas com um ferro que utilizava as brasas de mirixi ou caimbé do fogão à lenha improvisado.

Fotografia 07–Hütte der Seringueiro (fabricant de caoutchoue).

Fonte: Vistas de Amazonas Império do Brasil 1865, página 67. Fotografo Albert Frisch

190 No final da empreitada um percentual que poderia chegar até 50% ficaria para a mulher. 372

Para o seringueiro aquele momento em seu acampamento não era apenas para o descanso, servia alimentar a esperança, pensar no futuro melhor e ludibriar o presente de dividas e calos nas mãos. Esse foi o momento escolhido pelo fotógrafo. A cumplicidade do ambiente com a história, a escolha do cenário para a introdução do ator social e a partir desse ponto o desenrolar da narrativa visual ganha sua independência (FOSTER, 1988). Frisch era conhecedor dos percalços da vida em meio à floresta. Já havia fotografado as comunidades indígenas Caixiana, Miranha e Tecuna com poucoou nenhum contato com o progresso ocidental. Era vez dos mestiços, ou caboclos, como eram chamados na época, moradores de pequenas vilas, seus costumes e a colheita de caucho que sustentava a produção amazônica da borracha. O homem recebeu no aviamento aquilo que ele acreditou ser necessário para o trabalho na floresta (Fotografia 08): Farinha, arroz, charque, café, facão, corda etc. Naquele momento viu seu nome sendo anotado em um caderno (TEIXEIRA 2009). Ele não era apenas um seringueiro, ele era um freguês. O gerente oferecia os produtos, conversava, contava as histórias do lugar. Parecia ser uma relação de livre comércio, todavia uma estrutura coercitiva de aprisionamento do seringueiro estava sendo construída (BECHIMOL 1977). A garantia da permanência do freguês durante a safra estava no transporte das mercadorias até o acampamento. Trabalho realizado pelo gerente ou até mesmo o patrão. A dívida aumentava a produção não parava e o trabalhador era mantido na servidão. Distante do Amazonas em espaço e tempo, precisamente 10 (dez) anos a pós Frisch publicar suas fotos, o pintor e fotógrafo Felipe Augusto Fidanza, português nascido em Lisboa, um dos fotógrafos, se não o mais importante, do Pará em meados do séc. XIX fotografava as ruas de Belém. Proprietário de um estúdio fotográfico, cujo equipamento era o melhor que existia à época, Fidanza considerava suas fotografias obras de arte que revelavam a paisagem amazônica (KRAUSE, 2011).

373

Fotografia 08–Fabrication de caoutchoue.

Fonte: Vistas de Amazonas Império do Brasil 1865, página 67. Fotografo Albert Frisch

Estava no lugar certo. Belém, da mesma forma que Manaus, sofria profundas modificações em sua paisagem urbana. Nas fotografias de Fidanza podemos observar a relação dos sujeitos sociais com as inovações tecnológicas e a nova estrutura urbana que se desenhava na capital paraense. Os lugares se transformaram em memória (KEILLER, 2010; VERNANT, 2009). Casas velhas eram substituídas por casarios, cavalos e carroças disputavam espaço com os bondes e as pequenas chamas das lamparinas davam lugar à luz

374

elétrica. Foi uma manhã quente. O relógio na torre do prédio marcava 10h25min. Fidanza estava em pé por detrás da sua maquina fotográfica esperando pacientemente o tempo estimado de exposição para a captura do momento desejado. Barcos atracados se denunciavam com os mastros pontiagudos fincados no céu sem contorno. A baia de Guajará empurrava um vento baixo levantando a poeira da estreita rua. Um Landau191 estacionado na esquina contrastava com as pequenas carroças de carga. Três homens compõe a narrativa visual proposta por Fidanza. O primeiro, no lado esquerdo da fotografia, equilibra um tacho na cabeça, mais a frente outro homem parado logo depois de um poste de iluminação. Ambos olham fixamente para a rua. O terceiro encontra-se segurando as rédeas de um burrico que carrega em seu lombo uma carroça com mercadorias. A atenção dos homens se explica quando o olhar de quem contempla a fotografia encontra quase no início da rua uma carroça vazia sem condutor sendo puxada por um burrico desgovernado. O fotografo capta a cena deixando o final da história a critério de quem admira sua obra (DELEUZE, 1990; DUBOIS, 1994). Seja alguém de 1865 ou o leitor deste texto. Por mais que o corte fotográfico codifique o espaço na fotografia 09 o tempo é uma variável importante do processo inscrito sob a forma de um borrão. Felipe Augusto Fidanza se mantem no posto de fotografo respeitado e tem suas fotografias publicadas no “Álbum do Pará” em 1899;o álbum “1900”, que foi lançado na Exposição Universal de Paris; o “Álbum de Belém”, de 1902;“O Pará”,de 1908.Em Belém o alemão Georg Hüebner foi contratado por Fidanza como fotografo comissionado e anos depois passam a dividir a sociedade do estúdio Foto Fidanza.

191 Tipo de carruagem com cobertura móvel fabricado no Século XIX por Mulbacher de Paris. Possivelmente pertencia ao próprio Fidanza, pois em outras fotografias das ruas de Belém o mesmo veículo aparecia estacionado. 375

Fotografia 09–Rua do Pará.

Coleção AlphonsStübel. Acervo Leibniz-InsrirutFürLänderkunde - Província do Pará, 1875 (Carte de Visite 6,3 x 8,9 cm.).Fotografo Felipe Augusto Fidanza.

376

O fotografo Alemão produz o retrato de Euclides da Cunha192que após editar “Os Sertões” empreendeu outro trabalho de folego, a saber, “A Margem da História”, desta vez relatando sua viagem em direção ao rio Purus como representante do Itamaraty. Apesar de possuir um atelier fotográfico de boa qualidade Hüebner (SCHOEPF, 2005; TACCA, 2011)adentrava a floresta amazônica subindo as calhas do Rio Negro e do Rio Branco (VALENTIN 2008). Procurava documentar (BURKE, 2004; LE GOFF, 2008) por meio da fotografia a vida dos indígenas, dos seringueiros; as paisagens urbanas e rurais; a fauna e a flora. Em 1904, respeitando a ética na construção da narrativa visual (CASANOVA, 2010; KOSSOY, 2010),produz uma série de cartões postais cujo tema foi o seringal. Em carta para o amigo Theodor Koch-Grünberg datada de 16 de outubro de 1905 Hüebner adverte:

Somente há pouco tempo é que se passou a explorar a borracha do rio Yauapéry193, e os seringueiros mantinham boas relações com os índios, com os quais faziam trocas. Isso quer dizer que as noticias que tem chegado, de que os índios teriam atacado os coletores de borracha, matando três homens e ferindo gravemente dois outros pegaram-nos de surpresa [...] Por ora, os índios ainda são os senhores do rio, mas quanto tempo ainda lhes resta antes que sejam deslocados pelos coletores de borracha?(trecho de correspondência entre Huebner e Koch-Grünberg traduzida do original por SCHOEPF, 2005, p. 168)

Em meio os embates físicos e a servidão econômica lá estava o seringueiro entre aquele rizoma de pequenas picadas na floresta retornando ao seu tapiri194. Há 13 horas atrás o dia começou por volta das 4h, um café bem forte, juntar as tralhas, iniciar uma longa caminhada se embrenhando por entre enormes árvores rumo à seringueira da vez. As folhas secas e pequenos galhos que cobriam a picada denunciavam aos habitantes indesejados da floresta a presença dos trabalhadores. Assurucucu-pico-de-jaca e Cascavel-de-quatro-ventas costumavam dar o bote quando os trabalhadores estavam almoçando. A aranha marrom e a armadeira escondiam-se nas casacas das árvores. Existia, também, um escorpião escuro, quase preto, cuja ferroada era fatal. Para o seringueiro o

192 Correspondente do jornal Estado de São Paulo, após a cobertura do conflito em Canudos (1896-1897) publicou “Os Sertões” em 1902. Obra pioneira do jornalismo científico no Brasil. Alguns anos, após sua incursão pela Bahia, Euclides da Cunha chefiou, em 1907, a equipe brasileira da “Comissão Mista Brasileiro- Peruana de Reconhecimento do Alto Purus”. 193 Rio que corre entre os municípios de Rorainópolis (RR) ao sul do estado de Roraima e Novo Airão (AM). 194 “Calcule-se um seringal médio, de duzentas estradas: tem cerca de 15 léguas quadradas; e este latifúndio, que se povoaria á larga com 3.000 habitantes ativos, comporta apenas a população invisível de 100 trabalhadores, exageradamente dispersos.” (CUNHA 1909 p. 70) 377

mito do Curupira, Mãe da Mata ou o Mapinguari eram relatos reais de colegas que presenciaram o fato (VERNANT, 1988). Quando chegou ao seu destino o seringueiro tratou de sangrar a árvore, enfincou a tigelinha para onde a seiva branca, o látex, escorria. O dia inteiro seringueira após seringueira. Entre uma sangria e outra rezou para não contrair uma doença:infecção intestinal, beribéri ou impaludismo. Se durante o dia a floresta fechada dificultava a visão imagine a noite. O fim da tarde chegou. Era hora de juntar as tigelinhas e percorrer o caminho de volta (Fotografia 10) prestando atenção nas surucucu-pico-de-jaca e Cascavel-de-quatro-ventas...

Fotografia 10–A Borracha no Amazonas – Voltando da estrada.

Acervo particular do autor. Fotografo Georg Hüebner.

378

O dia termina, mas o trabalho não. O seringueiro chegou em seu tapiri despejou o conteúdo das tigelinhas em um recipiente maior onde o látex coagulou. Em seguida pacientemente defumou o liquido esbranquiçado dando origem a péla. Terminava mais uma jornada de 15 horas de trabalho (CHAVES, 2011). Mas a história desses trabalhadores não. De escravos a soldados da borracha, de índios expulsos de suas terras no século XIX à seringueiros assassinados no século XX, da sangria nas árvores o látex branco denunciava o sacrifício de homens e mulheres esquecidos na Amazônia brasileira. As imagens, as fotografias que revelaram um pouco dessa história permanecem como documento, testemunho do tempo, do passado de alguns, da memória de um povo e da identidade de uma Nação.

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Conceitos e questões éticas do documentário: análise das asserções da produção tocantinense “Kitnet o filme”

Talita MELZ195 Edna de Mello SILVA196

Resumo: O presente trabalho pauta a análise conceitual do documentário tocantinense “Kitnet o filme”, dirigido por André Araújo. A partir das visões e conceitos do termo,propostos por Penafria (2004), Da-Rin (2006), Nichols (2008) e Ramos (2008), o artigo busca encontrar qual a modalidade documental que a produção audiovisual pode ser classificada. A análise aborda também as questões e valores éticos acerca do documentário e a aplicação no curta-metragem tocantinense. Posteriormente, o estudo considera as perspectivas históricas e ideológicas, tanto da trajetória histórica do documentário como do próprio contexto local de produção, a capital e o estado tocantinense, para ponderar sobre a influência que estes argumentos exerceram sobre o curta-metragem “Kitnet o filme”.

