VOL.2 N.º 1 2020

LITERATURA E TELEVISÃO

LITERATURA E TELEVISÃO NOVAS NARRATIVAS | FICÇÕES TRANSMÉDIA

LITERATURE AND TELEVISION NEW NARRATIVES | TRANSMEDIAL FICTIONS

Xaquín Núñez Sabarís e Daniel Tavares (Eds.) Vol.2 | Número 1 | 2020

Título: REVISTA 2i | Estudos de Identidade e Intermedialidade (Vol. 2 | N.º 1 – 2020)

Diretores: Eunice Ribeiro e Xaquín Núñez Sabarís

Editores: Xaquín Núñez Sabarís e Daniel Tavares

Produção editorial: Grupo de Investigação em Identidade(s) e Intermedialidade(s) – Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (URL: http://cehum.ilch.uminho.pt/grupo2i) em colaboração com UMinho Editora (URL: https://editora.uminho.pt/pt)

Comissão Consultiva: Amparo de Juan Bolufer (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Anísio Franco (Museu Nacional de Arte Antiga, Portugal), Antonio Gil (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Carlos Reis (Universidade de Coimbra, Portugal), Daniel Rodrigues (Universidade de Clermont Auvergne, França), David Roas (Universidade Autónoma de Barcelona, Espanha), Enrique Serrano (Universidade de Zaragoza, Espanha), Irina Rajewsky (Universidade Livre de Berlim, Alemanha), James Hall (Universidade de Southampton, Inglaterra), Jan Baetens (Universidade de Leuven, Bélgica), Joana Matos Frias (Universidade do Porto, Portugal), José Bragança de Miranda (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Max Saunders (King's College - Londres, Inglaterra), Paula Morão (Universidade de Lisboa, Portugal), Rogério Miguel Puga (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Rosa Maria Martelo (Universidade do Porto, Portugal), Rui Torres (Universidade Fernando Pessoa, Portugal), Wellington Fiorucci (Universidade Técnica Federal do Paraná, Brasil).

Revisores deste número da Revista 2i: Alfons Gregori (Adam Mickiewicz Universidade de Poznań, Polónia), Amândio Reis (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Amparo de Juan Bolufer (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Ana Calvo (Universidade San Pablo CEU, Espanha) Ana Maria Ribeiro (Universidade do Minho, Portugal), António Apolinário Lourenço (Universidade de Coimbra, Portugal), Antonio Gil (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Antonio Saéz (Universidade de Évora, Portugal), Cristina Álvares (Universidade do Minho, Portugal), Daniel Rodrigues (Universidade de Clermont Auvergne, França), Eva Álvarez Ramos (Universidade de Valladolid, Espanha), Isabel Cristina Mateus (Universidade do Minho, Portugal), Joana Matos Frias (Universidade do Porto, Portugal), José Bértolo (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), María Martínez Deyros (Universidade de Valladolid, Espanha), María López Sández ( Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Margarita García Candeira (Universidade de Huelva, Espanha), Monserrat Peña (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha), Orlando Grossegesse (Universidade do Minho, Portugal), Pilar Nicolás Martinez (Universidade do Porto, Portugal), Sérgio Guimarães Sousa (Universidade do Minho, Portugal), Rui Torres (Universidade Fernando Pessoa, Portugal), Santiago Pérez Isasi (Universidade Nova de Lisboa, Portugal), Thiago Cavalcante Jerónimo (Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil), Wellington Fiorucci (Universidade Técnica Federal do Paraná, Brasil).

Autores: Ana Cláudia Munari Domingos Ana Gustrán Loscos Anderson Antonangelo André Francisco Gabriela Kvacek Batella Iolanda Ogando José Manuel González Herrán Laís Natalino Luis Miguel Fernández Patrícia A. Janeiro Raquel Gutiérrez Sebastián Pedro Meneses Jorge Carrión M. Dolores Lerma Sanchis Xaquín Núñez Sabarís

Periodicidade: Semestral

Capa, design e revisão gráficos: Eva Couto

Identidade digital: eISSN: 2184-7010 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2.1

A Revista 2i segue, para a língua portuguesa, o AO de 1990. Outras opções ortográficas são da responsabilidade dos autores.

ÍNDICE INDEX

EDITORIAL | EDITORIAL

Xaquín Núñez Sabarís | Daniel Tavares 7 Literatura e televisão: novas narrativas | ficções transmédia Literature and television: New narratives | transmedial fictions

ARTIGOS | ARTICLES

Ana Cláudia Munari Domingos 13 “Há algum exagero nisso”: intermidialidade e sentido entre Dom Casmurro e Capitu “Here is somewhat an overstatement in it”: intermediality and meaning between Dom Casmurro e Capitu

Ana Gustrán Loscos 27 El espectáculo del exceso televisivo en la narrativa española actual: “Arco Iris de Levedad” (2001) de Javier Calvo The show of TV excess in contemporary Spanish literature. Javier Calvo's “Arco Iris de levedad”(2001)

Anderson Antonangelo 41 José de Alencar, identidade e imagem: análise sobre a era da imagem como elemento de expansão do projeto identitário do autor José de Alencar, identity and image: analysis of the image age as an expansion element of the author's identity project

André Francisco 49 O trauma em Watchmen: do graphic novel à série de televisão Trauma in Watchmen: from the graphic novel to the TV series

Gabriela Kvacek Betella 63 Machado de Assis em minissérie: linguagem audiovisual e elementos da narrativa em Capitu, de Luiz Fernando Carvalho Machado de Assis in a miniseries: audiovisual language and elements of the narrative in Luiz Fernando Carvalho’s Capitu

Iolanda Ogando 77 Podemos falar dunha Rosalía transmedial?: Rosalía de Castro na ficción audiovisual e as súas marcas de identidade Can we talk about a transmedial Rosalía?: Rosalía de Castro in audiovisual fiction and its identity marks

Joana Palha 91 Monstruosidades e biomorfismos: figurações contemporâneas do humano na literatura e nas séries televisivas (a partir da poesia de Luís Miguel Nava e da série Black Mirror) Monstrosities and biomorphisms: contemporary figurations of the human in literature and television series (from Luís Miguel Nava’s poetry and the series Black Mirror)

José Manuel González Herrán 103 El final de Los Pazos de Ulloa, en la novela de Emilia Pardo Bazán (1886) y en la serie de televisión de Gonzalo Suárez (1985) The end of Los Pazos de Ulloa, in the novel of Emilia Pardo Bazán (1886) and in the TV series of Gonzalo Suárez (1985)

Laís Natalino 115 Aos meus (queridos) amigos: a adaptação do romance de Maria Adelaide Amaral para as telas e a memória da ditadura brasileira To my (dear) friends: the adaptation of Maria Adelaide Amaral's novel to the screens and the Brazilian dictatorship memory

Luis Miguel Fernández 127 Mediopatías: El escritor y la (des)legitimación cultural de la televisión en España o la representación-narración frente a la representación-atracción Mediopathies: the writer and the cultural (de)legitimisation of television in Spain or representation-narration versus representation-attraction

Patricia A. Janeiro 141 O que as personaxes len: alusións literarias na pequena pantalla What the characters read: book allusions in the small screen

Raquel Gutiérrez Sebastián 153 Del realismo decimonónico a la transmedialidad From nineteenth-century realism to transmediality

VÁRIA | VARIA

Pedro Meneses 165 Retrato do género humano como bebé Portrait of the human condition as a baby

ENTREVISTAS | INTERVIEWS 181 Xaquín Núñez Sabarís Literatura y televisión en el siglo XXI: Entrevista con Jorge Carrión

RECENSÕES | REVIEWS

M. Dolores Lerma Sanchis 189 Antonio J. Gil Gonzalez & Pedro Javier Pardo (eds.). Adaptación 2.0. Estudios comparados sobre intermedialidad

EDITORIAL LITERATURA E TELEVISÃO: NOVAS NARRATIVAS, FICÇÕES TRANSMÉDIA

EDITORIAL LITERATURE AND TELEVISION: NEW NARRATIVES, TRANSMEDIAL FICTIONS

As relações entre a literatura e a televisão têm estado presentes desde o nascimento do medium televisivo. Como serviço público, como entretimento ou como plataforma de ficções narrativas, a televisão tem prestado uma especial atenção à literatura, seja em relação à informação e formação literárias, às adaptações dos clássicos ou como modelo narrativo da ficção serial. A porosidade entre diferentes média ampliou-se, no entanto, nos nossos dias. A revolução digital tem expandido global e massivamente os produtos culturais, propiciando uma grande hibridação entre as narrativas da ficção. O objeto artístico transita por vários média e formas e transforma-se, além disso, a partir da experiência com o consumidor, criando, por sua vez, novos produtos transmediais. Este fenómeno, tendo em conta a confluência das indústrias culturais com as indústrias do lazer e os novos comportamentos do mercado da arte, propiciou um alargamento do campo cultural, concedendo autonomia artística a produtos tradicionalmente secundarizados ou postergados (videojogos, banda desenhada, séries audiovisuais…). Tal transformação motivou alterações epistemológicas entre os estudos comparados, que transitaram de uma natureza intertextual para uma outra, intermedial. A ficção televisiva constitui um dos novos produtos de culto de maior impacto ao nível de consumidores, crítica e teoria académicas. A grande complexidade e qualidade fílmica e narrativa das séries caracteriza esta Terceira Idade de Ouro da televisão. A revolução digital e as plataformas de Video on Demand (VOD), assim como os serviços em streaming, possibilitaram a expansão global das séries televisivas, garantindo a viabilidade económica e, consequentemente, possibilitaram um reforço da qualidade artística da ficção e das narrativas seriais, nas quais se verificam importantes apropriações intermediais do texto literário. Este número 1 da Revista 2i pretende efetuar, portanto, uma revisão crítica e teórica das novas narrativas, televisivas e literárias, e das relações entre ambas, das formas de produção, divulgação e consumo, do contributo da literatura na conquista da autonomia cultural da ficção televisiva ou das condições de reforço da profissionalização dos criadores, tendo em conta o potencial económico da indústria do lazer. Os contributos presentes neste primeiro número de 2020 exploram estas relações, evidenciando a vasta latitude que a temática sugere. Desde logo, a partir da adaptação de obras literárias ao pequeno ecrã, explorada, por exemplo, por Patricia A. Janeiro que se 8 XAQUÍN NÚÑEZ SABARÍS | DANIEL TAVARES debruça sobre a fecunda relação intermedial entre literatura e séries televisivas americanas. A expansão do romance e as narrativas massivas do século XIX foram igualmente um campo fértil para a “transposição intermedial”, como notado por Raquel Gutiérrez em “Un caso de transposición intermedial de la novela corta de José María de Pereda a la ficción televisiva en Hora Once” ou ainda nas contribuições de Ana Cláudia Munari e de Gabriela Becella, através das análises que fazem sobre as adaptações de obras de Machado de Assis. Por sua vez, José Manuel González Herrán reflete ainda sobre a adaptação por Gonzalo Suárez do final de Los Pazos de Ulloa, de Emilia Pardo Barzán, para o pequeno ecrã, comentando a forma e efeitos que a divergência do guião apresenta em relação à narrativa original. O pujante mundo das séries televisivas tem abordado com particular interesse temas societais muito atuais, como nos lembra André Francisco com a sua abordagem a Watchmen e à questão do trauma. Esse interesse revela-se ainda no artigo de Joana Palha que aborda uma das séries televisivas de maior sucesso nos últimos anos, Black Mirror, a par da poesia de Luís Miguel Nava, ancorando esta aproximação intermedial na problemática das representações corporais e identitárias, envolvendo biomorfismo e monstruosidade. Luis Miguel Fernández e Ana Gustrán indagam a relação entre escritores e televisão. O primeiro reflete sobre a mediopatia “que choca com o heterocentrismo cultural próprio da nossa época”. Repassa a divergente opinião que os intelectuais da “Transição” espanhola tiveram com o médio. Ana Gustrán estuda os empréstimos dos programas- espetáculo na obra Arco iris de levedad, de Javier Calvo, que levam ao terreno literário o sensacionalismo televisivo. A força das ficções do ecrã é inquestionável quando considerado o universo de produção televisiva brasileira. Anderson Antonangelo recupera as adaptações das obras de José de Alencar e analisa a repercussão que a imagem poderá ter na leitura, questionando a retroalimentação entre diferentes representações. Iolanda Ogando levanta a questão da possibilidade da uma leitura transmedial da obra de Rosalía de Castro e como ela pode reconfigurar o símbolo, não somente literário como cultural. Também na senda da memória identitária e coletiva, Laís Natalino reflete sobre a adaptação dos romances de Maria Adelaide Amaral para a construção da memória da ditadura militar no Brasil. As perspetivas abordadas nos artigos do monográfico são ainda completadas com a entrevista a uma das vozes que mais têm estudado a relação entre a ficção literária e televisiva: Jorge Carrión reflete sobre a porosidade das fronteiras entre literatura e televisão, abrindo portas para um entendimento intermedial do “complexo ecossistema mediático” destas duas primeiras décadas do século XXI.

Xaquín Núñez Sabarís Daniel Tavares

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 7–10. eISSN 2184-7010 EDITORIAL 9

The relationships between literature and television have been present since the birth of the television medium. As a public service, as entertainment or as a platform for narrative fiction, television has paid special attention to literature, whether in relation to information and literary training, to the adaptations of classics or as a narrative model of serial fiction. The porosity between different media increased, however, in our days. The digital revolution expanded cultural products globally and massively, providing a great hybridization between the narratives of fiction. The artistic object goes through various media and forms, and even transforms itself from the experience with the consumer, creating, in turn, new transmedial products. This phenomenon, taking into account the confluence of the cultural industries with the leisure industries and the new behaviours of the art market, has led to a widening of the cultural field, granting artistic autonomy to traditionally secondary or postponed products (video games, comics, audiovisual series...). This transformation led to epistemological changes in comparative studies, which transitioned from an intertextual to an intermedial nature. Television fiction is one of the new cult products with the greatest impact on consumers, critics and academic theory. The series’ great complexity and narrative/film quality characterize this Golden Age of television. The digital revolution and Video on Demand (VOD) platforms, as well as streaming services have enabled the global expansion of television series, ensuring economic viability and, consequently, the reinforcement of the artistic quality of fiction and serial narratives, in which there are important intermedial appropriations of literary texts. This n.º 1 issue of the Journal 2i intends, therefore, to carry out a critical and theoretical review on the new television and literary narratives, and the relations between both, their forms of production, dissemination and consumption, the contribution of literature to the achievement of cultural autonomy of television fiction or the conditions for strengthening the professionalization of creators, given the economic potential of the leisure industry. The contributions present in this first issue of 2020 explore these relationships by highlighting the vast latitude that the topic suggests. First of all, from the adaptation of literary works to the small screen, explored, for example, by Patricia A. Janeiro who focuses on the fruitful intermedial relationship between literature and American television series. The expansion of the novel and the massive narratives of the 19th century were also a fertile field for the ‘intermedial transposition’, as noted by Raquel Gutiérrez in “Un caso de transposición intermedial de la novela corta de José María de Pereda a la ficción televisiva en Hora Once” or in the contributions of Ana Cláudia Munari and Gabriela Becella from their analyses of the adaptations of works by Machado de Assis. José Manuel González Herrán also reflects on Gonzalo Suárez's adaptation of the end of Los Pazos de Ulloa, by Emilia Pardo Barzán, for the small screen, on the form and effects that the divergence of the script presents in relation to the original narrative. The thriving world of television series has approached with particular interest such current societal themes, as André Francisco reminds us with his approach to Watchmen and the issue of trauma. This interest is also revealed in Joana Palha's article addressing one of the most successful television series in recent years, Black Mirror, alongside the poetry of Luís Miguel Nava, and anchoring this intermedial approach in the problem of body and identity representations, involving biomorphism and monstrosity. Luis Miguel Fernández and Ana Gustrán investigate the relationship between writers and television. The first reflects on mediopathy ‘which clashes with the cultural

Revista 2i, Vol. 1, N.º Especial, 2019, pp. 7–10. eISSN 2184-7010 10 XAQUÍN NÚÑEZ SABARÍS | DANIEL TAVARES heterocentrism of our time’. He passes on the divergent opinion that the intellectuals of the Spanish “Transition” had with the medium. Ana Gustrán studies the influences in the work Arco Iris de Levedad, by Javier Calvo, which bring to the literary field the television sensationalism. The strength of the fictions on screen is unquestionable when considering the universe of Brazilian television production. Anderson Antonangelo recovers the adaptations of José de Alencar's works and analyses the repercussions that the image may have in reading, questioning the feedback between different representations. Iolanda Ogando raises the question of the possibility of an transmedial reading of Rosalía de Castro's work and how she can reconfigure the symbol not only literary but also cultural. Also on the path of identity and collective memory, Laís Natalino reflects on the adaptation of Maria Adelaide Amaral's novels for the construction of the memory of the military dictatorship in Brazil. The perspectives dealt with in the monographic issue are also completed with an interview with one of the voices that has most studied the relationship between literary and television fiction: Jorge Carrión reflects on the porosity of the boundaries between literature and television, opening doors to an intermedial understanding of the ‘complex media ecosystem’ of these first two decades of the 21st century.

Xaquín Núñez Sabarís Daniel Tavares

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 7–10. eISSN 2184-7010

ARTIGOS

ARTICLES

“HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” INTERMIDIALIDADE E SENTIDO ENTRE DOM CASMURRO E CAPITU

THERE IS SOMEWHAT AN OVERSTATEMENT IN IT INTERMEDIALITY AND MEANING BETWEEN DOM CASMURRO E CAPITU

ANA CLÁUDIA MUNARI DOMINGOS* [email protected]

O romance Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899), é uma das obras mais conhecidas da literatura brasileira, uma espécie de Romeu e Julieta pelo modo como sua fábula é reconhecida mesmo por quem não a tenha lido. Em vista disso e também pela indeterminação de suas instâncias fabulísticas, sua narrativa não é apenas adaptada para diferentes mídias como seus elementos costumam aparecer em outros diferentes textos, seja o mote do ciúme, bastante universal, sejam as características de seus personagens. Neste trabalho, mostramos como a análise intermidial da obra Capitu (Luís Fernando Carvalho, 2008), transmidiação do romance para o cinema, colabora para a compreensão daquilo que talvez não seja tão evidente na obra verbal: a visão parcial e exagerada do narrador-protagonista. Para tanto, através das proposições de Lars Elleström (2017, no prelo), mostramos como na missérie Capitu as representações de mídias (media representation) simples, por exemplo, de mídias técnicas, e principalmente as complexas, como a do narrador romanesco e da encenação teatral, colocam em evidência essa característica do texto de Machado.

Palavras-Chave: Dom Casmurro; missérie Capitu; intermidialidade; representação de mídias.

Machado de Assis’ novel Dom Casmurro (1899) is one of the best-known works in Brazilian literature. It is recognized as a kind of Romeo and Juliet, since even those who have never read it are aware of Assis’ fable. In view of this, and because of its indetermination, this narrative has not only been adapted to different media, but its elements often appear in a variety of texts, whether it be through the universal motto of jealousy or through references to the features of its characters. In this work, I show how the intermedial analysis of Capitu (Luís Fernando Carvalho, 2008), a transmediation of the novel to cinema, helps in understanding what is perhaps not as evident in the verbal work: the partial and exaggerated view of the narrator-protagonist. For this purpose, through the propositions of Lars Elleström (2017, in press), I show how the TV series Capitu reveals this specific characteristic of Machado's text through simple media representation, such as technical media, and complex media representation, such as the novel’s narrator and the theatrical scene.

Keywords: Dom Casmurro; TV Series Capitu; Intermediality; Media Representation.

* Professora Adjunta, Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, Brasil. ORCID: 0000-0002- 6629-588X 14 ANA DOMINGOS

Data de receção: 2020-01-31 Data de aceitação: 2020-03-10

DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2515

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 15

Machado era um apaixonado pela ópera. Escreveu e afirmou que a vida é uma ópera bufa com alguns entremeios sérios e com alguma música séria. Quando Machado afirma isso, ele também está querendo refletir sobre o mundo das aparências, onde muitas vezes a verossimilhança conta mais do que a própria verdade. — Luís Fernando Carvalho

1. Da ópera a metade

O romance Dom Casmurro (1899–1900) é a obra mais conhecida de Machado de Assis; tanto é, que é comum que as pessoas falem dos personagens e mesmo da fábula ainda que não o tenham lido. É assim uma espécie de Romeu e Julieta brasileiro, embora traga semelhanças não com esta, mas com outra tragédia de Shakespeare, Otelo. O que se diz de Dom Casmurro, em conversas que costumam causar debates que, muitas vezes, são mesmo provocados para gerar opiniões que se contradizem, se relaciona à unidade dramática: terá ou não Capitu cometido adultério? E essa dúvida, deixada por falta de provas, dizem uns, à guisa dos últimos laivos de um amor possessivo, dizem outros, tanto é geradora de múltiplas leituras como permite que essas venham a concretizar novas e originais obras – filmes, séries de televisão, quadrinhos, romances, contos, músicas, poemas, canções. Entre as várias adaptações para os quadrinhos, a realizada por Mario Cau e Felipe Greco, publicada pela Editora Devir, ganhou o Prêmio HQMix de melhor adaptação. No cinema, há os filmes Capitu (Paulo Saraceni, 1968), cujo roteiro foi escrito pelos escritores e Paulo Emílio Gomes, e Dom ( 2003), em que o diretor Moacir Góes atualiza a história, ambientando-a numa São Paulo contemporânea. No teatro, além das múltiplas encenações do romance, há releituras como As sombras de Dom Casmurro, de Toni Brandão. Na música popular, Ná Ozeti canta “Capitu”, de Luiz Tatit, sobre uma Capitu blogueira de nosso tempo. Na literatura, há os romances Amor de Capitu, de , Capitu: memórias póstumas, de Domício Proença Filho, e a coletânea de contos Capitu, que reúne vários textos que colocam em foco a personagem de Machado. Mas, ainda além da minissérie Capitu, de Luís Fernando Carvalho (2008– 2009)1, objeto de análise deste trabalho, os elementos do romance machadiano se espalham em charges, memes e brincadeiras nas redes sociais. Transformar as palavras de Bento de Albuquerque Santiago em imagens não verbais e sons requer muitas e diferentes decisões que somente podem advir de uma complexa interpretação de seus elementos. O caso mais paradigmático é o daquela que seria a prova mais evidente da condenação de Capitu: a semelhança entre seu filho, o pequeno Ezequiel, e o amigo do casal, Ezequiel de Souza Escobar. Diz Bento, o narrador- personagem, ao encontrar-se com o filho uma última vez antes da morte deste: “Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pai.” (Machado de Assis, 2008, p. 272). Antes, Ezequiel ainda menino, fora Capitu quem apontara para a semelhança entre os olhos dele e os do amigo, do que discorda o marido, enxergando muito mais afinidades entre as feições do filho e as da esposa. Depois, é Bento quem repara o modo como ao crescer a criança vai-se tornando parecida com Escobar. No entanto, ele próprio chama a atenção para outra analogia, entre Capitu e a esposa de Gurgel, contada no 83.º capítulo (“O retrato”). Ao concordar com a semelhança entre elas,

1 A minissérie foi transmitida em cinco capítulos pela Rede Globo de Televisão no ano de 2008 e lançada em DVD em 2009.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 16 ANA DOMINGOS apontada por Gurgel, Bento completa: “Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas.” (Machado de Assis, 2008, p. 184). Embora ele queira fazer crer que são casos distintos, ainda assim pede ao leitor que volte a esse episódio, o que caracteriza que o próprio narrador fez-se lembrar dele. Além disso, ao dizer que “as feições do pequeno davam idéia clara das do outro”, ele também comenta, “ou eu ia atentando mais nelas” (Machado de Assis, 2008, p. 266). Bento Santiago faz questão de mostrar, desse modo, que sabe que, às vezes, as semelhanças são apenas coincidências “esquisitas”, talvez porque, ao contar a história, também sabe que o leitor – o sempre presente narratário – assim responde ao fato. Em seguida, ao lembrar “episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes” (Machado de Assis, 2008, p. 266), dá a entender que não enxergava nada que pudesse caracterizar o adultério porque não punha neles malícia e que ainda lhe faltara o velho ciúme. Ora, pode-se entender assim que naquele momento sua memória está carregada de malícia e ciúme. Para Capitu, as semelhanças, as quais ela foi a primeira a ver, eram “vontade de Deus”, ideia que faz Bento rir. Seu ‘ouvinte’, novamente, também pode achar graça nesse detalhe divino. É assim que o então Casmurro precisa convencer o leitor da sua versão, ainda que admita que, talvez, haja “algum exagero nisso”. Seria mesmo Ezequiel assim tão parecido com Escobar? Seria esse o motivo de Capitu nunca ter enviado um retrato do jovem ao amigo José Dias? Ou seriam os olhos maliciosos e ciumentos de Bento Santiago a enxergar demais? Seria exagero? No romance, a perspectiva subjetiva, narrada pelas palavras bem cuidadas do Bacharel em Direito Dom Casmurro, não parecem trazer um tom exagerado. Na adaptação de Dom Casmurro para os quadrinhos, por Welligton Srbek e José Aguiar, os olhos de Machado é que guiam o leitor, como vemos nas ilustrações (Figuras 1 e 2), em que ambos, Ezequiel Escobar e Ezequiel Santiago, podem ser ditos realmente como idênticos, tal como nos conta o Bacharel.

Fig. 1 Alexandre Srbek e José Aguiar, Dom Fig. 2 Alexandre Srbek e José Aguiar, Dom Casmurro, (2017) Casmurro, (2017)

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 17

No entanto, se entendemos que as imagens gráficas estão por demais decididas no julgamento, há uma excelente estratégia de condução que desfaz essa interpretação dos autores. Em um dos quadros (Figura 3), mostra- se a mão do narrador que desenha. Ou seja, se o narrador do romance é em primeira pessoa – e descreve com palavras as feições de Ezequiel – também nos quadrinhos as imagens gráficas estão em primeira pessoa e, assim, é Bento Santiago quem ‘desenha’ o “filho de seu pai”. Neste caso, o que se coloca em evidência é que a referência direta ao ato da escrita, em que se mostram a mão e a pena, foi usada para caracterizar a ‘narração’ em primeira pessoa e, ainda, a perspectiva subjetiva, quer dizer, a ‘referência de mídia’, um fenômeno da intermidialidade, é uma estratégia de narração. Ainda nos quadrinhos de Srbek e Aguiar – que também é uma transmidiação, do romance para os

Fig. 3 Alexandre Srbek e José Aguiar, Dom quadrinhos –, há outros exemplos do fenômeno Casmurro, (1917) intermidial que Lars Elleström (2017, no prelo) nomeia como “representação de mídias”.2 No romance, o narrador tece uma analogia entre sua história e uma ópera e, além dissso, faz citações diretas ou alusões a várias outras obras da literatura, como o próprio Otelo, a Ilíada e MacBeth. Para transferir esses valores cognitivos3 do romance para os quadrinhos, em vez de usar a mídia verbal para citar essa obras, os adaptadores escolheram usar as imagens gráficas, colocando vários livros em cima da mesa de trabalho do narrador, caracterizando também as representações de produtos de mídias (Figura 4). Fig. 4 Alexandre Srbek e José Aguiar, Dom É nesse sentido que os fenômenos de Casmurro, (1917) intermidialidade são analisados, com a intenção de encontrar a significância das representações e das transformações de mídias e, assim, dos produtos de mídia. Seria possível, também, analisar a transmidiação do romance para a graphic novel aqui citada, focalizando as adaptações das palavras do romance em imagens gráficas ou em lacunas, as palavras que permanecem e aquelas que são acrescentadas. Um estudo como esse com frequência colabora, para não dizer sempre, na compreensão da mídia fonte, quando a desconstrói e coloca em evidência seus elementos, por exemplo, o narrador. As escolhas dos adaptadores, como interpretações da obra, muitas vezes colocam Fig. 3 Alexandre Srbek e José Aguiar, Dom luz sobre passagens que os leitores, no ato de Casmurro, (1917) leitura, não percebem, por estarem conectados à

2 Da expressão em inglês, media representation. Tradução de Ana Cláudia Munari Domingos et al. (2015). 3 Valor cognitivo é aquilo que é transferido, através de um produto de mídia, entre duas mentes (Elleström, 2017). Poderíamos chamar, como um sinônimo aproximado, de conteúdo; no entanto, visto que o conteúdo na mente do produtor é sempre diferente, em menor ou maior escala, daquele que se realiza na mente do perceptor, Elleström chama de valor cognitivo àquilo que é midiado e existe em potência de sentido.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 18 ANA DOMINGOS fábula e atentos às ações. ‘Enxergar’ o narrador nos quadrinhos, assim, faz perceber que ele é a única e parcial voz que escutamos, que tudo aquilo que ‘vemos’ da história nos é colocado diante dos olhos através de seu traço – um traço guiado por suas memórias. Este é o caso da minissérie Capitu, pois é o narrador em primeira pessoa que traz esse tom do exagero e da parcialidade. Em vez de uma voz off, característica dos filmes que adaptam romances em primeira pesssoa – caso, por exemplo, de Lavoura arcaica (2001), adaptado para o cinema também por Luís Fernando Carvalho – em Capitu, o narrador é uma figura anacrônica, deslocada do seu tempo, que, revendo os acontecimentos, aponta- os para os espectadores.4 Nesse sentido, podemos entender que a transmidiação do romance para a minissérie coloca em evidência essa característica ao representar audiovisualmente o narrador romanesco cujas palavras, no papel, não deixam ver o ciúme que altera o ‘tom’ de sua narrativa. O outro condicionante desse exagero é a teatralização do romance a partir da instituição de um cenário e da ‘dramatização’ (ou espetacularização) da interpretação dos personagens. Como queremos mostrar, ambas estratégias podem ser analisadas sob a perspectiva da intermidialidade, entendidas como representações complexas de mídia.

2. “Aceito a teoria”: quando as mídias fazem sentido

Analisar os fenômenos intermidiais significa aproximar-se, de diferentes maneiras, do sentido dos textos, ou das mídias, e, assim, compreender com mais complexidade os atos de comunicação. No capítulo “Aceito a teoria”, o narrador-protagonista de Dom Casmurro explica que, enfim, concorda com a ideia de seu amigo Marcolini sobre que “tudo é música” (Machado de Assis, 2008, p. 55). É partindo dessa ideia que ele enjambra outra, de que a sua vida seria uma ópera – começa com “um duo ternissimo, depois um trio, depois um quatuor” (Machado de Assis, 2008, p. 56). Embora, seguindo essa analogia, ele coloque em paralelo sua vida e a ópera, é sobretudo a uma tragédia que ele faz referência, comparando-se a Otelo em seu ciúme e desejo de vingança. Como compreender, então, essa relação tecida entre a ópera e a vida nas linhas do romance? Ao leitor, cabe essa costura, sem perder o fio da fábula. Em Capitu, vários leitores tomam essa linha – diretores, figurinistas, atores, etc. –, tecem e destecem, dando ao romance ares de ópera-bufa, em que às vezes surge o “entremeio sério e alguma música séria”. Essa transformação se dá a partir da intermidialidade, ou seja, a partir da referência e da representação a outras mídias – à ópera bufa e, assim, à tragicomédia, à música, à dança, ao cenário, ao figurino, à encenação. É partir dessas interações entre as mídias que buscamos entender a complexidade de Dom Casmurro. Para Lars Elleström (no prelo), há três modos de interação entre as mídias, a integração, a tradução e a transformação de mídias. Aqui, interessa-nos a transformação que, por sua vez, é subdividida em transmidiação e representação de mídias. Para os estudos da intermidialidade, as relações entre duas mídias cujas modalidades são as mesmas, por exemplo, duas mídias verbais, um romance citando outro, é do nível

4 Em Capitu, o narrador habita a diegese da narrativa de um modo fantasmagórico. Sem ser percebido, e encontrando-se consigo mesmo, podemos entendê-lo como uma instância extradiegética, o que no romance é discutível, visto que os diálogos presentificam a ação, colocando a voz do protagonista no interior da narrativa – embora distingam-se Bentinho e Casmurro, passado e presente. No entanto, em uma das cenas, ao final, Capitu toca nesse narrador, dando-se o encontro entre o tempo da narração e o da narrativa e transformando-o em autodiegético.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 19 intramidial, ou seja, é um fenômeno de intramidialidade.5 A questão aí é que não há uma transformação midial, uma adaptação. Quando há uma interação em que há transformação, em vista de que as modalidades das mídias se distinguem, tratamos de transmidiação ou representação. Para Elleström, todas as mídias podem ser analisadas a partir de suas quatro modalidades – material, sensorial, espaçotemporal e semiótica –, em que as três primeiras, pré-semióticas, são percebidas antes da compreensão do valor cognitivo que está sendo recebido através da mídia. Ou seja, são pré-semióticas porque atuam na midiação – transferência de ‘algo’ através da mídia – antes da representação, quer dizer, da ‘leitura’, em sentido lato, do conteúdo (valor cognitivo) que está sendo midiado. A modalidade material tem sentido em como a mídia se apresenta em relação à mídia técnica, se é bidimensional ou tridimensional, se é midiada através de ondas sonoras ou se é visual, se orgânica ou inorgânica; a modalidade sensorial diz respeito ao(s) sentido(s) que usamos para perceber o produto de mídia; e a espaçotemporal é o modo como a mídia se constitui na relação espaço-tempo, se a recebemos sincronicamente, como uma imagem não verbal, se precisamos contorná-la, por exemplo, como para ver uma escultura. Essas três modalidades, embora possam ser distinguidas entre si, funcionam em conjunto. A quarta modalidade é a semiótica, que vem a ser o processo através do qual objetos (pessoas, coisas, acontecimentos, etc.) são representados. Elleström (no prelo) baseia-se na semiótica peirciana, para estabelecer três tipos de representação – a simbólica, chamada de descrição, a indexical, chamada de indicação, e a icônica, chamada de ilustração.6 Essa modalidade depende inteiramente das outras, assim como todas dependem da mídia técnica. O que distingue ou aproxima as mídias são os modos de cada uma de suas modalidades, visto que em cada uma delas há diferentes modos. As diferentes semioses podem ocorrer em conjunto, por exemplo, em um filme, temos os processos simbólicos das palavras, que representam o mundo por convenção, os icônicos, pelo modo como as personagens representam pessoas, e o indicial, quando reconhecemos uma representação do mundo em que vivemos, uma cidade, um monumento histórico ou mesmo um ator representando a si mesmo. Um fenômeno intermidial de representação de mídias – um tipo de transformação de mídia – ocorre quando uma mídia representa outra, ou seja, o objeto a que o representamen ‘se refere’ é outra mídia. Essa representação pode, ou não, ser importante para entendermos o produto de mídia, quer dizer, tem menos ou mais significância. A intermidialidade, assim, é um modo de entender a comunicação, em seu sentido amplo, de forma mais complexa, observando o modo como as mídias se relacionam para construir significado. Elleström ainda distingue diferentes categorias, as mídias técnicas (de armazenamento, de produção, de transmissão, entre outras), os tipos de mídias e os produtos de mídia. Os tipos de mídia podem ser básicos, por exemplo, a mídia verbal ou a mídia sonora, ou qualificados, quando questões operacionais e contextuais agem sobre essas mídias básicas ou combinação de mídias básicas. Um tipo de mídia qualificada verbal pode ser um romance, um poema ou um texto jornalístico – e isso muda conforme a época e as diferentes culturas. Isso quer dizer que, para os estudos em Intermidialidade,

5 Poderíamos dizer que, assim, é também um fenômeno de intertextualidade; no entanto, não esqueçamos que, em geral, os estruturalistas não faziam essa diferença entre as mídias, tratando, a partir da Semiologia, da noção do texto. Fazê-lo, portanto, seria talvez anacrônico. 6 Em inglês, description, indication e depiction, respectivamente. Em “The modalities of media II” (no prelo), Elleström altera o termo indication para deiction; no entanto, como esse texto ainda não tem tradução para o português, escolhemos utilizar a versão em português publicada em 2017, conforme referências ao final deste trabalho.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 20 ANA DOMINGOS aquilo que nos estudos linguísticos e literários costuma-se chamar de gênero, subgênero, tipologia, arte, etc., é compreendido como tipos de mídia qualificadas – a pintura impressionista, o balé clássico ou o cinema de animação. De um lado, essa perspectiva evita o eixo entre arte e não arte, com bastante benefício. De outro, ela evoca um olhar complexo sobre todas as características dos produtos de mídia que analisamos, compostos por suas quatro modalidades. Um produto de mídia, que diz respeito a todas as formas de comunicação, é aquilo que podemos entender, em sentido amplo, como um texto específico, evitando outra polêmica, que entende texto como uma tessitura verbal. Capitu, de Luís Fernando Carvalho, é um produto de mídia do tipo (de mídia qualificada) minissérie de televisão. Este trabalho, através de uma perspectiva intermidial, propõe uma análise entre Capitu e Dom Casmurro, com a finalidade de compreender sua significância a partir das representações de mídia.