Palavras-chave: GT Audiovisual, Documentário; tipos de documentário; Palmas; Tocantins

A produção audiovisual no Estado do Tocantins, a mais nova unidade da Federação Brasileira, ainda é precária e limitada, porém, é relativamente numerosa e constante. Parece uma contradição, mas, mesmo com poucos recursos materiais para trabalhar com produtos audiovisuais, festivais e os cursos superiores do estado vem há mais de dez anos incentivando produtores independentes a trabalhar. Além disso, o fato de o estado ser “jovem” impacta na busca de uma identidade própria, tanto na cultura como em outros aspectos, essa questão causa uma “ânsia de produção”, principalmente pelos na população mais jovem do estado. É importante frisar que a preservação do acervo das obras no estado é deficiente. O Tocantins, também, é um estado extremamente político. Desde a sua criação em 1988 e instalação no ano seguinte as influências políticas interferem em todos os âmbitos da sociedade tocantinense, o que acaba por impactar, também, nas produções

195Estudante de Graduação do sexto semestre do Curso de Jornalismo da UFT, bolsista do Projeto “Identidade e memória: registro e análise da produção audiovisual do Tocantins”, beneficiado pelo Edital/SECT/N° 02/2010 -Programa Primeiros Projetos/PPP/2008.Email: [email protected] 196Professora Adjunta da Universidade Federal do Tocantins, onde ministra a disciplina de Telejornalismo e orienta projetos experimentais e pesquisas científicas na área de produção audiovisual. Fez doutorado e mestrado em Ciências da Comunicação, no Departamento de Jornalismo da ECA-USP. Este artigo é parte dos resultados do Projeto “Identidade e memória: registro e análise da produção audiovisual do Tocantins”, beneficiado pelo Edital/SECT/N° 02/2010 -Programa Primeiros Projetos/PPP/2008.E-mail: [email protected] 383

cinematográficas. Palmas, a capital tocantinense, cidade planejada estrategicamente para ser a sede do governo, é de certa forma o “celeiro de produções”, direta ou indiretamente a cidade está presente na maior parte dos trabalhos. Como é o caso do objeto de analise deste artigo, o documentário “Kitnet o filme”197, que foi gravado e produzido em Palmas. O documentário “Kitnet o filme”, dirigido por André Araújo mostra a realidade dos moradores de kitnet da capital tocantinense, Palmas, no ano de 2007.As kitnetes são residências tipo apartamento, composto por apenas um ou dois cômodos e banheiro, quase sempre, quarto e sala/cozinha, algumas com lavanderia. Na capital tocantinense esse modelo de moradia é muito procurado por estudantes e novos moradores, devido ao baixo custo e sua funcionalidade. Agrafia correta do termo, de acordo com o dicionário do Aurélio Online (2008 – 2013), é quitinete, porém, em Palmas o uso da grafia kitneté popularizado e comum. O próprio filme brinca com essa questão, em um de seus momentos pessoas de uma feira são convidadas a escrever o termo em um quadro branco. “Kitchenete”, “Kitinet”, “Kit-nete”, são algumas das grafias que aparecem, “Quitinete” e “Kitnet” são as mais presentes. A produção de André Araújo, classificada com não ficção apresenta os relatos dos problemas, a precariedade, as intrigas, mas também o companheirismo dos vizinhos de porta de janela dos moradores, além das amizades e histórias engraçadas que acontecem com quem residem neste tipo de moradia. O filme também mostra trechos da história da cidade e de questões políticas. O estudo pauta a classificação deste documentário, para isso considera alguns conceitos do termo documentário elaborados ao longo da trajetória do audiovisual. Porém, os conceitos que classificam as formas de como se produzir um documentário expõem uma multiplicidade de visões sobre o gênero, além das fronteiras entre o que é não ficção e do que é ficção. É importante constar que as formas de produzir um documentário passam por transformações e adaptação que se ligam aos seus contextos históricos e as ideologias da época de produção da obra e da própria teoria documentaria. Outro ponto da análise são as discussões éticas em torno da produção documentária. Questões que reproduzem as

197Produção de 2007, com duração de 26 minutos e 19 segundos. 384

problemáticas sobre o gênero. Assim como os conceitos, ao longo dos anos a forma de lidar com a ética no documentário sofreu alteração de acordo com os contextos em que foram produzidos. A questão ética do gênero assume a preocupação com a reprodução de asserções sobre o mundo, ou seja, a preocupação em apresentar a realidade nos filmes. Desta forma este estudo observa se o documentário “Kitnet o filme” estabelece as asserções sobre o mundo, que são essências, segundo Ramos (2008), na produção e não ficção.

. 1 - O gênero documentário As principais teorias sobre o gênero documentário estão baseadas nas transformações nos estilos de produção e posicionamentos éticos das produções ao longo da trajetória do audiovisual. Dessa forma, as muitas das discussões sobre o cinema não ficcional documental partem das transformações de conceitos. As mudanças de conceitos estão ligadas aos seus contextos históricos e as ideologias da época e de quem as produziam. Retratando assim o que Penafria (2001) estabelece como “questão essencial na produção e realização de documentários: a relação que o documentarista estabelece com os intervenientes do seu filme” (p. 1) Todas as mudanças no gênero fornecem as variações do conceito do que é documentário, que por sua vez se mantem em constante transformação, sempre explorando as fronteiras entre a ficção e a não ficção.Por isso,Da-Rin (2006) explica que a conceituação do termo ampla e insistente e que não é uma consideração que se possa “operar no plano teórico”. Nichols (2008) afirma a produção do documentário é o termo que pode ser denominado como “conceito vago”, apesar de serem os trabalhos de “representação social”. A principal característica atribuída à teoria documentaria é que a produção audiovisual deve se assemelhar ou evidenciar a uma realidade proposta.Nichols (2008) explica que o documentário é uma representação do mundo, ele revela determinada visão sobre o tema tratado na produção. A partir disso Ramos (2008) atribui uma definição mais técnica/prática ao documentário, sendo o gênero “uma narrativa com imagens-câmera que estabelecem asserções sobre o mundo, na medida em que haja um espectador que receba essa narrativa como asserção do mundo” (p. 22).

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Porém, Penafria (2001) lembra que, apesar de possuiu o papel de estabelecer asserções com o mundo, o documentário ocupa uma posição ambígua e polêmica na história das produções cinematográficas, já que:

Por um lado, recorre a procedimentos próprios do cinema (escolha de planos, preocupações estéticas de enquadramento, iluminação, montagem, separação das fases de pré-produção, produção, pós- produção, etc.). Por outro lado, enquanto espectadores, exigimos que um documentário, por manter uma relação de grande proximidade com a realidade, deva respeitar um determinado conjunto de convenções: não direcção de actores, uso de cenários naturais, imagens de arquivo, câmera ao ombro, etc. (PENAFRIA, 2001, p. 1)

Por esse motivo, o documentarista deve se preocupar, além do conteúdo e os artifícios utilizados na produção, com a visão do público que o assiste. A partir disso, nasceu a procura por trabalhos documentários “mais naturais”. Da-Rin (2006) enfatiza que os Documentaristas acreditam na necessidade de preservar a naturalidade do mundo e tendem a evitar intervenções (entrevistas, comentários, encenações) e artifícios de filmagem e edição (alterações de velocidade, movimento planejados, montagens aceleradas). (DA-RIN, 2006, p. 9).

O documentário é, antes de tudo, uma definição da intenção do documentarista, ou ainda a escolha de um ponto de vista.

A escolha de um ponto de vista é uma escolha estética implica, necessariamente, determinadas escolhas cinematográficas em detrimento de outras (seleccionar determinado tipo de planos em detrimento de outros - por exemplo, grandes planos, - optar por determinadas técnicas de montagem - por exemplo, montagem paralela - em detrimento de outras). Cada selecção que se faz é a expressão de um ponto de vista, quero documentarista esteja disso consciente ou não. (Penafria,2001, p. 3)

Bill Nichols (2008) aponta que o documentário, ao representar algum aspecto do mundo, pauta um “argumento sobre o mundo”. Este argumento implica em uma visão do assunto, ou seja, um ponto de vista, uma forma de organização. Assim, Nichols (2008) classificação histórica das modalidades de organizar os conteúdos das produções de acordo com os pontos de vista dos documentaristas. Os seis modos de representação desenvolvidos pautam, cada um deles, seus próprios métodos de

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trabalho, códigos e/ou regras, tanto no que diz respeito à ética como nas práticas específicas. Porém, as modalidades de representações documentárias não são fechadas ou próprias, uma produção documentaria pode utilizar características de outros modos. O primeiro deles o modo poético que possibilita a apresentação de informação de formas alternativas, enfatizando o tom, o afeto, de forma a expressar um ponto de vista com mais entusiasmo assim não necessitando utilizar técnicas como a persuasão ou a alta capacidade de transmitir ensinamentos. As características desta modalidade trabalham com questões estéticas e poéticas.

O modo poético sacrifica as convenções da montagem em continuidade, e a ideia de localização muito especificas no tempo e no espaço derivada dela, para explorar associações e padrões que envolvam ritmos temporais e justaposições espaciais. Os atores sociais raramente assumem a forma vigorosa dos personagens com complexidade psicológica e uma visão definida de mundo. (NICHOLS, 2008, p. 138)

Essa modalidade de produção documentaria enfatiza o jeito em que o cineasta e suas vozes proporcionam ao mundo histórico uma espécie de integridade formal, porém, também estética peculiar. O modo expositivo agrupa asserções, ou para Nichols (2008) “fragmentos” do mundo em uma estrutura retórica ou argumentativa. O argumento do documentário é transmitido por letreiros ou comentários em off, colocando as imagens apelas como ilustração.

Os documentários expositivos dependem muito de uma lógica informativa verbalmente. Numa inversão de ênfase tradicional do cinema, as imagens desempenham um papel secundário. Elas ilustram, esclarecem, evocam ou contrapõem o que é dito. (NICHOLS, 2008, p. 143).

Este modelo proporciona a generalização e a argumentação mais abrangente, porém por passar a impressão de ser objetivo e as imagens embasarem a ideia principal, o modo expositivo é ideal para se apresentar informações de maneira sucinta e precisa permitindo a “economia” na necessidade de análise. O modo observativo busca ser o mais natural possível, apresentando ao espectador um sentido imediato do mundo, tornando-o um observador.As produções cinematográficas

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não são “dirigidas”, os personagens interagem entre si ignorando os documentaristas.Nichols (2008) coloca que neste modelo “olhamos para dentro da vida no momento em que ela é vivida” (p. 148). Não existe imposição de comportamento, ou interrupção no desenrolar das asserções apresentadas. Desta forma, essa característica do modo observativo proporciona ao documentário uma ideia da duração real aos fatos, pois:

Todas as formas de controle que um cineasta poético ou expositivo poderia exercer na encenação, no arranjo ou na composição de uma cena foram sacrificadas à observação espontânea da experiência vivida, O respeito a esse espírito de observação, tanto na montagem pós-produção como durante a filmagem, resultou em filmes sem comentários com voz- over, sem música ou efeitos sonoros complementares, sem legendas, sem reconstituições históricas, sem situações repetidas para a câmera e até sem entrevistas. (NICHOLS, 2008, p. 146)

Diferente do modo anterior, o modo participativo é interativo, ou seja, a equipe responsável pela produção do documentário intervir e participar das asserções. A subjetividade da equipe fica visível. Assim, enquanto

O documentário observativo reduz a importância da persuasão, para nos dar a sensação de como é estar em uma determinada situação, mas sem a noção do que é, para o cineasta, estar lá também. O documentário participativo dá-nos uma ideia do que é, para o cineasta, estar numa determinada situação e como aquela situação consequentemente se altera. Os tipos de graus de alteração ajudam a definir variações dentro do modo participativo do documentário (NICHOLS, 2008, p. 153)

A participação do documentarista neste modelo de produção pode ocorrer de variadas formas também. Enquanto em algumas produções o cineasta é colocado “na cena”, enfatizando um encontro vivo, e real, assumindo muitas vezes o papel de pesquisador ou repórter investigativo, Nichols (2008), ainda explica que em outras situações o documentarista assume uma relação mais receptiva e reflexiva, não participa de forma ativa e aberta, através de entrevistas, por exemplo.

As entrevistas são uma forma distinta de encontro social, elas diferem da conversa corriqueira e do processo mais coercitivo de interrogação, à custa do quadro institucional em que ocorram e dos protocolos ou diretrizes específicos que as estruturam. (NICHOLS, 2008, p. 160)

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No modo participativo, os documentaristas pautam a representação de um encontro direto com as asserções do mundo, as questões de representação social, tanto nas perspectivas históricas como no recente. Nichols (2008) aponta que no modo reflexivo a interação não ocorre com os personagens da representação, mas sim com aqueles que assistem ao documentário. Este modelo pauta o mundo real buscando elevar o grau de percepção do espectador. O modelo busca estimular o espectador a refletir sobre a sua relação com o documentário e o recorte da realidade que a produção aborda. “O documentário reflexivo tenta reajustar as suposições e expectativas de seu público e não acrescentar conhecimento novo a categorias existentes, Por essa razão, os documentários podem ser reflexivos tanto na perspectiva formal quanto política.” (NICHOLS, 2008, p. 166) Por último, o modo performático, que assim como o poético promove questões sobre o que é o conhecimento. Para Nichols (2008) o modelo busca comprovar que o conhecimento material oportuniza a compreensão de processos ligados ao funcionamento da sociedade, de maneira a enfatizar as dimensões afetivas e subjetivas. Ou seja, o modelo performático é apresentado “maneira emocional e significativa em vez de apontar para nós o mundo objetivo que temos em comum.” (NICHOLS, 2008, p. 171) A partir das conceituações e compreensões dos seis modelos de representações documentárias apontados, observa-se que:

Os documentários não adotam um conjunto fixo de técnicas, não tratam de apenas um conjunto de questões, não apresentam apenas um conjunto de formas e estilos. Nem todos os documentários exibem um conjunto único de características comuns. A prática do documentário é uma arena onde as coisas mudam. Abordagens alternativas são constantemente tentadas e, em seguida, adotadas por cineastas ou abandonadas. Existe contestação. Sobressaem-se obras prototípicas, que outras emulam sem jamais serem capazes de copiar ou imitar completamente. Aparecem casos exemplares, que desafiam as convenções e definem os limites da prática do documentário. Eles expandem e, as vezes, alteram esses limites. (NICHOLS, 2008, p 48)

2 - Questões éticas do gênero Apesar de o documentário ser apresentado como a forma de estabelecer asserções sobre o mundo, ou realizar uma “representação social”, o acesso direto a realidade é apenas recortes de determinado fato. Nichols (2008) aponta que os documentários representam o 389

nosso mundo de maneira “visível e audível, de maneira distinta, a matéria de que é feita a realidade social, de acordo com a seleção e a organização realizada pelo cineasta.” (p. 26). Entretanto, Pernafria (2001) aponta que:

O documentarista não deve ser visto apenas como um meio para transmitir determinada realidade. A partir do momento em que se decide fazer um documentário, isso constitui já uma intervenção na realidade. É pelo facto de seleccionar e exercer o seu ponto de vista sobre um determinado assunto que um filme nunca é uma mera reprodução do mundo.(PENAFRIA, 2001, p. 7)

Para Ramos (2008) o documentário estabelece asserções sobre o mundo, porém estas podem ser falsas ou verdadeiras. Desta forma os documentaristas conhecendo a fragilidade da aplicação do papel do documentário, conscientes ou não, manipulam as asserções sobre o mundo. Entretanto, o fato de um documentário exibir recortes da representação de asserção do mundo ou ainda não exibir a realidade, não implica que na classificação de determinada obra em documentário.