3. “Abane a cabeça, leitor”: a ópera toda entre Dom Casmurro e Capitu

Para Lars Elleström (2014, 2017, no prelo), as mídias se definem enquanto suas características apresentam entre si semelhanças e diferenças. Não é difícil perceber as diferenças entre uma minissérie televisiva e um romance em livro impresso; no entanto, entre as suas semelhanças estão questões materiais, sensoriais e espaçotemporais que muitas vezes não percebemos; por exemplo, tanto o filme quanto o romance impresso apresentam-se através de uma superfície plana para a qual olhamos no decurso do tempo da narração. Enquanto, no filme, nossos olhos fixam-se no centro da tela, no livro eles percorrem a página de cima para baixo e da esquerda para a direita (na escrita-leitura ocidental), ou seja, o filme passa diante dos nossos olhos, e nossos olhos passam pela página. Ao obedecer à ordem dada por Dom Casmurro, no quadragésimo quinto capítulo da sua história, abanando a cabeça, o leitor vai afastar seus olhos da página. Se “levantamos a cabeça”, como dizia Roland Barthes (2012), “por afluxo de ideias, excitações, associações”, ao assistir televisão, perdemos parte do programa. Certamente devemos mencionar a programação em streaming, tão comum atualmente, que nos permite interromper o programa que assistimos e retornar no mesmo ponto depois. E tambem não erramos em apontar que esse novo formato de transmissão tem bastante influência sobre as mudanças técnicas e de estilo nas séries de televisão a que hoje assistimos em streaming. Se o espectador pode interromper, rever, comprar ou não, caso da minissérie Capitu em DVD, é preciso atraí-lo de outras formas. A televisão é uma mídia básica audiovisual e suas características incluem a tela do aparelho televisor como mídia técnica de transmissão. Já a televisão como uma mídia qualificada nos leva a pensar em muitos e diferentes formatos, desde os mais indiciais, como noticiários e reportagens, à ficção dos filmes e séries, aos programas de humor e infantis. No entanto, quando falamos em minisséries televisivas, pensamos sobretudo em narrativas e em determinadas linguagens, que mudam conforme as tecnologias e as tendências. Nesse sentido, as minisséries e séries aproximam-se muito mais da mídia cinema. Assim como não há apenas ‘um’ cinema, pois as suas linguagens e suas funções, intenções e estilos produzem diferentes tipos de mídias qualificadas – com qualidades e características diferentes – também não há apenas um tipo de minissérie. A obra de Luís Fernando Carvalho pode ser reconhecida em sua idiossincrasia, ao apresentar um estilo que é muito próprio do diretor e que pode ser entendido, a partir de Pasolini (1965–1982), como “cinema de poesia”. Para Pasolini, as imagens, enquanto

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 21 representações icônicas do mundo, justamente por serem de algum modo naturais ao nosso olhar, tornam-se simbólicas, duplicam sua representação. Pensando sobre essa transformação da imagem em metáfora, ele distingue entre essa espécie de linguagem cinematográfia – o cinema de poesia – e o cinema de prosa, aquele que prioriza a narração fabulística. Nesse sentido, em vista do peso da forma, que reconfigura a imagem dando- lhe um sentido segundo, o cinema de poesia é bastante autoral, o que significa que, nas transmidiações de romances, caso de Capitu, por exemplo, a adaptação tem sempre um viés bastante criativo que coloca em evidência ou esconde elementos da fábula e que deixa entrever o estilo do produtor – e, assim, a leitura subjetiva da obra. Em um pequeno documentário incluído no DVD da minissérie, o diretor Luís Fernando Carvalho prefere chamar o processo de transformação de Dom Casmurro em Capitu de “aproximação”. Na capa e nos créditos do DVD isso se evidencia na expressão “a partir da obra Dom Casmurro”. Esse “a partir de” dá o tom desejado pelo diretor, para quem normalmente as adaptações “achatam” suas fontes. O que ele deseja é tecer um diálogo com o romance e, por isso, o título é Capitu. Outra característica do cinema de poesia é justamente a imersão no personagem, tomando-o em sua expressividade (Aumont & Marie, 2008, p. 191), que é outra estratégia que se apresenta em Capitu, tendendo, como aqui defendemos, a uma espécie de exagero dramático – ou ao expressionismo. A obra de Luís Fernando Carvalho deixa-se ser reconhecida, assim, no modo como ele aponta para o simbolismo das imagens; elas não correm na frente dos olhos dos espectadores na narração das ações, mas contam histórias em si mesmas, como um poema que aponta para o comezinho que não enxergamos porque nossos olhos têm pressa. As imagens, nesse sentido, são ‘palavras’ que devemos sorver e transformar em outras imagens, tal como fazemos na leitura de um poema. O estilo do diretor também inclui um modo peculiar de imiscuir os diferentes – distintas mitologias, culturas e técnicas, distintos tempos e modos de dizer, como é bastante evidente nas minisséries Hoje é dia de Maria (2005) e A pedra do reino (2007). Em Capitu, isso acaba se tornando mais evidente quando tecnologias que não existiam à época da narrativa fazem parte da história, como o carro e o elevador, misturados às vestes do século XIX. Esse anacronismo se coloca como um fenômeno intermidial à medida que distingue também as mídias, tornando-as opacas e, assim, duplicando seu sentido. As inserções de meios de comunicação tais como o gramofone, a carta e o cartão postal, que aparecem em Capitu, caracterizam-se como representações simples de mídias, a partir de Elleström (2014, 2017), quando são ao mesmo tempo índices daquele época e de um modo de vida. São representações simples enquanto se mostram como elementos de verossimilhança comuns a toda narrativa ficcional, figurando a vida e a rotina de pessoas que vivem num mundo como o nosso ou similar ao nosso em sua iconicidade. À medida que essas representações perdem a transparência, adquirem significância, assumindo valores cognitivos que interferem na representação de sentido da obra. Ao deixarem de ser apenas imagens de mídias em sua função rotineira, como o são as imagens de objetos do cotidiano, como um vaso ou uma cadeira, que sequer percebemos quando prestamos atenção à história e, sobretudo, aos personagens, elas constroem uma semiose mais complexa, que evoca interpretação. Essas representações complexas de mídia são bastante importantes para a compreensão da obra Dom Casmurro em sua perspectiva irônica, dada pela narração subjetiva e parcial. Embora Elleström não faça uma classificação específica para os casos de representação de mídias, isso é possível a partir de sua afirmação sobre haver três modos de representação (ao falar da representação em relação à midiação). Ou seja, ao representar objetos, o representamen ‘funciona’ (seguindo o conhecido modelo de Peirce)

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 22 ANA DOMINGOS como índices, ícones e símbolos. Se as mídias representadas em outras mídias passam a ser um representamen, então podemos usar essa mesma classificação, analisando-as como representações complexas de mídia indiciais, icônicas e simbólicas, ou seja, indicação, ilustração e descrição.7 De um modo redutor, dimensionado pela brevidade deste trabalho, as representações complexas que analiso dividem-se em dois tipos: as ilustrações e as descrições. Entendo que as representações simples de mídia, por seu aspecto de inserção de verossimilhança, podem ser entendidas como indiciais (indicações), enquanto as complexas podem ser icônicas (ilustrações) ou descrições (simbólicas). Outra questão que caberia aqui seria uma complexificação do sentido do termo metáfora em relação a essa categorização das representações; no entanto, não apenas pelo aspecto da brevidade mas sobretudo pela perspectiva teórica, escolhemos entender essas representações sígnicas como fenômenos intermidiais a partir do modelo já aqui exposto. A partir dessa categorização das representações complexas de mídias, entendemos que em Capitu elas se distinguem em duas estratégias: as descrições mostram sobretudo mídias técnicas, quer dizer, meios de comunicação que aparecem para representar algo e não apenas para servirem como mídias para os personagens – elas ‘simbolizam’ outra coisa; as ilustrações se mostram na imitação, na sugestão, de outros tipos de mídias qualificadas, elas fazem a minissérie ‘parecer ser’ outra coisa: uma ópera-bufa, um encenação dramática, uma dança, uma música. Ainda seria possível, para um trabalho ensaístico mais extenso, dividir entre os tipos de mídias que são representadas: as mídias técnicas: máquina fotográfica, máquina de escrever, gramofone, fone de ouvido, livro, envelope, cartão postal, pena; e as mídias qualificadas: fotografia, cinema documental, carta, narrativa verbal, música clássica, música contemporânea, teatro, dança. No entanto, escolhemos agrupar em torno da intenção, simbolizar ou imitar. A minissérie começa com imagens antigas, em preto-e-branco, de um trem que, ao cruzar um túnel, atravessa para o Rio Janeiro contemporâneo. Essa passagem se dá também outras vezes e ao final. Em vez de estar naquele trem antigo, Dom Casmurro, o narrador-protagonista, começa a narrar sentado num banco de metrô, onde encontra o poeta que, em seguida, vai apelidá-lo de Dom Casmurro. A aparição dessas imagens cinemáticas, pelo seu aspecto, distinguem-se das imagens da minissérie, mostrando-se como um filme dentro dela, ou seja, um fenômeno intermidial de representação de mídias. Essa contraposição entre dois tempos que se tocam, entre os meios de transporte e os meios de comunicação, simboliza a universalidade do tema, que atravessa os séculos e permite que a história de Machado de Assis continue a falar aos leitores e espectadores contemporâneos. Essa intenção de representar a continuidade também está no modo como o narrador, ao ‘escrever’ a história, às vezes usa a pena, em outras a máquina de escrever, enquanto as palavras vão surgindo escritas no papel, visto que presentifica diante do espectador os acontecimentos. Também os fones de ouvido, que são usados no momento do baile, fazem essa passagem entre o passado e o presente, já que os personagens, vestidos conforme seu tempo, dançam uma valsa. Em outro momento, os fones de ouvido constroem outra simbologia, quando não é mais o casal a escutar uma única música, mas apenas Bentinho, no isolamento que ele impõe a si mesmo. A solidão, o afastamento, por convenção, mostram-se em personagens sozinhos, que fazem coisas sem companhia e que não são percebidos pelos outros. Ao escutar, sozinho, uma música que não sabemos qual seja,

7 Em “As modalidades das mídias”, versão em português do artigo “The modalities of media”, publicada em 2017, conforme referências ao final deste trabalho, Elleström distingue esses modos semióticos na representação simples de mídia. Na segunda versão do artigo, ainda no prelo, ele sugere que esses modos servem para todos os tipos de representação.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 23 pois o baile segue com os outros casais dançando, podemos enxergar aí essa convenção. E é daí que vem o casmurro, não no sentido que lhe dá o dicionário, mas de “homem calado e metido consigo” (Machado de Assis, 2008, p. 40). E se ele escuta na solidão, pensa na solidão, mais ainda é reforçada a ideia de uma narração parcial, movida pela falta de comunicação entre Bento e Capitu. Essa é a principal tese para entendermos a dúvida sobre a traição, a parcialidade movida pela emoção, pela ilusão. Para Dom Casmurro, essa dúvida não existe. Ele enxerga o filho de seu pai. Ao final da narrativa, ele afirma que aquilo que fica é que seus melhores amigos, Capitu e Escobar, “quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-[o]me” (Machado de Assis, 2008, p. 276). A dúvida é do leitor, que justamente suspeita dessa narração capciosa. Luís Fernando Carvalho afirma que essa dúvida foi mantida apesar da certeza final de Casmurro. Sim, a dúvida não apenas é mantida, como podemos dizer que é intensificada, a partir do preenchimento de vazios pela interpretação dos produtores. Esse preenchimento se dá através do aspecto cênico na dramatização da narrativa, em uma representação da ópera-bufa. É assim que a frase “A vida é uma ópera” é gritada pelo narrador, enquanto ouvimos a ópera O guarani, símbolo da nacionalidade defendida por Machado de Assis nos idos do Romantismo. O narrador é quem dá o tom dessa imitação. De fraque e , maquiado em tons escuros, incluindo sombra nos olhos que às vezes escorre pela face, seu bigode é desenhado no buço. Encurvado e expressivo nos gestos e na voz, ele é o bufão que atravessa entre os tempos do enredo e da história, entre o Casmurro e o Bentinho, quando a própria Capitu, tocando-o, une-os num só. Casmurro é, assim, um narrador romanesco que atravessa para a tela da minissérie fantasiado de bufão. A representação complexa da ópera estende-se a toda a diegese. A história acontece em um cenário, sempre o mesmo espaço de um casarão antigo cuja sala faz as vezes de palco, onde as cortinas abrem-se e fecham-se nos entremeios e atrás das quais o narrador se esconde e limpa o sangue das mãos. Cortinas e sangue são bastante shakesperianos, mas o exagero do bufão traz o tom da ironia e da comicidade. Embora muitas vezes a câmera passeie rápida pelo cenário, sobretudo nas mudanças de plano e nas aproximações subjetivas ao narrador, às vezes os personagens formam uma cena estática, sugerindo não apenas uma moldura para uma visão da memória, mas também trazendo o aspecto da teatralidade. Seus gestos são expansivos, desnaturalizados, falam alto, cheios de nuanças, e gesticulam muito. A sensação é de que estamos realmente no teatro, não fossem as inserções dos títulos dos capítulos em letras grandes como recortes de jornais. Muitos dos objetos são realmente cênicos, sem disfarce, como o cavalo de madeira que simula o alazão branco montado pelo dandy que provoca a primeira mordida de ciúmes em Bentinho. Essa cenografia teatral inclui um quadro verde onde o ambiente é desenhado pelos próprios personagens, um carro no meio do salão, um trem e passageiros de papelão. Capitu, a que tem “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (Machado de Assis, 2008, p. 97), usa vestidos e véu de estilo espanhol, lembrando a personagem Carmem, da ópera homônima de Bizet. Os grandes olhos esverdeados de ambas atrizes que interpretam Capitu aparecem com frequência em plano detalhe, mas é a boca carnuda que destoa da “boca fina” (Machado de Assis, 2008, p. 62) descrita por Bentinho. Sua entrada em cena, quando do retorno de Bentinho do seminário, é também teatral, do alto da escada, às vezes à sombra, atrás de um véu, até aparecer por completo. E ela dança, ri alto, mexe no vestido, figurando em cena uma mulher sedutora que o romance apenas sugere pela narração do homem que, supostamente, a amou. Embora todas essas cenas estejam diante dos olhos do espectador, é o bufão, de fraque e no seu andar capenga, lembrando Chaplin, o corpo curvado, que nos aponta uma a uma como se as tirasse da cartola. É ele quem dá

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 24 ANA DOMINGOS risadinhas e sorri de lado. É ele quem revira os olhos quando Escobar diz que José Dias tem um coração puro. É ele que, olhos arregalados e marcados pela sobra escura, magro e pálido, olha para o espectador para acusar Capitu. É ele quem tira o retrato dos noivos no dia das núpcias, escondido no manto negro da máquina fotográfica. Esse narrador bufão, que vagueia pelas “inquietas sombras” do teatro onde ele dirige a ópera, que manuseia o gramophone e coloca a música, tem as mãos sempre sujas da tinta com que escreve em bico de pena, evidenciando-se, assim, como o escritor, o regente, a indicar os papéis e os lugares de cada um na história. É um narrador expressionista e exagerado em sua interpretação emocional da história. No romance, muitas vezes Dom Casmurro caracteriza o drama em relação ao modo como deveria escrever a sua história. Por exemplo, através da referência a Otelo, ele entende que o gênero deveria ser mudado, começando-se a história pelo fim, para que o espectador possa ficar com uma boa impressão do amor em vez do final trágico. No capítulo seguinte, ele diz que “[O] destino não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra” (Machado de Assis, 2008, p.169), e é como um contra-regra que ele se mostra, ao “manipular” o jogo de cena, as luzes, a música. A representação da dança também colabora para o aspecto operístico, sobretudo, no caso da ópera-bufa, quando ela tende ao ridículo, como na cena do baile em que os dançarinos jogam-se ao chão. As músicas clássicas misturam-se ao rock and roll e à música popular brasileira, causando estranhamento. Se a música tema do casal protagonista, “Elephant gun” (Beirute, 2007. In: Carvalho, 2009), embora contemporânea, não distoa tanto da erudita em vista do seu ritmo lento – dando um tom lírico à ópera –, a canção que toca quando da aparição de Escobar, apresentado ao espectador por Dom Casmurro, “Iron man” (Black Sabath, 1971. In: Carvalho, 2009), coloca em evidência a diferença e, assim, produz significância também pelo estranhamento. O sentido da canção para a construção do personagem e seu aspecto sedutor reveste-se de um tom irônico, pois se Bentinho idolatra o amigo – esse “homem de ferro” cujos braços são maiores dos que o dele –, agora, ao narrar, já o tem como um traidor. Escobar, em outra cena, ao mostrar como é bom em matemática, acrescenta um gestual ao seu discurso, como se em vez de dizer, cantasse uma ária, enquanto ao fundo toca a música “Money” (Pink Floyd, 1973. In: Carvalho, 2009). O tilintar das moedas que vem da música intensifica, novamente, aquilo que o romance sugere, o interesse de Escobar por Dona Glória, mãe de Bentinho, em vista da sua condição financeira. Em outro momento, o narrador pede uma música para embalar o que vai narrar, e a trilha sonora então traz um rap, enquanto surgem imagens do Rio de Janeiro contemporâneo, o Rio musical, sensual. Mas também é o Rio de Janeiro escravocata que se mostra através de duas fotografias bastante icônicas deste tempo, fazendo refletir a situação econômica de Bentinho, dimensionada pelo número de escravos. Os trejeitos, olhares e gestos entre Bentinho e Escobar superdimensionam a sugestão de uma relação mais íntima entre eles. No romance, apesar das palavras de Bentinho sobre o amigo, isso pode passar despercebido se levamos em consideração o tempo da narrativa. Em Capitu, isso adquire outra esfera a partir da “interpretação” do narrador. Por exemplo, quando ele diz “Nossas relações já estavam tão estreitas como vieram a ser depois”, o tom e o olhar mudam ao dizer “como vieram a ser depois”, como se sugerisse que, mais adiante, tornaram-se mais estreitas. Ao contar sobre o dia em que o visita, a frase “Era o dia das boas sensações” enche a boca e os olhos do narrador. A dúvida sobre a sexualidade de Escobar também é intensificada no modo como ele olha para Bentinho e, ainda, sua expressão, longe dos olhos do amigo, quando este questiona se ele tem interesse em “uma pessoa” e Escobar responde que uma pessoa deve ser uma moça. No romance, essas

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 “HÁ ALGUM EXAGERO NISSO” 25 palavras são ditas pelo narrador e apenas há estranheza, talvez, na pergunta de Bentinho, já que ele só diz “moça”, depois. A postura cênica do narrador ainda redimensiona a relação entre Bentinho e Sancha, ao reforçar, pelo tom malicioso e pela dramatização do “fluído particular” que lhe percorre o corpo, que ela pode também querer outra espécie de relação com ele. É o próprio narrador que avisa: antes pecar por excessivo do que por maluco. Em outra ocasião, ele comenta, ao explicar que tem os dedos doloridos de tanto escrever, que certa lembrança pode ser uma ilusão. E são essas “ilusões” que colocam holofotes e mudam o ritmo da trilha sonora. Ao final, Dom Casmurro está diante de um espelho que parece ser o de um camarim. Ele tira a maquiagem e, através do espelho, fala ao espectador. O bufão sai de cena, entra o personagem, Bento de Albuquerque Santiago, em sua veste de Casmurro. No entanto, em seguida, a vestimenta é outra. Com as roupas e o adorno de cabeça de Capitu, suas palavras finais dizem que a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, as duas pontas que ele prometeu atar no início da narração. Mas o que ele está a nos dizer, assim travestido, ao modo de outro romancista inovador ao falar de sua personagem, é que Capitu é ele.

4. “Do título” ao epílogo

Este trabalho termina como se inicia a obra que é seu objeto: “Do título”, primeiro capítulo de Dom Casmurro. Procuramos mostrar que as representações complexas da ópera e do teatro, assim como as mídias básicas que a compõem, a cenografia, a encenação, a dramatização, intensificam elementos que no romance são sugeridos. Ainda que a ironia de Machado seja capaz de nos dizer coisas para além das palavras, no romance não há o gestual, o tom de voz, a trilha sonora e os elementos cênicos. Certamente a aproximação erigida em Capitu não trai a obra de Machado naquilo que, aqui, chamamos de exagero, parafraseando o próprio narrador; em vez disso, mostra toda a potencialidade e o tanto que ainda é possível, da trama machadiana, trançar os fios, como Bentinho dos cabelos de Capitu. Para Carvalho, é importante apontar para a questão da “continuação” em Machado de Assis, visto que o tema de Dom Casmurro, o ciúme, é um mote universal das artes. Existe, em Capitu, essa metáfora da passagem, da continuidade, no modo como o trem antigo e o novo atravessam, como se fossem um só, trilhos e túneis, fazendo a travessia entre diferentes tempos. Para o diretor, Machado de Assis foi bastante inovador como romancista, o que pode ser tomado como uma autorização para o trabalho também inovador e criativo com sua obra. É dessa forma que ele chama atenção para o fato de que, em Dom Casmurro, a primeira palavra dita por seu narrador-protagonista é justamente “Continue”, dito ao poeta que lhe declama versos no trem. É, assim, como se Machado dissesse para ele, o diretor, continue. E foi o que ele fez, e é o que continuamos fazendo, na leitura comparada entre eles.

REFERÊNCIAS

Aumont, J. & Marie, M. (2008). Dicionário teórico e crítico do cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia.

Barthes, R. (2012). Escrever a leitura. In R. Barthes, O rumor da língua. (trad. Mário Laranjeira). (pp. 26–29). São Paulo: Martins Fontes.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010 26 ANA DOMINGOS

Carvalho, L. F. (Produtor) & Carvalho, L. F. & Abreu, L. A. De & Soffredini, C. A. (Guionistas/Realizadores). (2005). Hoje é dia de Maria [Filme]. Rio de Janeiro, RJ: TV Globo.

Carvalho, L. F. (Produtor) & Carvalho, L. F. & Tavares, B. (Guionistas/Realizadores). (2007). A pedra do reino [Filme]. Rio de Janeiro, RJ: TV Globo.

Carvalho, L. F. (Produtor) & Carvalho, L. F. & Marinho, E. (Guionistas/Realizadores). (2008- 2009). Capitu [Filme]. Rio de Janeiro, RJ: TV Globo.

Elleström, L. (2014). Media transformation: The transfer of media characteristics among media. London: Palgrave MacMillan.

______. (2017) Midialidade: Ensaios sobre comunicação, semiótica e intermidialidade. (trad. Domingos et al.) Porto Alegre: Edipucrs.

______. (No prelo) The modalities of media II. In L. Elleström, The modalities of media II. London: Palgrave MacMillan.

Machado de Assis, J. M. (2008). Dom Casmurro. São Paulo: Globo.

Pasolini, P. P. (1965–1982) Empirismo herege: Cinema de prosa e cinema de poesia. In J. L. Goldfarb (Ed.), Diálogo com Pasolini – Escritos (1957–1984). Lisboa: Assírio & Alvim.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 13-26. eISSN: 2184-7010

EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL “ARCO IRIS DE LEVEDAD” (2001) DE JAVIER CALVO

THE SHOW OF TV EXCESS IN CONTEMPORARY SPANISH LITERATURE JAVIER CALVO'S "ARCO IRIS DE LEVEDAD" (2001)

ANA GUSTRÁN* [email protected]

A través del análisis de los vínculos temáticos y formales que posee el relato “Arco iris de levedad” de Javier Calvo con la televisión, profundizamos en las estrategias que la narrativa española actual emplea para integrar este medio de masas como referente directo y la reflexión crítica que este ejercicio intermedial trae consigo. El texto seleccionado resulta de especial relevancia ya que pone el foco de atención en un género televisivo alejado tradicionalmente del campo literario, el de los programas-espectáculo donde todo avanza a base de golpes de efecto, morbo y sensacionalismo.

Palabras clave: Intermedialidad; narrativa; televisión; espectáculo; mass media.

This article explores how Spanish contemporary literature integrates television as referent through the analysis of Javier Calvo´s “Arco iris de levedad”. The study of formal and thematic links between this short story and TV facilitates the analysis of intermediality. Calvo´s “Arco iris de levedad” is especially relevant for it focuses on reality shows, a television genre based on morbid curiosity and sensationalism which is traditionally detached from literature.

Keywords: Intermediality; prose fiction, television; spectacle; mass media.

Data de receção: 2020-02-26 Data de aceitação: 2020-04-09 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2535

* Investigadora, Universidad de Zaragoza, España. ORCID: 0000-0002-7646-2581 28 ANA GUSTRÁN

La televisión ejerce todo un imperio cultural en la sociedad actual y su influjo se siente cada vez más en las distintas parcelas del campo de la cultura. Este artículo pretende profundizar en el flujo de relaciones que se producen desde este medio hacia la narrativa española del siglo XXI para analizar de qué forma este nuevo contexto comunicacional acaba infiltrándose a través de la adopción de motivos y técnicas de la televisión en novelas y relatos publicados en los últimos años. Sin embargo, no debemos olvidar que la presencia de la televisión en el contexto literario español no es algo nuevo, sino que cuenta con relevantes muestras a lo largo de su historia reciente. Ese es el caso, por ejemplo, de Asesinato en Prado del rey (1987), novela de Manuel Vázquez Montalbán, La mirada de José María Guelbenzu, también del 87; Historias de cine mudo de Julio Llamazares y Mañana en la batalla piensa en mí de Javier Marías, ambas publicadas en 1994; sin olvidar, por supuesto, Telepena de Cecilia Villalobo (1995), de Álvaro Pombo. Si nos remontamos más atrás en el tiempo, nos encontraríamos con el lugar que concede al “ojo ciclópeo del artefacto” Juan Goytisolo, quien – en 1970 – con su novela Reivindicación del conde don Julián, ya presenta una voluntad experimental cuestionando los discursos y lenguajes propios de la televisión. Años más tarde, su novela La saga de los Marx (1993) profundizaría más en esta perspectiva. También sobre los años noventa, la Generación X – que en nuestro país se desarrolló en torno a la figura de Ángel Mañas – ofreció un retrato crudo y poco estilizado del mundo, bebiendo principalmente de la cultura de masas, popular y consumista, sobre todo de corte audiovisual, propia de la televisión y el cine (Urioste, 2009, p. 39). Por su parte, en este comienzo del nuevo siglo, apreciamos cómo la huella de la televisión se hace más profunda e intensa. No sólo parece haber crecido exponencialmente su presencia en los textos sino que las propuestas narrativas se muestran con un corte más innovador. Algunos de los escritores reunidos bajo la lábil etiqueta de “Generación Nocilla” serían una muestra perfecta de ello. Y es que, como afirmaba Juan Francisco Ferré (2009, p. 20) en su volumen Mutantes: “Esta última generación y media de narradores es la primera que lo ha hecho [ver la televisión] de modo natural, sin creerse especial por ello, desde muy pronto”. Entre ellos, destacaríamos el caso de Manuel Vilas (Aire Nuestro, 2009), Jorge Carrión (trilogía Las huellas, 2010-2015), Mario Cuenca Sandoval (Los hemisferios, 2014) o Javier Calvo, escritor y traductor literario,1 en quien nos detendremos para analizar – en relación con este influjo televisivo – uno de los relatos publicados en su primera obra, Risas enlatadas (2001). No obstante, fuera de la etiqueta “Nocilla” también hay otros autores y autoras que han recurrido a ese diálogo intermedial con el universo televisivo. Salvador Gutiérrez Solís con Spin off (2001), Berta Marsé en su recopilación de cuentos Fantasías animadas,2 (2010), Pablo Álvarez Almagro en Supermame (2012) y Andrés Ibáñez en Brilla, mar del Edén (2014) son ejemplos que tener en cuenta al respecto. Muchas de las obras mencionadas ponen el foco de atención en el género de la ficción televisiva – sobre todo el nuevo boom de las series americanas de televisión (Gómez Trueba, 2016) –, sin embargo, a nuestro parecer, resultan más novedosas aquellas propuestas que atienden a géneros televisivos alejados tradicionalmente del campo literario: concursos-espectáculo o programas de variedades, como es el caso de Álvarez-Almagro o Calvo; o incluso

1 Resulta interesante destacar que Javier Calvo posee cierta experiencia profesional en el mundo audiovisual puesto que ha participado como guionista en tres películas: Remake (Roger Gual, 2006), Menú degustació (Roger Gual, 2013) y La maniobra de Heimlich (Manolo Vázquez, 2014). 2 Ya analicé en otra publicación las conexiones que el relato “Los Pons Pons” de Berta Marsé (recogido en Fantasías animadas) poseía con el medio televisivo.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 29 aquellas otras propuestas que recrean una plataforma televisiva en su conjunto, como hizo Vilas. En cuanto al caso de Javier Calvo, él mismo ha manifestado en diversas ocasiones el gran valor que le otorga a la cultura pop como código de referencias socioculturales (Rodríguez, 2007), además de confirmar que “la televisión es una influencia evidente” en su literatura (Salazar, 2006, p. 19). En su relato “Arco iris de levedad”, recogido como ya hemos indicado en Risas enlatadas (una compilación de cinco cuentos donde la influencia de los medios audiovisuales tiene una gran importancia), introduce el universo televisivo a través de la descripción de un programa denominado Sonrisa acelerada, donde la realidad es la materia prima de que se nutre y donde se estructura todo por medio de una lógica del exceso, de la hipérbole y de la polémica. Coincide así con una de las características que Lipovetsky y Serroy han apuntado a propósito de lo que ellos denominan “hipercine”:

Este nuevo cine, en efecto, se caracteriza de manera creciente por una estética del exceso, por la extralimitación, por una especie de proliferación vertiginosa y exponencial. Si debe hablarse de hipercine es porque es el cine del nunca bastante y nunca demasiado, del siempre más de todo: ritmo, sexo, violencia, velocidad, búsqueda de todos los extremos y también multiplicación de los planos, montaje a base de cortes, prolongación de la duración, saturación de la banda sonora. Es evidente que ni la “imagen-movimiento” ni la “imagen-tiempo” permiten dar cuenta de una de las grandes tendencias del cine actual. A la taxonomía de Deleuze hay que añadir una categoría tan crucial como necesaria: la imagen-exceso (Lipovetsky y Serroy, 2009, p. 62).

Aunque el concepto de reality show no se ajusta exactamente al contenido del programa que Calvo propone, sí que lo describe muy bien la combinación de ambos términos: reality (realidad) y show (espectáculo), puesto que nos hallamos ante el espectáculo de “lo real”. Este texto participa, como indica Vicente Luis Mora, de una “irrisión o visión irónica de la televisión” (Mora, 2007, p. 47), siendo un ejemplo perfecto de cómo a la narrativa contemporánea le interesa introducir, mediante la incorporación de motivos, técnicas y metáforas audiovisuales, una reflexión sustancial sobre el propio medio televisivo, que es clave en la conformación de discursos e imaginarios actuales. Por su parte, Debord (2010, p. 38) avisa de que “no debe entenderse el espectáculo como el engaño de un mundo visual, producto de las técnicas de difusión masiva de imágenes. Se trata más bien de una Weltanschauung que se ha hecho efectiva, que se ha traducido en términos materiales. Es una visión del mundo objetivada”. En este proceso, los modos y formas propios de la televisión han cumplido un papel importante, contagiando a otros ámbitos ajenos al medio y desarrollando la lógica de un entretenimiento infinito (una suerte de gran circo mediático a domicilio). Otros autores como Giovanni Bechelloni han subrayado, no obstante, que esta expansión del espectáculo puede llevar aparejada su propia neutralización:

El espectáculo cotidiano de la televisión anula simbólicamente al espectador. Al contrario de lo que generalmente se dice, no es la realidad, la política y el mundo los que se espectacularizan en la televisión sino que es el espectáculo el que se anula acercándose a la vida, tornándose en espectáculo de la vida, es decir, en no-espectáculo. (Bechelloni, 1990, pp. 59–60).

¿Nos encontramos entonces ante una espectacularización de lo cotidiano o más bien se da el efecto contrario, una cotidianización del espectáculo? Estas son algunas de las cuestiones que plantea el relato de Javier Calvo al profundizar en los límites y peligros de este espectáculo – televisivo – desproporcionado. “Arco iris de levedad” narra en secuencias discontinuas y a través de una voz en tercera persona (heterodiegética) la historia de Cooper, el protagonista. La trama va

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 30 ANA GUSTRÁN presentando retrospectivamente – mediante analepsis correlativas – dieciséis episodios relevantes de la vida personal y profesional de este personaje, hasta conformar una visión completa que ayuda a entender cómo ha llegado el protagonista hasta la situación presentada al inicio del texto. Esta técnica no resulta un capricho de Calvo, sino que responde a una problemática clave en el propio relato: la importancia del tiempo y el lugar que ocupa el pasado en la conformación del momento presente; una cuestión en la que profundizaremos. Cooper, el protagonista, es uno de los cuatro guionistas/presentadores de un programa de la televisión estadounidense llamado Sonrisa acelerada que causa furor entre la audiencia. Es un programa realizado en directo (todo lo que ocurre es real) y donde lo que prima es ofrecer un espectáculo violento y vejatorio ante el público enfebrecido – presente en el plató.3 Los espectadores se verán envueltos en una vorágine continua de golpes de efecto y trucos impactantes que pretende dejarles sin aliento y sin capacidad crítica para detenerse a pensar en lo que están viendo. Toda esta información la obtenemos porque cinco de los dieciséis fragmentos en que se subdivide “Arco iris de levedad” se presentan como una suerte de écfrasis de Sonrisa acelerada. Cada uno de estos fragmentos tiene, por otra parte, una naturaleza distinta. A todos estos pasajes habría que añadir otra emisión televisiva más, la entrevista que hacen a Absalom Cohen – crítico cultural de gran relevancia (y un más que posible trasunto de Harold Bloom) – en el magazine cultural Modernities (en la NBC). En este caso, no nos encontramos ante una écfrasis como tal – ya que no hay apenas indicaciones técnicas – sino más bien ante la transcripción de la propia entrevista, en la que el crítico acaba atacando furiosamente al programa Sonrisa acelerada. Entre estos fragmentos televisivos se irán intercalando otros pasajes de la vida personal de Cooper. Al finalizar el relato, cuando el lector ha conseguido unir todas las piezas del puzzle “rebobinado” que nos presenta Calvo, descubre que el protagonista, quien parece un tipo desalmado y egoísta, enamorado de Halifax, su compañero de programa, – aunque no correspondido –, fue en su día un brillante estudiante de literatura que entró como becario del propio Absalom Cohen en la Universidad de Nueva York, quien según las propias palabras del personaje: “representa todo en lo que creo” (p. 46). 4 Pero esas creencias son las que poseía cuando era más joven, puesto que en un momento dado de su vida, el conjunto de sus referencias estéticas e ideológicas se ven totalmente trastocadas. En el lapso de tiempo que cubre la historia – aproximadamente desde la adolescencia de Cooper hasta que alcanza la treintena –, vamos comprobando que el personaje ha experimentado un cambio profundo desde que descubrió a Halifax casualmente por televisión, mientras pasaba los canales, y quedó prendado de él. La estructura del relato, creada a base de cortes y elipsis en la historia, obliga al lectorado a llenar de sentido los huecos y a inferir que esa visión empujó a Cooper a trabajar en la televisión con él y a dedicarse a la escritura de guiones. Poco a poco irá dejando de lado su carrera académica y con ella su interés por la literatura y la cultura para volcar su saber en un programa como Sonrisa acelerada, que se dedica justamente a atacar y ridiculizar todo lo que conforma ese mundo al que antes pertenecía.

3 Para Óscar Cornago, “El medio televisivo impone un ritmo violento en su precipitación que hace imposible todo ejercicio de libre reflexión, al tener que sujetarse a las estrictas condiciones de enunciación, resultado de su dinámica de producción” (2005, p. 283). 4 Un más que posible referente en la caracterización del protagonista podría ser Jorge Javier Vázquez, célebre presentador de programas de cotilleo en la cadena privada Telecinco, y quien anteriormente había cursado la licenciatura de Filología Hispánica.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 31

Dos temas clave recorren la historia (sin dejar de estar interrelacionados): uno es la confrontación entre la cultura recogida en los libros (y en la academia) y una manifestación particularmente baja de la cultura audiovisual (en especial, la televisiva), lo que nos lleva a un desigual enfrentamiento entre “alta” cultura y cultura de masas. El segundo aspecto que trata el relato – y que deriva en cierta forma de lo anterior – tiene que ver con la misma concepción del tiempo humano, histórico y con el rango que ostenta el pasado en la conformación del presente. En cuanto a la primera cuestión, la propia deriva personal y profesional de Cooper viene a ilustrar ese enfrentamiento maniqueo – pero, sobre todo, nada igualitario – entre la alta cultura y una cultura de masas representada por los productos más deleznables, estética, intelectual y moralmente. El protagonista se ha educado en el modelo de la alta cultura para volcar después sus capacidades en productos muy bajos de la cultura audiovisual de masas. De estudiante ejemplar en el departamento de Literatura Inglesa de la Universidad de Nueva York (becario de uno de los críticos más reputados) pasa – por amor – a guionista y presentador de un humillante programa televisivo. La polarización de ambos mundos se mantiene clara desde el principio, entendiéndose que no es posible la convivencia entre ellos, sobre todo porque, como hemos apuntado, Sonrisa acelerada es un espacio televisivo concebido para atacar frontalmente el modelo del que Cooper procedía. Recurre para ello a toda clase de estratagemas, no dudando en usar todas las herramientas que ofrece el medio para humillar los valores en que se sustentan las Humanidades y las Ciencias. En cuanto a su formato, Sonrisa acelerada es un programa de variedades, retransmitido en directo, bastante heterogéneo – pues en cada emisión varía sus secciones – que apuesta por explotar hasta el límite las bajas pasiones del público, y donde el sensacionalismo y la violencia lo invaden todo. En los diferentes episodios que se recrean en el relato de Calvo, la insolencia y la falta de respecto por el orden establecido, por lo políticamente correcto son la tónica general. A sus guionistas/presentadores les gusta ser descarados y cínicos y es justamente ahí donde radica el éxito de su programa. Calvo parodia en estos pasajes esa “violencia simbólica” del medio televisivo sobre los espectadores, a la que se refirió Bordieu (1996, p. 25) al hablar del “principio de selección que consiste en la búsqueda de lo sensacional, de lo espectacular”. Para Bourdieu (2012, p. 9), los medios de comunicación viven de “explotar a fondo estas pasiones primarias” y Vicente Luis Mora (2007, p. 63) añade al respecto que “la abrumadora producción televisiva se ceba mostrando las mayores bajezas, vilezas y torpezas”. En esta línea estético-ideológica discurre el relato de Calvo. En aras de conseguir la mayor cuota de audiencia posible, los programadores de la cadena donde trabajan Cooper y Halifax – la WRL – justifican cualquier actuación: siendo la exageración y el exceso dos de sus constantes. En Sonrisa acelerada vemos que la fórmula se basa en dos premisas: una, la destrucción, y dos, la ridiculización de los valores e ideas características de la cultura clásica y de la sociedad biempensante. Ese afán por acabar con los testimonios de la historia y de la cultura pasadas no es sin embargo un juego vacuo. El primer episodio que nos describe Calvo al comienzo del relato, titulado Fahrenheit 451, viene a reproducir la idea principal de la novela de Bradbury (1953): controlar y dominar al pueblo «impidiendo» el acceso a la cultura (representada en este caso por los libros).

En el centro de las gradas en forma de U se levanta una pirámide de unos veinte metros de diámetro y aproximadamente cinco de altura. Lo más extraordinario, sin embargo, es el material con que está hecha y que se distingue cuando una de las cámaras se acerca: libros. Miles de libros. (Bradbury, 2000, p. 10)

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 32 ANA GUSTRÁN

En esta distopía ideada por Bradbury, un plan perverso exige acabar con la existencia de todos los libros, quemándolos por ser contenedores y transmisores de cultura, vehículos del espíritu crítico, el inconformismo y, por tanto, fuente de peligro para una organización social que busca totalitariamente la felicidad de los individuos. La pira de libros que va a ser quemada nos recuerda solo parcialmente a aquella otra del capítulo seis de la primera parte de El Quijote – ya que en Cervantes, hay muchos libros que se salvan – o a las realizadas por los nazis en el siglo pasado; pero, sin duda, las dimensiones de la pira imaginada por Calvo las supera a todas ellas, pues, como ya hemos apuntado, el exceso y la espectacularidad se imponen por encima de todo.

–¡Dooos millooones de liiibros! –dice Halifax haciendo un gesto amplio con los brazos en dirección a la pirámide de libros–. Imaginada cuánto saber concentrado. Pero la cultura es un mundo difícil. Es un acertijo. –Las cámaras muestran distintos ángulos de la pirámide–. ¡Esta noche, queridos descerebrados, descubriremos una manera más rápida y divertida de llegar al meollo de la cultura! Halifax apunta con su lanzallamas a la pirámide de libros y dispara. (p. 12)

El segundo fragmento del programa descrito en el relato también tiene que ver con ese deseo de destrucción de la cultura, pero esta vez en la forma de una construcción histórica. La casa Revere es un ejemplar único de la arquitectura colonial, una buena muestra del patrimonio arquitectónico americano, inspirada en la verdadera casa de Paul Revere en Boston – un patriota estadounidense de la Revolución Americana. Sin embargo, desde el programa de Cooper y Halifax se ha lanzado toda una campaña mediática, no para elevar su grado de protección, por el alto valor cultural e histórico que posee, sino todo lo contrario; una campaña mediática para su total destrucción y para construir en ese solar un enorme centro de ocio. Este episodio refleja el desprecio de los programadores televisivos por el pasado y la historia: “Gente a quien le interese el presente y no el pasado. No dejen que el pasado les moleste” (p. 25). La mera presencia de ese edificio singular incomoda a su lógica mercantilista, puesto que una casa que se conserva por su singularidad y estética va en contra de su desmedido afán por obtener constantes beneficios económicos. De hecho, en el solar que ocupa la casa, quiere construirse un gigantesco centro de ocio, una especie de centro comercial dedicado únicamente al entretenimiento. De nuevo, encontramos una contraposición de realidades axiológica: la cultura frente al ocio, lo antiguo frente a lo novedoso, el pasado frente al presente – un presente entendido como un “destino impuesto”, según apunta el filósofo Ignacio Izuzquiza (2003, p. 37). Lo irónico es que, como reparación moral, la compañía encargada propone construir un simulacro, reproducir la obra arquitectónica original dentro de un parque de atracciones, lo que da cuenta del mayor valor que posee la copia y la falsificación frente al original.5 El tercer episodio del programa televisivo Sonrisa acelerada que nos presenta Calvo en su relato toma la forma de una tragedia shakesperiana y se titula “La matanza de los perros sarnosos”. Se trata de una parodia alegórica que habla de la profanación del lugar sagrado de la cultura por unos traidores. La cultura está representada por el personaje de Sir Righteous y su castillo de Hightower Place (nombres ambos muy alegóricos), un

5 Este episodio puede tener reminiscencias, por otro lado, de la novela Inglaterra, Inglaterra, que en 1998 publicó Julian Barnes. En ella, el escritor británico cuenta la historia de un magnate que decide concentrar todas las atracciones turísticas británicas, a escala real, dentro de un gigantesco parque de atracciones. Estas reproducciones irán poco a poco adquiriendo carta de naturaleza con respecto a los monumentos originales hasta llegar a sustituirlos por completo, convirtiéndose así el parque de atracciones en un enorme simulacro de la propia Inglaterra.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 33 trasunto de Absalom Cohen, quien parece remitir, a su vez, ya lo hemos comentado, a la figura real del gran crítico estadounidense Harold Bloom. Este capítulo de Sonrisa acelerada condensa el propósito principal de ese espacio televisivo: acabar con la cultura establecida para imponer un nuevo régimen cultural basado en los mass media. La traición de Cooper a Cohen reafirma esta idea, ya que el antes becario abandona la academia para pasarse al “bando enemigo” según el planteamiento maniqueo que despliega el argumento de este relato. La cultura libresca de unos pocos, elitista, que exige esfuerzo y trabajo, parece oponerse – quizá de forma algo simplificada – a la oferta de la televisión, mucho más horizontal, de fácil acceso y asimilación para la mayoría de la población. Así lo recuerda Gonzalo Navajas (2002, p. 167):

La literatura ha sido el vehículo estético preferente del discurso de la cultura elevada y clásica mientras que otras formas de realización artística (no escritas, auditivas, visuales, gráficas) se han asociado con lo popular, no clásico, efímero e intrascendente (Talens). El cine (y formas asociadas con él, como la televisión, el vídeo, la comunicación digital) es de todas las formas no canónicas convencionales la que más se ajusta a la cultura de lo transitorio, dispensable y no perteneciente al espacio privilegiado del canon académico que decide y rige los valores prevalecientes. No es sorprendente entonces que la dicotomía letra/imagen, escritura/cine se haya convertido en uno de los parámetros del debate en torno a las guerras culturales de la última década que, desde Estados Unidos a Europa, son una parte central del debate cultural. (During)

El cuarto programa, titulado “Contar los segundos”, se centra en la ridiculización de un episodio trágico de la Historia reciente de la Humanidad: el nazismo. Los presentadores aparecen ante las cámaras vestidos de oficiales de las SS y con Halifax caracterizado como Hitler. El planteamiento es sencillo: dejar las líneas telefónicas abiertas a la espera de los comentarios indignados de las víctimas del Holocausto. Este ejercicio de apología del nazismo está concebido para causar una absoluta provocación televisiva. Ridiculizar a la víctimas del Holocausto traspasa por completo los límites de la compasión humana. En cierta forma es un experimento sociológico: comprobar cómo reacciona el público ante tal afrenta. Dejan claro con todo ello que el programa de Cooper y Halifax no siente ningún tipo de respecto por nada. En esta ocasión se trata de despreciar la importancia de la memoria colectiva de la humanidad o al menos del mundo occidental y del propio pasado compartido, en especial ante un acontecimiento tan traumático y doloroso como fue el Holocausto. De hecho, ante la llamada de un espectador ofendido, Halifax le reprocha: “¡Usted, estúpido, usted no entiende la televisión! ¡A la televisión no le importa toda esa mierda! ¡La televisión no tiene memoria! ¡No se acuerda de nada! […] ¡La televisión vive en el presente!” (p. 41). Esta réplica del presentador nos da la clave de interpretación del relato de Calvo. La premisa de la que parte el programa Sonrisa acelerada es que en la sociedad actual, la televisión exige otro tipo de dinámicas distintas a las que en principio han regido hasta el momento. Como ya hemos comentado, la lógica perversa de este medio obliga a que los tiempos sean mucho más acelerados (como bien expresa el título del programa en cuestión), a que los efectos sean más espectaculares y a que las normas se violen sin tapujos en nombre del gran dios supremo que es el share. La televisión se presenta como una máquina que lo devora todo, que se alimenta de la bajezas humanas. Desde este planteamiento, cualquier actuación (por arriesgada, grosera u ofensiva que sea) tiene toda su justificación en la televisión. Halifax lo sabe bien y se escuda en esa especial idiosincrasia del medio para ofrecer un espacio al margen de las buenas formas, y donde, por supuesto, no existen los remordimientos ni las reflexiones sobre la ética. Por otra parte, no debemos dejar de remarcar que la vinculación con el medio televisivo se manifiesta también en el propio ejercicio de la écfrasis y en la incorporación del lenguaje característico de la televisión para subrayar que la realidad descrita está

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 34 ANA GUSTRÁN mediada por las cámaras (y no solo por las palabras). Para ello, el autor presta especial atención al uso de términos y conceptos propios del campo semántico de la televisión, describiendo pormenorizadamente los elementos técnicos que participan en la propia emisión del programa: movimientos de cámara, planos, iluminación...

El sistema de altavoces emite los primeros compases de la sintonía de Sonrisa acelerada y los espectadores que abarrotan las gradas se ponen en pie de un salto. La docena de cámaras montadas en grúas y raíles se desplazan de arriba abajo y de un lado a otro de las gradas para captar de cerca al público, que ahora canta a pleno pulmón la canción del programa. (p. 9)

Reiteradamente el narrador quiere remarcar la posición de la cámara ante la escena que se está desarrollando, recordándonos con ello, que este aparato es un intermediario entre la representación que se produce en el plató y los telespectadores. Son muchos los momentos en que podemos apreciarlo pero sirvan estos ejemplos como muestra de ello: “Un tímido aplauso recorre el plató y la cámara barre a un grupo reducido de espectadores indiferentes.” (p. 45); o este otro: “Mientras va hablando, la cámara muestra a Willy Crackhead caminando sigilosamente tras su espalda con el tomahawk en la mano” (p. 25). Por otro lado, la presencia de la televisión en el relato de Calvo traspasa los motivos temáticos y expresivos para incluir reflexiones y comentarios directos sobre el propio medio. En diferentes momentos del texto, el narrador emite juicios sobre la naturaleza última de la televisión, y es ahí donde entra en juego el personaje de Halifax, que se nos presenta como la encarnación misma de este medio. Se le identifica con la materia prima de la televisión, como si todo él representara en sí mismo la esencia de la televisión. Cooper lo expresa así en el momento en que lo descubre, por primera vez, mientras hace zapping entre los canales de la televisión:

La [cara] de ese individuo no parece dibujar en la imaginación más que un punto ciego en el continuo espaciotemporal. Un vacío perfecto donde ni siquiera está representada la materialidad del color negro. Cooper no sabría decir por qué, pero si tuviera que ponerle una cara a la televisión –no a su aparato ni a ningún otro ni a ninguna de las cadenas, emisiones o programas que haya visto nunca, sino a la mera idea de la televisión descontextualizada de cualquier elemento tecnológico o ideológico–, no cabe duda de que elegiría esa cara tan tensa como la mancha cóncava producida en la pantalla por una caída de tensión. (pp. 44–45)

Y como Halifax “es” la televisión, entiende a la perfección cómo funciona este medio. El programa que presenta se ha diseñado, por tanto, para que sea su máximo exponente, para que se aproveche de los mecanismos que la componen y obtenga el mayor de los éxitos de audiencia, aunque eso signifique abandonar toda ética y decoro. En la descripción que nos ofrece Cooper de este personaje se remarca el hecho de que su cara es como “un punto ciego en el continuo espaciotemporal”. Esta negación del tiempo y el espacio es justamente una de la premisas que ha tenido presente el autor a la hora de componer el conjunto del relato. La televisión vive en el presente, en un presente continuo que se emite veinticuatro horas los siete días de la semana. Por ello, el pasado y la historia dejan de ser trascendentes. “La imagen-pantalla de la transmisión directa de televisión, que nada tiene de un recuerdo porque no tiene pasado, viaja ahora, circula, se propaga, siempre en presente, donde quiere que vaya” (Cornago, 2005, p. 276). En televisión, todo lo que ha ocurrido en un tiempo lejano deja de tener relevancia, sólo importa el ahora. Esta exigencia imperante de abandonar cualquier recuerdo de lo acaecido anteriormente lleva implícito obviamente una negación de la propia identidad, tanto colectiva como individual. Si no conocemos de dónde venimos, si no reflexionamos sobre nuestro propio recorrido vital e histórico, difícilmente podremos conocer nuestro “yo” presente y nuestra sociedad actual.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 35

Esta cuestión entronca directamente con la conformación personal del protagonista. El propio Cooper se desprende de todo lo que le sucedió en un tiempo anterior. Algo que él mismo expresa sin inmutarse, ante su amante, cuando éste le anuncia que le deja: “Porque no tengo pasado. En cuanto salgas por esa puerta me habré olvidado de que existes. […] No tengo memoria” (p. 15). El descubrimiento casual de Halifax durante su juventud, haciendo zapping será el detonante de este cambio. La visión azarosa de su cara en la pantalla del televisor hará que se desmoronen todos sus puntos de referencia, todos sus valores y acabe trabajando en un proyecto que supone la aniquilación de todo en lo que creía de joven. Halifax, con ese conocimiento de las dinámicas y herramientas propias de la televisión, decidirá llevar el programa hasta sus últimas consecuencias. Ya que la televisión sigue sin ser aceptada como miembro legítimo del canon cultural occidental, él, como guionista de Sonrisa acelerada, decide reaccionar, iniciando una batalla contra él y sus agentes, y donde las reglas del juego son las que el propio medio televisivo dicta. Es por eso que la exageración se convierte en pieza clave de sus emisiones, porque este tipo de televisión lo que se busca es el efecto apoteósico, espectacular y delirante. Todo ello hace que volvamos a Bourdieu y a su ensayo sobre televisión. En ese texto, afirmaba que los programas de entretenimiento tenían, más allá de lo que podríamos pensar, un objetivo bien definido: eliminar cualquier tipo de mensaje político, vaciar de ideología los contenidos televisivos.

Impulsadas por la competencia, por las cuotas de mercado, las cadenas de televisión recurren cada vez más a los viejos trucos de los periódicos sensacionalistas […] y tiene el efecto de crear un vacío político, de despolitizar o de reducir la vida del mundo a la anécdota o al cotilleo […] al fijar y mantener la atención en unos acontecimientos carentes de consecuencias políticas. (Bourdieu, 2012, pp. 73–74)

Bajo la capa del entretenimiento superficial del programa Sonrisa acelerada, se esconde una voluntad de adoctrinamiento. Todos los “efectos especiales” del programa parecen querer únicamente distraer y entretener, pero es justamente en el vaciado de información, en la represión de cualquier disenso donde reside la manipulación ideológica. Halifax ofrece unos billetes a un participante diciéndole: “Ten, chico […] Por haber manifestado tu conformidad con las coordenadas ideológicas del programa, te regalamos quinientos dólares” (p. 24). En el relato de Calvo, Halifax, Cooper y el resto de guionistas son grotescamente conscientes del poder que posee la televisión para adocenar a sus telespectadores. Parecen controlar perfectamente los efectos del programa que han concebido – algo que está muy lejos de la realidad y de la tiranía de los índices de audiencia – y conocen el estereotipo de público que les sigue: gente poco instruida, con cierta tendencia a la apatía o la indiferencia, sin ningún interés por la cultura y, por todo ello, fácilmente manipulable. Así puede adoptar un tono paródicamente duro y crítico el discurso del Halifax, incluyendo el insulto agresivo, que aparentemente no hará reaccionar al público interpelado: “–¡Queridos descerebrados! […] ¡Muchedumbre alienada! ¡Os habla vuestro amo! […] Así es como os quiero, hijos míos […]. Descerebrados e ignorantes” (p. 12). Con esta actitud de la estrella del programa – pero reflejado en un gran espejo de aumento – Calvo parece querer representar la desconsideración y la falta de respeto hacia los telespectadores que se observa actualmente en muchos programas del panorama televisivo. Por tanto, conscientes de este desprecio que se siente por el público, encontramos una instrumentalización abierta del propio programa para mantener a la audiencia en su ignorancia, para adocenarla y para sumirla en una suerte de estado de letargo. Esto lleva implícito, por tanto, un uso político del espacio, la batería de efectos

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 36 ANA GUSTRÁN especiales que lo rodean no es sino un instrumento perverso para “desactivar” cualquier iniciativa. Con todo, si hay una idea trascendental que atraviesa todo el relato y lo articula en su conjunto, es la reflexión sobre la propia conformación del presente. Ya hemos visto que el autor ha planteado cuestiones relacionadas con el devenir del tiempo, y con la importancia del pasado y de la historia, pero esta cuestión se revela capital cuando llegamos al último fragmento en que se subdivide el texto. Como ya hemos comentado, cada uno de estos fragmentos van retrocediendo cada vez más hacia atrás en la vida de Cooper, lo que nos acaba conduciendo hasta su juventud. Al mismo tiempo que se reniega del peso del pasado y de la historia, haciendo con ello una apología de la clásica tabula rasa, vamos apreciando que para el relato las decisiones que tomamos son algo capital en la definición y conformación de nuestra identidad presente. El cuento revela una interesante reflexión sobre el valor de tales decisiones. Así, en una suerte de travelling panorámico que Calvo va realizando hacia atrás, hacia el pasado del protagonista, nos va mostrando las decisiones que Cooper ha ido tomando a lo largo de su vida. Vamos descubriendo la lógica encadenada que lo ha llevado hasta el momento inicial en que comienza el relato: “Al final de todos los caminos que recorren la historia, en el punto donde todas las tramas posibles convergen en la única conclusión inevitable, se encuentra la marquesina iluminada de un cine vetusto de una ciudad pequeña y olvidada” (p. 47). El último de estos fragmentos que conforman el texto nos retrotrae hasta un momento clave en la vida de Cooper. En esa sala de cine, frente a la enorme pantalla, viendo Fahrenheit 451 –la adaptación que Truffaut hizo de la novela de Bradbury en 1966–, podemos decir que implosionará su existencia. “Lo que más le impresiona no es la brutalidad con que el extravagante cuerpo de bomberos con sus camiones anticuados se dedica a incendiar todos los libros que van incautando, sino sus caras inexpresivas y sus movimientos que parecen denotar un aburrimiento infinito” (p. l48). Este hieratismo, por otra parte, lo volverá a ver años más tarde en otro rostro, el de Halifax, quien le provocará esa misma seducción: “La cara del individuo pálido es un faro que irradia en todas las direcciones. Permanece impasible, ajena a todo cuanto le rodea […]. Es una mueca familiar y a la vez radicalmente extraña” (p. 27). Durante la proyección del filme, el joven Cooper se ve atrapado por la historia, identificándose tanto con la película que experimentará una sensación extraña, como si hubiera llegado a fundirse con el propio espacio del cine en que se encuentra, algo que recuerda, en cierta forma a la protagonista de La rosa púrpura del Cairo (The Purple Rose of Cairo, Woody Allen, 1985) o al pequeño protagonista de “El niño lobo del cine Mari” de José María Merino, de 1982.

Coop, sin saber cómo, cobra conciencia de haberse introducido por uno de esos intersticios y de ser él mismo y el cine destartalado donde se encuentra, en virtud de algún trompe-l’oeil, elementos intrínsecos al extraño mundo de la película. De ahí hasta el final, Coop carece de la distancia necesaria para racionalizar lo que ocurre en la pantalla. (p. 49)

Esta momentánea lucidez, provocada por la experiencia en la sala de cine, será crucial en su devenir personal y marcará el resto de su vida: “los ojos muy abiertos, como para absorber toda la información que permanecerá varias décadas en las bóvedas de su memoria antes de resurgir en un estallido furioso” (p. 47). Resulta curioso, de todos modos, que el hilo conductor y referente clave, dentro de un relato de atmósfera tan eminentemente televisiva como éste de Calvo, sea una película. Y es que por muy vasto que sea, en estos momentos, el universo del audiovisual, la

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 37 influencia del séptimo arte sigue siendo, a día de hoy, crucial en la conformación del imaginario tanto colectivo como particular de la mayoría de escritores actuales. Tras su visionado, el personaje de Cooper sentirá que algo ha cambiado, que una transformación importante le ha ocurrido, lo que supone una experiencia reveladora. Parece que ha experimentado un corte temporal respecto al pasado. Ante él, sólo está el futuro, pero un futuro que ese instante acaba de condicionar para siempre. Y, de hecho, al salir a la calle, cree ver en el firmamento nocturno una especie de arco iris blanco, una imagen que viene a significar: “un puente majestuoso e inquebrantable que une el presente con el futuro” (p. 50). Como si el visionado de esa película hubiera logrado crear una grieta en el continuo espacio-tiempo y a través de ella se pudiera comunicar ese presente con el futuro que leíamos al inicio del relato. Comprobamos, pues, cómo el destino de nuestro personaje – un hombre inicialmente de letras – acaba indisolublemente ligado a la creación de un programa televisivo basado en la estética del exceso, y donde la violencia ya no se representa ni sugiere, sino que se muestra de una manera cruda y real: “estamos en la exposición de todo, a veces en el exhibicionismo puro” (Zafra, 2014, p. 92). Los programadores de televisión saben que algunos espectadores y espectadoras no puede resistirse al morbo de lo excesivo y por eso se esfuerzan en fomentarlo: “El ojo mira y se regocija ante aquello que advierte anticipadamente que `no quiere ver´ sin poder evitarlo: lo más escatológico, lo prohibido, la muerte, la crueldad, lo obsceno, convive con lo más cómico e ingenuo, lo más trascendente con lo más prosaico” (Zafra, 2014, p. 60). Teniendo en cuenta estas lógicas internas del medio, Calvo ha conformado su narración, destilando, con ello, una visión muy crítica sobre la televisión. Sin embargo, a pesar de esta postura contraria es capaz de tomarla no sólo como fuente de inspiración, sino también como objeto de reflexión – y de experimentación en cierto sentido – acerca de las posibilidades de enriquecer la creación de mundos novelescos con los útiles propios del medio televisivo. En última instancia, encontramos en “Arco iris de levedad” – igual que ocurre con otras de las narraciones que, en los últimos tiempos, han tomado la televisión como referente – que la reflexión última – tarde o temprano – gira en torno a los límites del poder que este medio ejerce en los espectadores. Se sitúa la televisión en el centro de la historia, pero se hace para poner en evidencia los mecanismos de poder que la condicionan y también para remarcar el imperio cultural que impone sobre el resto de la sociedad.

REFERENCIAS

Allen, W. (Guionista/Director). (1985). The Purple Rose of Cairo [Filme]. Hollywood: Orion Pictures.

Álvarez Almagro, P. (2012). Supermame. Logroño: Pepitas de Calabaza.

Barnes, J. (1998). Inglaterra, Inglaterra [2002)]. Barcelona: Anagrama.

Bechelloni, G. (1990). ¿Televisión –Espectáculo o Televisión-Narración?. En VVAA, Videoculturas de fin de siglo (pp. 59–60). Barcelona: Cátedra.

Bourdieu, P. (2012). Sobre la televisión [1996]. Barcelona: Anagrama.

Bradbury, R. (2000). Fahrenheit 451 [1953]. Barcelona: Círculo de Lectores.

Calvo, J. (2001). Risas enlatadas. Barcelona: Mondadori.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 38 ANA GUSTRÁN

Carrión, J. (2010). Los muertos Barcelona: Mondadori.

______. (2014). Los huérfanos. Barcelona: Galaxia Gutenberg.

______. (2015). Los turistas. Barcelona: Galaxia Gutenberg.

Cornago, O. (2005). Resistir en la era de los medios: Estrategias performativas en literatura, teatro, cine y televisión. Madrid: Iberoamericana-Vervuert.

Cuenca Sandoval, M. (2014). Los hemisferios. Barcelona: Seix Barral.

Debord, G. (2010). La sociedad del espectáculo [1996]. Valencia: Pre-Textos.

Ferré, J. F. y Ortega, J. (Coords.). (2009). Mutantes: Narrativa española de última generación. Córdoba: Berenice.

Gómez Trueba, T. (2016). El boom de las series de televisión norteamericanas y la novela española actual. En G. Cordone y V. Béguelin-Argimón (Eds.), Manifestaciones intermediales de la literatura hispánica en el siglo XXI (pp. 279–294). Madrid: Visor Libros.

Goytisolo, J. (1985). Reivindicación del conde don Julián [1970]. Madrid: Cátedra.

______. (2005). La saga de los Marx [1993]. Barcelona: El Aleph.

Gual, R. (Director) y Calvo, J. (Guionista). (2013). Menú Degustación [Filme]. Dublín: Subotica Entertainment.

______. (Director/Guionista) & Calvo, J. (Guionista) (2006). Remake [Filme]. Barcelona: Ovídeo TV y Patagonik Film Group.

Guelbenzu, J. M. (1987). La mirada. Madrid: Alianza Tres.

Gutiérrez Solís, S. (2001). Spin off. Barcelona: DVD Ediciones.

Ibáñez, A. (2014). Brilla mar del Edén. Barcelona: Círculo de Lectores.

Izuzquiza, I. (2003). Filosofía del presente: Una teoría de nuestro tiempo. Madrid: Alianza Ensayo.

Lipovetsky, G. y Serroy, J. (2009). La pantalla global: Cultura mediática y cine en la era hipermoderna. Barcelona: Anagrama.

Llamazares, J. (1994). Escenas del cine mudo. Barcelona: Seix Barral.

Marías, J. (1994). Mañana en la batalla piensa en mí. Barcelona: Anagrama.

Marsé, B. (2010). Fantasías animadas. Barcelona: Anagrama.

Merino, J. M. (1982). Cuentos del reino secreto. Madrid: Alfaguara.

Mora, V. L. (2007). La luz nueva: Singularidades en la narrativa española actual. Córdoba: Berenice.

Navajas, G. (2002). La narrativa española en la era global. Barcelona: EUB.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010 EL ESPECTÁCULO DEL EXCESO TELEVISIVO EN LA NARRATIVA ESPAÑOLA ACTUAL 39

Pombo, A. (1995). Telepena de Celia Cecilia Villalobo, Barcelona: Anagrama.

Rodríguez, E. J. (2011, junio). Entrevista a Javier Calvo: “Pensar en Saramago me provoca desórdenes intestinales”. JOT DOWN. Recuperado en https://www.jotdown.es/2011/07/javier-calvo-pensar-en-saramago-me-provoca- desordenes-intestinales/.

Salazar, D. (2006). J. C. Lejos del fin. Club Cultura, marzo-abril, 16–19.

Truffaut, F. (Director/Guionista) (1966). Fahrenheit 451 [Filme]. Londres: Anglo Enterprises / Vineyard Film.

Urioste, C. (2009). Novela y sociedad en la España contemporánea (1994–2009). Madrid: Fundamentos.

Vázquez Montalbán, M. (1993). Asesinato en Prado del Rey. Barcelona: Primera Plana.

Vázquez, M. (Director) & Calvo, J. (Guionista) (2014). La maniobra de Heimlich [Filme]. Barcelona: Producciones El niño melón.

Vilas, M. (2009). Aire nuestro. Madrid: Alfaguara.

Zafra, R. (2014). Ojo y capital. Bilbao: Cononni.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 27-39. eISSN: 2184-7010

JOSÉ DE ALENCAR, IDENTIDADE E IMAGEM ANÁLISE SOBRE A ERA DA IMAGEM COMO ELEMENTO DE EXPANSÃO DO PROJETO IDENTITÁRIO DO AUTOR

JOSÉ DE ALENCAR, IDENTITY AND IMAGE ANALYSIS OF THE IMAGE AGE AS AN EXPANSION ELEMENT OF THE AUTHOR'S IDENTITY PROJECT

ANDERSON ANTONANGELO* [email protected]

O objetivo deste estudo é avaliar de que maneira o advento da televisão e do cinema, ao longo do século XX, serviu como elemento de consolidação do projeto identitário iniciado pelos românticos após a independência do Brasil, sobretudo na figura de José de Alencar. O estudo terá como guia a observação das particularidades sociopolíticas de alguns momentos centrais do século XX no Brasil em que a adaptação cinematográfica e televisiva de suas obras teve crescimento expressivo.

Palavras-Chave: José de Alencar; Brasil; identidade; romantismo; televisão; cinema.

The aim of this study is to evaluate how the advent of television and cinema, throughout the 20th century, served as element of consolidation of the identity project initiated by the romantics after Brazil's independence, especially in the figure of José de Alencar. The study will be guided by the observation of the socio-political particularities of some central moments of the twentieth century in Brazil when the cinematographic and television adaptation of his works had an expressive growth.

Keywords: José de Alencar; Brazil; identity; romanticism; television; movie theater.

Data de receção: 2020-01-30 Data de aceitação: 2020-02-29 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2510

* Investigador, Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0002-6865-572X. 42 ANDERSON ANTONANGELO

1. Introdução

Na história da literatura brasileira, observa-se que o movimento romântico, iniciado em meados do século XIX, tem fundamental importância na tentativa de formação de uma identidade nacional. Segundo Candido (1967, p. 74):

A literatura é, pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a, a obra não é um produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação humana, para configurar a realidade da literatura no tempo.

Diante das palavras do crítico brasileiro, podemos inferir a importância do ideário romântico não só como reflexo de uma certa gama de aspectos culturais que subjazia na então recém-formada nação brasileira, mas também como próprio reforço desse aspecto formativo. Dessa maneira, o romantismo brasileiro se alimentou dos elementos nacionalistas, por meio da pesquisa sociocultural, e buscou fortificá-los com um mecanismo cíclico de retroalimentação cultural. Entre movimentos como a supervalorização da fauna e da flora brasileiras, ou mesmo da construção de um ideário de indivíduo moralmente superior, com características de personagens planificadas, comumente encarnadas pela imagem do índio, é notável a tentativa de consolidação da cultura nacional após a recente independência do Brasil. Ainda que tal identidade tenha sido construída de modo pouco relacionado à história nacional, e ainda com moldes eurocêntricos evidentes, esse momento representou uma busca pela independência cultural brasileira, além da política, recém-conquistada. Dentro do panorama do romantismo brasileiro, um papel central na prosa é exercido por José de Alencar. O escritor cearense, por meio de um extenso trabalho de investigação dos diversos tipos nacionais e da valorização do papel do indígena como a metonímia da cultura brasileira, foi o principal articulador dessa tentativa de formação do ideário cultural nacionalista, principalmente por sua vasta produção de romances. Não por acaso, a obra de Alencar foi base para investigações dos modernistas, no século seguinte, em um novo intento de debate sobre a cultura nacional. Por sua relevância, não só como referência do cânone literário brasileiro, mas também como articulador dessa construção identitária do país, José de Alencar foi o escritor quantitativamente mais adaptado para a linguagem televisiva no Brasil, com a chegada de novas tecnologias ao país em meados do século XX. Entre seus diversos romances, houve adaptações para cinema e televisão. O seguinte artigo tem por objetivo demonstrar que essa alta quantidade de adaptações de José de Alencar para a linguagem imagética do cinema e, principalmente, da televisão, acaba potencializando o projeto de construção identitária do romântico, levando em conta dois principais fatores: o maior alcance que a imagem pode trazer ao consumidor cultural brasileiro, em comparação com a histórica baixa valorização da leitura; e a conveniência de um contexto nacionalista e ufanista em períodos em que o momento sociopolítico brasileiro era altamente conturbado.

2. O histórico das adaptações para a televisão

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41–48. eISSN: 2184-7010 JOSÉ DE ALENCAR, IDENTIDADE E IMAGEM 43

Para que possamos avaliar de que maneira as adaptações de José de Alencar para o cinema e para a televisão representam contextos históricos de afirmação identitária no Brasil, é necessário avaliarmos quais de suas obras, e em que momento, foram adaptadas a essas novas linguagens. Em seu total, há vinte e duas adaptações das obras de Alencar para cinema e televisão, considerando as que tiveram produção mais profissionalizada (visto que também há releituras em âmbito amador, além das paródias), segundo levantamento feito no Almanaque da Telenovela Brasileira (2013) e na Nova História do Cinema Brasileiro (2018). Quinze dessas vinte e duas foram aos cinemas, e as sete restantes fazem parte de adaptações para telenovelas. As obras de José de Alencar começaram a ser adaptadas para o cinema mais de três décadas antes da chegada da televisão ao Brasil. Quatro delas são adaptadas para o cinema mudo na década de dez do século XX: Lucíola, em 1916; A Viuvinha, também em 1916 (apesar de hoje ser considerado um filme perdido, pois não há mais registros de sua gravação); , O Guarani e Iracema, em 1917. Em 1926, Vittorio Capellaro volta a filmar O Guarani, devido ao sucesso do filme de 1917. Em 1933, ocorre a primeira adaptação para o cinema falado, por meio do filme Onde a Terra Acaba, baseado no romance Senhora. No fim da década de 40, temos a primeira versão para o cinema falado de Iracema (1949). Na década de 50, há a gravação de Senhora (1955), do romance homônimo, e Paixão de Gaúcho (1957), que é baseado no romance O Gaúcho. Na década de 70, ocorre a maior quantidade de adaptações para o cinema das obras de Alencar: em 1975, foram filmados A Lenda de Ubirajara (baseado no romance Ubirajara) e Lucíola, o Anjo Pecador (baseado em Lucíola). Em 1976, mais uma versão de Senhora. Já em 1979, foram lançados O Guarani, baseado na obra homônima, e Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel, baseado em Iracema. Após isso, há apenas mais uma versão de O Guarani, de 1996. Entre as adaptações para a televisão, seis telenovelas e uma minissérie foram gravadas baseadas em obras do escritor cearense. Em 1966, foi iniciada a transmissão de As Minas de Prata, baseada no romance homônimo; O Preço de um Homem, de 1976, baseada em Senhora; Senhora, de 1975; O Tronco do Ipê, de 1982, baseada no romance homônimo; em 2001, a telenovela A Padroeira, baseada em As Minas de Prata; e por fim, Essas Mulheres, de 2005, baseada em três romances: Senhora, Lucíola e Diva. Ainda somada à lista, temos a minissérie O Guarani, baseada no romance homônimo, lançada pela extinta TV Manchete, em 1991. Assim, é perceptível que há uma predominância das narrativas que têm como índios seus principais personagens (como Iracema, O Guarani e Ubirajara) ou a exploração de outros estereótipos nacionais (como O Gaúcho, As Minas de Prata e O Tronco do Ipê). Dessa maneira, o intento de construção de um determinado ideário nacional, por José de Alencar, acaba se potencializando quando comparado à época em que os romances foram escritos, porque o barateamento do acesso à televisão e a propagação dos cinemas ao longo do século XX tornaram-se convidativos a uma população que pouco desenvolveu o hábito de leitura em sua curta história: a propagação da imagem deu maior solidez a essa busca. Ademais, há alta profusão também de obras que colocam a mulher no papel de heroína da narrativa, como Lucíola, Senhora, Diva e A Viuvinha, o que representa um ideário que, apesar de não ser uma tônica social do século XIX, se conecta a direitos que a mulher do século XX perseguirá. A partir dessa breve exposição sobre o histórico de adaptação das obras de Alencar para as linguagens do cinema e da televisão, procuremos entender como,

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41-48–46. eISSN: 2184-7010 44 ANDERSON ANTONANGELO dentro de seus contextos históricos, representaram uma ideia de reforço do identitário nacional.

3. O Romantismo no século XIX

A independência do Brasil aconteceu sem participação popular, e por isso não houve no Brasil guerra de independência ou algum conflito que marcasse a passagem entre o período colonial e o independente (a não ser por acordos burocráticos entre metrópole e colônia); pouco se podia dizer sobre a formação de um “ideário brasileiro”. A população, de maneira prática, pouco mudou após o 7 de setembro de 1831. O esforço para a construção de um ideário nacional acabou sendo assimilado pelos escritores românticos. Apesar do reconhecimento a Gonçalves Dias, autor de Canção do Exílio e do poema épico I-Juca-Pirama, pelo pioneirismo na temática nacionalista durante o romantismo, é na extensa obra de José de Alencar que a expressão do indianismo identitário acaba ganhando mais solidez, pela vasta pesquisa acerca dos tipos nacionais e pela também vasta produção literária no período. Para Silveira (2009, p. 111):

o esforço de compreender de que forma é estruturada a poética da nacionalidade de Alencar implica, nesse momento, analisar a plataforma intelectual à qual ele se filia, qual o conjunto de ideias sobre cultura e nação com o qual ele dialoga. Isso exige tentar apresentar algumas das linhas de força do historicismo e das filosofias da história de cariz romântico, fontes nas quais Alencar bebeu, dedicando um cuidado especial à reflexão a respeito da diferença cultural, debate que impregnava o pensamento de fins do século XVIII e das primeiras décadas do século XIX.

A tentativa de expansão da imagem do índio ou dos tipos brasileiros como elemento da construção identitária nacional, promovida por Alencar, esbarrava na dificuldade de recepção dessa produção por parte de um público leitor: a população brasileira era, então, em sua maioria, analfabeta, e, mesmo entre os alfabetizados, o rebuscamento de seus textos era um dificultador de sua compreensão. Até por isso, no início do século XX (logo após a Proclamação da República, no Brasil), o movimento modernista tenta se aproximar do mesmo objetivo de José de Alencar, porém trazendo uma proposta de simplificação da linguagem, aproximação das línguas escrita e falada, comunicação mais informal, para que, dessa maneira, a cultura pudesse se aproximar do universo das pessoas que supostamente eram representadas por ela, como no poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira (1986, p. 213):

(…) A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada (…)

No entanto, mesmo com a simplificação da linguagem, o Modernismo terminou por esbarrar no mesmo problema que o Romantismo: o distanciamento que o brasileiro mantinha do hábito da leitura, ainda que ela estivesse “simplificada”. Mesmo as obras de Alencar que retratavam heroínas românticas, apesar de serem leitura feita centralmente por mulheres que era, normalmente, opostas às suas personagens (por viverem num contexto patriarcalista, em que eram privadas de direitos e, via de regra, eram obrigadas a se portar como responsáveis pelos cuidados da casa),

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41–48. eISSN: 2184-7010 JOSÉ DE ALENCAR, IDENTIDADE E IMAGEM 45 acabavam por influenciar a expansão da literatura de Alencar de maneira também restrita, visto que desafiavam um modelo de sociedade e família que era então muito sólido. Por isso, tinham a receção de literatura de entretenimento, mais leve, literatura para distrair a leitora. Segundo Candido (2000, p. 222):

Basta com efeito atentar para sua glória junto aos leitores – certamente a mais sólida de nossa literatura – para nos certificarmos de que há, pelo menos, dois Alencares em que se desdobrou nesses noventa anos de admiração: o Alencar dos rapazes, heroico, altissonante; o Alencar das mocinhas, gracioso, às vezes pelintra, outras, quase trágico.

É possível falarmos em um projeto expresso de identidade nacional, por parte de Alencar, também a partir da sua escrita como crítico literário. Por exemplo, em A polêmica sobre “A Confederação dos Tamoios”, Alencar (1953, pp. 5–6) expressa sua preocupação com a crescente chegada da modernização, que poderia deixar esquecidos os referenciais básicos da construção da literatura brasileira: “o wagon do progresso fumega e vai precipitar-se sobre essa têa immensa de trilhos de ferro que em pouco cortarão as tuas florestas virgens”, em que “os turbilhões de fumaça e de vapor começarão a enovelar-se, e breve obscurecerão a limpidez d’essa atmosfera diaphana e pura”. Com o desenvolvimento da tecnologia de imagem para o cinema e, posteriormente, para a televisão, o alcance das narrativas de Alencar foi potencializado e, então, pode atingir de maneira mais efetiva o imaginário nacional pretendido.

4. O Romantismo no século XX

Com a expansão do cinema, no começo do século XX, e da televisão, em meados do mesmo século, houve um crescente consumo das narrativas da ficção. Em um país em que a leitura se tornou um hábito social pouco difundido, foi a imagem que acabou por tomar esse lugar de disseminação cultural. Segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, estudo conduzido pelo INEP, em 1900, na virada do século XIX para o século XX, a taxa de analfabetismo na população com mais de 15 anos, no Brasil, era de 65,3% (Helene, 2002, p. 6). Por mais que a tecnologia televisiva não fosse tão acessível quando foi concebida, o seu barateamento acabou por a tornar muito popular, principalmente dado ao impulsionamento da massificação cultural que havia sido trazido pelo cinema e pela rádio. Como exemplo, basta considerarmos o poder de alcance das telenovelas brasileiras, que são produzidas às dezenas todos os anos, e exportadas para diversos outros países, inclusive para Portugal. O advento do cinema no Brasil, no final do século XIX, trouxe grande movimentação ao cenário cultural brasileiro. Segundo Viany (1993, p. 22), no ano de 1897, houve o chamado boom do cinema mudo brasileiro entre os espectadores, com “o apreciável total de 52.000 pessoas, no curto prazo de dois meses”, e que nas duas décadas que se seguiram, houve o que ficou conhecida como a era de ouro do cinema mudo brasileiro. E essa agitação cultural acabou por influenciar a elaboração de outros produtos culturais. A telenovela, no Brasil, tem sua tradição vinculada às radionovelas, que tiveram um poder de inserção social muito amplo e acabaram por fundamentar o fértil terreno para as telenovelas. Não iremos aqui centralizar a atenção nas radionovelas, mas elas são um importante ponto de partida para analisarmos sua influência na consolidação das telenovelas. De acordo com Federico (1982, p. 75), de 1943 a 1955, a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, sozinha, transmitiu 11.756 horas de radionovelas. E em 1956 havia 14 telenovelas sendo transmitidas diariamente, sendo responsáveis por 50% das horas de

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41-48–46. eISSN: 2184-7010 46 ANDERSON ANTONANGELO programação. O poder de disseminação das radionovelas e telenovelas acabava por ser muito maior do que os da literatura, pelo seu caráter narrativo mais acessível ao grande público. É nesse cenário de disseminação que a narrativa identitária de José de Alencar encontrou terreno fértil, ainda mais ao considerarmos os momentos históricos em que ocorreram. É percetível que a maior parte das releituras para cinema e televisão foram feitas na década de 50 e, principalmente, na década de 70. No contexto sociocultural das décadas em questão, havia o fortalecimento de um ideal nacional, devido ao modelo político concentrador de poder: a propaganda política de amor ao país circulava. Foi nesse contexto que essas adaptações acabaram ganhando ainda mais força. A década de 50 assistiu ao retorno de Getúlio Vargas ao governo brasileiro, após sua extensa estada entre 1930 e 1945. Desde a década de 30, sabemos que havia controle da produção cultural. Segundo Jambeiro (2001, p. 41):

Vargas criou o DIP-Departamento de Imprensa e Propaganda, em 1937, vinculou-o diretamente ao seu gabinete, a partir de 1939, e através desse órgão estabeleceu controle oficial e censura sobre a comunicação de massa, a cultura e as artes. O modelo de funcionamento do rádio foi então estabelecido ao estilo brasileiro: severo controle do conteúdo, particularmente notícias; implantação de algumas emissoras sob direto domínio e operação estatal (Rádio Nacional, por exemplo); e estímulo ao desenvolvimento das emissoras comerciais como base do modelo adotado.

Apesar de apresentar uma política por vezes contraditória, Getúlio era considerado o “pai dos pobres”, pela proposição de medidas assistencialistas que tendiam a mitigar o problema, ou ao menos a disfarçá-lo. A volta de Getúlio em 1951 e sua morte em 1954 trazem um contexto de busca pelo ideário de um salvador do país. Esse é um contexto favorável para a consolidação de obras que reafirmam os elementos identitários do país, pelo contexto cultural nacionalista em que se vivia. Na década de 70, a presença das obras de afirmação identitária tem ainda maior campo de consolidação. Após o início da ditadura militar brasileira, em 1964, não só havia o incentivo a um posicionamento de valorização ufanista em relação ao Brasil (por exemplo, com a propaganda política “Brasil: ame-o ou deixe-o”), mas pelo próprio controle absoluto, por parte do Estado, em relação à produção nacional. Na época, os órgãos de censura estavam ativos, e sabia-se dos riscos que corriam aqueles que desafiavam a ideologia do Estado. Assim, evidentemente, o encaminhamento para que as produções de José de Alencar de cunho nacionalista fossem amplamente adaptadas para a linguagem televisiva se confirmou, sendo essa a década com a maior quantidade de versões – e também a década em que o regime militar foi mais duro em termos de perseguição ideológica e tortura. Segundo Jambeiro (2001, p. 14):

(…) os militares viam a indústria da TV como um importante meio para a divulgação da doutrina da Escola Superior de Guerra, e para a integração cultural, política e econômica do país. Eles enxergaram nela também um instrumento para a criação e sedimentação de um mercado de consumo nacional, que desse suporte ao desenvolvimento industrial do país. Para impulsionar a indústria da TV incluíram-na como um dos objetivos da construção do sistema nacional de telecomunicações, que possibilitou a formação de redes nacionais estruturadas como indústrias de entretenimento, formadoras de opinião favorável à ditadura, e “vendedoras” (via publicidade, merchandising e comportamento manifesto) de produtos.

Essa alta profusão de adaptações, juntamente à tendência a que a cultura no Brasil fosse mais popularizada por meio da imagem do que por meio do texto, fez com que, com um século de diferença, o plano de disseminação de uma cultura nacional iniciado por José de Alencar, de uma certa “mitologia” de formação do Brasil, fosse enfim disseminado de maneira ampla em terras brasileiras. As personagens de José de Alencar

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41–48. eISSN: 2184-7010 JOSÉ DE ALENCAR, IDENTIDADE E IMAGEM 47 são altamente conhecidas no âmbito nacional, mesmo pela parte da população que não tem o hábito da leitura. Além disso, o alto índice de suas adaptações acabou por encontrar no século XX solo fértil para os romances que envolviam uma heroína feminina, os romances do “Alencar das mocinhas”. Com o crescimento da representatividade do feminismo e a conquista pelas mulheres do mercado de trabalho, com sua garantia enfim alcançada de direito ao voto, sua emancipação sexual e sua busca ainda atual pela igualdade de direitos, as adaptações que envolviam os romances de protagonistas femininas acabaram por potencializar ainda mais o poder de expansão de eventuais releituras que estivessem sob o nome do autor José de Alencar. Dessa maneira, não só houve a reafirmação identitária nacional que Alencar buscava, como também um posterior reforço à construção identitária da mulher do século XX, que aos poucos se liberta dos modelos patriarcais que tendem a limitá-la.