Existem documentários com os quais concordamos, documentários dos quais discutimos, documentários que aplaudimos e documentários que abominamos. Um documentário pode ou não mostrar a verdade (se é que ela existe) sobre um fato histórico. (RAMOS, 2008, p. 29)

Da-Rin (2006), também, ao observar as propostas de formatos documentários, ao longo dos anos, aponta que não existe técnica ou método que garanta a veracidade plena da produção. Já que não é possível distinguir uma realidade sem estar inserida nela, assim, “qualquer referência cinematográfica ao mundo histórico terá que ser construída no interior do filme e contando apenas com os meios que lhe são próprios” (DA-RIN, 2006, p. 6). Além disso,para Penafria (2001) os documentários são constituídos da mesma forma que os trabalhos cinematográficos de ficção.Assim como nas produções de ficções o documentário necessita se pautar em uma estrutura dramática e narrativa. Estruturas essas que são constituídas por histórias de pessoas, onde estão presentes os personagens, o espaço e o tempo do fato e o conflito. Todos estes fatores esbarram na questão éticas. A partir destes contextos surge as polemicas sobre produções tendenciosas. Porém Ramos (2008) ao abordar a ética documentária trabalha com o conceito do “sujeito câmera”, ou seja, toda a equipe de

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gravação e se ela interfere no momento de produção de campo na cenas assertivas gravadas. Segundo Ramos (2008) a ética é, antes de tudo, um conjunto de valores que proveem uma forma de viver e ver o mundo, sustentando, de forma lógica, a valoração da interferência do individuo no mundo. Portanto a ética está relacionada a interação entre o documentários e o espectador, relacionadas aos contextos sociais e contextos éticos. Para Ramos (2008) estes contextos éticos são: ética educativa; ética da imparcialidade/recuo; ética interativa/reflexiva: ética modesta. A ética educativa está presente no documentário “mais clássico”. Este modelo de documentário se preocupa com transmitir um conhecimento, com o educar através de seu conteúdo. "O campo de valores da ética educativa é formado pelo próprio conteúdo dos valores que veicula, sem que se atine para o estatuto, ou posição, do sujeito que enuncia." (RAMOS, 2008, p. 35). Já a ética da imparcialidade ou do recuo se pauta que o documentário não precisa educar e sim deixar o público tirar suas próprias conclusões sobre o que está sendo transmitido. O documentário que adota essa perspectiva pauta apresentar ao espectador o maior nível de imparcialidade e objetividade possível em suas abordagens. “Trata-se de um conjunto de valores que se constrói a partir da necessidade de trazer a realidade, sem interferências, para o julgamento do espectador.” (RAMOS, 2008, p. 36) A ideia principal nos documentários de ética interativa ou reflexiva é utilizar tanto as técnicas da ética educativa como da ética da imparcialidade. "A ética da intervenção valoriza aquele documentário que se abre para a indeterminação do acontecer, mas flexiona o acontecer do mundo segundo sua crença e o compasso de sua ação." (RAMOS, 2008, p. 37). Desta forma, neste modelo ocorreu a intervenções dos documentaristas nas asserções para passar o conhecimento necessário, mas ao mesmo tempo o formato deixa espaço para o espectador refletir. Diferentemente dos modelos éticos anteriores, a ética modesta busca romper com as concepções de educar, de ser neutro ou ainda reflexivo. Para este modelo não há limites, nem ilusões ou ideologias. O documentário não possuiu uma finalidade, este é modestamente e reconhece a sua própria ignorância.

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3 - “Kitnet, o filme” imersão dos conceitos no cenário tocantinense No documentário analisado a história da cidade de Palmas, capital tocantinense, se mistura com as histórias das pessoas e das kitnetes.Considera-se aqui o primeiro ponto a se pensado, antes mesmo, da avaliação dos conceitos de documentário. A questão dos contextos históricos, sociais e ideológicos. Além disso, a possibilidade de uma história contar outra reforça o status do produto audiovisual como uma asserção do mundo. Os depoimentos das pessoas são recortes da realidade, que juntos montam facetas desta realidade. A produção cinematográfica analisada apresenta uma serie de depoimentos de moradores de Kitnetes ou de pessoas que possui contatos com essa forma de moradia.

O objeto de observação do filme, como sugere o título, são as moradias de quarto e sala, mais baratas e funcionais, um formato de residência extremamente disseminado na capital do estado e muitas vezes única opção para quem chega a ela sem muitos recursos. É exatamente esse público que se acha representado no documentário. (SOARES, SOUZA, 2011, p. 10)

O documentário apresenta também questões políticas da cidade. Elementos do contexto de sua criação, uma cidade planejada estrategicamente e politicamente para a capital do novo estado brasileiro. Ou a representação de um personagem que se utilizou do nome “kitnet” para realizar campanha partidária. Seja contando a história de pessoas ou/e da história da cidade o documentarista de “Kitnet o filme” utilizou de características presentes em vários modos de representação documentária. O modo participativo, por exemplo, ocorre quando em determinados momentos o cineasta interrompe os depoimentos dos personagens para realizar perguntas. As interrupções buscam enriquecer as passagens ou responder possíveis duvidas dos espectadores. Entretanto, apesar desta participação do documentarista, o mesmo não “entra em cena”. “Kitnet o filme” apresenta uma particularidade dos documentários mais atuais. As principais cenas das produçõe se aquelas de maior duração são compostas por entrevistas de personagens. Ou seja, o documentário consiste em imagens dos depoentes sentados em cômodos de suas casas contando seu dia a dia, suas histórias. As cenas de depoimento são enquadradas em primeiro plano, com o destaque no personagem entrevistado. A partir disso, percebe-se que o documentário não utiliza elementos do modo

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observativo. O documentarista participa ativamente da construção do produto, a grande maioria das cenas é composta exclusivamente de entrevistas sobre a realidade dos personagens. Percebe-se, ainda, a intervenção do cineasta na gravação das cenas auxiliares. Os personagens encenam as atividades comuns no seu dia-a-dia. Além disso, essa direção das asserções do mundo fica mais evidente quando os moradores das kitnetes são filmados em frente a suas casas, como se estivessem recebendo uma visita muito esperada. As cenas auxiliares presentes no documentário procuram quebrar o ritmo das entrevistas, para que os depoimentos dos personagens não se tornem cansativos no âmbito visual. Essas cenas apresentam enquadramentos mais amplos, enquadramentos gerais. Algumas vezes, porém, as cenas são dentro das casas, nessas os enquadramentos são em primeiro plano. As imagens das cenas auxiliares foram, a grande maioria, gravadas em movimento. O movimento da câmera, neste contexto, reforça a representação da vida dos personagens, como qualquer outra pessoa sempre está em movimento, sempre está acontecendo. As cenas auxiliares, assim como, as músicas e sons marcantes e chamativos ao fundo procuram reforçar o que os depoimentos contam. A exemplificação da realidade também ocorre quando são apresentadas imagens de mapas, fotos ou vídeos, tanto históricos como atuais da capital tocantinense. A produção cita contextos econômicos,culturais ou políticos da cidade que influenciaram na vida de determinado depoente, apontando que as cenas da produção audiovisual apresentam asserções dessa realidade. Cenas de datas históricas são intercaladas com cenas auxiliares de cômodos das moradias, ou/e com cenas dos depoimentos, para reforçar os discursos. Para a apresentação dessas cenas auxiliares é utilizado o recurso da voz em off, ou em algumas passagens, as imagens são acompanhadas por musicas ou sons. A intervenção sonora no documentário tem o papel principal de marcar a passagem de uma história para outra. O som também é utilizado como um marco ilustrativo de momentos ápices, que merece ser reforçados. A presença de músicas e sons, marcantes e de tonalidades clássicas, algumas regionais outras não, é também uma estratégia para prender a atenção do espectador. Além disso, diferentemente das produções documentarias mais antigas, que

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retiravam os sons do ambiente e os substituam por vozes em off - acreditando que, desta forma, o espectador não perderia a atenção das representações realmente essenciais - os documentários mais atuais, como o analisado, os mantem. A presença dos ruídos do dia a dia da cidade, das casas é uma forma de representação daquela realidade. Os diferentes ruídos sonoros presentes nos diferentes depoimentos do documentário apontam as diferentes realidades (individuais) dentro de uma mesma realidade (coletiva). Durante “Kitnet o filme” nota-se que os personagens são deixados o mais a vontade possível. As entrevistas, mesmo na organização do material final, apresentam um conteúdo mais completo, porém, apesar disso, os assuntos e ajustes são montados para seguir determinada uma linha de pensamento, ponto de vista ou recorte da história contada. O documentário analisado possuiu características do modo reflexivo, assim com pauta elementos da ética educativa. “Kitnet o filme” apresenta depoimentos com informações sobre a cidade e as kitinetes, intercaladas com a história e a forte presença de questões políticas na capital. Assim como a influência desta política em todos os contextos ideológicos. As gravações são sempre nas casas das pessoas para reforçar suas próprias histórias e apresentar as asserções com recortes mais lógicos. Essa caracteriza contribui para a carga emotiva nos depoimentos, que contarem experiências e vidas, tanto fatos positivas como negativos e contraditórios. Essa propriedade é um elemento da modalidade performática, em que as asserções ou recortes representativos do mundo são apresentados com certa carga de emoção. Durante as cenas do documentário é possível perceber de forma subjetiva o que os personagens da trama possuem de comum com os espectadores. O documentário apresenta varias histórias e realidades, porém se mantem em uma mesma representação de mundo coletivo, um mesmo assunto. Os depoimentos apresentam diferentes pontos de vistas dos moradores de kitnetes, enquanto uns são felizes outros desejam mudar suas realidades. As múltiplas visões apresentam ao espectador vários recortes da realidade representada, o que, por sua vez, reforça o comprimento do papel da produção cinematográfica, já que o mundo possuiu diferentes realidades e pontos de vista dentro de um único acontecimento, uma única história. A produção documentária analisada junta as histórias das pessoas com a história da capital tocantinense. A narrativa, de um único eixo temático, altera os depoimentos dos

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personagens buscando uma linha de raciocino próprio. As histórias não seguem uma linha cronológica da cidade ou dos personagens, mas falam sobre os dois. Trechos de um mesmo depoimento aparecem em momentos diferentes da narrativa cinematográfica, sem perder a lógica com o assunto central e a própria história dele. A montagem da narrativa procura costuraras realidades Sob a questão ética do documentário percebe-se que, apesar de pautar características da ética educativa, a produção cinematográfica não busca por si só ensinar algo, para, além disso, apresentar uma realidade, se reflexivo.