5. Considerações finais

Quando o romantismo brasileiro procurou estabelecer as diretrizes de uma mitologia da cultura brasileira em comum, o plano acabou ficando apenas restrito a um pequeno círculo de pessoas, visto que a maioria da população não tinha acesso à leitura e não era alfabetizada, alijada do contexto sociocultural do país. O projeto do cearense José de Alencar, de pesquisa extensiva acerca da cultura nacional e divulgação por meio da literatura, que depois foi apropriado pelos modernistas, acabou por não se estender da maneira esperada. Não, ao menos, antes do boom da imagem em fins do século XIX e ao longo do século XX, em que as versões televisivas e cinematográficas de suas obras acabaram por ampliar o seu alcance e puderam, dessa maneira, chegar às casas dos brasileiros e, enfim, reforçar o ideário de identidade nacional, ainda que beneficiadas por conta dos momentos políticos autoritários vividos em dados contextos. Esse processo de releitura de suas obras, saindo da linguagem literária e alcançando a linguagem televisiva, teria o poder de, retroativamente, alimentar o interesse do telespectador pelos livros de maneira significativa? É perceptível que, quando há novas telenovelas e filmes baseados em obras literárias, o mercado editorial busca essa parcela de consumo para que as vendas sejam impulsionadas. Poderia esse movimento modificar de maneira notável a relação do brasileiro com a leitura, ou seriam esses momentos esporádicos? Com o desenvolvimento da tecnologia, teremos muitas possibilidades a mais para observar como se dá a relação entre a literatura que originou a narrativa e a nova versão. Seriam elas retroalimentáveis? O formato literário tende a perder força? Muito há a ser observado, mas podemos dizer com segurança que, no caso das narrativas de José de Alencar, a transposição para o meio imagético potencializou o alcance de suas narrativas, popularizou suas personagens, e reforçou ainda mais o autor como elemento central no cânone literário nacional e como formador de uma determinada identidade brasileira.

REFERÊNCIAS

Alencar, J. de. (1953). Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos. In "A polêmica sobre 'A confederação dos Tamoios'", José Aderaldo Castello (Org.). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras / USP.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41-48–46. eISSN: 2184-7010 48 ANDERSON ANTONANGELO

_____ (1964). As minas de prata. São Paulo: Melhoramentos.

_____ (1990). O guarani. São Paulo: Ática.

_____ (1991). Iracema. São Paulo: Ática.

_____ (1994). Ubirajara. São Paulo: FTD.

_____ (1998). O gaúcho. São Paulo: Ática

_____ (2006). Lucíola. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

_____ (2006). O tronco do Ipê. São Paulo: Martin Claret.

_____ (2006). Senhora. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda.

_____ (2009). Diva. São Paulo: Globus Editora.

_____ (2011). Cinco minutos / A viuvinha. São Paulo: FTD.

Bandeira, M. (1986). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Aguilar.

Candido, A. (1967). Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional.

_____ (2000). Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia.

Federico, M. E. B. (1982). História da comunicação: Rádio e TV no Brasil. São Paulo: Ed.Vozes.

Helene, O. A. M. (Ed.). (2002). Mapa do analfabetismo no Brasil. Brasília: INPE.

Jambeiro, O. (2001). A TV no Brasil do século XX. Salvador: EDUFBA.

Ramos, F. P. e Schvartsman, F. (Eds.). (2018). Nova história do cinema brasileiro (volumes I– II). São Paulo: Edições Sesc.

Silveira, E. (2009). Tupi or not tupi: Nação e nacionalidade em José de Alencar e Oswald de Andrade. Porto Alegre: EdiPUCRS.

Viany, A. (1993). Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Revan.

Xavier, N. (2013). Almanaque da telenovela brasileira. São Paulo: Panda Books.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 41–48. eISSN: 2184-7010

O TRAUMA EM WATCHMEN DO GRAPHIC NOVEL À SÉRIE DE TELEVISÃO

TRAUMA IN WATCHMEN FROM THE GRAPHIC NOVEL TO THE TV SERIES

ANDRÉ FRANCISCO* [email protected]

Em 1987, Watchmen revolucionou o mundo da banda desenhada devido à complexidade dos seus super-heróis e a maneira humana como estes eram retratados. O trauma é um elemento essencial na história, uma vez que tal como afecta a população em geral, afecta também os heróis da narrativa. A série de televisão Watchmen (2019) inspira-se no ambiente e no género de herói que é retratado em 1987, tentando seguir o legado que o graphic novel deixou. Assim, esta breve reflexão foca-se na representação do trauma colectivo e individual no livro e na continuidade que lhes é dada na série de televisão, em que surgem ainda novos traumas, também eles relacionados com a narrativa inicial.

Palavras-Chaves: Watchmen; trauma; máscaras; graphic novel; série de televisão.

In 1987, Watchmen changed the comics world through the complexity of its super-heroes and their humane portrayal. Trauma is an essential element to the story, since it affects the heroes of this narrative as much as it does the general population. The TV series Watchmen (2019) draws inspiration from the type of character and atmosphere depicted in 1987, following the legacy of the graphic novel. This brief analysis focuses on how collective and individual trauma are represented in the book and on their follow-up in the TV series, as new traumas surface, also related to the initial narrative.

Keywords: Watchmen; trauma; masks; graphic novel; TV series.

Data de receção: 29-01-2020 Data de aceitação: 21-03-2020 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2508

* Investigador, Universidade de Lisboa, Centro de Estudos Comparatistas, Lisboa, Portugal. ORCID: 0000- 0002-4188-6384 50 ANDRÉ FRANCISCO

1. Introdução

1.1 Watchmen (1987): “We're all puppets”

Watchmen (1987) é uma graphic novel1 criado por Alan Moore e Dave Gibbons, e editado pela DC Comics entre os anos 1986 e 1987. A história do livro passa-se em 1985, num universo alternativo, onde os EUA venceram a Guerra do Vietname e o caso Watergate não teve as mesmas repercussões que na realidade, ou seja, o presidente Richard Nixon não se demitiu na sequência do escândalo, mantendo-se no poder, num clima altamente marcado pela hostilidade do grupo de super-heróis (do passado e do presente), e dos eventos que originaram o assassinato de um dos elementos do grupo. O que distinguiu Watchmen (1985) das bandas desenhadas da época foi o modo como retratava os super- heróis enquanto pessoas reais – à excepção de um dos elementos da trama, nenhum dos heróis mascarados possui poderes sobre-humanos – que são confrontadas com questões éticas e morais, ao mesmo tempo que é explorado o seu lado mais íntimo e pessoal. Como Jamie A. Hughes afirma: “Watchmen, a comic that asks the rousing question, ‘What would happen to our concept of the superhero if such crusaders were a real part of our world?’” (Hughes, 2006)2 Ao longo do livro, são-nos apresentadas, em diferentes níveis, as temáticas do medo colectivo e do trauma. Num plano mais geral, paira o medo de um confronto nuclear. Depois da detonação em Hiroshima, o mundo percebeu a capacidade de destruição que a energia nuclear possui. O medo da devastação é atenuado, de certo modo, face à presença do super-herói Dr. Manhattan. A sua história, como Brandy Ball Blake afirma:

[…]ties personal trauma with one of the novel's main themes is the fear of nuclear devastation. That character is John Osterman, the man who becomes Dr. Manhattan. After realizing the power of the Atomic Bomb and hearing of its effects on Hiroshima, Jon's father, a watchmaker, pressures his son into a career as an atomic physicist (Blake, 2009)

Enquanto físico atómico, Jon Osterman, sofre um acidente que o transforma num ser com poderes semelhantes aos de uma divindade, incluindo a capacidade de controlar a matéria ao nível subatómico e a clarividência, que lhe permite percepcionar o passado, o presente e o futuro em simultâneo. Desta forma, como é verificável no livro: “His powers make him crucial to America’s defense strategy and the government even renames him Dr. Manhattan after the Manhattan Project so that he will inspire the same fear as the atomic bomb.” (Moore, 1987). O livro inicia a trama com a morte do The Comedian, que dá origem a uma investigação por parte dos antigos membros do grupo de vigilantes Rorschach, Nite Owl II e Laurie Juspeczyk/Silk Spectre, que suspeitam tratar-se de uma conspiração tendo como objectivo o assassinato de ex-vigilantes mascarados. Com a ajuda de Jon,

1 Utilizámos o termo graphic novel quando nos referirmos a Watchmen (1987) por se tratar de uma história de longa duração, apresentada em tiras de banda desenhada e publicada em formato de livro. Contrariamente, a banda desenhada (comics) é um formato periódico (geralmente lançados mensalmente) e tem uma acção que vai progredindo a cada lançamento. 2 Esta forma de olhar para os super-heróis está em linha com o período conhecido como a Idade Moderna dos comics, um momento de transição para a história da arte, com criadores como Frank Miller ou Alan Moore a contribuir para uma redefinição do super-herói.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 51 descobrem que a conspiração em nada se relaciona com a morte de vigilantes, mas sim com um plano maior, orquestrado por Adrian Veidt, cujo objectivo é terminar com a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial entre os EUA e a URSS e com a ameaça nuclear. Para isso, Veidt planeia fazer cair em Nova Iorque uma lula gigante de aspecto alienígena, que causa a cooperação internacional, na medida em que obriga os EUA e a URSS a colaborarem contra um inimigo comum.

1.2 Watchmen (2019): “Nothing ever ends”

A série de televisão Watchmen (2019) concebida por Damon Lindelof3 ocorre 34 anos depois dos acontecimentos provocados por Veidt. A acção passa-se em 2019, na cidade de Tulsa no Oklahoma, onde um grupo de supremacistas brancos, denominados de Seventh Kavalry4, pratica actos de violência contra as minorias e a polícia. Em Tusla, todos os polícias usam máscara como consequência do ataque conhecido por White Night, protagonizado pela Seventh Kavalry. O ataque, que ocorreu na manhã do dia 25 de dezembro, matou a maioria da força policial da cidade, o que deu origem à lei que obrigava os policias a usar máscaras para protegerem a sua identidade. O início da série é inspirado nos primeiros momentos do livro. No seguimento da morte do chefe da polícia Judd Crawford, é iniciada uma investigação ao grupo Seventh Kavalry que revela uma conspiração protagonizada por Lady Trieu cujo objectivo é retirar os poderes a Jon, que se descobre estar a viver disfarçado em Tulsa. Não é só no início que a série é altamente influenciada pelo livro, pois a ideia é que o universo criado inicialmente por Moore tenha um seguimento na actualidade e, para isso, são usadas determinadas referências que nos levam a estabelecer conexões com o livro.5 Existe, assim, uma evidente preocupação em lembrar-nos de que aquilo que estamos a ver é uma continuação de Watchmen (1987). Contudo, esse objectivo de não separar a série do livro é feito essencialmente através das personagens e das histórias contadas, assim como do ambiente que envolve a cidade de Tulsa em 2019. Os acontecimentos que marcam o final do livro vão ter repercussões visíveis ao longo da série. No livro, o trauma colectivo está relacionado com as consequências de um ataque nuclear e de uma iminente guerra. Na série, o ataque a Nova Iorque, que havia matado 3 milhões de pessoas, terá sido um dos principais causadores de um trauma colectivo que durava há mais de 34 anos. Mais precisamente, a série coloca esse acontecimento como base do trauma daquela sociedade, sendo este constantemente relembrado através de uma chuva de pequenas lulas que ocorre esporadicamente. Em paralelo, é ainda explorada a questão do trauma comunitário que afectou os afro-americanos nos EUA, em particular os sobreviventes e os descendentes do Massacre de Tulsa ocorrido em 1921. Assim, este ensaio tem como objectivo analisar os diferentes tipos de trauma existentes em Watchmen, assim como o modo como a série se articula com o livro para desenvolver alguns desses traumas.

2. Trauma, trauma hereditário e trauma colectivo

3 Criador de séries como Lost (2004–2010) e The Leftovers (2014–2017). 4 Grupo Supremacista branco que se inspira em Rorschach e no diário que o vemos escrever ao longo do livro e que, no final, chega à redacção de um jornal com afiliações conservadoras, New Frontiersman. Nesse diário consta a verdade sobre a conspiração criada por Veidt. O grupo é conhecido por usar máscaras idênticas à que Rorschach usa no livro. 5 Desde a utilização de smiley faces, símbolo marcante do livro, ao amarelo das máscaras dos polícias e das letras que nos mostram o título dos episódios.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 52 ANDRÉ FRANCISCO

Laurie, personagem de Watchmen (2019), afirma: “Well, people who wear masks are driven by trauma. They’re obsessed with justice because of some injustice they suffered, usually when they were kids. Ergo, the mask. It hides the pain.” Antes de analisar mais concretamente a forma como o trauma é representado em Watchmen (1987, 2019) é necessário definir os três conceitos: trauma, trauma hereditário e trauma colectivo. De forma geral, podemos definir trauma como uma reposta emocional e psicológica a um evento ou experiência profundamente angustiante e perturbador. Esta definição engloba incidentes como estar envolvido num acidente de carro, ter uma doença ou uma lesão grave, perder um ente querido ou mesmo passar por um processo de divórcio. Em todo o caso, pode ainda abranger acontecimentos mais extremos que incluem experiências altamente nocivas como violações e tortura. Por se tratar de eventos que podem ser vistos de forma subjectiva, esta definição serve apenas como uma orientação. Os processos traumáticos são sentidos de forma distinta tendo em conta a experiência de vida de cada um.6 Como Brandy Ball Blake aponta:

The past century has witnessed numerous traumatic historical events as well as an increased understanding of trauma and its effects on individuals. Because of extensive research, psychologists now understand that traumatic experiences can range from large-scale events such as war, mass- murder, terrorist attacks, and long-term oppression, to individual experiences of rape, abuse, sudden accidents, and the death of loved ones, and they have a clearer idea of the ways these traumatic experiences can affect people. (Blake, 2009)

Por conseguinte, um estudo realizado na Califórnia analisou a possibilidade de um acontecimento traumático ter efeitos hereditários, isto é, a experiência traumática de um sujeito ter efeitos nas gerações seguintes. O estudo concluiu que:

The idea is that trauma can leave a chemical mark on a person’s genes, which then is passed down to subsequent generations. The mark doesn’t directly damage the gene; there’s no mutation. Instead it alters the mechanism by which the gene is converted into functioning proteins or expressed. The alteration isn’t genetic. It’s epigenetic. (Carey, 2018)

Porém, a área de estudo dos traumas hereditários ainda é recente sendo as conclusões poucos esclarecedoras de como se processa essa passagem de traumas entre gerações. Em todo o caso, para a análise que iremos efectuar teremos em conta esta noção de trauma hereditário:

The phenomenon has long been known in psychology: traumatic experiences can induce behavioural disorders that are passed down from one generation to the next. It is only recently that scientists have begun to understand the physiological processes underlying hereditary trauma. “There are diseases such as bipolar disorder, that run-in families but can’t be traced back to a particular gene,” explains Isabelle Mansuy, professor at ETH Zurich and the University of Zurich. With her research group at the Brain Research Institute of the University of Zurich, she has been studying the molecular processes involved in non-genetic inheritance of behavioural symptoms induced by traumatic experiences in early life. (ETH, Zurich, 2014)

A concepção hereditária do trauma sugere, assim, que este não se restringe apenas ao indivíduo que o experienciou, mas pode ter repercussões na geração seguinte, mesmo que o acontecimento seja anterior ao seu nascimento. Relativamente ao conceito de trauma colectivo, teremos em conta a seguinte definição:

6 Definição de acordo com The Center for Treatment of Anxiety and Mood Disorders. https://centerforanxietydisorders.com/what-is-trauma/

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 53

The term collective trauma refers to the psychological reactions to a traumatic event that affect an entire society; it does not merely reflect an historical fact, the recollection of a terrible event that happened to a group of people. It suggests that the tragedy is represented in the collective memory of the group, and like all forms of memory it comprises not only a reproduction of the events, but also an ongoing reconstruction of the trauma in an attempt to make sense of it. Collective memory of trauma is different from individual memory because collective memory persists beyond the lives of the direct survivors of the events and is remembered by group members that may be far removed from the traumatic events in time and space. (Hirschberger, 2018)

Existem vários exemplos que poderíamos utilizar para um melhor entendimento do tipo de fenómeno a que nos referimos. Todavia, iremos mencionar três que apresentam ligações com a análise em questão: o lançamento das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki, o massacre de Tulsa em 1921 e os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001.

2.1 O trauma em Watchmen (1987): “The wars to end wars, the weapons to end wars, these things have failed us”

No graphic novel o trauma individual está presente em várias personagens. No seu estudo sobre o impacto da banda desenhada/graphic novel na sociedade americana, Bradford W. Wright afirma: “Moore’s superheroes immediately appeared different from other comic book superheroes they talked and behaved like real people – or more appropriately, like real people who were strangely motivated to don colorful costumes and fight crime.” (Wright, 2001) Estes comportamentos são, em vários casos, motivados pelo trauma. Exemplo disso é a personagem Rorschach, como Wright descreve:

There had never been a “superhero” quite like him: born to an abusive prostitute mother and raised in a miserable slum, Rorschach is already prone to view mankind as innately evil, and he learns early in life to answer evil with ruthlessness. (…) He continues this approach as a grown superhero. In one especially horrific and pivotal episode, Rorschach tracks down the kidnapper of a six-year old girl only to discover that the abductor has killed the child, cut her into pieces, and fed her to his dogs. (…) Rorschach views the world as a set of black-and-white values that take many shapes but never mix into shades of gray, similar to the ink blot tests of his namesake. Life itself is like a Rorschach test, he says: “Existence is random,” and “has no pattern save what we imagine after staring at it for too long. No meaning save what we choose to impose.” In this “rudderless world” there is no God, no fate, no vague metaphysical force that guides us. This leaves Rorschach free to “scrawl [his] own design on a “morally blank world.” (Wright, 2001)

O trauma que marca a infância de Rorschach, a negligência, os abusos e o abandono levam-no a colocar uma máscara e a combater o crime. Contudo, a investigação relativa ao desaparecimento da menina de 6 anos, esse encontro com o verdadeiro mal que surge pouco tempo depois de começar a usar a máscara leva-o a rejeitar a sua própria humanidade, trocando-a pela sua máscara. (Thomson, 2005) As motivações de Rorschach têm origem no trauma e na consequente culpa que sente, como indica Sonya Norman:

Research over the past decade has shown posttraumatic guilt (negative affect and cognitions regarding one’s behavior – i.e., “I did something bad”) and shame (negative affect and cognitions regarding the entire self – i.e., “I am bad”) are highly prevalent among trauma survivors, and they play a role in the severity of posttraumatic mental health problems. (Norman, 2019) Assim, Rorschach decide tornar-se um vigilante mascarado, não por divertimento ou fama, mas por culpa – culpa em relação ao que a raça humana se tornou, culpa não só

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 54 ANDRÉ FRANCISCO motivada pelos acontecimentos em torno da morte de Kitty Genovese, mas pela negligência que sofre na sua infância. (Fishbaugh,1998) Outro exemplo de trauma individual está presente na personagem Laurie Juspeczyk. Desde cedo que é imposto a Laurie seguir o legado da mãe, antiga vigilante: “You gonna be a big tough super-lady, like mom?”, respondendo Laurie: “Yeah, I guess”. Anteriormente, no capítulo VII, numa conversa com Dan, conhecido por Nite Owl II, Laurie afirma: “At least you were living out your own fantasies. I was living out my mother’s.” O trauma de Laurie é apresentado no livro em duas fases. Num primeiro momento, Laurie descobre que a mãe sofreu uma tentativa de violação por parte de um dos seus colegas vigilante, The Comedian / Eddie Blake. Numa outra fase, Laurie descobre que The Comedian é o seu pai, fruto de uma relação consensual que ele e a sua mãe mantiveram depois da tentativa de violação. Esta questão complexa é referida por Bryan D. Dietrich deste modo:

Because of this fact, Laurie herself will have to come to terms with the complexity of seeing, of ordering her perceptions. How can she hate her father, particularly when the encounter that led to her existence appears to have been consensual? How can she still love her mother when she loved and now pities the man who would have raped her? (Dietrich, 2009)

A forma como Laurie lida com o trauma começa a ser notório no final do livro, sendo posteriormente feita a transição para a Laurie que surge na série, 34 anos depois dos acontecimentos do livro. No final de Watchmen (1986) Laurie e Dan visitam Sally. O desejo de ambos em continuar a sua aventura enquanto vigilantes é evidente quando Laurie afirma ser cedo demais para terem filhos. Dan tenta dar um nome à dupla: “’Nite Owl and Silk Spectre’ sounds neat” ao que Laurie responde: “’Silk Spectre’s’ too girly, y’know? Plus, I want a better costume, that protects me: maybe something leather, with a mask over my face…also maybe I oughtta carry a gun.” Esta descrição que Laurie faz do seu novo visual é semelhante ao que o seu pai vestia, bem como a ideia de usar armas de fogo. Apesar de não serem evidentes ao longo do livro as repercussões que o trauma tem na sua vida, é possível ver como Laurie lidou com as revelações do seu passado familiar. Num primeiro momento, depois de descobrir que Blake tentou violar a sua mãe, Laurie acusa-o em público atirando-lhe com uma bebida à cara. Mais tarde, quando conhece toda a verdade, responde de forma violenta, negando-a. A sua primeira reacção é fugir desse confronto: “I don’t want to see it. I don’t want to talk about it.”. Laurie tem inúmeras razões para evitar o seu legado. Os seus pais são pessoas problemáticas e a sua concepção, além de ter sido secreta, levanta questões relacionadas com a tentativa de violação da sua mãe pelo seu pai. Durante grande parte da sua vida, Laurie vivera revoltada com a sua mãe, tendo sido desde a infância obrigada a seguir o legado que esta construíra enquanto Silk Spectre. (Willenborg, 2019) Em todo o caso, as consequências do trauma tornar-se- ão mais claras quando analisarmos a continuidade que é dada à história de Laurie na série de televisão. O outro trauma que se verifica em Watchmen (1987) é o de carácter colectivo. Como já referimos, um dos traumas que mais figura ao longo do livro é o que está relacionado com a possibilidade de um ataque nuclear. Este receio pode ser visto, não só em personagens específicas, como é o caso do pai de Jon, mas também na população de Nova Iorque que, no livro, é representada nas cenas em que surge a banca de jornais e são comentadas as notícias por quem frequenta o local. Como Blake afirma:

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 55

Here, Bernard, the newsvendor, constantly expounds upon the possible eruption of World War III with the members of the community: a newspaper delivery man, a lesbian cab driver named Joey, a group of punk druggies, a therapist named Malcolm Long, and anyone else who will stop to listen to him for a moment. Bernard and his customers represent the populace of New York, relating their fears that the nuclear disaster that may be upon them. (Blake, 2009)

Os constantes comentários relacionados com as notícias e a corrida à banca em busca de novas informações enfatiza o sentimento de medo, horror e impotência que a iminência de um ataque provoca (Blake, 2009). Como Douglas Wolk menciona: “The overarching metaphor of Watchmen is nuclear eschatology: a blinding and unstoppable disaster that’s perpetually descending, a clock perched at a few minutes to midnight.” Nesse sentido, a imagem do relógio do Juízo Final que surge no início de cada capítulo, aproximando-se cada vez mais da meia-noite, representa, como Blake indica:

Illustration of the repetitive symptoms of trauma in this case, the trauma of living under the threat of nuclear war. (…) The build-up of this imagery shows the trauma of normal American people, trying to go about their daily business in Watchmen as their fear and helplessness take control of their lives. Unable to escape, they begin to lose hope and to disconnect. (Blake, 2009)

Curiosamente, há uma tensão construída ao longo do livro em relação a um ataque nuclear que acaba por não ocorrer. Contudo, outro evento traumático toma o seu lugar. O “ataque alienígena” planeado por Veidt mata cerca de três milhões de pessoas e, durante seis páginas completas, os autores fazem questão de nos mostrar a devastação provocada pela “solução” de Veidt. Ao obrigar o leitor a observar aquelas imagens durante um maior período de tempo, os autores procuram realçar a tragicidade do momento, aumentando desta forma o impacto emocional que elas provocam. É ainda possível reconhecer nas imagens, por entre os corpos, as personagens, também elas mortas, que representavam a população de Nova Iorque que tanto temiam e discutiam a proximidade do fim. Este evento traumático terá graves repercussões e a série procura representar como um acontecimento desta envergadura pode deixar marcas, mesmo passados 34 anos. Iremos ver na secção seguinte como é desenvolvido o trauma de Laurie, bem como os efeitos do trauma colectivo sentido no final do livro.

2.2 O trauma em Watchmen (2019): “Legacy isn’t in land, it’s in blood.”

Na série Watchmen (2019), além do desenvolvimento dos traumas que anteriormente verificámos, será ainda explorado o conceito de trauma comunitário. Entendemos por trauma comunitário um trauma semelhante ao trauma colectivo, mas que afecta particularmente uma determinada comunidade, servindo, neste caso, para o diferenciar do trauma colectivo em análise. Watchmen (2019), como afirma Erin E. Evans “is a brilliant and timely look at how generations of Americans have confronted this country’s ugly history with racism and how Black families today have been affected by the racial terror of generations past.” (Evans, 2020) O racismo e o trauma vivido pela comunidade afro-americana são os principais temas desenvolvidos ao longo da primeira temporada da série. Remetendo para os acontecimentos verídicos ocorridos em Tulsa em 19217, a série explora, através das

7 Em 31 de maio de 1921, uma multidão de pessoas brancas invadiu e destruiu o distrito de Greenwood, em Tulsa, Oklahoma. Na época, o distrito era uma das comunidades afro-americanas mais prósperas do país, apelidada de “Black Wall Street”. O ataque acredita-se ser o mais violento incidente racial na história americana. (Ellsworth, s/d)

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 56 ANDRÉ FRANCISCO personagens Angela Abar e Will Reaves, o trauma comunitário e, como iremos ver, também hereditário que afeta estas personagens. Relativamente ao trauma coletivo é importante mencionar que os acontecimentos do final do livro são referidos na série como “11/02”. Ora, a questão da data remete-nos automaticamente para um dos maiores traumas colectivos experienciados em território norte-americano e que mencionámos anteriormente: o 11 de setembro de 2001, também conhecido simplesmente por “9/11”. Segundo um estudo publicado no The New England Journal of Medicine:

The attacks of September 11, 2001 represented the largest act of terrorism in U.S. history. Approximately 3000 people were killed in New York City alone. Severe lasting psychological effects are generally seen after disasters causing extensive loss of life, property damage, and widespread financial strain and after disasters that are intentionally caused These elements were all present in the September 11 attacks, suggesting that the psychological sequelae in New York City are substantial and will be long-lasting.

O mesmo estudo concluiu que:

There was a substantial burden of acute PTSD8 and depression in Manhattan after the September 11 attacks. Experiences involving exposure to the attacks were predictors of current PTSD, and losses as a result of the events were predictors of current depression. In the aftermath of terrorist attacks, there may be substantial psychological morbidity in the population.

Na série, os efeitos do trauma coletivo de 11/02, e que se assemelham aos dos mencionados pelo estudo, são representados pela personagem de Wade Tillman. Wade encontrava-se perto de Nova Iorque quando se deu a explosão provocada pela queda da lula gigante, salvando-se por se encontrar dentro de uma casa de espelhos numa feira popular. O facto de nunca ter conseguido ultrapassar o seu trauma fez com que se tivesse tornado mentor de um grupo de ajuda para pessoas traumatizadas pelos eventos de 11/02. A questão do trauma hereditário surge pela primeira vez no contexto do grupo de apoio. Um dos participantes afirma o seguinte: “I read an article. There’s this thing… genetic trauma. Basically, if something really bad happens to your parents, it gets locked into their DNA. So, when my mom got hit by the blast, even though I wasn’t born until... ten years after 11/2, it’s like I inherited her pain.” Apesar de não haver um desenvolvimento desta ideia no âmbito do grupo de apoio, mais à frente verificaremos que o mesmo género de trauma está presente na relação de Will e Angela, e estabelecem- se ligações entre o trauma comunitário e o trauma hereditário. Se entendermos Wade como representante da população afectada directamente pelo incidente, podemos verificar nos seus comportamentos o reflexo de alguns dos sintomas pós-traumáticos que afectaram também a restante população. Exemplo disso é o bunker que o ajuda a lidar com a sua ansiedade, a máscara que usa, feita de um material similar a papel de alumínio chamado “reflectatine”, para o proteger de explosões psíquicas. Quando está sem máscara, Wade usa sempre um boné que, por dentro, está forrado com o mesmo material. Observamos que o acontecimento, mesmo passados 34 anos, nunca é esquecido, uma vez que Veidt ainda utiliza a mesma tecnologia para esporadicamente fazer chover em partes aleatórias do mundo pequenas e inofensivas lulas. Outro exemplo de representação do trauma colectivo é o vídeo publicitário que surge no episódio 5. O vídeo tem como objectivo vender a ideia de que Nova Iorque é uma

8 A perturbação de stress pós-traumático (PSPT) é uma perturbação mental que se pode desenvolver em resposta à exposição a um evento traumático, como os acidentes de viação, guerra, agressão sexual ou outro tipo de ameaças.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 57 cidade segura e com uma grande qualidade de vida. O slogan da campanha é “Come back to New York” e é utilizada a música de Frank Sinatra “New York, New York” para o acompanhar. Wade trabalha também como especialista em detectar a verdade e a real intenção das pessoas para várias empresas de produtos. Ao analisar a reacção das pessoas ao anúncio de Nova Iorque, surge o seguinte diálogo:

Wade: They despised your commercial. Publicitários: No! They-they all said they loved it. Wade: You didn't hire me to tell you what they said. You hired me to tell you the truth. They told you they loved it because what hot-blooded Oklahoma male is gonna admit he's scared? I watched them watch, and what I saw was fear. Publicitários: People buy things out of fear all the time. Wade: Not this kind. Sorry, gentlemen, but all your ad does is remind folks that three million people suffered a horrific, traumatizing, and inexplicable death. Publicitários: That was 30 years ago. Everybody's over it, they've moved on. Wade: Well, sir, in my professional opinion, they ain't moving on to New York.

Wade fala em nome da população afectada pelo trauma colectivo como uma espécie de representante desse grupo. Tal como a ele, a catástrofe ainda afecta uma grande quantidade de pessoas. Da mesma forma que Wade esconde o seu trauma, o grupo de pessoas que avalia o anúncio também esconde a influência que o ataque ainda tem sobre elas. O medo impede Wade de ter uma vida normal e, do mesmo modo, regressar a Nova Iorque parece algo impossível de acontecer para grande maioria da população (daí talvez a necessidade de existirem anúncios a tentar convencer as pessoas que é seguro regressar). O trauma comunitário em Watchmen (2019), como já referimos, está associado ao massacre de Tulsa, ocorrido em 1921. A série começa com um rapaz afro-americano, chamado Will, a assistir a um filme numa sala de cinema onde a mãe toca piano. Há uma explosão na sala por consequência dos conflitos que decorrem no exterior. O pai de Will leva a sua família para o exterior onde o rapaz vê o massacre a acontecer à sua frente, enquanto os seus pais e a restante comunidade se tentam defender dos ataques protagonizados pelo KKK. Para salvar Will, os pais colocam-no numa carroça que se dirige para fora da cidade. Enquanto se afasta, o rapaz olha por um buraco que existe na madeira e vê, através daquele pequeno orifício, a cidade onde nasceu a ser destruída, como se assistisse, através daquele buraco, ao desmoronamento da sua própria infância, causado por aquele evento traumático. Relativamente ao massacre, Kimberly Ellis refere o seguinte:

In the story of the Tulsa tragedy of 1921, we have an extremely physical and tangible representation of trauma passed down intergenerationally (…) There was the physical trauma of complete and total displacement for many families who lived in Red Cross tents for months following the domestic terror and many others who may have returned and/or rebuilt but who could not re-create the generational wealth they had previously established. (apud Evans, 2020)

A experiência traumática de Will é experienciada pela sua neta, Angela Abar, após tomar os comprimidos Nostalgia9 do seu avô. Como Evans aponta: “For Abar, living in the past means reliving several life-altering events experienced by her grandfather Will Reeves: the horrors of racial terror, white supremacy in the police force, the abandonment of family and a near-death encounter.” (apud Evans, 2020) Ao reviver as memórias do avô, Angela percebe como é que o trauma pode ser herdado e como as experiências de ambos são muito similares. No caso de Angela e Will,

9 Comprimidos feitos através do ADN do paciente, onde cada cápsula contém entre 1 a 5 memórias, tendo sido desenvolvido para pacientes com Alzheimer.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 58 ANDRÉ FRANCISCO ambos perderam muito cedo os pais (Will no massacre e Angela num atentado quando ainda era pequena), tal como explora Patricia Willenborg:

That Angela’s life has been a rerun of Will’s is not a contrivance or a simple comment on how history repeats itself. The descendants of survivors may find themselves in comparable terror during their lifetimes. Will and Angela are both too young to foresee or stop the bloodshed they witness. Both are left in a hostile world to raise themselves. Each are hardened and drawn to the law in the aftermath, and neither find early love to soothe them. (…) This is how generational trauma steels—and steals from—the offspring of survivors. (Willenborg, 2020)

Ambos se tornam polícias e ambos escondem o rosto atrás de uma máscara: Will como Hooded Justice, personagem que a série recupera também do livro, mas no qual nunca é explicada a sua história, e Angela através do seu alter-ego Sister Night. Sem ter conhecimento disso, Angela continua o legado do seu avô na luta contra o crime, especialmente na luta contra os supremacistas brancos. Will, enquanto sobrevivente do massacre de Tulsa e vítima de racismo enquanto polícia em Nova Iorque, carrega consigo um sentimento de raiva que frequentemente está presente nas vítimas de acontecimentos traumáticos. Do mesmo modo, Angela revive esse sentimento de raiva por ter perdido também os seus pais de forma traumática e por ainda ter de lutar contra o racismo 98 anos depois, que na série é representado pelo grupo Seventh Kavalry. Porém, como Will reconhece no reencontro com a sua neta, o medo muitas vezes também se mascara de raiva:

Will: You take my pills? Angela: I did. Will: Now, you know everything. My origin story. I was sitting in this exact spot almost... a hundred years ago. This was a silent movie house before they built it back up. My mama played the piano right over there. It burnt, too. Last thing I saw before my world ended was Bass Reeves, the Black Marshal of Oklahoma. Fifteen feet tall in flickering black and white. "Trust in the law," he said. And I did. So, I took his name after Tulsa burned. He was my hero. That's why I became a cop. Then, I realized, there was a reason Bass Reeves hid his face. So, I hid mine, too. Angela: Hooded Justice. Will: Mm. The hood. When I put it on, you felt what I felt? Angela: Anger. Will: Yeah, that's what I thought, too. But it wasn't. It was fear... and hurt. You can't heal under a mask, Angela. Wounds need air.

Angela tem várias feridas acumuladas ao longo da vida, feridas que ela nem sequer sabia que tinha, provenientes do trauma de Will enquanto sobrevivente do Massacre. Ao reviver a história de Will, Como refere Jones, Angela entendeu que carrega um legado de heroísmo nas suas veias e acrescenta que através dos comprimidos e da reconciliação com o seu avô, Angela não só ficou a conhecer o trauma herdado, mas também a forma de sarar as feridas que os seus diferentes traumas lhe provocaram. (Jones, 2019) Por fim, apesar não de não ter uma relação directa com o trauma colectivo, é relevante mencionar o trauma de Laurie, uma vez que evidencia a continuidade dada na série à narrativa das personagens. No final do livro, verificámos uma aproximação de Laurie, através das roupas, à maneira como o seu pai, The Comedian, actuava. Esta relação torna- se evidente na forma como a personagem é transposta para o ecrã na série de televisão. Laurie adopta o apelido do seu pai, Blake, e, tal como ele, surge como alguém que trabalha para o governo dos EUA, neste caso no FBI, como chefe da divisão que combate os vigilantes mascarados. Além disso, o carácter de Laurie na série assemelha-se ao carácter do The Comedian, tal como é descrito no livro onde geralmente surgem caracterizados como personagens que fazem o uso constante do sarcasmo e possuem uma descrença generalizada no mundo.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 59

Como o próprio afirma: “Once you realize what a joke everything is, being the Comedian is the only thing that makes sense.” Tal como The Comedian, no capítulo dois do livro, não acredita na capacidade dos vigilantes para resolverem o problema dos EUA, Laurie, por sua vez, segue essa mesma crença, tornando-se uma agente que luta contra a existência de vigilantes. Tal como o pai, Laurie não parece ter grandes capacidades de se conectar com os outros, vivendo maioritariamente isolada, sem família, dedicando-se exclusivamente ao seu trabalho. O que torna a personagem Laurie interessante é a maneira como a articulação do livro com a série nos permite observar a sua evolução. No livro temos a possibilidade de ver como esta lida com o trauma global dos acontecimentos com que a história termina e como os traumas pessoais moldam o seu carácter. A série combina esses elementos fazendo com que a evolução da personagem pareça ser uma continuação lógica da história que o livro nos conta. Se, no final de Watchmen (1987), temos claros sinais de uma aproximação de Laurie ao que caracterizava o seu pai, na série vemos o resultado dessa aproximação. Como foi possível verificar, o trauma de Laurie surge do facto de o seu pai ter violado a sua mãe. No entanto, a personagem lida com esse trauma afastando-se de tudo aquilo que a mãe lhe havia imposto desde a adolescência. Por isso, deixa de usar o mesmo nome da mãe enquanto vigilante, assim como de usar o fato similar ao da mãe, de certa forma sexualizado. Como Erin M. Keating refere:

Like Wonder Woman, Silk Spectre is both hero and sex symbol. However, in contrast to her comic archetype, Laurie is completely aware of the sexual nature of her costume, which she describes as “that stupid little short skirt and the neckline going down to my navel”. Her disdain for the sexist outfit is clear. (Keating, 2011)

Laurie é levada a odiar e a desprezar um homem que mais tarde descobre ser seu pai, tendo ainda que enfrentar o facto de, apesar da violação, a sua mãe se envolver romanticamente com esse homem, sendo ela fruto desse relacionamento. Pela complexidade desse trauma, não poderíamos ter alguém que se comportasse de forma linear. Laurie, quer no livro, quer na série, é precisamente o reflexo da complexidade do trauma que a afectou. Por isso, as suas acções serão sempre influenciadas por estes factores. Como a própria personagem refere na série: “Well, people who wear masks are driven by trauma. They’re obsessed with justice because of some injustice they suffered, usually when they were kids. Ergo, the mask. It hides the pain.” Ela não está a usar uma máscara física, como anteriormente fazia. No entanto, parece que a aproximação àquilo que o pai representava ainda serve para esconder a dor do trauma. Ao mesmo tempo, enquanto agente que combate os vigilantes mascarados, esconde a sua dor através da luta contra as máscaras. É como se, de alguma maneira, essa luta fosse a sua máscara que permite esconder a dor que ainda sente. As máscaras são para Laurie uma constante lembrança do trauma que experienciou. Da mesma forma, as máscaras também lhe lembram do trauma colectivo que matou milhões de pessoas e que consequentemente também a afectou. Laurie, no final do livro, tenta impedir, sem sucesso, que Veidt lance o ataque. Esta falha atormenta-a se tivermos em conta que, enquanto super-heroína mascarada, o seu dever era defender a população. Por falhar naquele momento crítico sente, de certo modo, uma responsabilização por tudo o que O facto de esconder a verdadeira origem do ataque acresce à culpa com que vive há mais de 30 anos, o que a torna, portanto, cúmplice do embuste. Assim, lutar contra o uso de máscaras é, para ela, a única forma que tem de contrariar a sua própria dor.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 60 ANDRÉ FRANCISCO

3. Conclusão: “You can’t heal under a mask”

Watchmen (2019) dá continuidade a um dos estandartes que o livro, em 1987, carregou: a de humanizar o conceito de herói. Ao colocar os heróis ao mesmo nível que os comuns mortais, os problemas que os heróis experienciam serão semelhantes aos da restante população. Deste modo, também os heróis em Watchmen são vítimas de diferentes níveis de trauma e experienciam os sintomas provenientes desses acontecimentos como qualquer outra pessoa. Independentemente do tipo de trauma, seja individual, colectivo ou hereditário, o que os heróis de Watchmen vivenciam retrata diferentes experiências traumáticas e a forma como estas podem influenciar a vida de qualquer um. Por ser tão próximo da realidade, Watchmen, o livro e a série, consegue transmitir o impacto traumático de diferentes eventos, fazendo com que os leitores/espectadores sintam a impotência, o isolamento e o medo tal como as personagens. Aliada a este sentimento, acresce a problematização de questões que actualmente ainda se encontram presentes nas nossas vidas. O livro de 1987 reflecte sobre questões que a série nos mostra serem ainda parte integrante do mundo em que vivemos. Em ambos os casos, o que Veidt afirma no livro deve ser tomado em consideração: “In an era of stress and anxiety, when the present seems unstable and the future unlikely, the natural response is to retreat and withdraw from reality, taking recourse either in fantasies of the future or in modified visions of a half-imagined past.” (Moore, 1987)

REFERÊNCIAS

Abad-Santos, A. (2019, novembro 4) Watchmen’s Laurie Blake — and how the show is rewriting her comic book origins. Vox. Consultado em https://www.vox.com/culture/2019/11/4/20941740/watchmen-laurie-blake-jean-smart- episode-three

Blake, B. B. (2009). Watchmen: The graphic novel as trauma fiction. Imagetext, 5 (1). Consultado em http://imagetext.english.ufl.edu/archives/v5_1/blake/

Carey, B. (2018, dezembro 10). Can we really inherit trauma? The New York times. Consultado em https://www.nytimes.com/2018/12/10/health/mind-epigenetics-genes.html

Dietrich, B. (2009). The human stain: Chaos and the rage for order in Watchmen. Extrapolation, 50 (1), pp.120-144.

Dekel, R. e Goldblatt, H. (2008) Is there intergenerational transmission of trauma?: The case of combat veterans’ children. American journal of orthopsychiatry, 78 (3), 281–289.

Ellsworth, S. (s/d). Tulsa race massacre. The encyclopedia of Oklahoma history and culture. Consultado em https://www.okhistory.org/publications/enc/entry.php?entry=TU013

ETH Zurich. (2014, abril 13). Hereditary trauma: Inheritance of traumas and how they may be mediated. Sciencedaily. Consultado em www.sciencedaily.com/releases/2014/04/140413135953.htm

Evans, E. (2020, janeiro 3). Watchmen is a powerful exploration of black trauma, and everyone needs to watch. Huffpost. Consultado em https://www.huffpost.com/entry/watchmen- episode-6-hooded-justice-race-trauma_n_5ddc92ece4b0d50f32958d9e

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 O TRAUMA EM WATCHMEN 61

Fishbaugh, B. (1998) Moore and Gibbons's Watchmen: Exact personifications of science. Extrapolation: A journal of science fiction and fantasy. 39 (3), 189–198.

Galea, S., Ahern, J., Resnick, H., Kilpatrick, D., Bucuvalas, M. e Gold, J. (2002). Psychological sequelae of the September 11 terrorist attacks in New York city. The New England journal of medicine. Consultado em https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMsa013404

Hatfield, C., Heer, J. e Worcester, K. (2013). The superhero reader. Mississipi: University Press of Mississippi.

Hirschberger, G. (2018). Collective trauma and the social construction of meaning. Frontiers in Psychology. Consultado em https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2018.01441/full

Hughes, J. (2006). “Who watches the Watchmen?”: Ideology and ‘real world’ superheroes. The journal of popular culture, 39 (4), 546–557.

Jones, M. (2019). How Watchmen explores generational black trauma and provides a path beyond the pain. Shadow and Act. Consultado em https://shadowandact.com/how-watchmen- explores-generational-black-trauma-and-provides-a-path-beyond-the-pain

Keating, E. M. (2011). The female link: Citation and continuity in Watchmen. The journal of popular culture, 45 (6), pp.1266-1288.

Lindelof, D. (Produtor). (2019). Watchmen [Série televisiva]. Estados Unidos da América: HBO.

Mahmutović, A. (2018). Chronotope in Moore and Gibbons’s Watchmen. Studies in the novel. 50 (2), 255–276.

Moore, A. (Escritor) & Gibbons, D. (Ilustrador). (1987). Watchmen. : DC Comics.

Norman, S. (2019). Treating guilt and shame resulting from trauma and moral injury. The international society for traumatic stress studies. Consultado em https://istss.org/public- resources/trauma-blog/2019-september/treating-guilt-and-shame-resulting-from-trauma- and

Pellitteri, M. (2011). Alan Moore, Watchmen and some notes on the ideology of superhero comics. Studies in comics, 2 (1), 81–91.

Sundar, P. (2019). Watchmen episode 5: Wade Tillman's journey to become Looking Glass is filled with deep despair and trauma of surviving the giant squid. Meaww. Consultado em https://meaww.com/watchmen-episode-5-review-wade-tillman-looking-glass-rorschach- seventh-kavalry-attack

Thomson, I. (2005). Deconstructing the hero. In Comics as philosophy (pp. 100–129). Jackson: Universtiy of Mississippi.

Willenborg, P. (2019). “Wounds need air”: Personal trauma in Watchmen. 25YL. Consultado em https://25yearslatersite.com/2020/01/09/wounds-need-air-personal-trauma-in- watchmen/

Wright, B. (2001). Comic book nation: the transformation of youth culture in America. Baltimore: The John Hopkins University Press.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010 62 ANDRÉ FRANCISCO

Wolk, D. (2007). Reading comics: How graphic novels work and what they mean. Cambridge, MA: Da Capo Press.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 49–62. eISSN: 2184-7010

MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE LINGUAGEM AUDIOVISUAL E ELEMENTOS DA NARRATIVA EM CAPITU, DE LUIZ FERNANDO CARVALHO

MACHADO DE ASSIS IN A MINISERIES AUDIOVISUAL LANGUAGE AND ELEMENTS OF THE NARRATIVE IN LUIZ FERNANDO CARVALHO’S CAPITU

GABRIELA KVACEK BETELLA* [email protected]

Particularidades estéticas do romance Dom Casmurro e da minissérie Capitu revelam a capacidade de discursos literário e audiovisual de representar singularidades da vida social brasileira do passado, bem como apontam problemas existenciais do representante de classe que conduz o enredo, provocando reflexões no presente. O tratamento oferecido à luta de classes pela narrativa de Machado de Assis e pela transcriação, assim como o modo através do qual o drama existencial é exposto, promovem um tipo de recepção entre leitores/espectadores capazes de rever o passado histórico em tempos que pedem tal revisão, ainda que a série televisiva aposte forçosamente no anticonvencional das imagens bem tratadas e da narrativa não linear. Machado apresentou a tensão entre representação e verdade (bem como entre produção de emoção e de reflexão) com a transfiguração do pathos de tragédia e a mobilização da figura patriarcal para o viés melodramático. Embora acrescidas de uma ironia orquestrada pelos elementos cênicos na versão audiovisual, tais soluções machadianas tenderiam a perder a força de desmascaramento dos sujeitos sociais, contudo a intensificação do melodrama pode evidenciar o que Machado disfarçou com intenções narrativas menos óbvias.

Palavras-Chave: Literatura e televisão; Machado de Assis; Dom Casmurro; Luiz Fernando Carvalho.

Some aesthetical particularities of the novel Dom Casmurro and the miniseries Capitu reveal the capacity of the literary and audiovisual discourse to represent some singularities of the Brazilian social life from the past, as well as pointing to existential problems of the class representative that leads the plot, instigating reflections in the present. The treatment offered to the class struggle by the Machado de Assis’ narrative and by the transcriation, just as the way in which the existential drama is expounded, disclose a kind of reception among readers/viewers which is capable of reviewing the historical past in times that ask for such a revision, even though the television series bets on the non-conventional of the well-treated images and non-linear narrative. Machado presented the tension between representation and truth (as well as between emotion production and reflection) with the transfiguration of the tragic pathos and the mobilization of the patriarchal figure to the melodramatic bias. Although increased by the irony orchestrated by the scenic elements, in the audiovisual version such Machadian solutions would be apt to lose their strength

* Professora Assistente, Doutora, Universidade Estadual Paulista, Departamento de Letras Modernas, Assis-SP, Brasil. ORCID: 0000-0003-2977-132X 64 GABRIELA KVACEK BETELLA to unmask the social subjects; on the other side, the intensification of the melodrama can make evident what Machado disguised with less obvious narrative intentions.

Keywords: Literature and television; Machado de Assis; Dom Casmurro; Luiz Fernando Carvalho.

Data de receção: 31/01/2020 Data de aceitação: 31/03/2020 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2511

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 65

1. Machado e seus narradores

Este estudo tem origem numa pesquisa cujo maior foco de atenção foi o narrador em primeira pessoa que investigamos desde os anos de 1990 até o início dos anos de 2010, com uma proposta de análise e interpretação detida sobre a representação das nuances sociais brasileiras em romances e crônicas de Machado de Assis. Quando as linhas de pesquisa sofreram uma adequação em virtude de questões acadêmicas, mantivemos em artigos esporádicos e na formação de pesquisadores a essência da veia crítica, a saber, a assimilação do pensamento de Roberto Schwarz para aprofundamento em novas vertentes da ficção capazes de incorporar procedimentos da escrita de memórias, autobiografias e diários sob a perspectiva de tipos de classe alta, privilegiada e moldada no regime escravista brasileiro, especialmente no tocante aos romances, contos e crônicas do escritor brasileiro, bem como nas releituras propiciadas pelo audiovisual. Ao explorar formas literárias cujo aspecto comum é a narrativa em primeira pessoa, observamos que o ponto de vista das crônicas escritas por Machado após a década de 1880, especialmente nas séries Bons dias! e A Semana, parece se afinar com os narradores de romances personificados como homens maduros, aposentados, de classe alta, como Brás Cubas, Bento Santiago, Conselheiro Aires. Assim, nossa tese sempre se baseou nas afinidades estética e social entre os pontos de vista de crônicas e romances, parte significativa da estratégia machadiana de representação disposta a superar impasses das formas de realismo num fim de século conturbado de um país de marca escravista e burguesa ao mesmo tempo, definindo-se na posição periférica em relação ao capitalismo mundial. Se Machado cumpriu objetivos marcadamente críticos, mantendo o compromisso com a representação analítica da dinâmica interna das classes sociais, dela se utilizando como matéria literária, no caso dos narradores em primeira pessoa o resultado estético nos encanta por ajustar este lugar do discurso à posição que os sujeitos ocupam na escala social, especialmente entre lugares de poder. Assim, o temperamento dos narradores em primeira pessoa, incluindo as finezas até suas indiscrições, tornam-se, nas palavras de Roberto Schwarz ao analisar as Memórias Póstumas de Brás Cubas, “regra de composição narrativa” e “estilização de uma conduta própria à classe dominante brasileira” (Schwarz, 1990, p. 14). Estendendo a análise para todos os narradores machadianos em primeira pessoa, notamos que ao longo da obra o escritor elegeu a parcialidade do ponto de vista para evidenciar os deslocamentos operados pela narrativa no sentido de espelhar uma tendência social e histórica. Aos narradores como Brás Cubas e Bento Santiago sempre caberá a última palavra, o discurso unilateral, a anulação de uma perspectiva moral e de suas responsabilidades em acontecimentos de todos os níveis. Se a narrativa é incondicionalmente guiada por membros da classe dominante, Machado também tem o cuidado de tornar os condutores parciais o suficiente para que o leitor observe que a narrativa favorece o homem bem-posto, herdeiro, proprietário. Contudo, o autor manipula os elementos da narrativa de modo a fazer o próprio narrador se desmascarar e, num passo adiante, o discurso pode nos levar à conclusão de que não há perspectiva imparcial, seja na narrativa, seja na vida social representada. A literatura contemporânea desenvolve formas de representação cada vez mais inovadoras, dispostas a dar conta de complicados processos sociais da atualidade ou de releituras do passado. Para tanto, os escritores abandonaram e recusaram padrões

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 66 GABRIELA KVACEK BETELLA convencionais, discutindo-os, como aconteceu com o romance e suas fórmulas usuais até o século XX, entre as quais a essência do folhetim e a presença do melodrama. Os problemas contemporâneos, afinal, pedem expressões artísticas (em vários campos além da literatura, como o do audiovisual) livres de clichês, mais ‘autorais’, almejando transparecer e estimular uma consciência crítica. A poética contemporânea assimilou uma dimensão política investindo alto na construção de uma linguagem nova, capaz de desenvolver os temas com estruturas que não permitem interpretações redutoras e reproduções banalizadas de questões sociais ligadas, por exemplo, à família, aos gêneros, às classes. A estrutura dos romances memorialistas e das crônicas de Machado está baseada na relativização da anormalidade através de um narrador comprometido com sua origem de classe, exercendo mais uma de suas perversões (o comando despótico da narrativa) e, ao mesmo tempo, graças ao resultado oferecido ao leitor, explorando os retratos distribuídos por todos os segmentos de classe, sem poupar ações de seus representantes. O conselheiro Aires, personagem ao qual temos acesso por meio do romance de 1904, Esaú e Jacó (narrado em terceira pessoa) e que se desdobra para narrador no formato de diário em Memorial de Aires, de 1908, pode ser visto como o narrador machadiano mais esmerado nos romances, enquanto o narrador da série A Semana atinge o melhor nível de elaboração nas crônicas. Ambos se destacam por disfarçarem a exagerada voluntariosidade com muita circunspecção, esta que nos faz acreditar na seriedade do discurso e que levou incautos leitores a confundir o pensamento desses sujeitos com os do autor real. A circunspecção sobrava a Aires e faltava a Bentinho, narrador de Dom Casmurro (1899), romance em que Machado explora a forma de narrativa subjetiva que praticava desde a composição das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880). Como sabemos, o romance é narrado pelo advogado Bento Santiago, sexagenário e respeitável herdeiro de uma família de posição do século XIX. Esse senhor acredita que sua esposa, já falecida no momento da composição do livro que reconstitui suas memórias, teria traído o dedicado marido. Além de justificar a traição, a narrativa recompõe os fatos de modo a deixar o leitor ciente de que a menina Capitu já arquitetava planos de deixar o apertado vestido de chita e desejava usar luxuosos chapéus graças à ascensão social promovida pelo casamento. O cálculo da menina da ‘casa ao pé’ aparece em diversas passagens do romance, temperado pela prosa sedutora do filho de dona Glória, como neste comentário exemplar:

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hipotético de me mandar para a Europa, Capitu, se pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera. Tal era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação de empenho, da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. Rejeitou tio Cosme, era um "boa-vida", se não aprovava a minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendê-la. Prima Justina era melhor que ele, e melhor que os dous seria o Padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra a Igreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação... — Posso confessar? — Pois, sim, mas seria aparecer francamente, e o melhor é outra cousa. José Dias... — Que tem José Dias? — Pode ser um bom empenho. — Mas se foi ele mesmo que falou... — Não importa, continuou Capitu; dirá agora outra cousa. Ele gosta muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há de vir a ser dono da casa, mostre que quer

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 67

e que pode. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser elogiado, D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é isso; é que ele, tendo de servir a vocês falará com muito mais calor que outra pessoa. — Não acho, não, Capitu. — Então vá para o seminário. — Isso não. — Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; façam que lhe digo. Dona Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se então o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez há dous meses D. Glória não queria e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se? — Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes. — Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous... Ande, peça, mande. Olhe, diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São Paulo. Estremeci de prazer. S. Paulo era um frágil biombo, destinado a ser arredado um dia. em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometi falar a José Dias nos termos propostos. Capitu repetiu, acentuando alguns como principais; e inquiria-me depois sobre eles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de água a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minúcias para que melhor se entenda aquela manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Gênesis, onde se fizeram sucessivamente sete. (Assis, 1992, pp. 829–830)

No melodrama tradicional ou na comédia de costumes do século XIX já apareciam algumas questões sociais, o que certamente continua a acontecer na ficção posterior, incluindo o cinema. Contudo, os novos cineastas de meados do século XX não se satisfaziam com as soluções melodramáticas e procuravam representar experiências históricas utilizando modelos diferentes, com tendências mais analíticas – esse cinema, com raras exceções, além de ressaltar a diferença entre cinema popular e cinema crítico, sentiu muita dificuldade de comunicação com o público, o que levou boa parte dos realizadores a retornar às fórmulas convencionais e aos esquemas dramáticos tradicionais (Xavier, 2003, p. 131). Alguns resultados atestam a eficiência de mercado, a competência do formato e do conteúdo, graças à capacidade de certos filmes na denúncia de verdades encobertas, na representação da realidade de cada país. Guardadas as proporções, a minissérie Capitu investe nas duas frentes, como se devesse manifestar uma herança que resultasse na linguagem audiovisual nova e ao mesmo tempo pudesse conservar a essência melodramática que faz boa parte dos brasileiros se recordar do enredo em que o viúvo supostamente traído rememora sua história de amor. Publicado em 1899, Dom Casmurro conta em 148 capítulos uma história reconstruída por um homem de classe alta mergulhado em suas memórias após desistir de escrever sobre jurisprudência, filosofia, política e depois de abandonar a pesquisa para compor uma “História dos Subúrbios”. Ele supostamente nos revela a sua história a partir do presente de que compartilham a velhice e um final de século, voltando ao passado da sua infância e adolescência e conduzindo o enredo por meio dos acontecimentos envolvidos pelo cenário da casa materna, na presença de seus comensais, passando pelo namoro e o casamento com a vizinha Capitu, a amizade com Escobar, até revelar o ciúme e a suspeita do narrador de ter sido traído pela esposa e pelo amigo. Compõem a trama diversos episódios monitorados pela primeira pessoa: o nascimento do filho Ezequiel, a morte de Escobar, o afastamento da esposa, do filho e o desaparecimento de ambos. Ao final da narrativa, voltamos ao presente do sexagenário solitário, com inúmeros exemplos de narrativa autorreflexiva, em que “o estilo se corrige a si próprio”, dissecando a expressão, muitas vezes com uma autoironia (Stam, 1981, p. 69) passível de interpretações diversas que incluem a manipulação da verdade pelo narrador e, noutro extremo, as especulações sobre o autoengano. De qualquer forma, a presença do narrador é fortemente marcada pelo seu tom de comentário em todo o livro.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 68 GABRIELA KVACEK BETELLA

O papel de Bentinho na série Capitu muda de lugar, como se liderasse o coro das personagens ou anunciasse cada cena. No entanto, ele preserva a função explicativa e condutora absoluta. Essencialmente, a postura do narrador concebido em 1899 e a do corifeu1 forjado em 2008 representam parte de um comportamento autoritário e conservador, digamos “preso à sua classe e a algumas roupas” e, não bastasse isso, “sem problema resolvido, sequer colocado”, se é possível torcer os versos de Carlos Drummond de Andrade2 para definir a ausência de uma genuína confissão de mea-culpa em Bentinho. Observamos que a trama se inicia em 1899, com o solitário viúvo a explicar o título do livro que escreve, cuja origem estaria na alcunha dada recentemente por um jovem poeta ofendido com a soneca do velho enquanto lhe recitava versos durante um curto percurso de trem. A cena é narrada na abertura do livro e transposta para a série de Luiz Fernando Carvalho com ajustes que valem alguns comentários. O final do primeiro capítulo do romance explica como a alcunha vingou sob tolerância do apelidado, hábil em tirar proveito do que poderia ser humilhante e em perverter o sentido em favor da manutenção do domínio da situação. Bentinho suaviza o nome de etimologia controversa e se apropria de um novo caráter oferecido pelo alto título honorífico:

No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você."--"Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo."--"Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça." Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. (Assis, 1992, p. 809)

O casmurro faz questão de hierarquizar suas relações: próximo dele, com o direito de convidá-lo utilizando o epíteto por escrito estão os amigos da cidade, mais distantes são os vizinhos fofoqueiros e muito longe, incapaz de novo contato, está o inventor do apelido, colocado em seu devido lugar e esvaziado de força crítica. Como se dissesse algo parecido com a expressão-título da canção de Johnny Alf, “o que vem de baixo não me atinge”, Bentinho manipula o que poderia ser uma afronta e a transforma em elemento importante dentro das relações de subordinação instauradas em todo o romance. Esse jogo aparentemente ingênuo traduz uma atitude típica de Bentinho e de sua gente. Na verdade, o texto é regido por um movimento consciente, que minimiza a importância de um acontecimento e manipula o seu significado. Ao contrário do que se afirma sobre a fúria ciumenta e histérica do narrador, reacesa nesse momento, o motor quizilento é tremendamente racional. O primeiro capítulo da série dirigida por Luiz Fernando Carvalho transforma o encontro entre Bento Santiago e um poeta de trem numa manifestação revoltada do moço que não tem a atenção do vizinho de assento no vagão de subúrbio. A alcunha aqui é

1 No século VI a.C., na Grécia, surge o primeiro ator quando o corifeu Téspis destaca-se do coro e, avançando até a frente do palco, declara estar representando o deus Dionísio. O personagem mostrado na série televisiva assume a postura do que teria sido o primeiro passo para o teatro como o conhecemos hoje. 2 Referimo-nos ao poema “A flor e a náusea” e, sobretudo, ao sentimento aludido pelo poeta mineiro. O narrador machadiano não se confessa inadaptado, não retira a máscara para revelar a face descomposta pelas mudanças em seu contexto.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 69 pronunciada em tom desafiador e ofensivo, com gestos exagerados de manifestante. Na nova versão, o confronto de gerações é ousadamente mais explícito que no romance. Há uma operação curiosa envolvendo forma de narrar e conteúdo de significados: o casmurro continua apático e o rapaz verborrágico, no entanto este passa de subordinado pelo discurso de Bentinho a insolente, desrespeitador dos mais velhos, revoltado com a falta de consideração... O registro audiovisual dá voz e gesto a quem não pôde responder ao casmurro livresco, colocando o protagonista em situação vexatória real e, por que não dizer, situando-o em novos tempos em que seu domínio parece menor. Se a intermídia apresenta o elemento visual fundido conceitualmente com as palavras, no dizer de Dick Higgins (1984), contudo, a minissérie relê Machado e mantém a arrogância de Bentinho, e ainda se dispõe a arriscar uma vingança sobre o protagonista no resultado da recepção produtiva, enfiando o velho senhor num decrépito trem de subúrbio a ouvir insolências.

2. Revisando Dom Casmurro

Em 2008, o centenário da morte de Machado de Assis despertou vários meios para produções que envolveram a obra do escritor. A minissérie Capitu foi uma das realizações mais ousadas, com uma concepção bastante original, envolvendo cenário teatral, figurinos com inspiração barroca, nuance romântica e uma linguagem que conseguiu adequar passagens literais do romance à montagem e às interpretações rebuscadas. Uma trilha sonora incrivelmente variada misturou Giuseppe Verdi a Jimi Hendrix, Tchaikovsky ao metal de Black Sabbath, Carlos Gomes a Janis Joplin, Debussy a , Brahms a The Sex Pistols. Grafismos e elementos visuais como as cartelas de intertítulos para anúncio de capítulos, fotos e filmagens antigas, recursos de montagem intercalada de cenas e demais elementos são outros ingredientes que atravessam a narrativa visual, muito analisada por trabalhos acadêmicos competentes, que ressaltaram desde as relações intersemióticas com o romance de Machado de Assis, até o caráter pós- moderno e o diálogo com o Neobarroco. Mais que um exercício de adaptação e contemporização de um dos mais famosos romances da literatura nacional, contudo, a série televisiva pode ser analisada como uma proposta de revelação em cores destacadas do projeto literário machadiano. No contexto desta pesquisa, tivemos longos embates a discutir os conceitos que melhor eluciariam a relação entre as obras de Machado de Assis e Luís Fernando Carvalho. Atravessamos os estudos interartes, as teorias da intermidialidade, da adaptação e chegamos até às discussões que revisam as próprias bases dos conceitos, como o pensamento original de Irina Rajewsky (2010) que, ao considerar a concepção ampla de intermidialidade, lembra que ela procede da suposição de fronteiras tangíveis, especificidades e diferenças entre as mídias – portanto, toda referência à intermidialidade presume uma fixação de limites entre as mídias em contato. No entanto, Rajewsky ressalta que a questão das fronteiras midiáticas discerníveis é cada vez mais debatida, deixando o conceito de intermidialidade em averiguação. Além disso, vários fenômenos podem ser designados como intemidiáticos, provavelmente desde os manuscritos com iluminuras, a ópera, até a adaptação de obras literárias para o audiovisual, os quadrinhos, a ekphrasis revisitada, a escrita cinematográfica. Normalmente, fala-se em cruzamento de fronteiras entre os “meios” para a produção de uma nova forma, porém essa concepção não foi eficaz para contemplar os fenômenos que julgamos mais próximos de “complexas mudanças energéticas e sinergéticas envolvidas na migração trans-mídia” (Stam, 2008, p. 41). Sendo assim, passamos a utilizar um conjunto teórico que mais se aproxima da ideia de abordagem transartística, hábil ao trazer à luz novas formas de relacionamento

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 70 GABRIELA KVACEK BETELLA entre a literatura e o audiovisual, quando nos deparamos com o potencial de incorporação das artes pelo audiovisual, partindo do discurso literário. É possível demonstrar, portanto, que a transcriação3 de Dom Casmurro em Capitu reafirma aspectos da linguagem e da visão de mundo que se contrapõe sutilmente a uma lógica da elite brasileira, sem pretensões de superá-la, porém deixando a marca da inteligência perturbadora. A minissérie dirigida por Luiz Fernando Carvalho possui efeitos de representação muito contundentes, a começar por um Bentinho patético, alquebrado, desfeito e fantasmático que recompõe sua história e nos conta delícias e desgraças por meio da encenação de alguns capítulos de sua vida. Logo de início, somos apresentados à imagem da degradação através de um sujeito ridicularizado, como se as cenas devolvessem ao texto uma verdade escondida. No âmbito da trama do romance, o movimento de contraposição ao domínio da classe de Bentinho pode ser visto na ascensão dos representantes das classes sem meios privilegiados de origem – seguida pelo infortúnio que provoca a morte da personagem Escobar, o self-made man, e a manobra em nome do bom-tom que resulta no afastamento da heroína Capitu, menina pobre que se torna uma Santiago com o casamento, um meio possível para uma mulher de meados do século XIX melhorar de vida. Capitu consegue, ao menos por bons anos de sua vida, aquilo que foi tão desejado por Helena, e ao mesmo tempo impedido para Estela e Eugênia, embora tenha sido conseguido por Iaiá e Guiomar, para citar algumas das protagonistas machadianas. Se a inteligência e o cálculo de Capitu e Escobar ameaçam ou não a pose da elite, o que temos é a tentativa de disfarce de uma desestabilização no romance de Machado de Assis. Na minissérie, Bentinho é representado de modo a sugerir sua decadência, em parte causada pela perturbadora relação com a moça de Matacavalos. Neste momento, nossos interesses se contaminam com uma proveitosa expansão de diretrizes de estudo. Ao retomar as conclusões da pesquisa e especialmente as análises de determinadas cenas de Capitu, nosso percurso continua ganhando, se não pela qualidade da investigação, ao menos pela inestimável liberdade de apreciar uma transcriação envolvendo diferentes linguagens, prática crítica e criativa, além de nova proposta de leitura. Desse modo, pudemos exercer na pesquisa o que (2015) afirma sobre a proporção entre sedução e dificuldade, que se impõe sobre a transcriação:

[...] quanto mais difícil ou mais elaborado o texto poético, mais se acentuaria aquele traço principal da impossibilidade da tradução. No caso da recriação, dar-se-ia exatamente o contrário: “quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. (Campos, 2015, p. 85)

Seria desnecessário afirmar que tal proporção nos redime de qualquer acanhamento e nos faz discordar com a posse do texto machadiano por uma linha de pesquisa ou enfoque crítico, que tantas leituras e posturas acadêmicas estabelecem. Nesse sentido, a continuidade desta pesquisa foi cada vez mais libertadora.

2.1. Transcriando frutas e cascas

Na produção audiovisual que transcria Dom Casmurro em 2008, a direção de arte cumpre um projeto cuidadoso, cujas fontes de inspiração podem ser vistas como assimilações criativas de alto nível. Para definir a visualidade do romance de Machado, elementos de luz, cores, texturas e espaços caracterizam as cenas e formam um conceito visual que se

3 Utilizamos neste e em outros trabalhos o termo criado por Haroldo de Campos (2015), evitando ao máximo termos mais generalizantes.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 71 combina com o roteiro num concerto modernizante, cujo resultado estético pode ser apreciado por amostras significativas da minissérie, como nas cenas que pretendemos analisar. Nosso objetivo é revelar em que medida o ponto de vista é modificado ou reforçado pelo audiovisual, noutras palavras, podemos demonstrar como a encenação de Capitu e seu próprio ponto de vista revisa o foco narrativo de Dom Casmurro, cujo texto é regido por um movimento consciente, que minimiza a importância de um acontecimento e manipula o seu significado. Ao contrário do que se afirma sobre a fúria ciumenta e histérica do narrador do romance, reacesa no momento em que pretende acertar as contas de sua vida, o motor quizilento é tremendamente racional. Se, por um lado, a leitura corre o risco de perdoar os excessos do narrador (incluindo sua verve melodramática ao representar sua realidade), por outro também pode captar a astúcia da dissimulação no discurso. Nos dois casos, é possível ver força literária. Quanto à capacidade de reprodução da matéria social, ou seja, de conteúdos repletos de preconceito de classe, de exercício de poder, de zombaria, vale circunstanciar a leitura para evitar identificações entre a recepção de Machado no início do século XX e no início do século XXI. A proposta renovadora da adaptação teledramatúrgica do romance surpreende, pois aparentemente se livra da discussão sobre o compromisso ideológico firmado entre os conteúdos da obra e seus espectadores. Inclui uma linguagem audiovisual capaz de mesclar elementos novecentistas e contemporâneos, dialoga com vários gêneros teatrais (desde os mais elitizados como a ópera, até os mais populares como o melodrama, a farsa, teatro de bonecos, mambembe, etc.), com o cinema antigo e recente, pontua cenas com referências atemporais e escolhe uma trilha sonora que, embora não tenha sido composta para a série, apresenta alguns momentos de interesse, como a canção-tema da personagem Capitu4, cuja melodia reaproveita ritmos da Europa Oriental, como uma espécie de empréstimo de acordes típicos de canções ciganas, especialmente vindos de instrumentos específicos, aparentemente perfeita para a personagem-título da série, descrita como “cigana oblíqua e dissimulada” na definição consagrada por José Dias, o agregado que se esforça talvez ainda mais que Bentinho na manutenção de certa ordem familiar. Curiosamente, tanto a definição quanto a insistência em reforçar características enganadoras da filha do Pádua escondem um tipo de manifestação preconceituosa que atravessou os tempos, o livro e os espaços. Portanto, a canção que se tornou tema promocional da série corre o risco de sedimentar uma hostilidade étnica – Capitu era quase uma cigana – que cresce quando entra em cena a jovem atriz Letícia Persiles, com seus grandes olhos verdes, seus pés descalços e seu vestido semiarmado, na sua primeira aparição na série. A ambientação das primeiras cenas de Capitu, por sinal, reflete bastante a cenarização e figurinos de certos filmes de Emir Kusturica, especialmente Underground, mentiras de guerra (Podzemlje, 1995) e as cenas do casamento, sobretudo a atmosfera de sonho em que se movem os personagens, ainda que sob uma farsa na película do diretor sérvio. A dimensão cigana também vem emprestada de alguns momentos de Vida cigana (Dom za vesanje, Emir Kusturica, 1988), longa-metragem cuja origem é a série televisiva de cinco horas de duração. A trama desta produção, assim como a de Bentinho, é uma espécie de ‘formação às avessas’ e uma das cenas marcantes é o sonho do jovem protagonista, de

4 A canção do gênero Indie Folk é Elephant Gun, do grupo norte-americano Beirut, cujo líder, Zachary Francis Condon, ou simplesmente Zach Condon, é autor de todas as faixas gravadas no EP (Extended Play) Elephant Gun, de 2007. Natural do estado do Novo México, nos EUA, Condon aprendeu a tocar vários instrumentos, entre os quais o acordeão, o ukelele, o trompete e o bandolim, presenças obrigatórias em certas melodias folclóricas, especialmente da música cigana. O álbum Gulag orkestar (2006) é declaradamente resultado das influências que o líder do grupo teria recebido dos filmes de Federico Fellini, dos metais tocados em funerais sicilianos e da música dos Bálcãs, sobretudo de Goran Bregovic.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 72 GABRIELA KVACEK BETELLA forte conotação sexual, que envolve dois adolescentes durante uma celebração tradicional. Além das imagens tocantes, a música penetrante da trilha sonora composta por Goran Bregovic – que compôs para Underground5 – também nos dá uma impressão de influência indireta, pois o músico bósnio está muito presente na fase inicial do grupo Beirut, quando Elephant Gun é composta. Bentinho revela no romance seu apego ao passado, sua vontade de expor episódios constrangedores, sua autocomiseração, sua falsa modéstia, sua displicência na escrita e seu desprezo pela intelectualidade, e ao mesmo tempo menciona que havia desejado restaurar sua adolescência, portanto, desejara reescrever a própria vida, refazer o caminho, repetir o passado. Não há como confiar plenamente numa narrativa como essa, que não faz o mea-culpa e se utiliza de gestos confessionais para ‘driblar’ a falta de arrependimento. O narrador parece demonstrar a serenidade dos velhos que desejam compartilhar sua experiência igualando-se aos seus leitores, porém vai tecendo a mais genuína manifestação de ego desmedido e de imenso egoísmo. Contudo, podemos aprender algo com este senhor, ao menos no âmbito da forma literária, se pudermos notar os procedimentos melodramáticos a contaminar o discurso, recalcando a realidade, enquanto se arma uma “tragédia sem sangue” e se enfatiza a boa fé do narrador e seu heroísmo sobrevivente. A revelação das verdades é responsabilidade da leitura, que precisa perceber o giro em falso e imaginar a engrenagem. De certo modo, esta é a ideia da produção da Rede Globo enquanto leitura do romance. O ângulo limitado de visão como efeito nefasto da subjetividade do romance se mantém na série televisiva no sentido de deixar claro que o narrador/condutor não pode relativizar as posições das personagens da sua história, incluindo o seu posto de marido traído. Caso pudesse relativizar, Bentinho enxergaria erros, maldade e corrupção de valores nos outros e nele mesmo. Por isso prefere o espírito nostálgico e conservador, sem interesse pelo “mundo lá fora”, ou pelas modificações que a vida lhe oferece. Esse narrador mostra, no presente de sua narrativa (e de seu espetáculo encenado) que não mudou. Portanto, o Bento do Engenho Novo já existia no Bentinho de Matacavalos – coisa que o narrador não admite e muito menos lamenta, ao contrário do que faz quanto a equação é parametrizada por Capitu. Algumas atitudes do menino permanecem no adulto que reconstrói a casa da mãe e no condutor das cenas, ambos dispostos a “atar as duas pontas” e a se bater para chegar ao sentido da vida, tentando conciliar a alegria do passado vivido e a melancolia do presente num momento derradeiro, a proximidade da morte. Mesmo que se divirta com a nova versão de Bentinho decrépito e possa se vingar da arrogância do narrador do romance com a sua versão televisiva, o espectador ainda deve repensar as intenções de um sujeito que expõe suas lembranças em forma de representação operística. É possível acreditar na encenação de um delírio (corroborado pela postura do protagonista, encarnado por Michel Melamed à maneira de um Dom Quixote pós-moderno)6 como busca da verdade. Se pensamos no confinamento espacial7 e no controle de marcação teatral, podemos concluir que há uma transposição visual do caráter restrito do ponto de vista e dos acontecimentos. Se Bentinho continua casmurro

5 Além dos três filmes de Kusturica cuja trilha foi assinada por Bregovic, o músico bósnio compôs para muitos filmes, mas entre os mais conhecidos no Brasil estão Kika (Pedro Almodóvar, 1993), A rainha Margot (La reine Margot, Patrice Chéreau, 1994) e Trem da vida (Train de vie, Radu Mihaileanu, 1998). 6 À parte da interpretação overacting do jovem ator, a postura de homem fraco, esquálido, de voz enrouquecida se contrapõe às descrições de Bentinho de seus hábitos à altura de suas seis décadas bem vividas, “comendo e dormindo bem”. 7 A série é encenada num ambiente que reproduz um teatro abandonado, repetindo de certa forma a solução cenográfica de Hoje é Dia de Maria (Luiz Fernando Carvalho, 2005), em que a história se passava numa redoma visível, semelhante às miniaturas natalinas cobertas pelo vidro circular.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 73 nesta adaptação, sua reclusão é traduzida aqui pela exposição dos limites de sua competência, notoriamente reduzidos a um velho teatro. Se a escolha do cenário decadente traz problemas para o tom da narrativa que, originalmente, reconstitui um passado redentor, por outro lado, a degradação do espaço refere-se à velhice e ao ensimesmamento do narrador, que não contempla, em momento algum, qualquer coisa fora dos seus domínios carcomidos. Aqui o audiovisual encontra uma transposição ajustada, por conter uma nota crítica, embora as cenas de rua percam um pouco o sentido. No entanto, elas se compõem na minissérie através de objetos de cena e cenários notoriamente ambientados como teatro de rua ou espetáculo improvisado, mantendo o caráter artificial e arranjado, como se pudessem mostrar o que acontece fora dos domínios do narrador como uma encenação produzida pelo seu delírio, interpretada pelas mesmas personagens que encenam na casa. A rua se mantém, desse modo, como uma continuidade da casa.

2.2. Para novas transcriações

A partir do terceiro capítulo do livro, a ação do romance se desloca para o passado e para Matacavalos, espaço da infância e adolescência de Bentinho. Sob o comando do narrador memorialista e somente através de sua recordação, de seu discurso e seleção de cenas, como acontece nos romances desse gênero, passamos a saber o que se passou na casa de Dona Glória. Essa perspectiva parcial foi uma escolha acertada de Machado de Assis, pois ela sustenta a ambiguidade que perpassa o livro todo. A transposição para o audiovisual manteve o narrador na condução dos fatos, muito embora tenha perdido algo da ambiguidade, preço pago pelo showing, já que o ponto de vista de Bentinho é deslocado para a posição de corifeu, enquanto os fatos aparecem objetivamente. A série televisiva representa não somente um modo reconfortante escolhido pelo narrador como comparação ao andamento de sua vida (“a vida é uma ópera”, ele repete com veemência), mas também espelha o domínio sobre os fatos e suas marcações oferecidos ao espectador. Assim, o grau de subjetividade consagrado pelo modo machadiano em Dom Casmurro8 pode ser “desmascarado” se prestamos atenção em algumas cenas de Capitu nas quais a adaptação mostra seu caráter de recepção produtiva. Não se pode esquecer de que além de escrever suas memórias o narrador concebido por Luiz Fernando Carvalho encena, monta e atua de acordo com o seu interesse. Descobrimos o mapeamento de atitudes no viés de métodos operísticos, com dramatizações eficientes na série. Vale a pena destacar a sequência correspondente aos capítulos III, IV e V do romance, em que o agregado José Dias confabula com Dona Glória a respeito do namorico de Bentinho e Capitu. A tradução da “denúncia” é quase literal, assim como a descrição da entrada de José Dias na vida da família. O que nos parece importante nas cenas é a inserção do círculo familiar obedecendo um balé coreografado de acordo com as falas das personagens, respeitando a influência momentânea de cada um sobre a dona da casa, proprietária de tudo e mantenedora de todos.