Considerações finais A análise do documentário “Kitnet o filme” apontou mais uma vez que a conceituação e caracterização dos conceitos deste termo são amplos, complexos. A produção apresentou características de varias modalidades de representação do real apresentadas no presente estudo. Assim, como se classificaria o objeto de análise? O documentário compre seu papel de apresentar asserções do mundo, mesmo com algumas cenas “dirigidas”?Além disso, os sons auxiliares afetam ou não o papel de representação do documentário? A questão é ampla, porém não se pode negar que apesar desses questionamentos, os espectadores ao assistir “Kitnet o filme”, o identificarão como um documentário. Assim, por mais que o conceito seja “vago”, e características de diferentes épocas documentárias se encontrem no produto, o fato do trabalho apresentar histórias de pessoas reais da capital tocantinense o transforma em um trabalho que apresentou asserções de mundo. A realidade apresentada é única, de um contexto único, porém o trabalho analisado, como já pautado, é um “recorte”, selecionado e organizado pelo documentarista. O contexto sociopolítico e sociocultural da capital tocantinense possui suas peculiaridades, como a sua construção planeja e uma população jovem e de diferentes origens. Desta forma, chegamos a um ponto interessante.Pode se considerar ético o documentário apresentar contextos políticos que por si só são ideológicos? Porém, por Palmas ser e fazer parte de um estado totalmente ligado a questões políticas, também, não seria ético retirar uma característica que faz parte do dia adia das pessoas apresentadas no documentário? Uma pequena questão que fica sem solução. Ressaltando, ainda que, o

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conteúdo de uma produção é sempre uma escolha do diretor, e assim, essa seleção caracteriza-se em uma construção de determinada realidade.

Referências ARAÚJO, Juliano José de. (Re) pensando a tradição e as transformações do cinema documentário. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 298-301, dez. 2011.

LABAKI, Amir. Introdução ao documentário brasileiro. São Paulo: Francis, 2006.

DA-RIN, Sílvio. Espelho partido: tradição e transformação do documentário.Rio de Janeiro: Azougue, 2006.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Do Aurélio Online. 2008 - 2013. Disponível em:http://www.dicionariodoaurelio.com/. Acesso em: 31 dez. 2013

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. 3. ed.Campinas, SP: Papiros, 2008.

SOARES, Sérgio Ricardo; SOUZA, Anderson de. O lugar representado: o Tocantins no cinema de si mesmo. In: Encontro Nacional de História da Mídia, 8, 2011, Guarapuava, Anais... Guarapuava: Unicentro, 2011. Disponível em: .Acesso em: 4 nov.2013.

PENAFRIA, Manuela. O Documentarismo do Cinema. In: Ícone, volume 1, numero 7, Julho de 2004, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil, pp.61-72. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2013.

______. O ponto de vista no filme documentário. 2001. Disponível em:. Acesso em: 31 out. 2013.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac/SP, 2008. ______. O que é Documentário? In: RAMOS, Fernão Pessoa e CATANI, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre: Sulina, 2001, p. 192/207. Disponível em: http://bocc.ubi.pt/pag/pessoa-fernao-ramos-o-que- documentario.pdf. Acesso em: 15 set. 2013

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Rastreando notícias, buscando faces: Fotografia e imprensa em Manaus.

Simara Alves FERREIRA198

Resumo: O texto procura mostrar os primeiros ensaios do uso de imagens nos jornais de Manaus, bem como o espaço que a fotografia passou a ocupar no fim do século XIX e início do XX. Como parte de pesquisa em andamento cujo objetivo maior é discutir o impacto que esta inserção provocou nos jornais de Manaus, os suportes pesquisados não poderiam ser outros para além das páginas de jornal, com notícias que fazem uso de imagens bem como os anúncios sobre serviços fotográficos, com o objetivo de compreender como se deu o processo de incorporação de fotografias no periodismo local. Dessa forma, o texto desta comunicação mostra os passos iniciais dados na busca para entender o inicio da experiência fotográfica nos jornais diários e em consequência, desnudar os espaços ocupados e seu uso na construção da notícia.

Palavras-chave: audiovisual; fotografia em Manaus; imprensa.

O ano de 1851 é o marco inicial para o surgimento da imprensa na Província do Amazonas, com o lançamento do seu primeiro jornal, o Cinco de Setembro199. Nesse período, a imprensa estava estritamente ligada à publicação de atos governamentais e seu aparelhamento gráfico ainda era bastante modesto e precário, o que comprometia o uso mais frequente de imagens, um recurso que exigia equipamentos dispendiosos para a época. Avançado os anos, as tipografias evoluíram tanto no conteúdo dos jornais, que não só publicavam regulamentos e atos do governo, mas também notícias do cotidiano da cidade e sua gente, passando por uma reestruturação em suas oficinas. Timidamente, começavam a aparecer em suas páginas, imagens de rostos de personalidades do país e da alta sociedade local. E, em seus anúncios, o oferecimento de serviços fotográficos, materiais para uso em laboratório, e notícias sobre a inauguração de um novo ateliê de

198 Mestranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (PPGH-UFAM) e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas FAPEAM. Este artigo é parte da dissertação em andamento com o título: “A Notícia Ganha uma Nova Face: Fotografia de Imprensa em Manaus (1880-1920)”. Trabalho destinado a participação no Grupo de Trabalho 4: Mídia Audiovisual, sob coordenação da Prof. MSc. Maurício Zouein. 199 FREIRE, José Ribamar Bessa et al. (orgs.). Cem anos de imprensa no Amazonas (1851-1950). 2ª edição. Manaus: Editora Umberto Calderaro, 1990.

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fotografia. Como ilustração dessa nova vertente jornalística, temos a criação da Imprensa Oficial do Estado, em que na lei de instituição, registrava a obrigatoriedade de instalação de oficinas que ficariam incumbidas de tornar possível nas publicações oficiais do Estado, o uso de imagens, sejam elas de natureza fotográfica ou não. O então governador Eduardo Ribeiro sanciona a lei n° 1, de 31 de agosto de 1892 que instituía a Imprensa Oficial do Estado, cujo objetivo, conforme assinala Mário Ypiranga Monteiro200, era por fim as despesas dos contratos estabelecidos com jornais locais para a publicação de atos governativos e demais expedientes. Não é intenção detalhar o ato de criação deste órgão, mas sinalizar o fato de que houve a preocupação em dotá-lo de mecanismos capazes de introduzir imagens nas publicações, conforme é expresso no artigo 3° da lei que o instituiu: “Anexos ao estabelecimento tipográfico serão criadas duas pequenas oficinas, uma de litografia e gravura (xilografia) e outra de encadernação” 201. O esforço na montagem do veículo de comunicação governamental não se encerra nesse ponto, além de ser uma fonte de economia para o Estado, deveria atuar como o “maior órgão de divulgação”. Para isso, conforme anota Mário Ypiranga:

(...) Para isso o governador dotou-a do equipamento gráfico mais sofisticado que as fábricas europeias, alemãs, francesas e italianas produziam, e também as americanas, enriquecendo o esforço de comunicação. Linotipos, impressoras, máquinas de fabricar envelopes, daguerreotipia, equipamentos completos de encadernação, sortimento variado de fontes e matrizes de cobre, estanho e bronze, para resistir anos, realizar o que na época nenhuma cada impressora de Manaus faria, em concorrência202.

Destaco em meio a tanta sofisticação, a aquisição da daguerreotipia. Essa técnica que fora inventada em 1839 por Louis Daguerre pode ser bem definida através das palavras de Jules Janin, ditas nesse mesmo ano, a qual é citada por Arlindo Machado em uma das obras pioneiras no Brasil sobre fotografia: “imagine um espelho que pode reter a imagem de todos os objetos que ele reflete e você terá a ideia mais completa do que é o

200 MONTEIRO, Mário Ypiranga. Notas sobre a Imprensa Oficial do Estado do Amazonas (fac-similado). Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas / Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 2001. 201Idem, p. 7. 202Idem, p. 11. Grifo meu. 398

daguerreótipo” 203. Assim sendo, é possível notar que o governo estava atento aos avanços técnicos e que almejava utilizá-los em prol da divulgação do Estado. Diante disso, a questão que se coloca é quais usos foram feitos desse equipamento, se havia pessoas que dominavam a técnica e que imagens foram produzidas. Mas essas questões ainda não dispõem de respostas coerentes. No mais, com base no acima exposto, fica a certeza do interesse na produção e veiculação de imagens, confirmando assim a necessidade de entender que fascínio essas imagens provocavam e para quem elas eram direcionadas. Esse fascínio não é gratuito. As famílias querem perpetuar suas tradições, eternizando no registro seus entes bem vestidos, numa sala muito bem decorada. Os governos também querem deixar para a posteridade seus grandes feitos, “querem documentadas as suas realizações” 204.

Notas de jornal: buscando vestígios. A busca pelos primeiros ensaios do uso de imagens nos jornais de Manaus se centra no momento de grandes mudanças que é a virada do século XIX para o XX. Esse é um período cheio de expectativas, afinal, um novo século batia à porta e com ele uma variada gama de possibilidades, novas ferramentas e processos, pequenas revoluções. Marialva Barbosa é enfática quando lista algumas invenções que causaram alvoroço quando do seu surgimento e emprego:

O cinematógrafo, o fonógrafo, o gramofone, os daguerreótipos, a linotipo, as marinonis são algumas das tecnologias que invadem a cena urbana e o imaginário social na virada do século XIX para o XIX, introduzindo amplas transformações no cenário urbano e nos periódicos que circulam na cidade205.

Diante da iminência da chegada de um novo século, almejava-se também a renovação das práticas e costumes. A cidade começava de forma ainda acanhada a sentir os primeiros ventos dos prazeres que o comércio da borracha podia proporcionar, se queria

203 MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: Introdução à Fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984, p. 5. 204 KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2. ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 112. 205 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil: 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 21. 399

moderna e seus periódicos dão claras pistas desse desejo, pois anunciavam em suas páginas a última moda que circulava em Paris: “Nova Loja Franceza Debusigne & Levy”. Em letras garrafais informavam de forma vibrante a abertura do novo empreendimento: “Novidade! Novidade!”. No anúncio, descreviam a chegada de variados artigos, despachados diretamente de Paris. Dentre eles destacam-se:

Um lindíssimo sortimento de camisas, chapéus para homens, senhoras e meninos. Grinaldas, luvas de pelica, véos, botinas de setim. Grande e variado sortimento de roupas feitas, bengalas, e chicotes com photographias206.

Por fim, o anunciante avisa que os visitantes do seu estabelecimento “encontrarão de tudo da melhor qualidade e por preços módicos”. O anúncio indica que os preços são acessíveis, mas certamente não a ponto de a maioria da população ter poder de compra e assim usufruir da “última moda em Paris”. Artigos de luxo, somente a elite teria poder de compra. O máximo que as camadas populares poderiam fazer era porem-se diante da vitrine da loja, admirando os artigos expostos e pensando em como aquele leque com brocados franceses, serviria para amenizar o calor do verão escaldante da cidade. É bastante claro que o anúncio se direciona a um público restrito, que se queria respirando ares parisienses. Como não é objetivo discutir o modismo francês, destacamos a assertiva que Maria Luiza Ugarte Pinheiro faz ao discutir sobre essa influência europeia, mais precisamente francesa, sendo bastante esclarecedora:

Rastrear os primórdios da presença e da influência francesas no Amazonas é tarefa difícil, mas é certo que em meados do século XIX e início do XX essa influência era forte demais para ser ignorada. Ela podia ser mensurada a partir do debate acerca da arquitetura urbana desejada para Manaus, na valorização de hábitos, valores e modismos que ganhavam com insistência espaços nos códigos de postura e nas páginas dos jornais, além de permear cotidianamente os discursos das autoridades207.

206 Commercio do Amazonas. 1° de junho de 1880, p. 4. 207 PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. “O espelho francês na ‘Paris das Selvas’”, in VIDAL, Laurent e LUCA, Tania Maria de. (Orgs.), Franceses no Brasil: Séculos XIX – XX. São Paulo: Editora UNESP, 2009, pp. 271- 288. 400

Notadamente a “photographia” esta incluída no rol de artigos vindos de Paris, logo, era símbolo de bom gosto e possuir uma trazia distinção no meio social. Tanto que nesse período vê-se o aparecimento de vários ateliês fotográficos, logo, subentende-se que havia um público ávido por consumir esses produtos e utilizar os serviços oferecidos por estes profissionais. Dias antes, o Commercio do Amazonas já anunciava a chegada de novos fotógrafos à cidade. Estes profissionais em sua maioria itinerantes, passando de localidade em localidade vendendo seus produtos e serviços. O anúncio que ocupava um espaço significativo na página 4 do jornal tinha por título “Retratos” e seguia detalhando o que era oferecido ao público:

Os photographos Verlangieri & Mayer, chegados a esta capital ultimamente no vapor Javary pertendem começar os seus trabalhos no domingo 23 do corrente mez. Portanto, convidam ao respeitável público a visitarem sua galeria onde encontraram uma bunita colleção de retratos de todos os tamanhos, gostos e sistemas até hoje conhecidos. Ao mesmo tempo communicão que sua estada nesta capital não será mais que noventa dias, visto que tem que seguir viagem para o Rio Madeira. Seu estabelecimento, á Rua Barroso, n° 5208.