8 Vale lembrar que Machado apurou este modo de narrar nos três romances escritos após 1880: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), Dom Casmurro (1899), Memorial de Aires (1908), atento para a utilização da primeira pessoa disposta a emprestar o prestígio alcançado pela narrativa memorialística durante os séculos XVIII e XIX. Com onisciência limitada, a narrativa em primeira pessoa traz, por outro lado, forte impressão de veracidade, graças ao fundamento de revelação, ao ato confessional a que o narrador se submete, desfiando sua vida e, normalmente, tentando aproximá-la aos acontecimentos da vida de seus leitores. Temos a sensação de que o que acontece com o memorialista poderia ter acontecido conosco e, muitas vezes, tomamos partido do ponto de vista.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 74 GABRIELA KVACEK BETELLA

Cada membro desse pequeno sistema organizado ao redor do poder dá sua fala ao mesmo tempo em que utiliza o genuflexório trazido para a devota Dona Glória. Assim, revezam-se de acordo com a importância de suas opiniões para a avaliação dela, reproduzindo os círculos da parentela sutilmente definidos no romance, especialmente ao longo da primeira parte do livro. O dinamismo do balé encenado na série de Luiz Fernando Carvalho traduz a competição dos membros pela atenção do centro do poder, além de acrescentar o efeito visual necessário para refletir a bajulação e a sustentação da estrutura. O corifeu mantém-se destacado da representação e nenhum comentário acerca da hierarquia aparece. A objetividade dos gestos e a permanência dos “fiéis” em devoção à “santa Glória” dizem tudo. A cena pode atestar que sutilezas objetivas do narrador machadiano podem existir e se manifestar em favor de uma leitura que acredita nele – com algumas restrições, contudo. Vale dizer que o excesso de precaução com o narrador/corifeu pode mascarar forças representativas importantes. Uma conclusão mais simplória finalizaria o tópico comparando o casmurro do romance de Machado a um bacharel bem-nascido, calculista e obcecado pela reputação, enquanto o casmurro da série de Luiz Fernando Carvalho não passaria de um ser quase irreal, atemporal, preso a uma espécie de transe provocado pela eterna perturbação da traição, que só pode ser contada em delírio. O narrador de Machado revive o passado num tempo em que acredita convencer seu leitor da integridade de sua história. O narrador de Capitu precisa chamar mais a atenção, então oferece o “espetáculo” de suas lembranças, sabendo que seus recortes partem de um ponto de vista restrito. Bentinho escreve o livro para entender o que viveu, talvez para tentar explicar porque sua vida terminou assim, no vazio. Então se fecha no mundo das recordações, pois o passado parece mais interessante que o presente. Parte para conhecer o sentido da vida, mas não é capaz de dar nem ouvir conselhos em nenhum momento da jornada. Só consulta os próprios sentimentos – e talvez não tivesse mesmo com quem contar. Talvez por isso o resultado é extremamente duvidoso. Bentinho não nos conta tudo, ele arma uma narrativa para justificar a sua vida. Nas palavras de Roberto Schwarz (1997), estamos diante de um narrador cheio de credenciais, mas privado de credibilidade. Por motivos justificados pela sua própria formação de rapaz instruído e bom filho, é um personagem pouco exemplar, cuja experiência só ensina de modo contrário. Não ensina como devemos ser e agir, mas como não devemos ser. Ele termina o livro sem sabermos se a melancolia que motivou a escrita era verdadeira ou se foi fruto da imaginação exacerbada, assim como chegamos ao final de Capitu desconfiando da verossimilhança do espetáculo anunciado pelo corifeu. O leitor moderno não se espelha nos heróis do romance como poderia se espelhar nos heróis épicos que eram exemplares ainda que errassem, já que os deuses justificavam tudo. Os heróis de romance, dos quais Bentinho é um dos mais representativos, encarnam a experiência da desilusão, e mostram em que não devemos nos mirar, como não devemos ser e, talvez por isso, mostram como nós somos. Com Bento Santiago, a situação é bem particular: o representante da classe privilegiada pode ser desmascarado, pois

(...) os excelentes recursos vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição a mais para a civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura cultural da opressão de classe. Longe de ser a solução, o refinamento intelectual da elite passa a ser uma face – com aspectos diversos, positivos e negativos – da configuração social que o romance saudosamente relembra, ou desencantadamente põe a nu. (Schwarz, 1997, p. 13)

Na leitura de Luiz Fernando Carvalho, parte-se do princípio de que uma decadente figura do século XIX tem imaginação suficiente para reviver o passado em grande estilo.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 MACHADO DE ASSIS EM MINISSÉRIE 75

O espetáculo-narrativa (ou delírio) idealiza pessoas e acontecimentos, porém deixa marcas mais evidentes (na cenografia e nos figurinos, especialmente) da parcialidade da narrativa e do caráter das personagens. Não por acaso, Bento aparece nas últimas cenas recoberto por elementos de outras personagens: brincos de Dona Glória, maquiagem e roupas de Capitu, cavanhaque de Escobar, terço de prima Justina – roupas, adornos, adereços e caracterização alheios exteriorizam a falta de si mesmo, conforme o próprio narrador adiantara nas cenas iniciais. Em momento propício para a sociedade brasileira refletir sobre si mesma, no qual os parâmetros de classe parecem se dissolver, sublimando diferenças que ainda persistem, a adaptação audiovisual reflete sobre o quadro dissecado por Machado no romance. Com essa atitude, revitaliza alguns dilemas sociais que podem afetar o desenvolvimento nacional e, nesse sentido, toma posição quanto às exigências da produção cultural, levando em conta o diálogo com novas formas de encenação e discurso no audiovisual, bem como atende necessidades de discussão sobre tendências estéticas e de representação, motivando o debate sobre o contexto ao qual se referem as manifestações culturais.

REFERÊNCIAS

Aguiar, J. A. (2001). Sob as ordens de mamãe: Aspectos da pedagogia doméstica em Dom Casmurro. In V. Bosi, C. Campos, A. Hossne, I. Rabello (Eds.), Ficções: leitores e leituras (pp. 151–173). Cotia: Ateliê.

Assis, J. M. M. (1992). Obra Completa. (Vol.1). Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

Brooks, P. (1995). The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, melodrama and the mode of excess. New Haven: Yale University Press.

Campos, H. (2015). Da transcriação. In Transcriação (pp. 77–104). São Paulo: Perspectiva.

Carvalho, L. F. (Guionista), Marinho, E. (Guionista) & Carvalho, L. F. (Realizador). (2009). Capitu [Filme]. Rio de Janeiro: Globo Marcas.

Higgins, D. (1984). Intermedia. In Horizons: The poetics and theory of the intermedia (pp. 18– 28). Carbondale and Edwardsville: Southern Illinois University Press.

Kusturica, E. (Guionista), Mlhlc, G. (Guionista) & Kusturica, E. (Realizador) (1989). Vida cigana [Dom Za Vesanje] [DVD]. São Paulo: Versátil.

_____ (Guionista), Kovaevic, D. (Guionista) & Kusturica, E. (Realizador). (1995). Underground [Podzemlje] [DVD]. São Luís: Lume Filmes.

Rajewsky, I. (2010). Border talks: The problematic status of media borders in the current debate about intermediality. In L. Elleström (Ed.), Media borders, multimodality and intermediality (pp. 51–68). Palgrave: Macmillan.

Schwarz, R. (1997). A poesia envenenada de Dom Casmurro. In Duas meninas (pp. 7–41). São Paulo: Companhia das Letras.

_____ (1990). Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010 76 GABRIELA KVACEK BETELLA

Stam, R. (1981). O espetáculo interrompido: Literatura e cinema de desmistificação. (Trad. José Eduardo Moretzsohn). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

_____ (2008). A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da adaptação. (Trad. Marie-Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves). Belo Horizonte: Ed. UFMG.

Xavier, I. (2003) Melodrama ou a sedução da moral negociada. In: O olhar e a cena (pp. 85-99). São Paulo: Cosac & Naify.

_____ (2003). Cinema político e gêneros tradicionais: A força e os limites da matriz melodramática. In O olhar e a cena (pp. 129–141). São Paulo: Cosac & Naify.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.63–76. eISSN: 2184-7010

PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? ROSALÍA DE CASTRO NA FICCIÓN AUDIOVISUAL E AS SÚAS MARCAS DE IDENTIDADE

CAN WE TALK ABOUT A TRANSMEDIAL ROSALÍA? ROSALÍA DE CASTRO IN AUDIOVISUAL FICTION AND ITS IDENTITY MARKS

IOLANDA OGANDO* [email protected]

Rosalía de Castro, cerne do canon literario galego, coñeceu unha fortuna moi irregular na súa transmutación de figura autoral en símbolo, pois sendo unha efixie cultural indiscutida, a súa centralidade implicaría o esvaemento de moitas das súas actitudes e conviccións. Este contraste entre recoñecemento e descoñecemento produciuse en moitos ámbitos, entre eles o audiovisual, sector onde o proceso de construción da imaxe da escritora ocupa un lugar significativo e ao mesmo tempo case irrelevante se temos en conta a súa difusión entre o gran público. Como veremos, este contraste reflicte as contradicións que o tratamento da figura rosaliana tamén coñece noutros campos. Por esta razón, examinar a pasaxe do relato vital e literario de Rosalía ao audiovisual desde as achegas das narrativas transmediais pode proporcionar máis luz no arduo proceso de configuración do símbolo rosaliano e, con el, de toda a cultura galega.

Palabras-chave: Rosalía de Castro; transmedialidade; Contou Rosalía; audiovisual galego

Rosalía de Castro, at the core of the Galician literary canon, knew a very irregular fortune in her transmutation from an authorial figure to a symbol, as long as being an undisputed cultural effigy, her centrality would also imply the oblivion of many of her attitudes and convictions. This contrast between recognition and unfamiliarity has appeared in many areas, including audiovisual productions. In this sector the process of configuration of the writer's image occupies a significant place, and at the same time it has been nearly irrelevant, if we take into account its limited impact into larger audiences. The contradictions occurring when the figure of Rosalía is presented in other fields can also be seen in audiovisual productions. For this reason, the exam of the passage of Rosalía's vital and literary story to the audiovisual mode from the contributions of the transmedia narratives, can shed light on the laborious process of construction of Rosalía's image and, through it, of the Galician culture as a whole.

Keywords: Rosalía de Castro; transmediality; Contou Rosalía; Galician audiovisual media

Data de receção: 2020-02-21 Data de aceitação: 2020-03-26 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2530

* Profesora Titular, Universidad de Extremadura, Área de Filologías Gallega y Portuguesa. Grupo de investigación CILEM, Cáceres, España. ORCID: 0000-0001-7895-454X. 78 IOLANDA OGANDO

1. Introdución: o interese da Rosalía de Castro para os estudos transmediais1

Rosalía de Castro (1837–1885) é un símbolo incuestionábel da Galiza: iniciativas como as que promoveron a denominación do aeroporto de Santiago de Compostela2 e mais dunha estrela na constelación de Ofiúco,3 a aceptación do Día de Rosalía, e ligado a el, a elaboración do Caldo da Gloria4 son algúns dos dispares sinais que acreditan que a escritora padronesa demostrou “una potencia y versatilidad como epónimo de primer orden” (Cabo Aseguinolaza, 2019, p. 146) e que é a “escritora galega por antonomasia” (García Negro, 2008, p. 135). Con todo, esa mesma omnipresencia implicou que a súa evocación ficase sometida á interpretación de cada xeración ou grupo de interese. Precisamente, o aumento na investigación rosaliana a partir de 1980 puxo de relevo o paradoxo entre a centralidade canónica da escritora por un lado e, polo outro, a marxinación que a súa personalidade e a súa creación sufriron durante moito tempo, o que explica que aínda hoxe siga sendo válida a afirmación de que Rosalía segue “abríndose aos nosos ollos como un territorio descoñecido” (Rábade Villar, 2011, p. 15). Nesa intersección entre a relevancia e o terreo que aínda resta por explorar, ábrese o campo ás obras audiovisuais que “escenifican” a Rosalía de Castro como personaxe. Esas dramatizacións, no sentido aristotélico de imitación operante e actuante, amosan puntos de vista, seleccións e escollas que nos axudan a afondar no que sabemos sobre a evolución dos procesos de figuración da imaxe rosaliana e da súa utilización, en canto símbolo nacional, nas conformacións identitarias galega e española. Neste terreo, as perspectivas metodolóxicas fornecidas polas teorías tecidas arredor dos fenómenos inter e transmediais poden enriquecer a avaliación da tradución da icona rosaliana ás artes espectaculares. Esta lectura seguramente revelaría moitos puntos de coincidencia entre os trazos da súa pegada nos media e, dunha banda, as pasaxes transmediais máis ‘ortodoxas’, analizadas nos estudos sobre storytelling, e doutra os máis ‘modernos’ dentro das narrativas transmediais (NT). Pero pódese advertir igualmente esta complementariedade en sentido contrario, xa que as investigacións sobre transmedialidade poden atopar suxestivas liñas de investigación cando se aproximan ao tratamento do canon literario e á análise do significado dos procesos de adaptación, hibridación e reelaboración na formación da identidade cultural. No caso do canon galego contamos co ensaio de Pereira Bueno (2014) sobre as imaxes de Rosalía, de carácter estático, reais e recreadas, que é unha moi interesante descrición e lectura do tratamento que experimentaron ao longo da

1 Este é resultado das investigacións levadas a cabo no proxecto Recuperación del Patrimonio Teatral III. Relaciones internacionales y traducciones, dirixido por Laura Tato Fontaíña (Universidade da Coruña) e financiado polo Ministerio de Ciencia e Investigación do Goberno de España entre 2017 e 2019. Co código FFI2016-76297-R, o proxecto tivo financiamento europeo a través dos fundos FEDER (AEI/FEDER, UE). 2 Pode verse unha boa lectura da proposta no traballo de Cabo Aseguinolaza (2019, pp. 147–149). 3 Pode verse máis información sobre a campaña internacional na web creada para o efecto pola International Astronomic Union http://www.nameexoworlds.iau.org/, na entrada da Fundación Rosalía de Castro https://rosalia.gal/unha-estrela-en-ofiuco-chamada-rosalia-de-castro/ ou na sección de Ciencia elaborada por Marcos Pérez Maldonado en La Voz de Galicia o 22 de xaneiro de 2019. 4 Nos días en que estamos a acabar este artigo, anúnciase a repercusión que este ano tivo a elaboración da receita a partir do poema rosaliano, realizada en máis de 200 estabelecementos segundo explican na entrada https://rosalia.gal/que-facemos/proxectos/caldo-de-gloria/.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 79 súa historia; e xa máis recente, unha breve pero interesante síntese do tratamento da icona rosaliana nos últimos anos en Rábade Villar (2018b, pp. 166–168). A lectura das representacións elaboradas arredor da súa figura no ámbito audiovisual antóllase unha empresa de igual esforzo, pero sen dúbida fascinante. Partindo desa crenza, e sen esquecer as perspectivas dos estudos imagolóxicos e dos estudos sobre a nación, sempre reveladoras para a investigación sobre estas recreacións, contamos cunha boa rede de conceptos e técnicas para analizar o corpus audiovisual en que Rosalía aparece como personaxe. É o caso concreto do telefilme Contou Rosalía (CR), traballo fílmico da responsabilidade de Zaza Ceballos, directora, e Raúl Veiga, guionista, que abordaremos máis adiante. Concibido como miniserie de dous capítulos, o telefilme foi estreado o 16 de maio de 2018, co gallo da celebración do Día das Letras Galegas e, con certos matices que comentaremos ao longo do artigo, podería ser cualificada como a primeira ficción audiovisual producida sobre a autora, en galego e con formato longo, aínda sendo conscientes de que este primeirismo é, en si, un sinal de alerta, como veremos logo. Detérmonos no proceso de produción, presentación e recepción de CR revelará aspectos interesantes sobre as concepcións e resultados con que a autora padronesa foi interpretada (no sentido máis lato da palabra) e, xa que logo, continuará nos vieiros abertos pola investigación rosalianista máis recente.

2. Da intermedialidade ás narrativas transmediais para o exame da imaxe de Rosalía no audiovisual galego

Se consideramos que a intermedialidade é a (capacidade de) pasaxe dunha determinada obra artística a outro medio ou soporte, deberemos entendela como un proceso que se estuda na literatura, no teatro e no audiovisual bastante antes da chegada dos medios dixitais, como sinalaba Rajewski (2005, pp. 44 e 50). A profesora da Universidade Libre de Berlín sitúa a adaptación coma un dos eixos esenciais desta potencialidade intermedial, un proceso de hibridación non só trazábel na literatura, senón en todos os soportes:

Just as a literary text can evoke or imitate specific elements or structures of film, music, theatre, etc., so films, theatrical performances, or other media products can constitute themselves in various complex ways in relation to another medium. (Rajewski, 2005, p. 57)

De feito, a evolución dos medios audiovisuais e/ou dixitais, e con eles, das teorías sobre intermedialidade e transmedialidade, evidenciou a persistencia da adaptación e a intertextualidade como “piedras angulares” deses procesos de pasaxe entre soportes (Rosendo Sánchez & Sánchez Mesa, 2019, p. 337). Advertindo sobre a necesidade de non esquecer “la dimensión histórica y cultural predigital de las migraciones de temas, mitos, personajes y mundos ficcionales o no de unos a otros medios”, Sánchez-Mesa (2019, pp. 16-17) volve afirmar no seu máis recente volume sobre narrativas transmediais (NT) que a adaptación, punto clave para diferenciar os achegamentos aos fenómenos transmediais, tiña que ser entendida dunha maneira máis abranxente, “como toda operación de transfer cultural”. Por conseguinte, seméllanos moi suxestiva a proposta de vermos na transmedialidade o potencial, previsto ou non, de transitar entre medios mediante elaboracións complexas e variadas, que atinxen diversos niveis (Grande, 2019, p. 192), un fenómeno universal que se produce en diversas épocas con variada intensidade a través da “tendencia, inherente a la transmisión e historia de la comunicación cultural, de determinados contenidos, temas, mitos o personajes a aparecer en distintos medios o lenguajes”

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 80 IOLANDA OGANDO

(Rosendo Sánchez & Sánchez Mesa, 2019, p. 343). Sendo así, a adaptación para estes dous autores acollería

…un conjunto de prácticas muy amplio, que puede y debe abarcar aquellas definidas o descritas con otros términos como “versión”, “expansión”, “compresión”, “secuela”, “precuela”, es decir, todo el dominio abarcado por la transposición diegética (Genette, 1982) o la transducción (Dolezel, 1986). (Rosendo Sánchez & Sánchez Mesa, 2019, p. 338).

As narrativas transmediais (cos seus procesos de adaptación, hibridación e expansión dos mundos ficcionais) pemiten unha nova ollada que complementa a nosa percepción da presenza, relevancia e canonicidade dunha determinada figura ou texto literario, tanto nos múltiples e varios soportes que existen hoxe en día como nos que seguirán a aparecer. Neste sentido, se grazas a elas podemos examinar o alargamento do universo narrativo dun determinado contido ficcional, as NT parecen ferramentas moi axeitadas para investigarmos e comprendermos as novas recreacións que van ampliando os mundos de Rosalía de Castro. Por outro lado, no caso da pasaxe transmedial da autora e da súa obra, seméllanos que tamén nos poderemos beneficiar da nova ollada que Jan Baetens reivindicou nos seus últimos traballos: a pasaxe transmedial de contidos non ficcionais. O investigador da Universidade Católica de Lovaina considera necesario que haxa espazo para outras abordaxes das prácticas transmediais que non sigan as pautas das franquías das grandes produtoras (Baetens, 2019, p. 264). Na súa opinión, a transmedialidade na non-ficción sería un bo exemplo, constituíndo un ámbito cuxo interese non radica no exame dunha fronteira nidia entre os dous ámbitos, algo que de feito non existe, senón e sobre todo, na posibilidade de comprobar se entre uns e outros casos existen formas e funcións específicas, derivadas do estatuto ontolóxico de orixe (se ben tamén nestes casos “el tratamiento creativo de los hechos supone que el storytelling es un aspecto crucial” (Baetens, 2019, pp. 266–267)). Neste ámbito, debemos volver ás ensinanzas que, tanto as investigacións sobre ficción histórica coma as análises imagolóxicas, teñen asentado en décadas de estudo sobre a expresión das realidades colectivas nas artes, proceso onde o esvaemento entre realidade e ficción é característica esencial. Para alén de lembrar a famosa consideración da Poética aristotélica sobre o diverso funcionamento da verdade e da verosimilitude nas obras artísticas, guante adoito recollido polos diversos teóricos que estudaron a literatura histórica, tamén a perspectiva imagolóxica salienta como as representacións de argumentos e caracteres teñen que ver cun set de convencións, cunha achega convencionalizada que se apoia nunha serie de lugares comúns que adoitan estar fóra do texto (Leerssen, 1991, p. 166) e que, sexa como for, estabelecen relacións de contraste, reforzo ou ruptura coas expectativas do público, porque, como afirma o investigador da Universidade de Amsterdam, “'character' is partly a matter of reputation rather than identity.” (Leerssen, 1991, p. 169). Nun traballo posterior sobre a historia e o método da imagoloxía, o investigador holandés puxo de relevo que eses topoi se artellan grazas a unha praxe discursiva de cariz intertextual (Leerssen, 2007, p. 27), de tal xeito que nesas recreacións artísticas dos lugares comúns achamos outra ponte cos estudos sobre os universos transmediais. No caso do telefilme analizado neste traballo, trátase dun produto ficcional de carácter histórico que recrea unha personalidade tan recoñecida como Rosalía de Castro, polo que partilla cos fenómenos transmediais modernos a relación estabelecida entre a acción e os coñecementos previos dos espectadores, e dá lugar a significativas análises dos mundos posíbeis e das novas “liñas narrativas” que se lles engaden aos relatos existentes (Rosendo Sánchez & Sánchez-Mesa, 2019, p. 347).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 81

Por outro lado, Rosalía tamén ten en común cos fenómenos transmediais contemporáneos o seu carácter de branded content, como se comproba coas diferentes vías de consumo da figura rosaliana, con exemplos no institucional e no puramente comercial: quer como personaxe recreada, quer como debuxo, imagotipo, etc., é unha das iconas a que máis se recorre á hora de facer un reclamo calquera, tal como demostran, entre outros, os traballos de Pereira Bueno (2014, p. 9) ou Cabo Aseguinolaza (2019, pp. 157 e ss). En consecuencia, pensamos que un dos eidos máis suxestivos e fecundos para continuar a investigar sobre Rosalía é o do seu carácter transmedial, con especial atención á relación entre o canon literario e as novas expresións que gaña na súa asociación aos novos medios, na liña que, por exemplo, explora Abuín (2019, p. 100) a respecto de William Shakespeare e a súa presenza recontextualizada na cultura contemporánea, especificamente nos GIFs animados, ou de Núñez-Sabarís (2019, pp. 55, 57 e ss.) cando pesquisa sobre os rastros do Quixote na famosa serie Breaking Bad. Se tomamos en conta esta orientación, teremos máis ferramentas para afondarmos no coñecemento da súa adaptación en diversos soportes ao longo da historia.

3. Rosalía de Castro: a ‘estranxeira na súa patria’ que se tornou centro da súa cultura

Rosalía de Castro gozou e goza dunha centralidade cultural que lle conferiu o status de icona recoñecida tanto por especialistas e amadores da literatura como, sobre todo, por un público moito máis amplo do previsto para os consumos literarios da historia da literatura, ao punto de que case calquera habitante da Galiza coñeza o seu nome, a súa efixie e até os seus máis famosos versos. Hoxe sabemos que Rosalía puido ocupar múltiples espazos sociais e discursivos grazas á súa capacidade para se tornar un “paraugas” simbólico ao que se acolleron diferentes interpretacións e intereses (Núñez Seixas, 2014, pp. 805–811), confirmando deste xeito o carácter fundacional outorgado pola crítica (a comezar polo labor do propio Manuel Murguía) e posibilitando que unha autora cuxa poética era antifundacional (Rábade Villar, 2011, pp. 183–184) e subversiva (López Sández (2008, s/p) se tornase cerne do canon da nova literatura, ou, nas expresivas palabras de García Negro (2008, p. 136), “epicentro da marxinalidade”. Como máis recentemente volveu apuntar Rábade Villar (2018, p. 21) a autora tivo que acoller e soportar un pasado e un futuro “aun cuando los hechos de su biografía y no pocos pasajes de su obra parezcan desmentir su idoneidad”. Velaí as raíces do funcionamento paradoxal de toda a figura rosaliana, o do decalage entre a súa omnipresencia, por un lado, e a visión reducionista con que se tratan moitas das características da súa obra, do seu pensamento ou das súas tomas de posición (García Negro, 2014, p. 268). De certo, unha das causas desta situación antitética entre (re)coñecemento e ignorancia radica nas estritas condicións impostas pola necesidade de convertela en símbolo corpóreo da nación galega aquén e alén mar, fose desde o sector que for (Alonso Nogueira, 1999, p. 63; Miguélez-Carballeira, 2013, p. 22; Núñez Seixas, 2014, p. 812). Con esta complexa operación de xibarización a que a súa memoria foi sometida, Rosalía foi, a pesar de todo, “estranxeira na súa patria” (Rodríguez 2011, p. 159; Vilavedra, 2012, pp. 54–58; González Fernández e Rábade Villar, 2012, pp. 18–20). No proceso de manipulación da memoria de Rosalía, non foron de menor importancia as dificultades para tecer a súa biografía, derivadas da falta de testemuños documentais. Sabemos que Murguía foi o primeiro e máis relevante axente no que resta do espolio

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 82 IOLANDA OGANDO rosaliano e na configuración da súa imaxe pública transmitida tanto aos seus coetáneos coma á posteridade (Rodríguez 2011, pp. 523, 587–588; Rábade Villar 2018a, p. 20). Esa transformación na figura autoral considerada máis apropiada por Murguía –seguramente como xeito de asegurar a aceptación e a persistencia dela como fundadora da literatura galega –, iníciase coincidindo coa relación sentimental entre ambos (Lama 2017, p. 288) e xustifícase na famosa pasaxe do capítulo de Los precursores:

Por más que la comparación sea vulgar, siempre se dirá de la mujer que, como la violeta, tanto más escondida vive, tanto es mejor el perfume que exhala. La mujer debe ser sin hechos y sin biografía, pues siempre hay en ella algo á que no debe tocarse. (…) Tiene en la tierra una misión de los cielos, y su felicidad debe consistir en llenarla sin vanagloria ni remordimientos. (Murguía, 1886, p. 176)

Un dos aspectos máis singulares desa explicación apuntouno Alonso Nogueira (1999, p. 53) ao sinalar que a afirmación de que a muller non ten biografía, “amais de facer expresa a implícita ollada masculina dende a que se artellan os seus textos, revela a ficticidade do relato biográfico”. Esta ficticidade, que se alicerza no devandito baleiro documental, deixou aberto un vasto campo para xurdiren as máis diversas interpretacións tanto no ámbito da investigación coma no da produción cultural. Como proba do recurso á suposición para encher os ocos biográficos, aínda en 2017, na presentación do seu magnífico estudo biográfico da primeira etapa vital de Rosalía, María Xesús Lama (2017, p. 15) explicaba que a súa era “unha biografía de Rosalía de Castro escrita por alguén que tentou comprendela e imaxinala desde un percorrido vital persoal…” (destacado noso). Unha breve análise de CR, permítenos ver rapidamente que este baleiro documental sería decisivo na maneira de encarar o guión por parte de Raúl Veiga, tanto na conformación da súa lectura histórica como na selección de acontecementos, textos e pensamentos da autora. En resumidas contas, a imaxe de Rosalía encontrou, por un lado, baleiros abondos para ser imaxinada e interpretada de varios modos, e por outro, unha aceptación e consenso tales na sociedade galega, que permitiu a súa elaboración desde diversos sectores. Así pois, se existe a posibilidade dunha pasaxe transmedial entre o relato da biografía rosaliana e outros medios, a marcada ficticidade da biografía facilita aínda máis ese trafego, aínda que tamén condicione a maneira de tratar a materia adaptada, como tamén ocorre en filmes mais recentes, dos que CR é un exemplo. Para alén diso, na imaxinación da figura rosaliana incidiu tamén outro aspecto relevante para a investigación verbo da súa pasaxe transmedial: o tratamento do seu aspecto físico, debate que pasou mesmo aos ámbitos académicos galego e español (García Negro 2014, p. 271; Miguélez Carballeira, 2014, pp. 175–176; Pereira Bueno, 2014, pp. 21–26), e ocupou un número de páxinas seguramente non aceptábel no caso de ser un persoeiro masculino. De aquí partimos para propor a nosa hipótese de traballo: que o transvasamento de Rosalía á ficción dramatizada no audiovisual (e tamén no teatro) se viu afectado polas implícitas e estritas condicións impostas no proceso de simbolización esencialista da Galiza a través dunha poeta muller. Consecuencia da apropiación e espallamento simbólicos da súa efixie, o esvaemento dos trazos máis “espiñentos” da súa biografía e da súa condición feminina –aspecto ao que se lle sumaba o debate sobre a beleza ou fealdade –, suporía que o re-tratamento imitativo do asunto a través dun obxecto “actuante”, no sentido aristotélico, presentase dúas dificultades: a interpretación da biografía e a corporeización efectiva, mediante a interpretación actoral, do mito en muller. En efecto, no documental Rosalía de Castro (Ceballos, 2018b), gravado pola mesma directora como contextualización de CR, trátase precisamente esta cuestión do desafío que supuña pasar a Rosalía ao audiovisual: Xurxo Lobato ou Anxo Angueira amentan o

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 83 respecto que causaba o tratamento de Rosalía, e este último engade unha idea que concorda coa nosa tese: “Temos medo de non saber tocar a tecla axeitada para que a xente asocie esa representación coa propia Rosalía.” (Ceballos, 2018b). No noso entender, é por causa dese respecto que o exame da personaxe de Rosalía de Castro transmediada mediante a linguaxe fílmica amosa os mesmos paradoxos sinalados polos xa referidos estudos sobre a autora na súa inserción e tratamento no seo da cultura galega; e asemade, evidencia unha evolución que se corresponde co propio proceso de recepción e canonización da escritora. Tentaremos comprobalo coa análise do máis complexo e rico exemplo de transmediación rosaliana: Contou Rosalía.

4. O audiovisual e Rosalía de Castro: apuntamentos sobre unha relación (ex)céntrica

Non é doado facer unha inventario completo dos títulos audiovisuais que teñen algunha relación con Rosalía, pero grazas aos traballos de García Martínez (1985), Peña Ardid (2013), Castro de Paz & Nogueira (2018), entre outros dedicados a repertoriar o cinema galego, así como o catálogo do Centro Galego de Artes da Imaxe (CGAI) atopamos máis de trinta referencias con argumentos relacionados dunha ou outra maneira coa escritora.5 Nese conxunto aparecen obras de moi diverso tipo, unhas que se basean en textos da autora e outras centradas na súa figura e que a tornan personaxe. Isto, de agardar en obras ficcionais, tamén acontece con programas televisivos que hibridan ficción e técnicas documentais, dos que seguramente o máis significativo exemplo é o capítulo dedicado a Rosalía na serie Paisaje con figura, emitido por TVE en xaneiro de 1985, con dirección de Mario Camus e guión de Antonio Gala. Malia este número e variedade tan aparentes, coidamos que Rosalía tivo unha fortuna irregular na súa pasaxe aos medios audiovisuais, froito dos paradoxos xa sinalados no tratamento da súa vida e obra. Mesmo sen contarmos a escasa rendibilidade da personaxe no audiovisual se a confrontamos con outros escritores canónicos, Rosalía continúa a ser unha autora bastante ignorada á hora de pensar na transmedialidade se a compararmos co éxito doutros creadores galegos en español como Valle-Inclán, Wenceslao Fernández Florez ou Torrente Ballester. García Fernández, xa en 1985, afirmaba que Rosalía de Castro era un dos autores máis adaptados (1985, p. 366); consideración que demostraba na sección “Los gallegos en el cine. Diccionario de nombres”, cun encomiábel apartado onde reúne unha primeira listaxe de títulos (1985, p. 513).6 Porén, revisada desde 2020, nesa relación atopamos proxectos hoxe en día descoñecidos ou moi dificilmente localizábeis. Sexa como for, nese conxunto non hai indicios de que algún dos títulos teña a Rosalía como personaxe, a excepción do referido programa de Antonio Gala. Do mesmo xeito, na lista publicada por Peña Ardid

5 Sería moi enriquecedor contar cunha relación exhaustiva das creacións audiovisuais “rosalianas” ao xeito da sección “Rosalía. Tema literario” da compilación bibliográfica de López e Pociña (1991). Infelizmente, nesta fundamental obra non hai referencias aos documentos audiovisuais rosalianos. 6 A lista elaborada por García Fernández contén 6 referencias audiovisuais sobre Rosalía (Enterrade o meu corazón as orelas do Sar de Emilio López Varela; Recuerdo de Rosalía de Castro, de Ismael González, Lembranzas da miña terra de Rafael Sabugueiro e Rosalía de Castro, de R. Varela); ou relacionadas coa súa poesía (Airiños da miña terra e Saudade de Guillermo de la Cueva e mais Galicia y Rosalía de Castro de Rafael Ballarín). García Fernández tamén menciona dous episodios das series El arte de vivir e Paisaje con figuras. Ademais tamén fala dun proxecto de Emilio Pérez Calviño que non fomos quen de atopar até agora.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 84 IOLANDA OGANDO en 2013, obviamente máis longa e completa,7 seguimos a observar que a maioría das producións son documentais e programas de carácter divulgativo, mentres a única dramatización da autora, para alén da aparecida en Paisaje con figura de Gala, sería a proposta en Novela. Rosalía de Castro, unha miniserie emitida en 1968 no conxunto do programa serial titulado Novela, dirixida por Cayetano Luca de Tena a partir do guión de Carlos Muñiz (Luca de Tena & Muñiz, 1968).8 Se non nos trabucamos, estamos perante a primeira dramatización de Rosalía efectivamente levada a termo, tanto no teatro como no audiovisual. Claro está, o contexto histórico e sistémico en que se grava e emite a serie condiciona as interpretacións vehiculadas a través da corporeización da autora e dos seus espazos, polo que mostra diferenzas radicais con CR, estreada cincuenta anos máis tarde. Neste sentido, o paradoxo máis significativo é o que observamos entre o peso da autora no catálogo audiovisual e o feito de que case todas as iniciativas sigan a ser consideradas fundacionais, incorporando a miúdo un enunciado do tipo “a primeira vez que...”, que serve, naturalmente, para salientar a importancia da recreación rosaliana que realizan. Isto nótase especialmente na presentación de CR, da que se afirma ser a primeira representación audiovisual de Rosalía e a primeira adaptación de El caballero de las botas azules (ECBA), cando en realidade xa había mostras previas realizadas na TVE. Esta consideración de novidade é sinal, por unha banda, da pouca atención dada desde algúns xéneros audiovisuais a Rosalía, e, por outro lado, do descoñecemento de moitos documentos audiovisuais previos, con evidente pouca repercusión mesmo tratándose da figura da gran poeta do canon literario galego.9

4.1. Contou Rosalía (2018): a Rosalía máis transmedial na historia da cultura galega

Dirixido pola produtora e directora Zaza Ceballos a partir dun guión escrito por Raúl Veiga,10 o telefilme CR, que podemos cualificar como o primeiro produto audiovisual de longa extensión, carácter ficcional e en lingua galega producido sobre Rosalía, chegou da man de dous nomes esenciais en varios dos oficios ligados ao sector: produción, xestión, dirección, escrita...

7 Na listaxe desta investigadora non aparecen os títulos de López Varela, Sabuqueiro ou R. Varela. En troca, recolle outros significativos, como a Pelerinaxe del “Patronato de Rosalía de Castro” (vid. nota 9), e outros documentos visuais realizados durante os anos 70 do século XX, onde a poesía rosaliana tiña unha presenza central ou, cando menos, significativa. Tamén resulta moi interesante que dedique un apartado á televisión, o que lle deixa espazo para referir as adaptacións de novelas da autora para series televisivas como Hora 11 ou Novela. Isto, sumado ao arco temporal que decorre até 2013, permítelle ter unha lista moito máis extensa (Peña Ardid, 2013, pp. 91–92). 8 Queremos aproveitar este apartado para agradecer a axuda, imprescindíbel para a elaboración deste artigo, de Beatriz Díaz Lorente e o Centro Galego de Artes da Imaxe (CGAI), que puxeron á nosa disposición os fondos audiovisuais relacionados con Rosalía de Castro existentes neste arquivo, e mais aos Arquivos de RTVE, que tras a solicitude de consulta, publicaron de maneira progresiva os capítulos que compoñen esta serie. 9 Un cambio significativo é o que se produce en 2000, coa reedición e divulgación do documental amador Pelerinaxe del «Patronato de Rosalía de Castro» aos lugares rosalianos e aitos orgaizados en homaxe da poeta o Dia de Galiza de 1951 en Santiago (dirixido por Antón Beiras nese ano de 1951 e re-editado co título Pelerinaxe lírica aos lugares rosalianos); e en 2018 coa publicación do capítulo dedicado ao audiovisual amador de Ledo Andión, no cal a investigadora e directora de cinema reclama de maneira definitiva un lugar central no desenvolvemento do audiovisual galego para o referido documental no que, claro, Rosalía de Castro ten un protagonismo absoluto. 10 Para unha presentación da relevancia de Veiga na historia do audiovisual galego e a súa vinculación coa lingua e coa cuestión nacional-identitaria, véxase Castro de Paz & Nogueira (2018, p. 189).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 85

O telefilme retrata o período de Rosalía en Madrid, cando a autora entrou en contacto con escritores e intelectuais de todo o estado e moi especialmente do país, como os irmáns Chao e, sobre todo Manuel Murguía. Grazas a unha condensación temporal que dilúe os limites cronolóxicos, o guión de Veiga (2018), e posteriormente a realización fílmica de Ceballos (2018), revélannos unha Rosalía que inicia a súa relación con Murguía, queda grávida, escribe Cantares Gallegos e mais ECBA. De todos os xeitos, a pesar da liberdade temporal levada ao extremo, mantén unha fidelidade salientábel respecto da ambientación histórica e os trazos esenciais da súa biografía persoal e literaria. Un dos aspectos máis salientábeis do filme desde un punto de vista transmedial é que o proceso de construción do argumento se basea en dous procesos básicos: a hibridación e a adaptación. A hibridación, que estaría xa presente mediante a unión do relato histórico de Rosalía e a licenza ficcional coa que o Veiga trata os contidos procedentes do relato biográfico, dóbrase, e en consecuencia, vira máis rica e complexa ao xunguir dous relatos diversos, tanto no contido como no estatuto ontolóxico: o da biografía rosaliana e mais o de ECBA, a novela onde o guionista procura a trama que lle permite retratar a visión de Rosalía sobre o ambiente madrileño da época. Poderiamos xa que logo falar de expansión transmedial, coa convivencia de personaxes ficcionais e históricas que entran en contacto e alongan o universo rosaliano de maneira coherente para, ao mesmo tempo, nos devolver unha nova visión do mesmo. Como se pode intuír con esta breve descrición, CR amosa tal complexidade que merece un estudo individualizado máis extenso onde dar conta do seu traballo de adaptación histórica, da intertextualidade, do proceso de adaptación de ECBA, con especial atención á feminización do Duque da Gloria e a androxinia da resultante Duquesa da Gloria, a ambientación histórica, etc. Neste traballo ímonos centrar só en dous deses aspectos: a lectura que se ofrece da súa biografía e a relación que a través dela se estabelece coa investigación sobre Rosalía de Castro, por unha banda; e pola outra, a repercusión mediática do filme. Queremos comezar esta análise polo segundo punto, xa que, por primeira vez, atopamos unha estratexia ben deseñada de difusión nos medios que, naturalmente, se viu favorecida polo feito de que a TVG fose coprodutora do telefilme. Contamos por iso cun significativo conxunto de noticias e entrevistas da televisión (vid. bibliografía), e sobre todo, co xa amentado documental Rosalía de Castro (Ceballos, 2018), estreado na mesma noite que o filme e que, con dirección, produción e guión da mesma Ceballos, nos ofrece as perspectivas coas que se encara a realización do filme e a escrita do guión, (Raúl Veiga é unha das voces senlleiras nas entrevistas realizadas).11 Mais, para alén diso, tampouco é de menor importancia contarmos co guión publicado, algo que, como o propio autor afirmaba na entrevista de 2017, non é habitual – daquela contaba con que o seu guión se perdería. Cremos que é abondo significativo que, fronte ao seu destino máis frecuente, que sería o esquecemento do guión, CR si fose acompañada da súa publicación, feito que amosa o carácter central da figura rosaliana e o interese mantido por moitas institucións, neste caso a Casa-Museo Rosalía, por todo o concernente a ela e á súa obra. Todos eses documentos resultan esenciais para comprender e situar a produción do filme, mesmo que, por veces, algúns datos aparezan de maneira confusa, como por exemplo, a data de escrita do guión, cuxa finalización Veiga sitúa arredor de 2014 (s/dir, 2017), mentres Ceballos o dá por redactado xa en 2010 (s/a, 2018, 05-12 e 2018, 05-16;

11 Veiga aparece entrevistado ao lado de Anxo Angueira, eminente rosalianista e, na actualidade, director da Casa-Museo de Rosalía; de Pilar García Negro, profesora e unha das investigadoras que máis esforzo dedicou á contestación das lecturas tradicionais e á procura da renovación da imaxe rosaliana; e de Xurxo Lobato, o afamado fotógrafo que nos últimos anos se ten dedicado a fotografar espazos e motivos rosalianos.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 86 IOLANDA OGANDO

Salgado 2018, p. 2). Porén, como diciamos, a preocupación que tanto a directora coma o guionista teñen por amosar os seus puntos de vista e intencións co filme son unha axuda inestimábel para comprender esta primeira produción longa no audiovisual galego. Xa que logo, algunhas das declaracións de Veiga semellan esenciais tanto para interpretar a súa proposta argumental como, sobre todo, para observar a relación que CR ten co estado da cuestión rosaliana. Así, vemos como na primeira das entrevistas emitidas na TVG (s/a, 2017) alude os problemas do baleiro documental que existe sobre a biografía rosaliana, factor fundamental a que volve referirse na entrevista para o documental, pois non só lexitima, senón que obriga a tratar a vida de Rosalía con imaxinación: considera que cómpre manter unha fidelidade esencial á época, pero séntese así coa liberdade para tratar os diversos momentos que caracterizaron a súa vida. Abordando agora o transvasamento da biografía, o segundo dos aspectos que queríamos analizar no desenvolvemento do filme, tanto Ceballos coma sobre todo Veiga, amósanse moi conscientes da manipulación á que foi sometida a figura rosaliana, polo que se esforzan en falar da novidade do seu tratamento, que fica ligado ás teorías de autoras e autores como, García Negro ou Pardo Amado, na medida en que estes, moi especialmente nos dous primeiros casos, se tornaron voces que reivindicaron o carácter combativo dos seus escritos, a súa independencia e o seu carácter heterodoxo fronte a lecturas que consideraban redutoras e interesadas. De todos os xeitos, tamén deberemos sinalar que, con excepción da investigadora da UDC, que tamén participa no referido documental, os outros dous investigadores non aparecen de maneira explícita. Emporiso, a referencia máis citada nestes programas achégaa Melania Cruz, a actriz que encarna a Rosalía, que alude en varias ocasións á axuda que na composición da súa personaxe lle ofreceu a máis recente biografía, publicada por María Xesús Lama (2017). Por suposto, con estas referencias como fonte, a lectura ofrecida da biografía rosaliana muda radicalmente respecto a outras dramatizacións anteriores, e a intencionalidade de tal cambio fica demostrada coa escolla temporal: en efecto, Ceballos xustifica esa elección por ser unha época máis documentada na biografía rosaliana (s/a 2018, 05-11, s/dir. 2018, 05-16); e tanto ela coma Veiga salientan que é o momento en que Rosalía está no seu máximo potencial – case lembrando a cita da didascalia inicial de Agasallo de sombras de Roberto Vidal Bolaño, segundo a cal vemos a autora cando “todo era aínda posible”– e polo tanto, nada se corresponde coa imaxe de “chorona” máis estendida entre o público xeral. En efecto, en CR atopamos unha Rosalía consciente do seu papel de muller e das dificultades e limitacións que tal condición implicaba, e belixerante e pouco disposta a someterse a eses condicionamentos. Veiga preséntanos a mensaxe transmitida por Rosalía en textos como Lieders (1858), o prólogo de La hija del mar (1859) ou Las literatas (1865), esenciais na defensa das mulleres e das mulleres escritoras (García Negro, 2014, pp. 275-277). Véxase, por exemplo, a interesante unión que Veiga fai na oitava escena (2018 p. 136) da musa andróxina (feminizada, como dixemos) de ECBA coas musas aludidas en Las literatas (Castro, 1993: 655–659), texto que retoma a imaxe do manuscrito atopado para denunciar, de maneira irónica, a realidade das mulleres que tentaban dedicarse á literatura na segunda metade do século XIX. Neste sentido, resulta aínda máis significativa a relevancia outorgada ao texto-manifesto Lieders, que se traslada ao filme mediante a unión dos seus tres parágrafos centrais co famoso final do prólogo de La hija del mar (“Porque todavía no les es permitido a las mujeres escribir lo que sienten y lo que saben”, Castro, 1993, vol. I, p. 48), e aparece declamado pola Rosalía personaxe na escena 9 do filme (Veiga, 2018, pp. 137–138) de xeito que xa case desde o inicio o guionista salienta a vertente feminista da autora.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 87

Ao mesmo tempo, atopamos unha Rosalía moito máis humana, entre outras cousas, por ser unha Rosalía “sexuada”, fermosa, admirada e pretendida; noutras palabras, unha muller que é obxecto do desexo de, cando menos, dous homes e que, aínda máis importante, tomará as súas decisións sen ningún indicio de submisión, como lle indica a Murguía perante a insistencia deste de casaren na escena 47:

En nome do amor cométense os maiores crimes. Como eu te amo, hei de me subxugar a ti. E se eu non me subxugo, é que non te amo. E se eu te amo tanto que me subxugo, desprézasme, porque xa me dominas e eu me desprezo aínda máis. É unha lóxica viciosa. Non pode haber amor sobre a base dunha submisión. Con matrimonio ou sen el. (Veiga, 2018, p. 178)

Podemos observar deste xeito que CR traduce ao audiovisual os enfoques biográficos máis renovadores sobre a figura rosaliana, e incide moi especialmente nos textos e momentos en que, como afirmaba García Negro (2014, p. 275), a autora marcou máis claramente o seu “carné de identidade simbólico” como muller e escritora.

Conclusión

Para concluírmos retomamos a nosa pregunta inicial: é posíbel falar dunha Rosalía transmedial? Sen dúbida, a resposta é afirmativa se temos en conta a mudanza de perspectivas, que permite estirar e crebar os limites das interpretacións tradicionais e demostra a necesaria normalización do símbolo rosaliano no imaxinario cultural galego. Como acabamos de ver, a presenza de Rosalía no audiovisual parece reproducir as mesmas contradicións que o tratamento da súa figura experimentou en moitos outros ámbitos da cultura e, mais especificamente, da historia da literatura. A centralidade da figura en varios produtos audiovisuais, diminuída pola escasa repercusión dos mesmos, tanto para os contemporáneos coma para o público posterior e, con el, para unha boa parte dos estudos rosalianistas, permítenos intuír as consecuencias dun tratamento que flutuaba entre a canonización dalgunhas facetas biográficas e literarias e a marxinalización doutras, nomeadamente as que abranguían o seu pensamento sobre as mulleres e sobre a nación galega. Mesmo cunha primeira análise, parcial e pendente dun estudo máis exhaustivo, é posíbel observar que na feliz experiencia de Contou Rosalía, Raúl Veiga no guión e Zaza Ceballos na realización fílmica construíron unha personaxe oposta case de maneira total ás lecturas e presentacións arredor da súa figura desde Murguía até os anos 80, mediante unha caracterización que claramente bebe das novas lecturas achegadas polo ámbito académico e o cultural nas últimas catro décadas. Así pois, CR traduce a mudanza nas crenzas e actitudes da audiencia, mudanza que, tal como indicaba Leerssen (1991, pp. 173-174), será a que definitivamente permita a súa corporeización nun determinado produto artístico, creando ou afastándose do tipo de convencións na sociedade destinataria do produto artístico. Por esta razón, se noutros ámbitos como a fotografía, os espazos memorialísticos, a casa-museo... é posíbel afirmar que o proceso de configuración da imaxe rosaliana é síntoma da transformación no proceso de conformación da identidade galega, cremos que se poderá afirmar que iso mesmo acontece no ámbito audiovisual. En efecto, esta primeira achega déixanos máis convencidas de que analizarmos as fortalezas pero tamén os puntos febles da pegada rosaliana no audiovisual, nos levará a comprobar que o estudo da transmedialidade rosaliana achega nova luz sobre a construción da identidade galega contemporánea. Por suposto, somos conscientes de que estas conclusións son aínda provisionais e quedan

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 88 IOLANDA OGANDO pendentes de achegas máis precisas e exhaustivas, que esperamos que poidan ser completadas en traballos futuros que afonden nos vieiros propostos no presente traballo.

REFERENCIAS

Abuín, A. (2019). Bucles no tan extraños: espectrografías shakespearianas en el universo GIF. In D. Sánchez-Mesa Martínez (Ed.), Narrativas transmediales. Las metamorfosis del relato en los nuevos medios digitales (pp. 85–105). Barcelona: Gedisa.

Alonso Nogueira, A. (1999). A invención do escritor nacional. Rosalía de Castro: a poeta e a súa patria. In R. Álvarez & D. Vilavedra (Eds.), Cinguidos por unha arela común: Homenaxe ó profesor Xesús Alonso Montero (tomo II). (pp. 41–64). Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela.

Baetens, J. (2019). Mundos narrativos de ficción y no ficción: Apuntes sobre las narrativas transmediales en cómics y fotonovelas periodísticos. In D. Sánchez-Mesa Martínez (Ed.), Narrativas transmediale:. Las metamorfosis del relato en los nuevos medios digitales (pp. 263–275). Barcelona: Gedisa.

Cabo Aseguinolaza, F. (2019). Memoria, (pos)lugar y biopoder en un thriller literario: “A memoria da choiva”, de Pedro Feijoo. In H. González Fernández, A. Calderón Puerta, D. Jarzombkowska & K. Moszczyńska-Dürst (Eds.), Memoria encarnada, género y silencios en España y América Latina. Siglo XXI (pp. 145–172). Sevilla: Instituto de Estudios Ibéricos e Iberoamericanos de la Universidad de Varsovia / Padilla Libros.

Castro, R. de (1993). Obras completas (tomos I–II). Madrid: Turner Libros.

Castro de Paz, J. L. y Nogueira, X. (2018). Cinema nacional-popular: de Fendetestas até A Esmorga. In M. Ledo Andión (Ed.), Para unha historia do cinema en lingua galega: Marcas na paisaxe (pp. 159–213). Vigo: Galaxia.

Ceballos, Z. (Produtor). (2018). Rosalía de Castro [Documental]. Recuperado de http://www.crtvg.es/tvg/a-carta/rosalia-de-castro-2

Ceballos, Z. (Produtor) & Veiga, R. (Guionista). (2018). Contou Rosalía. [Telefilme]. A Coruña: TVG.

García Fernández, E. C. (1985). Historia del cine en Galicia (1896-1984). A Coruña: La Voz de Galicia.

García Negro, P. (2008). Rosalía de Castro: a inauguradora da modernidade galega. Madrygal: Revista de estudios gallegos, 11, 133–136.

García Negro, P. (2014). O paradigma autorial de Rosalía de Castro: unha denominación de orixe. In R. Álvarez, A. Angueira, M. C. Rábade & D. Vilavedra (Coords.), Rosalía de Castro no século XXI: Unha nova ollada (pp. 263–282). Santiago de Compostela: Consello da Cultura Galega.

González Fernández, H. y Rábade Villar, M. do C. (2012). Una rueca en los brazos de un atleta. In H. González Fernández & M. do C. Rábade Villar (Eds.), Canon e subversión: La obra narrativa de Rosalía de Castro (pp. 9–24). Barcelona: Centre Done i Literatura / Icaria Editorial.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010 PODEMOS FALAR DUNHA ROSALÍA TRANSMEDIAL? 89

Lama López, M. X. (2017). Rosalía de Castro: Cantos de independencia e liberdade. 1837-1863. Vigo: Galaxia.

Leerssen, J. (1991). Mimesis and stereotype. In National identity: Symbol and representations. Yearbook of european studies, 4, 165–175. Amsterdam-Atlanta: Rodopi.

Leerssen, J. (2007). Imagology: history and method. In M. Beller & J. Leerssen (Eds.), Imagology: The cultural construction and literary representation of national characters (pp. 17–32). Amsterdam / New York:

López, A. y Pociña, A. (1991). Rosalía de Castro: Documentación biográfica y bibliografía crítica (1837–1990) (tomos I–III). A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa.

López Sández, M. (2008). A importancia dos fenómenos de recepción para o impacto social do texto literario. Dous casos paradigmáticos da literatura galega: Rosalía de Castro e Otero Pedrayo, Líquids, 2, s/p.

Luca de Tena, C. (Director) & Muñiz, C. (Guionista) (1968). Novela: Rosalía de Castro [Série televisiva]. Recuperado de http://www.rtve.es/alacarta/videos/rosalia-de-castro/rosalia- castro-capitulo-1/5453374/

Miguélez-Carballeira, H. (2013). Galicia, a sentimental nation. gender, culture and politics. Cardiff: University of Wales Press.

Miguélez-Carballeira, H. (2014). Rosalía de Castro: Life, text and afterlife. In H. Miguélez- Carballeira (Ed.), A companion to Galician culture (pp. 175–193). Woodbrige: Tamesis.

Murguía, M. (1886). Los precursores. A Coruña: Imprenta de La Voz de Galicia.

Núñez-Sabarís, X. (2019). “Relecturas posmodernas del Quijote en Breaking bad: Cultura de masas y democratización estética en la ficción serial”, Ogigia: Revista electrónica de estudios hispánicos 26, 53–71. https://doi.org/10.24197/ogigia/26.2019.53-71

Pardo Amado, D. (2009). Rosalía de Castro: A luz da ousadía. Ames: Edicións Laiovento.

Peña Ardid, C. (2013). Rosalía de Castro en el cine y la televisión. Video-filmografía. In L. Romero Tobar (Ed.), Temas literarios hispánicos (pp. 91–93). Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza.

Pereira Bueno, F. (2014). Rosalía de Castro: Imaxe e realidade. Vigo: Galaxia.

Rábade Villar, M. do C. (2011). Fogar impronunciable: Poesía e pantasma. Vigo: Galaxia.

Rábade Villar, M. do C. (2018a). Cuerpos desenterrados: Rosalía de Castro como santa cultural. CELEHIS: Revista del Centro de Letras Hispanoamericanas, 36, 16–28.

Rábade Villar, M. do C. (2018b). ¿Un asunto de estado?: Usos públicos de la memoria literaria. Tropelías: Revista de teoría de la literatura y literatura comparada, 4, 161-185.

Rajewsky, I. O. (2005). Intermediality, intertextuality, and remediation: A literary perspective on intermediality. Intermedialités, 6, 43-64.

Rodopi-Ledo Andión, M. (2018). O amador no cinema militante. In M. Ledo Andión (Ed.), Para unha historia do cinema en lingua galega: Marcas na paisaxe (pp. 81–105). Vigo: Galaxia.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, 77–90. eISSN:2184-7010 90 IOLANDA OGANDO

Rosendo Sánchez, N. y Sánchez-Mesa Martínez, D. (2019). Adaptación y transmedialidad: crítica de una oposición agotada. Pasavento: Revista de estudios hispánicos, VII (2), 335–352.

[s/a] (2017, xuño 2). Comeza a rodaxe para TVG da primeira ficción inspirada na vida de Rosalía de Castro. CRTVG viva. Recuperado de http://www.crtvg.es/crtvg/noticias- corporativas/comeza-a-rodaxe-para-tvg-da-primeira-ficcion-inspirada-na-vida-de-rosalia- de-castro

[s/a] (2017–2019). Contou Rosalía [páxina do Facebook]. Recuperado de https://www.facebook.com/contourosalia/

[s/a] (2018, maio 11). Televisión de Galicia presenta "Contou Rosalía", o primeiro filme sobre Rosalía de Castro. CRTVG viva. Recuperado de http://www.crtvg.es/crtvg/noticias- corporativas/a-television-de-galicia-presenta-hoxe-contou-rosalia-o-primeiro-filme-sobre- rosalia-de-castro

[s/a] (2018, maio 16). As redes sociais da TVG, pendentes da estrea de ‘Contou Rosalía’ na Televisión de Galicia. Telexornal serán. Recuperado de http://www.crtvg.es/informativos/as-redes-sociais-da-tvg-pendentes-da-estrea-de-contou- rosalia-na-television-de-galicia-3769231

[s/a] (2018, maio 12). A TVG estrea “Contou Rosalía”, o primeiro biopic de Rosalía de Castro. A revista fin de semana. Recuperado de http://www.crtvg.es/informativos/a-tvg-estrea- contou-rosalia-o-primeiro-biopic-de-rosalia-de-castro-3764303

[s/dir.] (2018, maio 11). 'Contou Rosalía', a primeira película sobre a sua vida, reflexa a sua etapa de moza en Madrid. Telexornal Mediodía. Recuperado de http://www.crtvg.es/informativos/contou-rosalia-a-primeira-pelicula-sobre-a-sua-vida- reflexa-a-sua-etapa-de-moza-en-madrid-3762285

[s/dir.] (2018, maio 14). Zaza Ceballos e Melania Cruz presentan 'Contou Rosalía'. ZizZag Diario. Recuperado de http://www.crtvg.es/informativos/zaza-ceballos-e-melania-cruz-presentan- contou-rosalia-3765413

Salgado, D. (2018, xuño 14). Zaza Ceballos: “Preocupábame se o guión de ‘Contou Rosalía’ era demasiado atrevido para a televisión”. Sermos Galiza, 300, 2–3.

Sánchez-Mesa Martínez, D. (2019). Introducción. Narrativas transmediales: oscilaciones entre la teoría y la creación transmedial. In D. Sánchez-Mesa Martínez (Ed.), Narrativas transmediales: Las metamorfosis del relato en los nuevos medios digitales (pp. 11–32). Barcelona: Gedisa.

Sánchez Mesa, D. & Baetens, J. (2017). La literatura en expansión: Intermedialidad y transmedialidad en el cruce entre la Literatura Comparada, los Estudios Culturales y los New Media Studies. Tropelías: Revista de teoría de la literatura y literatura comparada, 6–27. https://doi.org/10.26754/ojs_tropelias/tropelias.2017271536

Veiga Rouriz, R. (2018). Contou Rosalía [Guión cinematográfico do filme para TV]. Follas Novas: Revista de estudios rosalianos, 3, 130–183.

Vilavedra, D. (2012). Rosalía de Castro: Escribir desde la(s) frontera(s). In H. González Fernández & M. do C. Rábade Villar (Eds.), Canon e subversión: La obra narrativa de Rosalía de Castro (pp. 45–60). Barcelona: Centre Done i Literatura / Icaria Editorial.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 77–90. eISSN: 2184-7010

MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS: FIGURAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DO HUMANO NA LITERATURA E NAS SÉRIES TELEVISIVAS (A PARTIR DA POESIA DE LUÍS MIGUEL NAVA E DA SÉRIE BLACK MIRROR)

MONSTRUOSITIES AND BIOMORPHISMS: CONTEMPORARY FIGURATIONS OF THE HUMAN IN LITERATURE AND TELEVISION SERIES (FROM LUÍS MIGUEL NAVA’S POETRY AND THE SERIES BLACK MIRROR)

JOANA PALHA* [email protected]

O artigo terá um foco duplo de leitura crítica: a produção poética do autor português contemporâneo Luís Miguel Nava, analisada a partir de um corpus constituído por duas obras específicas, O céu sob as entranhas (1989) e Vulcão (1994), obras estas que serão colocadas em diálogo, a partir de uma abordagem comparatista intermedial, com a série televisiva britânica Black Mirror (2011), escrita pelo argumentista Charlie Brooker. Esta série será por sua vez alvo de análise a partir de três episódios: “Be Right Back” (2013), “Playtest” (2016) e “Black Museum” (2017). Assim, ressaltando noções teóricas centrais ao perfil dos dois campos mediáticos estudados, será explorado o tema da monstruosidade sob uma perspetiva contemporânea, dando relevo ao tópico do corpo. O artigo visa contribuir globalmente para um entendimento dos objetos literários contemporâneos em articulação com outros produtos da cultura de massas, como os televisivos, entre os quais se tecem cada vez mais nexos intertextuais alternativos.

Palavras-Chave: Black Mirror; corpo; intermedialidade; Luís Miguel Nava; monstro.

The article will have a double focus of critical reading: the poetic production of the contemporary portuguese author Luís Miguel Nava, analysed from a corpus constituted by two specific poetic works, O céu sob as entranhas (1989) and Vulcão (1994). The two compositions which will be put in dialogue, through an intermedial comparative approach, with the television series Black Mirror (2011), written by the screenwriter Charlie Brooker. This television series will be in its turn object of analysis from three episodes: “Be Right Back” (2013), “Playtest” (2016) and “Black Museum” (2017). Thus, highlighting intrinsic theorical notions in relation to the studied mediatic fields, the subject of monstrosity will be explored under a contemporary perspective, giving significance to the topic of the body. The article expects to contribute globally for an understanding of the contemporary literary objects in articulation with other products of the mass

* Investigadora Júnior, Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0003-0573-8082

92 JOANA PALHA culture, such as television, between which more and more alternative intertextual links are being weaved.

Keywords: Black Mirror; body; intermediality; Luís Miguel Nava; monster.

Data de receção: 02-12-2019 Data de aceitação: 08-04-2020 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2370

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS 93

Apesar de aparentemente muito distintos, ambos os objetos de análise aqui considerados admitem leituras dialogantes quer em termos temáticos, quer em relação às diversas conceções e representações da corporalidade humana ou para-humana que dão a ver, como procuraremos demonstrar. O objetivo do trabalho é o de propor uma perspetiva capaz de interligar a temática do corpo e da representação do sujeito pós-moderno, em diferentes médias, com uma linha de pensamento que passa pela teratologia. As metáforas e catacreses caracteristicamente navianas (cf. Vasconcelos, 2009) serão colocadas em diálogo, na nossa leitura, com as narrativas trazidas à superfície por Brooker, pois o argumentista britânico introduz o fantástico e o monstruoso em produtos de audiências massivas e globais. As séries televisivas atuais, tal como a literatura, mostram-se permeáveis a uma episteme pós-moderna marcada pelo hibridismo e pela diluição de fronteiras genológicas, sendo com frequência elevadas ao estatuto de produtos de culto, devido à incorporação de reportórios literários às suas narrativas intermediais. Luís Miguel Nava, em O céu sob as entranhas e Vulcão, parece-nos próximo dos três episódios da produção britânica Black Mirror, no sentido em que faz emergir na sua escrita ‘monstros’ e formas ‘em devir’, reequacionando a questão do sujeito fragmentado, desconstruído, paranoico e incomunicativo da pós-modernidade. Mau grado as diferenças entre poéticas e suportes mediais em causa, Luís Miguel Nava e Charlie Brooker implementam ambos percursos narrativos e identitários alienados, servindo-se, o primeiro, da subjetividade poética e, o segundo, da narrativa visual de Black Mirror, uma obra de ficção televisiva em muitos aspetos distinta do padrão tradicional, quer em termos de argumento, quer em termos de realização. Em ambos, porém, o leitor e o espetador são confrontados com figuras e relatos incomuns, acabando por ser envolvidos na linha cada vez mais ténue que separa a realidade da irrealidade, aceitando os dois mundos como possíveis.

Invólucro da nossa fisicidade, o corpo, foi alvo, desde sempre, de várias definições e fruto de alterações de paradigmas conceptuais, epistemológicos ou antropológicos, ainda que, de modo geral, seja visto como um sinal de integração do indivíduo na sociedade e no mundo. A complexidade corporal humana reflete-se nas suas mais diversas representações em diferentes áreas de estudo, nas quais facilmente se percebem ambiguidades e flutuações relativamente a ideais culturais estéticos ou políticos. Qualquer que seja a sua figuração, mais ou menos obediente a questões de semelhança e fidelidade ao real e à aparência, o corpo é indissociável da génese do indivíduo e imprescindível à sua existência biológica, funcionando como a sua marca orgânica. O sujeito contemporâneo, para se destacar do corpo social em que se insere, vai concebendo o seu corpo através de inúmeras singularidades. Necessita de um corte com tudo o que o rodeia, tem o desejo de uma nova identidade e quer sentir o seu corpo de forma única. Enfim, o homem deseja o fim de uma certa ordem e o poder de possuir e ‘assinar’ o seu corpo:

Le corps moderne est d’un autre ordre. Il implique la coupure du sujet avec les autres (une structure sociale de type individualiste) avec le cosmos (les matières premières qui composent le corps n’ont aucune correspondence ailleurs), avec lui-même (avoir un corps plus qu’être son corps). (Le Breton, 1990, p. 8)

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 94 JOANA PALHA

Assim, o ser humano enceta uma exposição corporal, que ganha relevo na época atual. A par desta interpretação nova do corpo, a estética do belo, deu lugar, em certos casos, a um renascimento de formas imperfeitas e desagradáveis ao olhar, ou seja, a uma estética da fealdade, enaltecida e valorizada, tanto pelo seu lado cómico como pela sua repugnância. O grotesco acordou para uma nova oportunidade, onde provou o seu valor e fascínio, igualando-se em impacto ao corpo belo e perfeito. Importa desde já pôr em relevo a diferença entre ‘monstro’ e ‘monstruoso’. O monstro emerge de dois modos distintos e configura um excesso de presença (Gil, 1994, p. 79) que transborda, fascina e inquieta; provoca um abalo para o qual não estamos preparados socialmente, abrindo as nossas fronteiras da perceção do humano. Já o monstruoso é um fenómeno no qual não existe um “choque frontal com a inumanidade de um corpo” (Courtine, 2015, pp. 298–299), pois está inserido e banalizado no universo do qual faz parte, mesmo que provoque ainda algum terror. O monstruoso refere, quase sempre, um conjunto de situações que já existem no mundo real, o que lhe dá uma compleição ainda mais extraordinária e inusitada, propondo alterações que transformam o ser humano quer a nível físico, quer a nível psicológico, pois o desejo de se metamorfosear vai começar na psique, sendo uma vontade que inevitavelmente acaba por se desenhar no próprio corpo, porque é lá que vai encontrar o meio libertador para tal. Na modernidade, na sequência de uma nova ideia de corpo como propriedade de um sujeito e não como dádiva transcendente, as refigurações metamórficas são frequentemente realizadas de forma consciente, seja por necessidade biológica, por mero adorno estético ou por uma vontade de transcender o corpo carnal e suas inúmeras limitações rumo a uma pós-humanidade. Um número progressivo de expressões artísticas e géneros híbridos contemporâneos, que recorrem à fusão de diferentes média, complexificaram os sistemas artísticos tradicionais e obrigaram-nos a um reequacionamento de conceitos teóricos e metodologias críticas capazes de os descrever e/ou classificar com suficiente pertinência e operatividade. Desta forma, nasce o recente conceito de ‘intermedialidade’, ou seja, a junção e interação entre vários meios, que abrange diferentes linguagens artísticas como a literatura, as artes plásticas, a fotografia, o teatro ou cinema, tendo, por vezes, uma aplicação ambígua. Segundo Claus Clüver, o intermedial é visto como “a comprehensive phenomenon that includes all the relations, topics, and issues” (2007, p. 32), quase um intervalo ou um devir que está presente em todo o pensamento humano e nas suas questões intrínsecas. Irina Rajewski salienta ainda que a intermedialidade é um veículo importante para expandir as fronteiras entre os meios, levando a uma hibridização que aponta para uma alta consciência “of the materiality and mediality of artistic (...) and of cultural practises in general” (2005, p. 44). Atentando ainda nas palavras de Jan Baetens e Domingos Sánchez-Mesa, vemos que a intermedialidade é um conceito que relaciona vários meios, mas que também se preocupa com a pluralidade interna desses próprios meios:

La intermedialidad, en definitiva, no es solo un término general que define las relaciones entre medios autónomos, sino que es también el término que identifica la pluralidad interna de cada medio e incluso, yendo un paso más allá, la mera condición de posibilidad de existencia de cualquier medio. (2017, p. 9)

Com este paradigma teórico, que leva a novas preocupações e interesses nos estudos literários, atualmente vários estudos se centram na teorização e categorização da

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS 95 intermedialidade, com o propósito de estabelecer conceitos e metodologias operativas sobre o mesmo conceito. Especialmente relevante é o estudo monográfico de Gil e Pardo (2018) que pretende construir uma categorização uniforme dos estudos intermediais, subdividindo a intermedialidade em interna, externa ou representada; dentro desta esfera intermedial nasce o conceito de transmedialidade, que segundo os mesmos autores “exige por tanto textos y obras diferentes en medios también diferentes, unidos por vínculos argumentales o actanciales directos” (2018, p. 32) cruzando, então, textos em vários meios. A abordagem comparatista intermedial, aqui apresentada, permite acercarmo-nos criticamente de uma forma de arte verbal ‘erudita’, a literatura, com a poesia de Luís Miguel Nava, e de uma produção audiovisual ‘de massas’, a série televisiva, com os três episódios de Black Mirror. Além da obra do poeta português e do argumentista britânico se poderem aproximar entre si, também denotam relações de intermedialidade e transmedialidade com outros meios, pois Nava é fortemente influenciado pelas obras do artista plástico britânico Francis Bacon, e Brooker, além de aludir ao meio literário, também apresenta referências ao meio cinematográfico e dos videojogos. Especialmente significativo é, neste sentido, o primeiro filme que constitui a quinta temporada da série, “Bandersnatch”, o qual embora se encontre fora do foco de estudo deste trabalho, é um exemplo de prática intermedial, pois alude e remete-nos, entre outras obras literárias, ao romance Rayuela, de Julio Cortázar; em Black Mirror o filme também se constrói, tal como o livro do escritor argentino, com uma narração interativa, em que o espetador pode optar por diferentes hipóteses a fim de continuar a história, mesmo se partindo de uma história relacionada com videojogos. A construção de universos autorreferenciais que se expandem através de diversos meios e narrativas exemplifica o interesse de um público, cada vez mais participativo, pelos denominados transmedial worlds, pois estes “ya sea respondiendo preguntas o planteando otras nuevas, avivan en la audiencia el deseo de continuar esas narrativas” (Martínez e Ortega, 2019, p. 27), pela sua originalidade, pois apresentam-se incompletas e dão uma nova configuração às personagens. Como temos vindo a constatar, há cada vez uma maior atenção às preferências e aos interesses do público. Como confirma Echauri-Soto (2016, p. 888), cada vez mais há uma nova proliferação de produtos e modelos que conquistam um determinado tipo de audiência fiel e participativa, contribuindo, assim, para um fluxo mediático constante. Neste sentido, a expansão do meio televisivo tem vindo a crescer e a universalização das narrativas televisivas deu azo a um público massivo; a qualidade das narrativas permitiu que a televisão conquistasse a sua autonomia artística, no exigente campo cultural. Por sua vez, as redes sociais e a enorme produção de blogs e sites sobre os produtos audiovisuais ou mesmo sobre um determinado espetáculo televisivo afloram e alargam- se, pois o espetador tem liberdade para escolher o produto disponível, criando novos hábitos, tornando-se, então, um consumidor a quem também é permitido produzir e reescrever algo em concomitância com o produto televisivo que está a consumir e, também, influir na escrita dos guiões, que não são alheios aos gostos da audiência:

Más que ninguna otra manifestación artística, las teleseries circulan por el ciberespacio a dos niveles simultáneos: el del consumo y el de la interpretación. Ambos confluyen en un tercer nivel posterior: el de la reescritura. Las audiencias de las teleseries son especialmente interativas. (Carrión, 2011, p. 28)

A ficção televisiva desponta como produto de culto, no momento da revolução digital massiva, ajudada por uma expansão global e uma nova geografia cultural, e conta com o contributo de algumas cadeias e plataformas audiovisuais influentes, como é o caso do canal de televisão Home Box Office, ou como é mais conhecido entre nós, HBO.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 96 JOANA PALHA

O exemplo mais paradigmático deste contexto é a plataforma televisiva Netflix, principal distribuidora da série Black Mirror. De uma empresa que realizava apenas entrega de produtos audiovisuais pelo correio, transformou-se, nos dias de hoje, e para além da sua integração em renomados festivais de cinema, na maior provedora global de filmes e séries de televisão via streaming, ou seja, por meio de uma tecnologia que opera na transferência de dados de forma virtual, para facilitar as conexões e dotá-las de maior rapidez. Segundo Alan Sepinwall “a flexible imagination is ultimately more important than a detailed series bible written before the pilot’s even shot” (2015, p. 4); este pensamento relaciona-se, claro, com a literatura contemporânea, pois esta influenciou a nova abordagem das séries de televisão, escolhendo a forte presença de temas fraturantes, onde o devaneio da mente é constante. O foco permanece na multiplicação de linguagens, bem como nos câmbios da representação artística. Obviamente, encontramos aqui um paradoxo com a tradição literária de contornos mais conservadores, muito resistente às mudanças argumentais, que consagrava uma estrutura serial mais rígida, em termos temporais e espaciais. A literatura, assim, pode entender-se como um sistema aberto. Carrión fala-nos a este propósito de uma ‘literatura em expansão’ (cf. Carrión, 2011) em que a tradição literária é um elemento potencial que fortalece a autonomia artística da ficção televisiva. O aparecimento de novos dispositivos tecnológicos, a fragmentação das audiências e a disponibilidade digital fizeram com que o meio televisivo também pudesse oferecer produtos de indiscutível qualidade narrativa e visual e um excelente modelo de negócio, o que permitiu, assim, que a televisão começasse a fazer parte do cânone cultural do século XXI. As figuras revestem-se, na sua construção, de uma liberdade que permite novas aberturas e indagações sobre o ser humano, elegendo-se personagens que interessam pela sua índole e psicologia, mais do que pela aparência, sem abalar os ideais firmados. No que diz respeito à estrutura narrativa, a ficção televisiva incorporou a complexidade própria da prática literária pós-moderna, fugindo da história plana e linear, tradicional dos argumentos de televisão. Assim, o tempo nem sempre é contínuo, permitindo uma narração fragmentada e irregular, que exige a cooperação de um espetador/leitor familiarizado com estes ritmos narrativos. Portanto, a televisão, como grande parte dos novos meios, levou a cabo uma importante democratização estética, levando a qualidade narrativa aos produtos de consumo massivo. Por isso, as narrativas televisivas são já vislumbradas como obras de arte que “têm vindo a criar formas próprias, modos seriais de organizar e articular imagens e sons” (Branco, 2019, p. 37) e, tal como a literatura, evoluem e adaptam-se de dia para dia na época pós-moderna caracterizada por novos imaginários sociais e culturais:

Los imaginarios sociales tienen como función (...) provocar la posibilidad de mirarse a sí mismo y encontrar su identidad. Una parte substancial de nuestra identidad proviene de la interacción con nuestro entorno sociocultural. Al igual que nadie puede mirarse plenamente a sí mismo, sino es a través de un espejo, los imaginarios sociales nos permiten autorrepresentarnos e autoidentificarnos. (Martínez, 2012, p. 16)

Dentro dos reportórios dominantes da narrativa pós-moderna sobressai a emergência da temática fantástica, da qual a poesia de Nava e as histórias de Black Mirror são um claro exemplo. A sua relevância nos atuais produtos culturais justifica o estudo comparado, tal como se antecipa na introdução, revelando a sensibilidade pós-moderna do público contemporâneo, à qual os criadores dos diferentes meios não foram indiferentes. Não

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS 97 obstante as significativas diferenças que existem entre Nava e Charlie Brooker, perfila-se em ambos uma série de personagens, figuras, espaços ou estratégias narrativas que atualizam os clássicos do fantástico, orientados para as práticas artísticas da pós- modernidade. No contexto de um discurso densamente lírico, os poemas em prosa são uma constante na obra de Nava, envolvidos por metáforas, catacreses e alegorias, carregados de uma forte dimensão visual, aos quais se une uma sintaxe ainda mais inusitada, com marcas descritivas surrealistas, numa “hipertrofia da dimensão do verso que o faz infletir para a frase longa” (Vasconcelos, 2009, pp. 157–158), em que as orações se interpenetram sucessivamente. Ainda nas palavras de dois importantes críticos literários portugueses, Luís Miguel Nava dá um sentido “da ordem do contingente, do interrompido e do inacabado” (Silvestre, 1997, p. 126) à sua poesia, pois esta “apresenta-se como uma ficção destinada a jogar com o infinito” (Martelo, 2004, p. 210), o que lhe reserva um lugar e um papel muito importantes no panorama da poesia contemporânea portuguesa. A sua escrita incita o leitor a todo o tipo de impressões e sensações, todas distintas e sentidas nas suas géneses particulares, desafiando-o a transgredir os seus próprios limites, a fim de uma compreensão mais íntima das figuras postas em cena pelo escritor. O fantástico, portanto, reorienta a natureza sobrenatural que outrora teve para se apresentar como uma estratégia narrativa fundamental para compreender os vacilantes universos pós-modernos. Tal como o mundo pós-moderno, o fantástico é um género que choca e confronta o real com a sua irrealidade. Neste sentido, David Roas realça que a narrativa pós-moderna é uma entidade independente e autossuficiente, ou seja, não necessita de um mundo já definido para existir (2011, p. 31), daí a sua total abertura à criatividade que a estética fantástica concebe. Podemos então falar de um fantástico pós-moderno, pois os novos reportórios incluem, apoiados em relações intermediais, hibridizações nas suas criações, apontando sempre para o individuo e a suas atitudes, como a poesia de Luís Miguel Nava e as narrativas televisivas de Charlie Brooker bem ilustram, com as suas figuras, personagens e espaços. O caminho até ao sublime é, assim, evocado, sendo esta a mudança que o grotesco deseja operar através de metamorfoses e distorções. O sublime emerge de um paradoxo, pois em algumas perspetivas, nasce de algo terrível e assombroso, só mais tarde provocando admiração e respeito. Esta ideia era já defendida pelas filosofias românticas de Edmund Burke quando ressaltava que “o terror é, em todo e qualquer caso, de modo mais evidente ou implícito, o princípio primordial do sublime” (1993, pp. 65–66) e de Friedrich Schiller (1997, p. 149) quando afirmava que o sublime se reveste de algum pavor. Experiência íntima do indivíduo, onde o inumano é exteriorizado no corpo de forma violenta, o grotesco é a transformação pela o qual o homem tem que passar para apreender melhor o mundo sensível que o rodeia, para, assim, chegar ao sublime. O processo é sempre doloroso. Contudo qualquer corpo, ultrapassando todos os limites, supera-se, marcado pelo excesso, e reestrutura toda a vida considerada ‘normal’, atingindo a tão almejada transparência e harmonia. Num primeiro momento, observámos que tanto as obras do poeta português como os episódios escolhidos da série televisiva, Black Mirror, se regem por uma forte dimensão grotesca do corpo. A pele tem primazia em relação ao esqueleto, tanto no humano como no inumano, pois, até neste último, mesmo se artificial, a pele adquire importância primordial, como órgão transitório que tenta escapar ao corpo, numa pressão de abertura e exposição das suas vísceras. A pele, em Luís Miguel Nava, é o veículo principal para que todas as suas figuras desafiem os seus limites; para isso, a carne é amordaçada ou

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 98 JOANA PALHA suspensa em ganchos, remetendo para um êxtase dionisíaco onde o excesso e o sublime imperam, como no poema “Matadouro” do livro O céu sob as entranhas:

Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema (...) A luz desse sangue irradiava (...) atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração. Tratava-se de uma luz (...) cuja música, sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração, que no dos animais acabados de abater por momentos encontrava um espelho ainda quente (...) Só num espelho assim saído há pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem, ao invés da frigorífica mentira onde é comum a vermos esboçar-se. Só esse espelho capta a espessa luz (...) capaz de arrancar-nos à treva e de dar cor à santidade. A luz do néon, ante aquela de que se esvazia o coração dum porco, é uma metáfora de impacto reduzido. A luz que das vísceras emana é a de deus (...) que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo. O berro do animal que qualquer faca anónima remete à condição daqueles cujo sangue se escoe ao nosso lado é o único som a que dançar merece a pena. (Nava, 2002, pp. 181–182)

Já em Brooker o sublime é apresentado, como vemos em “Be Right Back”, através da personagem do androide Ash, uma réplica de um ser humano perfeitamente igual com o mesmo nome, exteriormente dotada de uma beleza assustadora, construída pela personagem de Martha, com o objetivo de substituir a falta do seu namorado, falecido num acidente de automóvel.