Tanto Feliciano Verlangieri, quanto o seu sócio possuíam vasta experiência no ramo. O primeiro, quando chegou ao Amazonas já havia oferecido no ano de 1870 seus serviços na Província do Mato Grosso209. Quatro anos depois, já em Cuiabá, anunciava a venda de mobílias que anteriormente compunham seu estabelecimento no local. Quando se associou a Meyer (que também já tinha uma prática no ramo), esteve no Pará e após sua passagem pelo Amazonas, voltou a oferecer seus serviços em Belém210. O estabelecimento apresentado no anúncio com sua “coleção de todos os tamanhos e gostos” demonstram a existência de um público consumidor de imagens. Lamentavelmente, não é possível identificar quem eram os retratados. Segundo Solange Ferraz de Lima: “os retratos constituíram também no Brasil o gênero mais comercializado da fotografia no século XIX” 211. Certamente, as madames locais desejavam ter suas salas

208 Commercio do Amazonas. 29 de maio de 1880, p. 4. 209 KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910). São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p. 316. 210Idem, p. 317. 211 LIMA, Solange Ferraz de. “O circuito social da fotografia: Estudo de Caso – II”, in FABRIS, Annateresa 401

de estar decoradas com retratos de personalidade importantes, emoldurados com materiais de primeira qualidade. Isso quando não era a própria senhora a retratada. Mas, como atesta o anúncio, Verlangieri & Mayer não estão oferecendo os serviços de confecção de retratos. Eles propõem a venda de “retratos de todos os tamanhos e gostos”. E não resta dúvida de que, haveria quem se agradasse de algum deles. Virando a página de anúncios, a atenção se volta agora para o noticiário. O diário vespertino Commercio do Amazonas faz um extenso agradecimento ao Diário do Gran- Pará pelo envio de um exemplar em homenagem ao centenário do poeta português Luis de Camões. A notícia além de agradecer, informa que é possível adquirir o material em alguns pontos de vendas:

Fomos obsequiados pelo nosso colega do Diário do Gran-Pará com um exemplar de sua edição de 10 do corrente, que contem a offerta d’aquelle jornal ao tri-centenário do grande épico portuguez Luiz de Camões, que consiste na photographia do poeta rodeado dos importantes escriptos relativos a sua vida. Agradecemos a oferta212.

De acordo com a descrição dada pelo redator, é perceptível que se tratava de um retrato onde os escritos do poeta compunham o cenário de fundo. Não é possível precisar qual o sistema usado para fazer tal montagem. Provavelmente, a litografia constitui o meio pelo qual seria possível chegar a tal resultado. A litografia foi uma técnica inventada em 1789 por Alois Senefelder213 que primeiramente consistia em utilizar a superfície plana de uma pedra, nela gravava-se desenhos ou caracteres e depois reproduzia-se essas informações no papel. Com o aperfeiçoamento da técnica, a pedra foi substituída por placas de zinco ou alumínio, melhorando a reprodução do que estava gravado. Após o agradecimento, o grande público é convidado a desfrutar de tal relíquia e outro obrigado é dado, agora ao Diário do Maranhão, que recebe um elogio pela qualidade da publicação:

Acham-se a venda iguais photographias na casa comercial do Sr. Claudino Manuel Velloso, e na pharmacia do Sr. Joaquim Anselmo Roiz

(orgs.). Fotografia: usos e funções no século XIX, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, p. 61. 212 Commercio do Amazonas. 29 de junho de 1880, p. 1. 213 FREUND, Gisèle. La fotografia como documento social. Barcelona: Gustavo Gili, 2008, p. 8. 402

Ferreira a Rua Brasileira. Tambem recebemos do collega do Diario do Maranhão, igual oferta, em edicção nitidamente impressa. Agradecemos igualmente a oferta214.

Notadamente, a venda de artigos fotográficos não era exclusividade dos ateliês especializados, posto que as fotografias do poeta português estavam disponíveis tanto no comércio, quanto na farmácia da Rua Brasileira. Notadamente, tanto o diário paraense, quanto o maranhense utilizaram o mesmo retrato, mas o Diário do Maranhão mereceu o destaque do jornal local por possuir uma melhor qualidade na impressão. Diante do exposto, fica claro que os jornais procuram promover seus nomes para além da sua praça de circulação e possuir uma “edicção nitidamente impressa” constitui um meio pelo qual é possível adquirir destaque entre seus pares e principalmente, atrair o público leitor, bem como o público que não dominava a leitura, devido ao uso de imagens em suas publicações.

A imagem como parte da notícia: primeiros ensaios Dominar a técnica de impressão de imagens significa estar à frente do jornal concorrente, pois as imagens, para além da ilustração, conforme adverte Martine Joly, possui características marcantes que levam ao fascínio de quem a contempla:

Imitadora, para um, ela engana, para outro educa. Desvia da verdade ou, ao contrário, leva ao conhecimento. Para o primeiro, seduz as partes mais fracas de nossa alma, para o segundo, é eficaz pelo próprio prazer que se sente com isso215.

Assim sendo, os jornais que no princípio marcadamente eram textuais, começam a ensaiar o uso de ilustrações, o que possibilita tornar próximo o que antes era distante do leitor. Marialva Barbosa esclarece essa questão ao afirmar que “as descrições e a possibilidade de ver em imagens lugares longínquos e figuras exóticas mudam gradativamente a percepção de um outro, agora visível, e antes apenas imaginado”216. Trazer a atenção do público leitor para as suas páginas foi e ainda é objetivo maior das publicações, sejam elas noticiosas ou de outras variedades. Logo, as folhas locais

214 Commercio do Amazonas. 29 de junho de 1880, p.1. 215 JOLY, Martine. Introdução á análise da imagem. Tradução: Marina Appen Zeller – Campinas, SP: Papirus, 1996, p. 19. 216 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil: 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 23. 403

esforçavam-se por produzir notícias que atraíssem a atenção do povo, para isso, começaram a ensaiar o uso de imagens produzidas por processos que antecedem o uso da fotografia, tais como: “desenhos a bico de pena, que reproduzem ora o retrato do personagem enfocado, ora as construções, embarcações ou outro tipo de objeto a que a nota se referia” 217. Essa afirmação, apesar de não ser baseada no caso local, ilustra com precisão o periodismo de Manaus. Na edição especial de 27 de agosto de 1897, no número denominado “extraordinário” o Commercio do Amazonas traz estampada na sua primeira página a imagem de José Pereira Guimarães, o Barão de Manáos. O nome do Barão vem impresso em letras clássicas, em tamanho bem maior que o restante do texto. O jornal tece extensa descrição sobre a vida da personagem do dia, afirmando que a atuação José Pereira Guimarães foi “o mais poderoso factor de desenvolvimento d’esta poderosa e próspera região” 218. Na continuidade da notícia, lê-se os feitos e contribuições do Barão, que para o jornal, justifica ter o seu retrato estampado na primeira página, tornando pública a figura do homem cuja dedicação foi direcionada unicamente para o avanço da região. A imagem de figuras públicas no jornal começa a despontar, e não é restrito a pessoas da sociedade local. No ano de 1898, na primeira página219 vê-se o desenho de quem é denominado pela folha como sendo “Emilio Zola”. O texto, logo abaixo da imagem informa: “Estampamos hoje o retrato do grande romancista francez Emilio Zola, que tanta agitação provocou em torno do seu nome na importante questão Dreyfus” 220. Era uma edição de domingo e a questão que se coloca, é esse interesse em uma questão externa a cidade, que acontecia a quilômetros de distância do estado. Talvez, isso possa ser justificado devido ao desejo local de manter-se informado sobre o que acontecia no mundo, ao desejo de, mesmo distante, acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.

217Idem, p. 28. 218 Commercio do Amazonas. 15 de agosto de 1897, p. 1. 219 Geralmente, as personalidades, cujos desenhos e retratos são utilizados, aparecem sempre na primeira página do jornal. 220 Commercio do Amazonas. 19 de junho de 1898, p. 1. 404

Commercio do Amazonas, número extraordinário Manaus, 15 de agosto de 1897.

O interesse é de tal proporção, que na edição do domingo seguinte, quem vem estampando a manchete de capa do jornal é o próprio Capitão Dreyfus221:

Estampamos hoje o retrato do degredado da Ilha do Diabo, o infeliz official do Exercito Frances, que pelo mais odioso dos processos foi atirado ao desterro velipendiado e deshonrado. Zola, cujo retrato reproduzimos na nossa edição de domingo último, tomou ao seus ombros

221 Oficial de artilharia do exército francês acusado de traição no ano de 1894. Foi condenado, mas provou-se a inocência. O processo de julgamento foi baseado em fraude. É considerado um dos maiores erros judiciais pelos especialistas. Para maior entendimento ver: ZOLA, Émile, BARBOSA, Rui e LÍSIAS, Ricardo (Org. e tradução). Eu acuso! O processo do Capitão Dreyfus. São Paulo: Hedra, 2007. 405

a rehabilitação deste infeliz e o publico tem sido testemunha das peripécias interessantes que acompanharam essa luta, que arrastou ao banco dos réus, o primeiro romancista da actualidade222

O desenho que acompanha a nota é bastante nítido e de qualidade superior ao estampado no ano anterior do Barão de Manáos. Além desse avanço na qualidade do desenho, o jornal externa que os leitores estavam interessados no desfecho do caso ao afirmar que “o público tem sido testemunha das peripécias” que permearam o caso. Os dois exemplos descritos demonstram que as imagens ainda são “artesanais”, ou seja, reproduções por processos anteriores a fotografia, como a litografia e desenhos feitos a “bico de pena”. Cabe um olhar atento, ao que ou quem é veiculado. Ainda analisando os dois exemplos propostos, percebemos que o uso de imagens é restrito para representar personalidades, políticos ou pessoas da classe mais abastada. Nos exemplos, um é claramente utilizado para a promoção de uma pessoa pública, no caso o Barão de Manáos, no segundo, uma notícia que trata de pessoas de outro país. Isso corrobora para as questões ligadas a necessidade que as pessoas locais tinham em se aproximar da França, seja por meio dos costumes e hábitos, seja por meio de manter-se inteirados do que era notícia por lá. No jornal Commercio do Amazonas é perceptível a partir do ano de 1898 a contumácia em pelo menos, uma das edições, utilizar essa fórmula: estampar a imagem de uma personalidade acompanhada de um texto que descreve os grandes feitos ou contribuições para o desenvolvimento, seja ele local, ou do país e/ou cidade de origem do homenageado. Essa estratégia, com raras exceções, era utilizada principalmente nos jornais que circulavam no domingo: “Estampamos hoje, em nossas columnas, o retrato do grande estadista americano MAC-KINLEY, actual presidente da república dos Estados Unidos da América do Norte. Esse grande home...” 223. O que se segue é um desfile de elogios a pessoa do presidente e suas contribuições para o Estado Americano, colocando em destaque sua figura de grande estadista, mas que sofria as críticas da oposição por suas medidas protecionistas. O jornal local critica a postura dos jornais americanos, que tornaram alvo de caricaturas, a figura do “grande estadista”.

222 Commercio do Amazonas. 26 de junho de 1898, p.1. 223 Commercio do Amazonas. 3 de julho de 1893, p. 1. 406

Diante do exposto, nota-se que esses retratos passam a ser parte da notícia, não sendo somente um elemento a mais na página do jornal. Isso irá se intensificar quando for possível, por meios mecânicos a reprodução de fotografias junto aos textos publicados, conforme adianta Marialva Barbosa:

A ilustração passa a integrar a integrar a própria notícia, com a publicação de fotografias que reproduzem o momento da tragédia. Nas matérias policiais publicam sempre o retrato do assassino e da vítima, sendo a foto invariavelmente da cena do crime. Mas não são apenas as notas policiais que merecem o destaque e a sensação de veracidade da fotografia: os grandes homens, os grandes feitos, o desenvolvimento e o progresso de nossos navios são reafirmados pela imagem fotográfica224.

Mas, nem sempre o retratado era considerado “um grande homem”, e o uso de sua imagem na notícia servia para torná-lo alvo não da admiração, mas do deboche. Era o caso do senhor Guido de Souza: “Estampamos hoje o retrato do ex-chefe de Segurança do Estado, o cidadão que trouxe por muito tempo impressionado o espírito publico desta terra. Estamos certos que a população de Manáos nos agradecerá esta surpresa” 225. Qual fora o pecado de Guido de Souza para merecer tal tratamento, depois da demissão do cargo público? Talvez a resposta mais coerente possa ser encontrada na “Columna Echos do Dia”. Em destaque na coluna se lê: “Importante: a exoneração do Chefe de Segurança”. O texto informava da exoneração de Guido de Souza e da nomeação do substituto que é “integro e honesto magistrado desembargador”. A notícia segundo o redator:

Esta notícia propagada nos boletins pelo nosso jornal foi recebida com geral agrado pela população e ás pêssoas que paravam para ler o boletim affixado a nossa porta vimos expontaneamente brotar-lhes dos lábios significativa phrase: ‘Não temos mais illuminação apagada!’. Sem comentários226

Infere-se que tal situação era fruto de disputas políticas, tendo em vista que, na semana seguinte, mais uma vez é estampada a figura de Guido de Souza, que é chamado de “O empestado”. Dessa vez, dava-se a notícia do não embarque de Guido de Souza, sendo a fonte do jornal “vozes do povo” que para este era a “voz de Deus”.

224 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil: 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 43. 225 Commercio do Amazonas, 31 de julho de 1898, p. 1. 226 Commercio do Amazonas, 31 de julho de 1898, p.1. 407

Commercio do Amazonas, n° 249 Manaus, 4 de agosto de 1898.

O embarque, que não aconteceu, se deu um dia antes da renuncia do agora, ex- governador do Estado, Fileto Pires, que também foi alvo do jornal, sendo acusado, de forma análoga ao que ocorreu com Guido de Souza, de “agitador do espírito público”, e que por isso o jornal, além de expor a figura de Fileto Pires, reafirmava seu papel:

Jornal popular e moderno o Commercio do Amazonas, não se pôde furtar ao interesse que tem a população em conhecer os indivíduos que por qualquer principio, agitam o espírito público. E esse o movel que nos obriga a estampar no momento presente, em nossa columnas, o retrato do ex-governador do Amazonas...227.

227 Commercio do Amazonas, 02 de agosto de 1898, p.1. 408

Segundo consta no jornal, Fileto Pires não correspondeu as expectativas depositadas em sua pessoa, tendo inclusive, perdido o apoio do partido que o levou ao posto de comando do Estado. Mesmo criticando, a matéria elogia a inteligência do ex- governador, por ele ter renunciado ao cargo no momento oportuno. Mais do que informar sobre os acontecimentos do cenário político, era necessário dar rostos a estes atores. Retornando aos acontecimentos pelos quais passou Guido de Souza, o depoimento que o jornal utiliza como exemplo da satisfação popular diante da exoneração, demonstra que o ex-secretário gozava de uma impopularidade entre os seus pares e moradores e que sua demissão, conforme se lê, era esperada pela população, que não mais andaria às escuras na cidade. As noticias começam a ganhar uma nova roupagem. Era necessário que o jornal começasse a deixar para trás seu feitio sisudo e monótono, era preciso vislumbrar novas possibilidades de lucro e distinção no seu meio de atuação. Era chegado o tempo em que a informação se daria pela imagem228. No limiar do novo século, vê-se uma disputa pela notícia, segundo Marialva Barbosa “(...) os jornais diários mais populares utilizam as ilustrações como representação privilegiada da vida urbana. Nestas páginas, observa-se uma espécie de redefinição do olhar que passa a existir no inicio do século XX” 229.

Considerações finais Apesar da fotografia ainda ser apenas item de venda de produtos e serviços nos anúncios do jornal, percebemos uma importante mudança na direção de modificações na construção das noticias. É manifesto que o uso dos desenhos elaborados por técnicas que antecedem a inserção de fotografias, ainda se restringe às grandes personalidades. Homens que são tomados como sendo “grandes”, para o qual a cidade ou até mesmo a humanidade (quando o retratado é reconhecido mundialmente, como no caso de Émile Zola), é devedora de seu trabalho, por ter se beneficiado dele.

228 MEDINA, Cremilda. Notícia, um produto à venda: jornalismo na sociedade urbana e industrial. 2. ed. – São Paulo: Summus, 1988, p. 67. 229 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil: 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 31. 409

A utilização dos retratos também era um meio para tornar pública a face de figuras que, certamente, o grosso da população desconhecia. Nesse caso, tratavam-se de desafetos políticos concorrentes, como exemplo, há o incidente de Guido de Souza e o seu não embarque para fora do território do Amazonas. Percebe-se que a figura masculina é privilegiada nessas publicações. No ano de 1898, o Commercio do Amazonas publicou 13 retratos. Destes apenas dois eram de figuras femininas, o primeiro era da “Rainha Regente de Hespanha: A gravura que proporcionamos aos nossos leitores é cópia fiel dum recente retrato da viúva de Affonso XII, a actual rainha regente desse povo heroico” 230. A Rainha Regente recebia elogios por sua postura firme na defesa do território que nas “Antilhas provoca a cubiça do grande leopardo americano”. A segunda imagem feminina que é estampada é a de Nossa Senhora da Conceição. Mas isto já era esperado, tendo em vista que esta edição circulou no dia em que se comemora o dia desta santa231, que nos dias atuais é a padroeira da cidade de Manaus. Diante do exposto, é inteligível que os jornais somente faziam usos das ilustrações para elogiar os aliados e depreciar os desafetos. As mulheres aparecem nesse final de século muito raramente e quando tem sua figura exposta é porque são possuidoras de riqueza e poder, no caso da Rainha da Espanha, era a titular de uma grande potência nesse período, no caso da santa, era alguém que estava no céu, e acreditava-se ser possível alcançar milagres por meio dela. Os homens e as mulheres comuns, trabalhadores do cotidiano assim como, os acontecimentos que se davam no calor das ruas ainda não recebem ilustrações no jornal. Somente com a introdução da fototipia, meio pelo qual será possível reproduzir fotografia é que a construção da notícia sofrerá um impacto antes nunca visto. Quando esta possibilidade for real, os fatos da rua tomarão forma e serão reproduzidos no calor do acontecimento. Crimes, vítimas e criminosos começarão a ganhar as primeiras páginas. Valendo-se dessa capacidade, novos rostos tomarão forma e novas imagens da cidade se formarão.

Referências bibliográficas

230 Commercio do Amazonas. 10 de julho de 1898, p. 1. 231 Commercio do Amazonas. 8 de dezembro de 1898, p. 1. 410

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ZOLA, Émile, BARBOSA, Rui e LÍSIAS, Ricardo (Org. e tradução). Eu acuso! Processo do Capitão Dreyfus. São Paulo: Hedra, 2007.

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Linguagem visual: Prolegômenos de um diálogo entre fotojornalismo e patrimônio cultural.232

Tatiane Pereira RAMOS233 Maurício ZOUEIN234

Resumo: Pretendemos neste artigo dar início a um possível diálogo entre fotojornalismo e patrimônio cultural, de maneira que os termos em si contenham a capacidade de encontrar na mente interpretadora de cada receptor, a polissemia de seus significados. Diante dos conceitos de linguagem encontramos na linguagem visual a base para propor uma relação iconológica, um relato histórico de pesquisadores que produzem materiais para análise da imagem, entre a ação jornalística por meio da fotografia e a fotografia enquanto ferramenta que ampare a reflexão sobre patrimônio de um local, possibilitando aos moradores de determinada região ter acesso aos seus antepassados por meio das imagens e provocando-o a preservar a história do desenvolvimento de sua cidade e suas origens.

Palavras-chave: linguagem visual, fotografia, patrimônio

Linguagem visual Uma das principais características da percepção visual é a linguagem visual, com ela podemos denotar a representação de uma imagem nos aspectos físicos, indicando a existência de algo, e icônico, advertindo uma semelhança do objeto retratado. Podemos encontrar essa linguagem nos objetos materiais ou mentais, pois as imagens oníricas também transmitem sentimentos e informação. Quando estamos estudando, lendo certos conteúdos, nos deparamos com a linguagem visual o qual nos proporciona melhores condições de aprendizado quando comparado a estudos só com os sons, isso sem relacionar a leitura com acompanhamento de áudios - nesse caso a finalidade do estudo obtém melhor êxito. As cores também são linguagens com as quais nos comunicamos, principalmente no trânsito, os artefatos encontrados nos museus são materiais que nos remetem a um passado podendo ou não fazer parte da história de uma pessoa, determinado grupo ou até mesmo nação. Os materiais visíveis dentro do museu, como machadinhas, cocares, flechas, são

232 Trabalho submetido ao GT Audiovisual no 3º Encontro Regional Norte de História da Mídia – Boa Vista, RR – 10 e 11 de abril de 2014. 233Graduanda em Comunicação Social / Jornalismo na Universidade Federal de Roraima – UFRR 234Orientador 412

objetos pertencentes a uma determinada etnia indígena com uma cultura, costumes e rituais de um tempo remoto, diferentes de outras etnias indígenas existentes no século XXI. Existem materiais que representam uma cultura imaterial pertencente a uma população, a cargo de exemplo têm-se as peças de saias de palha, artefatos palpáveis que representam a cultura imaterial de um povo, como a dança parischará. Com estes e diversos itens que encontramos nos museus temos uma ideia do quanto era importante para os indígenas tais materiais, mas muitas vezes não nos damos conta a carga de significados que esses objetos podem transmitir ao observador. Mas através de estudos conhecemos os materiais utilizados na fabricação desses utensílios tais como a machadinha, flechas, cocares e etc. Assim aconteceu com a linguagem na pré-história quando os homens apenas se comunicavam por meio das imagens, a linguagem visual tem um papel fundamental na comunicação entre indivíduos as... “Imagens têm sido meios de expressão da cultura humana desde as pinturas pré-históricas das cavernas, milênios antes do aparecimento do registro da palavra pela escrita”. (SANTAELLA e NÖTH, 2012, p.13).

Depois da visão, a audição é o segundo sentido mais importante para a percepção, o que evidencia o grande número de signos visuais e sonoros criados pelo homem ao longo de sua história. Por outro lado, a forte presença da visão na percepção fez com que, em boa parte, os estudos neste campo fossem dirigidos à análise da visão, ou melhor, entre objeto observado (...) (GOMES, 2005).

Com a percepção somos capazes de analisar nas imagens o contexto histórico, político, social e econômico vivido num certo tempo, e nesses aspectos encontramos os estilos pictóricos desenvolvidos por renomados artistas, indicando o século em que suas pinturas foram elaboradas e instruindo a observar o que condizem certos detalhes da imagem, surpreendendo o observador com os seus significados. A esse contexto a forma de visualização é representativa quando ...

Estando em nível de terceiridade, as formas visuais representativas ou simbólicas são muito instrutivas para se compreender o modo como a terceiridade embute a secundidade e esta, a primeiridade. (SANTAELLA, 2005, p. 247).

No livro “Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonora, visual e verbal”, a autora instiga o indivíduo a conhecer o estilo de vida da época no qual a imagem foi produzida, obtendo a interpretação dos elementos que nela se apresentam mesmo quando na imagem

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mostrar caráter abstrato. É possível chegar ao resultado das significações a partir do conhecimento anterior nos costumes da cultura a ser verificada no objeto de estudo, sendo assim, uma forma de definir o sentido de cada informação que a imagem apresenta. Com esses estudos o observador está imbuído de conceitos característicos dos modos de vida existentes naquele momento tidos como regra, representando a tradição de uma cultura simulada através do objeto visualizado por nós. Isso confirma a existência de algo presente ao olhar do pintor, escultor ou fotógrafo ao qual explanou seu trabalho num dispositivo tendo como inspiração o modelo de paisagens mortas ou pessoas presentes no instante de elaboração da obra. Com os aspectos estéticos, valores e princípios notados em uma imagem, é possível perceber a pretensão do pintor quando transmite suas idéias, seu ponto de vista, suas crenças e ideologias por meio das formas, traços, curvas, cores, movimentos e etc., pois esses elementos refletem na obra quando com ela nos encontramos, isso no primeiro momento, e contemplando os detalhes somos impactados com um sentimento que a imagem nos proporciona e damos a ela um valor um significado um sentido. Esses sentimentos de admiração, surpresa, repulsa e etc., observados nas imagens de pinturas, esculturas ou aquarela são semelhantes aos da fotografia quando registra algo, pessoas, lugares, enfim. O pintor busca reproduzir com lealdade imitando por intermédio do registro o que está diante dos seus olhos através dos detalhes, tornando assim um “registro imitativo” conforme...

Exemplos de “Registro imitativo” podem ser encontrados ainda nos desenhos, gravuras, pinturas e, sobretudo, esculturas realistas. Nestes casos, a função mimética da imagem é acentuada, pois o artista busca reproduzir o objeto em todos os seus detalhes com o máximo de fidelidade. (SANTAELLA, 2005, p. 233).

Quando o artista busca retratar uma figura com exatidão, nela está contida uma relação de costumes peculiares, e o observador está ligado à tradição de antepassados representada pela imagem visualizada, ligado de forma que as indagações perante o seu olhar são respondidas pelos estudos e pesquisas densas, culminando na mediação do indivíduo com o objeto, respondendo até mesmo as interrogações imateriais existentes dentro do contexto de uma determinada cultura na análise da imagem, do lado da outra face que é o objeto de pesquisa.Essa outra face representada na imagem pelo pintor

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determina a situação de uma idéia no tempo real vivido pela personagem da época, apresentando- se imediatamente ao observador e em segundo momento a prova existencial da presença de alguém ou alguma coisa diante do artista por meio do dispositivo emoldurado, nesse caso, a pintura. Cada artista tem uma maneira de transmitir suas mensagens através das suas obras de arte, dentro das análises realizadas nas leituras de imagens profissionais relacionados à área das ciências humanas empregam as pinturas como forma de comparar um estilo de vida em diferentes épocas, para levantar questões ou até mesmo instigar uma população a cerca de um tema podendo elencar opiniões do modo de vida empregado a um ser humano. O historiador social Philippe Aries (1914-1984)no ano de 1962 (BAUER E GASKELL, 2000) empregou pinturas para retratar a questão de um estilo de vida infantil.

(...) Aries mostrou como as crianças estavam vestidas com os mesmos tipos de vestimenta dos adultos, como elas eram representadas sem a inocência que nós atribuímos hoje às crianças, e como elas participavam de cenas adultas de entretenimento, como apoio a seus argumentos baseados no texto. Isso pode ser qualificado como um primeiro emprego dos mais imaginativos e influentes da evidência visual na pesquisa da ciência social. (BAUER E GASKELL, 2000, p. 138, 139).

Essa forma de análise é mais real quando nos deparamos com fotografias representando um modo de viver de pessoas sujeitas a condições de vida desumanas. Ao contrário do que acontecia com as pinturas, onde as pessoas posavam para serem retratadas,os fotógrafos vão além das poses e buscam ser perspicazes ao fazerem ângulos e enquadramentos que testemunham muitas vezes fatos desconhecidos pela sociedade. Temos referências de vários fotógrafos: Humphrey Spender (1910-2005), que adotou a fotografia como forma de ativismo social na Inglaterra (HACKING, 2012), Lewis Hine (1874-1940), Sebastião Ribeiro Salgado Júnior (08/02/1944) e outros que elucidam as questões de trabalhos escravos e de diferentes grupos sociais na luta por melhores condições de vida. Esses fotógrafos representam por meio das imagens o cotidiano dessas desventuradas pessoas que vivem e trabalham em condições precárias. Lewis Hine foi um fotógrafo decidido em trilhar outro segmento no campo da fotografia, de acordo com (HACKING, 2012), um segmento que retratasse outras pessoas de diferentes classes sociais na época dos primeiros anos do século XX. Enquanto uns procuravam com o crescimento da indústria moderna fazer imagens que retratassem efeitos

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da ascensão na economia, Lewis Hine decide fotografar crianças trabalhadoras em uma indústria de fiação...

(...) Enquanto muitos retratos da sociedade da época apelavam ao sentimento, a documentação de crianças trabalhadoras por Lewis Hine (1874-1940) adotou uma abordagem mais factual [...] Suas atividades desempenharam um papel-chave na aprovação posterior das leis do trabalho infantil. (HACKING, 2012, P. 297).

Diferente dos triviais modos de exibição diante das câmeras para fotografar pessoas de uma classe social com maiores condições financeiras, assim como foi no surgimento da fotografia em que as pessoas podiam ter em suas mãos a sua imagem pagando em troca um valor alto para serem retratados, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado propõe uma abordagem diferente com questões que envolvam mudanças sociais a fim de provocar debates e denunciando, por meio das imagens, modos de vida cruéis. Com seus trabalhos fotografando pessoas excluídas da sociedade, Sebastião Salgado publicou livros com imagens produzidas durante viagens feitas em várias cidades do Brasil e até em outros países, no qual suas chegadas a esses locais lhe proporcionava reter informações e conhecer de perto diferentes histórias de vida. Eis a informação que a linguagem visual transmite aos receptores quando o assunto é miserabilidade. O fotógrafo Sebastião Salgado continua o trabalho principiado por Lewis Hine nos Estados Unidos. Tais técnicas e habilidades em se instalar no local a produzir as imagens são discretas a fim de não perder um momento espontâneo na fotografia que poderá ser chamada de fotojornalismo, técnica utilizada para capturar a imagem de um acontecimento ou fato evidente, pois o seu objetivo está baseado em realizar denúncias sociais a exemplo, o Movimento dos Sem-Terras no ano de 1980 e 1996 em que as fotos foram publicadas em um livro intitulado “Terra”, conforme (FORIN e BONI, 2007).

Suas imagens foram reunidas oficialmente, até o momento, em seis livros: Outras Américas (1986), Trabalhadores (1993), Terra (1997), Êxodos e retratos de crianças do êxodo (2000) e o Fim da pólio (2003). Ele viaja pelas mais diversas regiões do planeta registrando por temas, vítimas da miséria, da política econômica, da desestabilização provocada pelas tecnologias (...) (FORIN e BONI, 2007, p. 85).

A contribuição do fotógrafo Sebastião Salgado para o fotojornalismo pode servir como um desencadeador de informações das classes menos privilegiadas em relação as que

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possuem mais status econômico e social. Essas pessoas detentoras dos maiores recursos financeiros no Brasil estão em menor número e são responsáveis por muitas vezes causarem frustrações quando o assunto é a valorização de uma vida com regalias e descaso com os que possuem menor poder aquisitivo. Essas divisões das classes sociais movimentam grupos de pessoas excluídas da sociedade a fim de reivindicarem seus direitos, no entanto, os protestos, tumultos, revoluções e manifestações sem objetivos e sem propósitos não ganham relevância diante das muitas imposições que o governo estabelece como condições, para manter vantagens sobre essa classe subalterna que sucumbe aos ditames dos governantes. Imagens feitas de períodos conflituosos testemunham a insatisfação de um povo decepcionado com as mazelas de países, onde a corrupção é pivô de uma sociedade insatisfeita e onde por falta de recursos para ter uma vida digna alguns optam por se deixarem corromper. As fotografias entram nesse contexto para fazer parte de uma história, uma história que servirá de embasamentos para estudos densos sobre as conseqüências das desigualdades em uma época de um determinado país. Humphrey Spender (1910-2005) fez por meio de suas fotografias, registro de um protesto que exigia ajuda aos governantes a respeito de um grande número de desempregados na cidade de Jarrow na Inglaterra, conforme (HACKING, 2012, p. 298) “... A publicação das fotos de Spender ajudou a chamar a atenção para a marcha”. Notamos então, o poder das fotografias, como linguagem visual, com o intuito de informar a sociedade por meio das publicações. No entanto, para que isso fosse registrado, revelado e viesse a conhecimento do público com a agilidade que conhecemos hoje, a fotografia passou por vários processos de evolução para reprodução e impressão de imagens.

Breve resumo da história da fotografia A fotografia tem suas origens na Europa do século XIX onde os profissionais envolvidos com a técnica de retratar pessoas, objetos ou paisagens mortas, utilizavam a câmera escura para revelar a captação de imagens. Esses artistas que trabalhavam exercendo essa atividade muito contribuíram, no decorrer dos modos de impressão da fotografia, com suas práticas e descobertas a fim de ter a revelação de imagens que hoje conhecemos. O francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) foi responsável pela

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invenção do primeiro processo da revelação de imagens chamado daguerreotipia, um invento difundido no mundo e que no ano de 1840 foi apresentado ao D. Pedro II, à época, com 14 anos de idade (ANDRADE, 2004). O invento daguerreotipia teve a colaboração do francês Joseph-Nicéphore Niépce (1765-1833) autor da imagem fotográfica mais antiga dentre os estudos de pesquisas a respeito da fotografia. No Brasil a descoberta do processo de impressão da fotografia aconteceu na cidade de Campinas, São Paulo, pelo francês Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879) inventor aplicado e habituado a conviver com intelectuais os quais o ajudaram nos desenvolvimentos de suas pesquisas. No invento de Hercules Florence para a impressão da fotografia, havia um caminho construído para realizar a invenção do papel inimitável que evitava falsificações em títulos de valor...

Com a poligrafia, tornou-se possível imprimir numa mistura de litografia e gravura em diversas cores. Foi então que Florence teve a idéia de utilizar a câmera obscura. Ele escrevia ou desenhava no vidro para poder imprimir na prancha, utilizando-se da luz do sol, do cloreto de prata ou ouro, como se fossem tinta de impressão, chegando naturalmente a um processo que se aproxima muito da fotografia, principalmente quando ele fez uso da câmera obscura. (...) (OLIVEIRA, 2003, p. 07).

Hercules Florence nomeou a esse invento, da escrita com a luz, de photographie, pois, se realizou com a ação da luz solar. Uma conquista viável, concedida também às pessoas que não trabalhavam no meio da fotografia, diante dos processos de impressão da tipografia que eram desempenhados por máquinas pesadas. Entretanto, seus inventos não eram reconhecidos pelo mundo o que lhe causava frustrações diante de seus esforços nas várias criações elaboradas no Brasil, a exemplo, um estudo chamado Poligraphye impressão das partituras sobre a Zoofonia (OLIVEIRA, 2005). Hercule Florence veio a contribuir com a impressão da fotografia por meio da luz, mas antes dele, houveram outras formas de processos de impressão: o talho-doce, xilografia, litografia, fototipia e outros. A tipografia é o primeiro processo de impressão criado pelo alemão Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1398-1468), a partir deste invento os processos de impressão foram evoluindo passando do manual ao industrial e aperfeiçoado por técnicos durante anos, com esses desenvolvimentos surgiram os processos de impressão, como a litografia e xilografia, principais métodos adotados na imprensa brasileira no século XIX.

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O processo de impressão chamado talho-doce foi realizado no Brasil pela primeira vez pelo padre José Joaquim Viegas de Menezes (1778-1841) que trouxe a experiência da técnica, de escavar com uma ferramenta pontiaguda numa chapa metálica criando sulcos a fim de penetrar a tinta para haver a impressão da imagem, aprendida por ele em Lisboa, “... e que se tornou, assim, um dos grandes precursores das artes gráficas no Brasil” (ANDRADE, 2004, p.75). Logo após surgiu a xilogravura, processo de impressão muito parecido com o carimbo quando transfere a imagem para o papel, havendo, portanto, duas técnicas trabalhadas com os profissionais xilógrafos: a xilografia de fibra, quando a madeira é cortada na vertical e xilografia de topo, quando a madeira é cortada horizontalmente. Na xilografia de topo, os desenhos resultam numa exatidão e detalhes precisos, essa técnica se deve a descoberta do inglês Thomas Bewick (1753-1828), essa forma de impressão não teve muito sucesso no Brasil, por ser restrito o número de pessoas que trabalhavam com essa técnica. No final do século XVIII eclode a litografia desenvolvida por Johann Aloys Senefelder (1771-1834), processo de impressão simples, menos complexo e de menor custo em relação aos outros que já estavam no mercado. Esse método de impressão surgiu por acaso, tendo em vista que Aloys Senefelder era compositor e não encontrava editoras disponíveis a publicar suas obras, seu invento foi disseminado durante invasões napoleônicas à Alemanha por artistas franceses na França, e também teve grande difusão quando foi descoberta por renomados pintores: Jean-Louis André Théodore Géricault (1791-1824), Ferdinand Victor Eugène Delacroix (1798-1863) dentre outros. A fototipia,processo fotomecânico criado em 1855 por Alphonse Louis Poitevin (1819-1882) era um método inovador na época, que facilitou algumas impressões, a exemplo, os postais. Contudo, o uso desse processo de impressão ficou limitado a poucos trabalhos devido as tiragens demoradas e a precariedade da matriz, tornando difícil as atividades dos profissionais que dela dependiam para desempenhar com agilidade seus trabalhos. Durante o desenvolvimento nas técnicas de impressão houve a invenção da Fotogliptia patenteada pelo inglês Walter Bentley Woodbury (1834-1885) em 1864, inventor que se inspirou na criação de Alphonse Louis Poitevin. A fotogliptia era um

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processo de confecções muito trabalhoso que se tornou notório na França, Grã-Bretanha e Estados Unidos, até o final do século XIX, “... no Brasil, foi pouco utilizado... o custo elevado dos trabalhos executados com este método de impressão, e algumas desvantagens técnicas na sua execução, fizeram com que fosse relegado ao esquecimento” (ANDRADE, 2004, p.96) . Os métodos para imprimir imagens surgidos no século XVIII foram ganhando perfeição a medida que os profissionais desenvolviam técnicas a fim de melhorar os procedimentos para as impressões, e devido a essas técnicas os processos eram similares nas diferentes décadas que eram inovados. No ano de 1882 o alemão Georg Meisenbach (1841-1912) patenteou o processo de impressão chamado autotipia, um método que causou revolução na época em que surgiu, pois possibilitou à imprensa incorporar gradualmente fotografias e textos nas páginas dos jornais, na época a maioria dos impressos eram textuais com poucas ilustrações. Com a introdução das imagens nos jornais por meio das novas técnicas dos processos de impressão, os periódicos ganharam mais credibilidade quando o assunto era informar os receptores não apenas com retratos de lugares ou pessoas da alta sociedade, mas agora intercalando textos as fotografias de acontecimentos e fatos evidentes mostrando situações de interesses a uma nação. A exemplo desses eventos, no ano de 1865 na Guerra do Paraguai foi noticiada à população do Rio de Janeiro, nos periódicos da época, imagens dos episódios bélicos entre a Tríplice Aliança formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai por fotógrafos que decidiram registrar pela primeira vez imagens de uma guerra segundo (ANDRADE, 2004).

A primeira guerra fotografada e da qual o Brasil participou foi a Guerra do Paraguai, também conhecida como a Guerra da Tríplice Aliança, formada em maio de 1865 pelo Brasil, Argentina e Uruguai, [...] Foram muitos os fotógrafos que documentaram o evento, em seus diferentes aspectos. E até hoje, nem todas as imagens existentes têm a sua autoria esclarecida. (ANDRADE, 2004, p.131-132).

Os profissionais que participaram desse evento, notório para a história do Brasil e história da fotografia, exerceram com unanimidade a prática do fotojornalismo trazendo notícias das perdas humanas e financeiras causadas pela guerra nos países envolvidos. A população do Rio de Janeiro acompanhou por meio das imagens, parte do conflito de

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informações circuladas apenas entre os campos de batalha e na cidade portuária do Rio de Janeiro, local de onde saiam os navios para o Rio da Prata. Várias fotografias produzidas durante a guerra do Paraguai são desconhecidas pelo público e entre as imagens feitas durante o conflito, existem entre elas, algumas que jamais circularam no Brasil. As tais imagens testemunham os momentos de horrores dos corpos mutilados, cadáveres empilhados de homens brasileiros que participaram da primeira guerra em que o país esteve envolvido. A fotografia por meio do fotojornalismo leva ao grande público um sentimento de o receptor se imaginar, naquele ambiente em que a foto foi produzida embora o observador não contemple o acontecimento de corpo presente, mas os seus olhos contemplam, por meio da imagem, o fato evidente. Essa análise acontece quando o pesquisador está diante do objeto, imagem, e no momento de observação da fotografia nos transportamos em pensamento às situações de vida das pessoas retratadas na imagem, e a linguagem visual nos instiga a elaborar estudos densos para conhecer as reais condições de vida e os modos de trabalhos desempenhados pelos indivíduos retratados na imagem.

Fotojornalismo Com a proposta de documentar acontecimentos, registrar observações e revelar fatos através das imagens, a fotografia é usada no fotojornalismo com a finalidade de transmitir informações e oferecer conhecimentos aos receptores por meio de vários suportes, tais como jornais, revistas, livros, internet, televisão - por meio das imagens em movimento- , aparelhos eletrônicos e etc...

[...] fotojornalismo, profissão que há mais de século tem fornecido à humanidade a capacidade de se rever a si mesma e de contemplar representações do mundo através de imagens chocantes, irônicas, denunciantes, empáticas ou simplesmente informativas. [...] (SOUSA, 2002, p. 05).

Na área do fotojornalismo o profissional trabalha com o inesperado, diferente do fotógrafo documentarista que elabora um plano de trabalho, estuda a fundo o campo a ser fotografado a fim de produzir imagens que obtenham resultados com êxitos,e durante seu exercício planeja os equipamentos e os diferentes pontos de vista da abordagem sobre o

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assunto, no intuito de alcançar imagens que também transmitam informações, documentem fatos e exponham denúncias. Mesmo antes das imagens fotográficas possuírem a tecnologia da impressão dos dias atuais, existe uma característica inerente aos profissionais precursores do fotojornalismo e atuais na área que é o atributo em desenvolver suas atividades raramente sem saber qual será o local exato e em que condições vai encontrar o objeto a ser registrado por sua câmera fotográfica, ou seja, o exercício do fotojornalismo muitas vezes não permite elaborar roteiros para registrar o que vai acontecer. Em 1842 Carl Fiedrich Stelzner registrou o “daguerreótipo das conseqüências de um incêndio que destruiu um bairro de Hamburgo na Alemanha, exemplo de uma das primeiras fotografias de acontecimento” (SOUSA, 1998, p.19). Para informar, o fotojornalismo está acompanhado de fotografia e texto possibilitando ao receptor melhor compreensão do que o registro de um acontecimento pretende transmitir. A exemplo, existem registros fotográficos de guerras, no entanto, sem um relato do lugar, das pessoas envolvidas e data da época no qual foi produzida, a imagem nos repassa apenas situações de um conflito evidente sem nos informar o que o evento representou ou significa para um país, dificultando informar a notícia em veículo de comunicação.

[...] A foto jornalística está vinculada a valores informativos e/ou opinativos e à veiculação num órgão dotado de periodicidade. A relevância social e política, a relação com a atualidade e um caráter noticioso também ajuda a classificar esse tipo de foto. Do mesmo modo, o instantâneo costuma agregar qualidade informativa. (BUITONI, 2011, p. 90)

Com a implantação de imagens nas publicações ilustradas, em meados do século XIX proprietários de veículos impressos investem em fotografias para darem aos leitores informações em contínuo de acontecimentos nacionais e mundiais mais importantes, da sociedade a política com imagens realistas. Em maio de 1842, nasceu a primeira revista ilustrada A The Ilustrated London News (SOUSA, 1998) de Herbert Ingram (1811-1860), a partir desse novo meio de informação, texto e imagem, o impresso cresceu em tiragens, 100 mil exemplares entre os anos de 1855 e 1860.

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Os veículos de comunicação passam a ter um público maior quando seus periódicos introduzem imagens de momentos importantes, de caráter informativo e atual no decorrer de cada época. As empresas decidem investir no campo do fotojornalismo enviando fotógrafos correspondentes para cobrir questões sociais e combates. Roger Fenton (1819- 1869) foi enviado para cobrir a Guerra da Criméia (1854-1855) e elaborou trabalhos notórios dos registros, sob formas de gravura, tornando-se um dos primeiros fotógrafos de guerra. A fotografia foi adotada pela imprensa como registro visual da verdade, a isso se deve a massiva utilização das imagens nos episódios de outras batalhas vindas após a Guerra da Criméia. São imagens dotadas de teor informativo, comunicando o fato quase visualmente, “[...] Guerras e violência eram assuntos de muita importância no trabalho das agências; atualmente perderam espaço” (BUITONI, 2011, p. 103), as imagens relacionadas a fome no mundo e a conflitos em diversas regiões não atraem tanta atenção, comparada aos tempos em que imagens de horror eram triviais nos impressos ilustrados do início do século XX. No entanto, na imprensa começaram a surgir imagens manipuladas que primavam pela exploração do sensacionalismo divergindo da ideia de início, tendo como critério transmitir ao povo notícias com fotografias reais que gerasse a sensação de estar presente durante o acontecimento, tencionando-se, com isso, seduzir a atenção do leitor para a compra do impresso...

É na década de trinta do século XX que o fotojornalismo vai integrar-se, de forma completa, nos jornais diários norte-americanos, de tal modo que, no fim da década, e em comparação com seu início, o número de fotografias nos diários tinham aumentado dois terços, atingindo a média de quase 38% da superfície em cada número. (Nerone e Barnhurst, 1995) Alguns jornais, como o New York EveningGraphic, usavam até fotomontagens obscenas para vender nos tempos de crises. (SOUSA, 2002, p. 20)

Os fatores, como gravidade de um acontecimento, expostos nas fotografias favorecem o fotojornalista que tem compromisso em registrar as ocorrências por meio das imagens na verossimidade dos fatos, a rapidez para abordar fotografias de incêndios, desastres de carros, temas sociais e diversos assuntos factuais propícios ao seu trabalho no

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dia-a-dia, possibilitam ao profissional rapidamente transformar o acontecimento em notícia. Assim como para registrar acontecimentos extraordinários, a fotografia também tem a característica de exercer a patente de patrimônio para o desenvolvimento de uma cidade, essa ferramenta é uma aliada quando são levantados estudos a respeito da formação de um lugar. No município de Caracaraí na cidade de Roraima localizada ao norte do Brasil e fronteira com o país da Venezuela, fotografias feitas no ano de 1904 testemunham o princípio de um lugar responsável pelo desenvolvimento das cidades de Boa Vista, município de Roraima e da cidade de Manaus / AM capital brasileira e um dos centros industriais mais produtivos do país. Vários registros foram realizados no local por pesquisadores vindos de outros países, com o intuito de registrar imagens de indígenas habitantes na região. Dentre os estudiosos que passaram na cidade, houve dois pesquisadores que contribuíram com fotografias tiradas no ano de 1904 para que nos dias atuais os munícipes da cidade de Caracaraí pudessem elaborar um projeto a fim de dar início a construção de um lugar de memórias, ou seja, a construção de um primeiro museu ao sul do estado de Roraima. Esses pesquisadores que abordamos são de origem alemã, Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e George Huebner (1862-1935), ávidos em conhecer a região norte do Brasil e fotografar indígenas.

Fotografia como patrimônio cultural Durante o texto vimos a respeito da linguagem visual, um breve resumo sobre a história da fotografia e um pouco sobre fotojornalismo. Esses assuntos são introdutórios para colocar em questão a utilização da fotografia como patrimônio cultural material e imaterial, utilizadas para demonstrar a evolução e os significados do passado de uma região imagens que remetem a história de um povo. Os pesquisadores que por Roraima passaram deixaram uma herança, fotografias de um século onde as formas de impressão eram primitivas, essas imagens sobreviveram as adversidades possibilitando as pessoas que hoje moram na região de Caracaraí um estudo minucioso a fim de criar um patrimônio cultural.

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O patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto de saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem a história, à memória e a identidade desse povo. A preservação do patrimônio cultural significa, principalmente, cuidar dos bens aos quais esses valores são associados, ou seja, cuidar de bens representativos da história e da cultura de um lugar, da história e da cultura de um grupo social, que pode, (ou, mais raramente não), ocupar um determinado território. (BRAYNER, 2007, p. 13).

Quando uma determinada sociedade opta por desenvolver um projeto a fim de levantar um local que conterá artefatos, objetos e imagens de uma época em que os hábitos, crenças e costumes das pessoas eram diferentes, ela na verdade se preocupa em documentar a memória da evolução histórica de seus antepassados. Para eles, são materiais valiosos mesmo que alguns os tenham como um simples objeto. Nasce o desejo de transmitir os detalhes importantes da linguagem visual contida na imagem fotográfica. Nem sempre as imagens são de culturas materiais, nelas também podem conter a cultura imaterial representadas nelas visualmente, a exemplo, fotografia da dança parischará, dança típica de tribos indígenas passadas de geração ao longo dos anos, uma prática dos costumes indígenas, mas não só a dança representa uma cultura imaterial, mas também os modos de vestir, de falar, as músicas e enfim, tudo que revela os aspectos culturais do cotidiano de uma comunidade. A imagem fotográfica, a seguir (Foto 01), representa a principal localidade de embarcações que chegavam até Caracaraí, nesse lugar eram feitos muitos acordos de compras, venda e por onde pessoas renomadas, para a história do município, para o estado de Roraima e boa parte da região norte, passaram. Inclusive homens que lutaram pela causa da questão indígena como o Cândido Mariano da Silva (1865-1958) conhecido por Marechal Rondon.

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Foto 01- Porto de Caracaraí, por George Hüebner publicada no Álbum “Valle do Rio Branco”, 1906 Fonte: Acervo pessoal – professor Maurício Zouein

Considerações finais A linguagem visual transmite conhecimentos por meio das imagens e leituras, somos surpreendidos com a quantidade de informações que ela difunde em relação a cultura, costumes e hábitos de povos que viveram em tempo remoto. As técnicas usadas pelos precursores em tornar cada dia mais acessível às pessoas o prazer de ter impresso o que os seus olhos contemplaram ao presenciar o fato, o impulsiona a compartilhar suas experiências com outras pessoas. As insistências desses profissionais em aperfeiçoar os modos de impressão nos promoveram o alicerce a fim de contribuir com pesquisas e estudos que mostrem o real significado contidos em uma imagem fotográfica.

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HACKING, Juliet. Tudo sobre fotografia, Rio de Janeiro, Sextante, 2012.

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