Get the bath ready. (...) It’s nutrient gel. Stop the synthetic muscle drying over through the transport. (...) It’s not toxic. Don’t forget the eletrolits. (...) The whole lot. (...) He likes the taste of it. (...) Leave him there. (...) Don’t switch the light of the bathroom. Let him ferment. (Brooker & Harris, 2013)

Ainda nesta linha do corpo grotesco, destacamos ainda o motivo da tortura, que se manifesta nos textos de Nava e na ficção televisiva de Brooker. No episódio “Black Museum” temos duas formas de tortura, voluntária e involuntária, nas personagens do médico Peter Dawnson e de um inocente condenado à pena de morte Clayton Leigh, respetivamente; o primeiro inflige dor a si próprio para alcançar um prazer pelo qual fica obcecado e o segundo é vítima de uma armadilha do diretor do museu, que o pretende exibir como atração do mesmo, recriando a sua morte dolorosa na cadeira elétrica. Curiosamente, o mesmo acontece com dois poemas de Luís Miguel Nava, sendo estes “O Corpo Espacejado”, em O céu sob as entranhas, e “O Grito”, em Vulcão; é-nos dado a entender que as figuras que o sujeito poético descreve estão sob alguma forma de tortura, no primeiro caso tratando-se de um masoquismo voluntário, e no segundo o texto parece referir-se a alguém que demonstra uma angústia e aflição que não se pressupõe que sejam autoinfligidas, mas sim à mercê de outrem, não se conseguindo libertar. A comprovar tudo isto, tanto em Nava como em Brooker existem três motivos que povoam a monstruosidade do tempo contemporâneo: o fragmento, o espelho e a metamorfose. Os três conceitos sofreram grandes transformações histórico-sociais e artísticas ao longo das épocas, contudo, sempre fizeram parte da génese humana, pois são elementos importantes na procura identitária. Tanto Luís Miguel Nava como Black Mirror apresentam exemplos de identidades completamente fragmentadas. Caso da figura do poema “Aliança” (Vulcão), que perfaz uma situação de desintegração, que pode ser física e/ou psicológica, pois a figura tenta sair do abismo profundo em que se encontra, mas parece já não ter força suficiente, constituindo-se já por vários elementos materiais e não por um corpo uno; acontece o mesmo com o protagonista do episódio “Playtest”, Cooper, pois ao aceitar ser cobaia da experimentação de um videojogo e ao permitir a implantação de um chip que altera as sinapses do seu cérebro, fazendo-o ter projeções aterradoras e em fragmentos, o que acaba

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS 99 por aniquilar a sua identidade no espaço de quatro segundos, levando ao seu próprio desaparecimento/morte, tanto biológica como intelectual. O espelho, que já nos é mostrado na abertura da série Black Mirror, é analisado neste estudo sob a sua perspetiva opaca e nebulosa, pois embora seja o objeto com o qual todas as figuras e personagens se confrontam para observar o seu aspeto físico, tal acontece de uma forma distorcida, pois os sujeitos não se reconhecem no vidro que os desenha. Os poemas de Nava e os episódios de Brooker assemelham-se, no mesmo motivo, pois demonstram como a pós-modernidade transfigura e altera irremediavelmente a identidade dos seus indivíduos, notando-se esta transmutação no exterior, mas começando no interior da própria mente. Por fim, mas não menos importante, foi destacado o motivo da metamorfose, que aparece de modos distintos na obra poética de Luís Miguel Nava. Em O céu sob as entranhas, no poema “O Secretário”, o poeta português descreve um estado metamórfico demarcadamente psicológico que se realiza através da escrita e perfaz a existência de um ‘outro’, que se apodera do sujeito poético para realizar o seu ofício, enquanto que no poema em prosa “Os Comedores de Espaço”, de Vulcão, a metamorfose sofrida pela figura, apresentada como ‘criatura’, é física, pois o desaparecimento e a mescla cósmica luminosa do seu corpo orgânico são descritos pelo sujeito poético. Mais uma vez, temos o mesmo motivo em Black Mirror, pois Charlie Brooker efetua uma metamorfose psíquica, tal como Nava, na personagem de Cooper, em “Playtest”, fazendo-o projetar outras personagens complexas que fazem parte da sua vida, transformando-as num monstro aracnídeo, pois o protagonista sofre de uma fobia por esta espécie animal.

O corpo foi sempre a principal marca material do indivíduo, mesmo se o ser humano nem sempre teve uma clara consciência de o possuir. Ao longo das mais variadas épocas, o nosso aspeto físico adaptou-se, melhor ou pior, ao espaço circundante - frequentemente por força de ‘domesticações’ culturais e político-sociais – quer o escondêssemos por pudor social ou religioso ou o expuséssemos completamente, a fim de servir de tela para as mais diversas experimentações culturais e artísticas. Na contemporaneidade, o homem foi desenvolvendo uma ligação mais direta com o seu corpo, que passou a entender fora do regime metafísico da ‘dádiva’, reclamando-o como propriedade individual e imprimindo-lhe a sua ‘assinatura’, ainda que reclamar um corpo e uma identidade próprios possa continuar a implicar algum tipo de violência ou de ferocidade. Assim nascem novas figurações do corpo e, uma nova abertura à materialidade do ser humano acolhida pelo mundo contemporâneo. O conceito de monstruosidade, entendido como desvio a um padrão de normalidade física, psíquica e/ou comportamental, já não surge, como antes, através dos seres fabulosos ou ‘monstruosos’ convencionais como os vampiros ou os lobisomens, mas decorrem de um realismo monstruoso que toma sobretudo forma através das ações diárias do próprio ser humano, envolvido nas transformações do seu quotidiano e no progresso da sua época. Como constatado neste artigo, o desenvolvimento do mundo tecnológico é uma das causas do comportamento monstruoso que o sujeito pós-moderno leva a cabo, pois este é absorvido pelo virtual e gere, a partir dele, a sua própria autocriação, através de diversas modificações ou biomorfismos; o indivíduo já quase não tem necessidade de processos metamórficos exteriormente impostos, deixando no limite de possuir um corpo, pois tudo o que lhe importa, na maioria dos casos, é a consciência; desta forma, dá-se origem a ‘novos monstros’ que tanto são enaltecidos como, logo de seguida, abandonados.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 100 JOANA PALHA

A partir da poesia do poeta português Luís Miguel Nava, com as suas obras O céu sob as entranhas e Vulcão, e de três episódios da série televisiva Black Mirror, concebida pelo argumentista britânico Charlie Brooker, tentou-se mostrar, neste trabalho, através de uma perspetiva comparatista, apoiada numa abordagem intermedial e transmedial, que os novos reportórios narrativos contemporâneos refletem e ajudam a deslindar de uma forma mais clara estas novas temáticas ainda complexas e pouco compreendidas. A estética grotesca e os motivos analisados (fragmento, espelho e metamorfose) denotam elementos fantásticos, articulando-se com este modo narrativo, desvalorizado em tempos, mas ressurgido na contemporaneidade por vários artistas, como Nava e Brooker, apesar de constatarmos que existem poéticas e óticas criativas diferentes entre o poeta português e o argumentista britânico. Luís Miguel Nava e Charlie Brooker, apesar de distanciados pelos média, pelos géneros e pelas poéticas que privilegiam, aproximam-se no universo artístico contemporâneo, apresentando alternativas de conceptualização e figuração do corpo e da identidade humanas, baseadas no tema da monstruosidade. A proposta de leitura comparada apresentada neste estudo, exercendo-se entre as distintas esferas culturais aqui analisadas, a literatura e as séries televisivas, é, como sabemos, ainda pouco habitual. Muito terá ficado, por isso, por dizer e novas investigações permitirão explorar este campo interartístico e intermedial, tão tipificador da própria ontologia da pós- modernidade.

REFERÊNCIAS

Branco, S. (2019). Séries de televisão: Estética, visionamento atento e escrita crítica. Revista portuguesa da imagem em movimento. 32–40. http://aim.org.pt/ojs/index.php/revista/issue/view/20

Brooker, C. (Creator). (2011). Black Mirror [Television Series]. USA/UK: Netflix.

Burke, E. (1993). Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. São Paulo: Papirus, UNICAMP.

Carrión, J. (2011). Teleshakespeare. Madrid: Errata Naturae.

Clüver, C. (2007). Intermediality and interarts studies. Changing borders: Contemporary positions in intermediality. 19–37.

Cortázar, J. (2019). O jogo do mundo - Rayuela. Amadora: Cavalo de Ferro.

Courtine, J. J. (2015). O corpo inumano. In A. Corbin, J. J. Courtine, & G. Vigarello (Org.), História do corpo: Da Renascença às Luzes (vol.5). S/l: Círculo de Leitores.

Echauri-Soto, G. (2016). Black Mirror, McLuhan y la era digital. Razón y palabra. 885–906.

Gil González, A. J. & Pardo, P. J. (Eds.). (2018). Adaptación 2.0. Estudios comparados sobre intermedialidad. Binges: Éditions Orbis Tertius.

Gil, J. (1994). Monstros. Lisboa: Quetzal.

Le Breton, D. (1990). Anthropologie du corps et modernité. Paris: Presses Universitaires de France.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010 MONSTRUOSIDADES E BIOMORFISMOS 101

Martelo, R. M. (2004). Aproximações ao sublime na poesia de Luís Miguel Nava. In Em parte incerta: Estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea (pp. 200–211). Porto: Campo das Letras.

Martínez, J. & Ortega, S. (2019). El ecosistema mediático de la ficción contemporânea: relatos, universos y propriedades intelectuales a través de los transmedia worlds. Icono, 14, 15–38.

Martínez, J. (2012). El imaginario social del control mediatico y tecnologico: La distópica Black Mirror. In C. Mateos, C. Hernández, H. Herrero, S. Toledano, A. Ardévol (Eds) IV Congreso Internacional de Comunicación Social (pp. 1–24). Canárias: Universidad de La Laguna.

Nava, L. M. (2002). Poesia completa 1979–1994. Lisboa: Dom Quixote.

_____ (1994). Vulcão. Lisboa: Quetzal.

Rajewsky, I. O. (2005). Intermediality, intertextuality, and remediation: A Literary perspective on intermediality. Intermedialités, 6, 43–64.

Roas, D. (2011). Tras los límites de lo real: Una definición de lo fantástico. Madrid: Páginas de Espuma.

Sánchez Mesa, D. & Baetens, J. (2017). La literatura en expansión: Intermedialidad y transmedialidad en el cruce entre la Literatura Comparada, los Estudios Culturales y los New Media Studies. Tropelías: Revista de Teoría de la Literatura y Literatura Comparada, 6–27. https://doi.org/10.26754/ojs_tropelias/tropelias.2017271536

Schiller, F. (1997). Textos sobre o belo, o sublime e o trágico. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Sepinwall, A. (2015). The revolution was televised. New York: Touchstone.

Silvestre, O. (1997). Luís Miguel Nava ou o modernismo tardio de um discurso crítico. In Relâmpago, 1, 125–143.

Vasconcelos, R. (2009). Campo de relâmpagos: Leituras do excesso na poesia de Luís Miguel Nava. Lisboa: Assírio e Alvim.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 91–101. eISSN: 2184-7010

EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA, EN LA NOVELA DE EMILIA PARDO BAZÁN (1886) Y EN LA SERIE DE TELEVISIÓN DE GONZALO SUÁREZ (1985)

THE END OF LOS PAZOS DE ULLOA, IN EMILIA PARDO BAZÁN’S NOVEL (1886) AND IN GONZALO SUÁREZ’S TV SERIES (1985)

JOSÉ MANUEL GONZÁLEZ HERRÁN* [email protected]

La historia que cuenta la novela Los Pazos de Ulloa (1886), de Emilia Pardo Bazán concluye aparentemente en su capítulo XXIX, penúltimo, de modo que el XXX, situado diez años después, funciona como un epílogo, que -a la vez- prologaría su continuación, La Madre Naturaleza (1887). En cambio, la serie de TVE Los Pazos de Ulloa, de Gonzalo Suárez (1985), basada en ambas novelas, prefiere concluir su adaptación del primer título con el capítulo XXIX, haciendo que el XXX abra, como prólogo, la siguiente entrega. Todo ello se estudia aquí mediante el cotejo de los tres elementos de esa lectura audiovisual: el texto novelístico, y las secuencias correspondientes, tanto en el guion, como en la serie.

Palabras clave: Emilia Pardo Bazán; Gonzalo Suárez; Los Pazos de Ulloa; novela; serie de televisión; guion.

The story that is told in Emilia Pardo Bazán’s novel Los Pazos de Ulloa (1886), apparently concludes in its penultimate chapter XXIX, so that the XXX, dated ten years later, functions as an epilogue, which, at the same time, would be a prologue for its continuation, La Madre Naturaleza (1887). On the other hand, the TV series Los Pazos de Ulloa, by Gonzalo Suárez (1985), based on both novels, prefers to conclude the adaptation of the first book with chapter XXIX, causing the XXX to open, as a prologue, the following season. All of this will be analyzed by comparing the three elements in an audiovisual reading: the novel text, and the corresponding sequences, both in the script and in the series. Keywords: Emilia Pardo Bazán; Gonzalo Suárez; Los Pazos de Ulloa; novel; TV series; screenplay.

Data de receção: 2020-01-26 Data de aceitação: 2020-03-03 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2504

* Catedrático de Literatura española. Profesor Emérito de la Universidade de Santiago de Compostela. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9049-2296 104 JOSÉ MIGUEL GONZÁLEZ HERRÁN

Uno de los aspectos más interesantes en la novela pardobazaniana de 1886 tiene que ver con su final:1 la historia allí narrada parece concluir en el capítulo XXIX, penúltimo del libro, de modo que el siguiente, situado diez años después, cumpliría la función de un epílogo que muestra la situación del escenario y los personajes, como consecuencia de los sucesos acaecidos en aquel pasado. Pero, a la vez, ese epílogo funciona como prólogo de la novela siguiente, La Madre Naturaleza (subtitulada en su primera edición, 1887, “Segunda parte de Los Pazos de Ulloa”), que refiere una -acaso la más trágica- de aquellas consecuencias. Teniendo eso en cuenta, me propongo estudiar aquí2 cómo resuelve el tránsito entre ambas la serie de televisión que Gonzalo Suárez dirigió en 1985 para TVE, con guión suyo, de Manuel Gutiérrez Aragón y de Carmen Rico-Godoy, para lo cual atenderé a las tres versiones del relato: la novela, el guion, lo filmado. Comencemos, pues, releyendo el final de Los Pazos de Ulloa, en sus capítulos XXIX y XXX. Tras los “acontecimientos tan extraordinarios” (así los califica la novela) relatados en los inmediatamente precedentes,3 el narrador, que asume la perspectiva de Julián, refiere lo que este, en un presente indeterminado, recuerda de su último día en los Pazos; especialmente lo que siente (y lo que descubre) cuando abandona el lugar:

No olvidará tampoco la salida de la casa solariega, la ascensión por el camino que el día de su llegada le pareció tan triste y lúgubre (…) El crucero, a poca distancia, levanta sus brazos de piedra manchados por el oro viejo del liquen. La yegua, de improviso, respinga, tiembla, se encabrita... Julián se agarra instintivamente a las crines, soltando la rienda…... En el suelo hay un bulto, un hombre, un cadáver; la hierba, en derredor suyo, se baña en sangre que empieza ya a cuajarse y ennegrecerse. Julián permanece allí, clavado, sin fuerzas, anonadado por una mezcla de asombro y gratitud a la Providencia, que no puede razonar, pero le subyuga... El cadáver tiene la faz contra tierra; no importa: Julián ha reconocido a Primitivo; es el mismo. El capellán no vacila, no discurre quién le habrá matado. ¡Cualquiera que sea el instrumento, lo dirige la mano de Dios! Desvía la yegua, se persigna, se aparta, se aleja definitivamente, volviendo de cuando en cuando la cabeza para ver el negro bulto, sobre el fondo verde de la hierba y la blancura gris del paredón... (Pardo Bazán, 1999, p. 318)

Siguen unos párrafos en que, siempre desde los recuerdos del personaje, se cuenta, además del impacto producido en la sociedad compostelana el escándalo con que concluyó su estancia en los Pazos, la entrevista con el Arzobispo para explicarle lo verdaderamente ocurrido; como consecuencia, el prelado “dispone enviarle a una parroquia apartadísima, especie de destierro, donde vivirá completamente alejado del mundo.” Es allí donde,

pasadas dos estaciones, recibe una esquela, una papeleta orlada de negro; la lee sin entenderla al pronto; después se entera bien del contenido, y sin embargo no llora, no da señal alguna de pena...

1 En lo que sigue resumo las conclusiones de mi articulo González Herrán, 2011, pp. 399-400. 2 Un primer acercamiento a estas cuestiones fue mi ponencia (inédita) González Herrán, 2012; aunque entonces no conocía aún el guion de la serie. 3 Cuya comparación con la versión de Suárez estudié en González Herrán, 2004. Sobre la serie de Gonzalo Suárez, en relación con las novelas de Pardo Bazán, véase también: Alonso Fernández, 2004; Costa Villaverde, 2007; González Herrán, 2007; González Herrán, 2919; González Herrán, 2020. Hernández Ruiz, 1991; Herrero Figueroa, 2004.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103–113. eISSN: 2184-7010 EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA 105

Al contrario, aquel día y los siguientes experimenta como un sentimiento de consuelo, de bienestar y de alegría, porque la señorita Nucha, en el cielo, estará desquitándose de lo sufrido en esta tierra miserable” (Pardo Bazán, 1999, p. 319).

Todavía continuará el capítulo un par de párrafos más, para explicar cómo el antiguo capellán de los Ulloa dedica su vida de párrroco rural a las más sencillas ocupaciones de tal ministerio: restaurar la desmantelada iglesia del lugar, enseñar a leer a los chiquillos de la parroquia, fundar una congregación de Hijas de María… “Y así pasa el tiempo, uniformemente, sin dichas ni amarguras, y la placidez de la naturaleza penetra en el alma de Julián, y se acostumbra a vivir como los paisanos”. Hasta que, pasados diez años, le llega “el ascenso, la traslación a la parroquia de Ulloa, especie de desagravio del Arzobispo” (Pardo Bazán, 1999, p. 320). El capítulo siguiente, XXX y último de la novela, comienza con una frase que sugiere de manera inequívoca su carácter epilogal: “Diez años son una etapa, no sólo en la vida del individuo, sino en la de las naciones. Diez años comprenden un periodo de renovación: diez años rara vez corren en balde, y el que mira hacia atrás suele sorprenderse del camino que se anda en una década” (Pardo Bazán, 1999, p. 321). Por ello, sus párrafos iniciales se detienen en explicar cómo han cambiado las cosas (y las personas) en ese tiempo. Poco, o nada, en el principal escenario de la historia, los propios Pazos: “La gran huronera, desafiando al tiempo, permanece tan pesada, tan sombría, tan adusta como siempre”; algo más, en la villa de Cebre, aunque persisten las viejas rivalidades políticas: “los dos caciques aún continúan disputándose el mero y mixto imperio” (Pardo Bazán, 1999, p. 321). Pero el efecto de los años se manifiesta sobre todo en el personaje de quien venimos hablando; citemos con detalle su descripción, porque la versión audiovisual la tendrá muy en cuenta:

Quien ha envejecido bastante, de un modo prematuro, es el antiguo capellán de los Pazos. Su pelo está estriado de rayitas argentadas; su boca se sume; sus ojos se empañan; se encorvan sus lomos (…) Estaba viejo realmente, y también más varonil: algunos rasgos de su fisonomía delicada se marcaban, se delineaban con mayor firmeza; sus labios, contraídos y palidecidos, revelaban la severidad del hombre acostumbrado a dominar todo arranque pasional, todo impulso esencialmente terrestre. La edad viril le había enseñado y dado a conocer cuánto es el mérito y debe ser la corona del sacerdote puro. Habíase vuelto muy indulgente con los demás, al par que severo consigo mismo. (Pardo Bazán, 1999, p. 322)

Como he explicado en otro lugar (Gonzalez Herrán, 2011, pp. 389-390), esos cambios evidentes, tanto en la apariencia externa como en la actitud vital del personaje, son consecuencia inevitable de su fracasada experiencia como director espiritual de la familia Ulloa. Si consideramos Los Pazos de Ulloa un ejemplo de Bildungsroman, el desarrollo de su trama argumental muestra, según es canónico en este tipo de relatos, cómo el protagonista va madurando a través de las peripecias que le acaecen, y cómo, al final de su experiencia -la escena que ahora nos ocupa-, su carácter es muy diferente al que mostraba en los episodios iniciales.4 Por lo tanto, de acuerdo con los presupuestos de

4 Hago mías las palabras de Villanueva, 2000, p. xviii: “Obsérvese cómo el trigésimo y último capítulo, proyectado diez años más adelante en relación al momento narrado en el vigésimo noveno, remata el ciclo mítico con el regreso del héroe al escenario de su doloroso maduramiento, de su personal pasión. La anécdota propiamente dicha había concluido con la muerte de Nucha (…) estas páginas finales, aunque

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103-113. eISSN: 2184-7010 106 JOSÉ MIGUEL GONZÁLEZ HERRÁN este tipo de relatos, es obligado terminarlo aquí, y no antes, cuando Julián abandonó los Pazos: algo que, como enseguida veremos, no respetará la versión audiovisual. Tampoco destaca esta el hondo sentido que tiene su encuentro con los dos hijos del Marqués de Ulloa, que le sorprenden cuando está arrodillado ante la tumba de Nucha:

Oyó risas, cuchicheos, jarana alegre, impropia del lugar y la ocasión. Se volvió y se incorporó confuso. Tenía delante una pareja hechicera, iluminada por el sol que ya ascendía aproximándose a la mitad del cielo. Era el muchacho el más guapo adolescente que puede soñar la fantasía; y si de chiquitín se parecía al Amor antiguo, la prolongación de líneas que distingue a la pubertad de la infancia le daba ahora semejanza notable con los arcángeles y ángeles viajeros de los grabados bíblicos, que unen a la lindeza femenina y a los rizados bucles asomos de graciosa severidad varonil. En cuanto a la niña, espigadita para sus once años, hería el corazón de Julián por el sorprendente parecido con su pobre madre a la misma edad: idénticas largas trenzas negras, idéntico rostro pálido, pero más mate, más moreno, de óvalo más puro, de ojos más luminosos y mirada más firme. ¡Vaya si conocía Julián a la pareja! ¡Cuántas veces la había tenido en su regazo! (Pardo Bazán, 1999, pp. 325-326).

Notemos que, aunque el narrador no identifica a los miembros de esa pareja, el cura sí los ha conocido; o mejor, los ha reconocido: la belleza adolescente del muchacho recuerda la del niño Perucho, a quien él enseñó a leer; más difícil sería reconocer a la muchacha, que sólo tenía un año cuando Julián fue expulsado de los Pazos; a no ser por “el sorprendente parecido con su pobre madre a la misma edad” (téngase en cuenta que Julián la había conocido de niña en su casa compostelana): parecido sabiamente explotado en la versión audiovisual. Pero hay un detalle desconcertante que pone en cuestión ese reconocimiento: el aspecto que tienen, las ropas que visten, no se corresponden con el estatus social que les corresponde:

Sólo una circunstancia le hizo dudar de si aquellos dos muchachos encantadores eran en realidad el bastardo y la heredera legítima de Moscoso. Mientras el hijo de Sabel vestía ropa de buen paño, de hechura como entre aldeano acomodado y señorito, la hija de Nucha, cubierta con un traje de percal, asaz viejo, llevaba los zapatos tan rotos, que puede decirse que iba descalza. (Pardo Bazán, 1999, pp. 325-326).

El lector avisado, que recuerda los temores de Nucha acerca de los planes de Primitivo y su gente, sabe que esa inversión de apariencias confirma que tales planes se han cumplido: la herencia de los Ulloa no será para la hija de Nucha, sino para el hijo de Sabel. Un final que da pleno sentido a esa historia lamentable: el vestido y los zapatos de la pareja adolescente son el indicio -el símbolo- más claro de cómo y cuánto ha fallado el proyecto de Julián. Una vez que hemos explicado el sentido de ese final, en la novela, veamos cómo lo traduce la versión audiovisual de Gonzalo Suárez; o -más exactamente- de Suárez, Gutiérrez Aragón y Rico-Godoy, pues, como advertí, me basaré no solo en lo que muestra la serie de televisión, sino que consideraré también (y previamente), lo previsto en su

sirvan de pórtico a La Madre Naturaleza, desempeñan a la vez perfectamente la función de cierre de ese periplo formativo de un héroe…”

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103–113. eISSN: 2184-7010 EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA 107 guion.5 Con una advertencia que conviene tener en cuenta: por razones que ahora no importan, el reparto en capítulos de la serie no es exactamente el mismo que en el guion: este dividía la historia en cinco capítulos (rotulados I, II, III, IV y V), que la serie repartió en cuatro (numerados 1º, 2º, 3º y 4º); de estos, los tres primeros, que adaptan la novela Los Pazos de Ulloa, recogen el contenido de I, II, III y IV; y el V del guión, que resume, más que adapta, La Madre Naturaleza, será el 4º de la serie. Aquí es donde se produce la importante modificación que el relato audiovisual (tanto en el guion como en lo filmado) hace respecto al novelístico. El capítulo IV del guion se cierra así:

SEC. 26A.6 CAMINO DE CEBRE. EXT. ATARDECER

JULIÁN, con su maletón a lomos de una mula, pasa por el crucero. Se persigna, trémulo, antes de proseguir camino y perderse a lo lejos.

VOZ DE PARDO BAZÁN

Volvió Julián a Santiago, y medio año después, supo por las esquelas que la señorita Nucha había muerto. No sintió pena. Al contrario, le invadió un sentimiento de consuelo porque pensó que Nucha, en el Cielo, estaria desquitándose de lo sufrido en esta tierra miserable.

FIN DE LOS PAZOS DE ULLOA (guion, IV, 70).7

Hay en ese texto varias cuestiones dignas de comentario. Comenzando por la didascalia inicial, notemos -aunque sea un cambio menor- que la yegua que mencionaba el narrador es aquí una mula; como también era una “vieja mula renqueante” aquella en la que llegó a los Pazos, en la secuencia primera de la serie (en lugar del “peludo rocín” indicado en las líneas iniciales de la novela). No será ese el único paralelismo que notaremos entre ambas secuencias, la de la llegada y la de la partida. Otro se refiere al crucero ante el que Julián “se persigna, trémulo”. Tanto el elemento como el gesto estaban ya en el relato literario (del que antes cité un fragmento), aunque este lo explica y justifica con precisión: no es el gesto rutinario de persignarse ante una cruz en el camino, sino su reacción al descubir, tendido en el suelo, el cadáver de Primitivo. El guión suprime esa visión (aunque mantenga el temblor del cura al persignarse), como también ha suprimido la reacción del animal (que “respinga, tiembla, se encabrita”). Pero lo más importante es que la situación -el capellán con su cabalgadura ante el crucero- repite otra que estaba también en el inicio de la novela (“El clérigo sabía que estas cruces señalan el lugar donde un hombre pereció de muerte violenta; y, persignándose, rezó un padrenuestro, mientras el caballo, sin duda por olfatear el rastro de algún zorro, temblaba levemente empinando las orejas”; Pardo Bazán, 1999, p. 64), traducida así en la secuencia 1 del guión:

5 En González Herrán, 2020 explico cómo encontré una copia mecanografiada de ese guion en el Archivo de la Real Academia Galega, en A Coruña (con cuyo permiso -que hago constar y agradezco- lo he consultado y cito aquí); documento cuyas características describo con detalle en ese trabajo. 6 La A está escrita a mano en el original mecanografiado. 7 Gutiérrez Aragón, Suárez, Rico-Godoy, 1985, que cito abreviadamente: guion, capítulo, página; transcribo del guion siguiendo exactamente su presentación y formato (mayúsculas, sangrados, subrayados).

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103-113. eISSN: 2184-7010 108 JOSÉ MIGUEL GONZÁLEZ HERRÁN

VALLE ARBOLADO. CAMINO.- ATARDECER

Una cruz de piedra, al borde del camino (…) La mula se detiene, como espantada, ante el crucero. JULIÁN se quita, respetuoso, el sombrero, en un torpe saludo (guion, I, 3).

Es evidente, pues, que los guionistas han querido respetar, aunque con leves modificaciones, la similitud que puso la novelista entre ambas situaciones. En cuanto al parlamento puesto en la “Voz de Pardo Bazán”, aparte de lo que diré luego respecto a esa voz en la traducción filmada, notemos que en él se recogen, casi literalmente, algunas frases del fragmento correspondiente de la novela, aunque con significativas supresiones: nada dice de las reacciones en la sociedad compostelana ante su expulsión de los Pazos, ni de la entrevista con el Arzobispo, ni del destierro de Julián y su vida como cura de aldea… Pero sí se menciona la esquela (aunque en plural, tal vez por una mala comprensión del término8) con la noticia de que la señorita Nucha ha muerto, y el extraño consuelo que él siente al saberlo… Según indicaba el guion, con esto termina Los Pazos de Ulloa; o, más exactamente, la primera parte de la historia. Pero, antes de discutir cómo ese final modifica (o acaso traiciona) el sentido de la novela pardobazaniana, detengámonos, aunque sea brevemente, en cómo se plasma en imágenes esa última secuencia del capítulo 3º de la serie.9 Lo primero que percibimos en ella es una canción (que no aparecía en el guion), de aire vagamente popular, con acompañamiento de zanfona, que había comenzado a oírse al final de la secuencia anterior (donde se propone algo que tampoco estaba en la novela: Sabel se despide de Julián). Una canción que el espectador de la serie reconoce de inmediato, pues ya sonó en la secuencia de apertura, en el capítulo 1º, cuando el joven cura llegaba en su pobre cabalgadura:10

Un día llegó un viajero en un burro viejo y trotón. Ligero llegó de equipaje, cargado su corazón. Iba a los Pazos de Ulloa, lejos del mundo y de Dios. Iba a los Pazos de Ulloa, cargado su corazón.

8 Parece que confunde el significado más usual hoy (“Aviso de la muerte de una persona que se publica en los periódicos con recuadro de luto o se fija en distintos lugares públicos indicando la fecha y el lugar del entierro, funeral, etc.”) con el que tenía en tiempos de la autora (“Papel en que se dan citas, se hacen invitaciones o se comunican ciertas noticias a varias personas, y que por lo común va impreso o litografiado). [cfr: https://dle.rae.es/esquela?m=form]. 9 Minutos 51:40 a 52:37 (aproximadamente) del capítulo 3º; pueden verse en: http://www.rtve.es/alacarta/videos/los-pazos-de-ulloa/pazos-ulloa-capitulo-3/4130299/?pais=ES 10 Aproximadamente, en el minuto 0:04:54 del capítulo 1º; puede verse en: http://www.rtve.es/alacarta/videos/los-pazos-de-ulloa/pazos-ulloa-capitulo-1/4125647/?pais=ES

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103–113. eISSN: 2184-7010 EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA 109

Ahora Julián, en el mismo lugar de su llegada -una cuesta entre árboles-, hace el camino inverso,11 ascendiendo penosamente; pero no montado en la mula, sino tirando de ella por el ronzal. Otra notoria modificación se produce aquí: aunque el crucero está a la orilla del camino, Julián, a quien vemos de espaldas, no parece que se persigne ante él. Y cuando ha terminado de subir la cuesta, mientras la silueta se recorta sobre un cielo brumoso, oímos el recitado final. Mas no en la voz de doña Emilia, sino dicho por la misma voz masculina que en otros momentos de la serie cumple el papel de narrador.12 Acaso no sea impertinente (aunque nos aleje del episodio que venimos comentando) aludir aquí a otra secuencia -la última de la serie, al final de su capítulo 4º-, que se desarrolla en el mismo lugar y con movimientos muy similares: otro jinete que abandona los Pazos (Gabriel, a quien enseguida me referiré), también derrotado en su propósito, mientras se oye por última vez la misma voz en off: “Partió Gabriel aquel mismo día. Y cuando volvió la mirada por última vez hacia los Pazos, sintió una extraña mezcla de atracción y rencor y pensó: «Naturaleza, te llaman madre, deberían llamarte madrastra»” (cfr. con las palabras finales de La Madre Naturaleza: “Gabriel Pardo se volvió hacia los Pazos por última vez, y sepultó la mirada en el valle, con una extraña mezcla de atracción y rencor, mientras pensaba: -Naturaleza, te llaman madre... Más bien deberían llamarte madrastra”; Pardo Bazán, 1999, p. 614). Sugestivo paralelismo el de estas tres secuencias (la llegada y la partida de Julián; la partida de Gabriel), cuyo detenido análisis ha de quedar para otra ocasión. Como señalé anteriormente, la versión audiovisual da por terminado el relato de Los Pazos de Ulloa con la marcha de Julián, de modo que el capítulo XXX de la novela, su regreso a los Pazos, diez años después, se traslada al capítulo siguiente (V del guión, 4º de la serie de televisión), dedicado a La Madre Naturaleza. Pero, como si quisiera marcar aún más ese tiempo transcurrido, no lo abre con el mencionado regreso, sino con algo que la novela de 1887 no refiere hasta su capítulo V:

Subía la diligencia de Santiago el repecho que hay antes de llegar a la villa de Cebre. Era la hora de mayor calor, las tres de la tarde. La persona de más duras entrañas se compadecería de los viajeros encerrados en aquel cajón, donde si toda incomodidad tiene su asiento, el que lo paga suele contentarse con la mitad de uno. Venía atestado el coche, que era de los más angostos, desvencijados, duros y fementidos (Pardo Bazán, 1999, p. 359).

Entre esos viajeros está Gabriel, el hermano de Nucha que viene a conocer a su sobrina Manolita, y otro de los pasajeros, Trampeta, le pondrá en antecedentes (también a quien no haya leído la novela de 1886) de lo acaecido a la familia que vive en los Pazos. En ese sentido, el relato del personaje cumple una función similar a la que en la novela de 1886 tenían los párrafos iniciales de su último capítulo (“Diez años son una etapa…”),

11 Cfr. en González Herrán, 2011, p. 389: “Reflejo inverso sugerido ya por el propio texto de la novela, que en ese capítulo XXIX se refiere a «la ascensión por el camino que el día de su llegada le pareció tan triste y lúgubre» (Pardo Bazán, 1999, p. 317); y que, además, da sentido a ese plano final: aquella triste y lúgubre impresión primera ha resultado ser toda una premonición, cuyo simbolismo alcanza a toda la historia de Los Pazos de Ulloa. Hay así una cierta circularidad en el proceso narrativo: la historia se cierra en el mismo lugar en que se abría, pero con movimiento de sentido inverso”. 12 En González Herrán, 2020 explico con más detenimiento ese cambio, sistemático en toda la serie, de la sustitución de la voz de Pardo Bazán, que figuraba en el guion como narradora, por una voz de timbre masculino.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103-113. eISSN: 2184-7010 110 JOSÉ MIGUEL GONZÁLEZ HERRÁN de modo que esa secuencia sirve para situar en el tiempo lo que sucede en las dos siguientes: el regreso de Julián, en la 2, y su encuentro con la pareja adolescente, en la 3: Secuencia 2. CRUCERO, EXTERIOR/AMANECER

En lo alto del camino, surgue [sic], como brotando de la tierra, un sombrero hongo, bajo el sombrero, un cura a lomos de una mula. Aparece y trota, cuesta abajo, hasta el crucero. Es don Julián. Envejecido. Detiene la mula ante el crucero, como si hubiese visto una espantosa visión. Diríase, en efecto, que hay una mujer junto a la cruz. De pie. Desvaida. Es el fantasma de Nucha. La visión apenas dura un instante. El cura descabalga. Ata presuroso la mula al crucero y, como sonámbulo, se desvía del camino. (guion, V, 2).

Notemos, en una comparación con el texto novelístico, algunas interesantes modificaciones, junto a no menos significativas fidelidades. Aunque la novela no lo especifica (solo dice del cura que “avanza despaciosamente por el carrero angosto que serpea entre viñedos y matorrales conduciendo a la iglesia de Ulloa”; Pardo Bazán, 1999, p. 322), aquí lo presenta montado en una mula, como entonces; y también ahora se detendrá ante el crucero, espantado por la visión de un fantasma. Algo que sugería el texto, aunque situándolo en otro entorno: “Al pisar el atrio de Ulloa notaba una impresión singularísima. Parecíale que alguna persona muy querida, muy querida para él, andaba por allí, resucitada, viviente, envolviéndole en su presencia, calentándole con su aliento. ¿Y quién podía ser esa persona? ¡Válgame Dios! ¡Pues no daba ahora en el dislate de creer que la señora de Moscoso vivía, a pesar de haber leído su esquela de defunción!” (Pardo Bazán, 1999, pp. 322-323). En cambio, de la detallada reflexión sobre cómo el paso del tiempo ha cambiado física y espiritualmente al personaje, el guion solo mantiene un adjetivo: “Es don Julián. Envejecido”. La novela, tras esa “impresión” (o visión) en el atrio, nos introducía con el cura en el cementerio; el guion soslaya -lógicamente- la muy detallada descripción del lugar, con las reflexiones que ello suscita, y se limita al momento en que encuentra la tumba que buscaba, donde se producirá el encuentro con la pareja:

Secuencia 3. EXTERIOR/AMANECER

Desde un repecho, don JULIÁN descubre el cementerio. Abandonado. Medio cubierto por la hojarasca. Avanza, sin dudarlo, hacia una tumba. Diríase que sigue viendo la imagen de la mujer. Cae de rodillas, con los ojos fijos en el mármol sin inscripción. O tan cubierto de tierra que no puede apreciarse el nombre grabado. Queda inmóvil. Ensimismado. Se dejan oir unas risas, unos roces sigilosos entre la frondosa maleza. Se trata de dos adolescentes, MANOLITA y PERUCHO, que, medio ocultos entre la maleza espían al capellán. Este vuelve la cabeza y los dos jóvenes se escabullen. Rompe a llover (guion, V, 3).13

Advirtamos que del texto literario, citado páginas atrás, solo quedan aquí las risas y unos “roces sigilosos” (que traducen los “cuchicheos, jarana alegre”, de la novela). La identificación de los que ríen se reduce a dar sus nombres, sin que -por supuesto- se recojan aquí las reflexiones y recuerdos de quien les ha reconocido; bien que, como luego explicaré, la traducción audiovisual lo resuelva de modo certero. En cambio, considero discutible prescindir de aquel indicio -tan significativo- que muestran su vestuario y sus zapatos; de hecho, el guion parece querer ocultar su imagen (“medio ocultos en la

13 Las secuencias siguientes, 4 y 5 (en guion, V, 3), enlazan inmediatamente con esta y se corresponden con los capítulos I y II de La Madre Naturaleza.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103–113. eISSN: 2184-7010 EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA 111 maleza”), hasta el punto de que Julián no alcanza a verlos, pues “se escabullen”. La secuencia concluye con una indicación que no estaba en el texto, pero que aquí importa mucho, como enseguida diré: “Rompe a llover”. Veamos ahora cómo la versión filmada pone en imágenes -y sonido- esas secuencias 2 y 3, en el capítulo 4º de la serie;14 aunque el término “sonido” acaso no sea muy pertinente aquí, pues ambas se producen en silencio, como llamativo contraste con la verborrea de Trampeta, en la secuencia 1. Tal vez sea eso -el silencio- lo único en que lo filmado realiza fielmente lo previsto en el guion, pues en todo lo demás los cambios son muy notables. Ya desde la primera imagen que aparece en la pantalla: entre los árboles vemos a Julián, justo en el momento en que se baja de la mula y camina con paso vacilante, hacia una tumba solitaria (aquí no hay cementerio); en su cabeza no lleva el anunciado hongo, sino un deteriorado sombrero de paja. Pero lo más llamativo es su aspecto desastrado: una sucia sotana, medio abierta, que pemite ver sus ropas sucias y descuidadas; como también lo es el corte de pelo, la barba, las uñas… Cuando se arrodilla junto a la tumba y se cubre el rostro con las manos (como rezando, o llorando), vemos una joven pareja que llega corriendo y se detiene para espiarle entre la maleza. El espectador que ha visto los anteriores capítulos de la serie reconocerá de inmediato a la muchacha (no “la niña, espigadita para sus once años”, de la novela): apoyándose en lo que esta decía respecto al “sorprendente parecido con su pobre madre a la misma edad”, Gonzalo Suárez hace que la misma actriz que interpretó el personaje Nucha, Victoria Abril, encarne también a su hija Manolita, aunque con otro peinado, otro maquillaje, gestos y dicción muy diferentes. Noté antes que, según el guion, Julián acaso no llega a ver a la pareja, que se escabullía cuando él vuelve la cabeza. En la filmación, el reconocimiento no es posible porque, deliberadamente y aunque es consciente de ser vigilado, el cura no se mueve para ver quiénes son. La secuencia concluye con la precipitada marcha de los adolescentes, que corren huyendo de la lluvia… Recurso que sive de enlace con las dos secuencias que seguirán, la 4 (“ÁRBOL FRONDOSO JUNTO AL CAMINO. MANOLITA y PERUCHO van a refugiarse de la lluvia bajo el árbol”) y la 5 (“GRUTA. INTERIOR-EXTERIOR/DÍA. MANOLITA y PERUCHO se meten en una concavidad entre rocas, y desde allí, acurrucados, ven caer la lluvia”). Escenas que se corresponden con lo narrado en las capítulos I y II de la novela La Madre Naturaleza, cuya historia comienza verdaderamente aquí… Como lo que nos interesaba era “el final de Los Pazos de Ulloa”, concluyamos aquí nuestro análisis. En el debate sobre si Los Pazos de Ulloa es una “novela de personaje” o una “novela de escenario” o es crucial la decisión de dónde termina realmente aquella historia (cfr. González Herrán, 2011, p. 397). Quienes la consideran como Bildungsroman (‘novela de formación’ o ‘de aprendizaje’), la historia ha de terminar mostrando cómo su protagonista ha culminado ese aprendizaje, de modo que el Julián que regresa a los Pazos en el capítulo último de la novela tiene muy poco que ver, no sólo en su aspecto físico, sino en su actitud moral, con aquel joven curita del capítulo primero. Pero quienes sostienen que el motivo central de la novela es el efecto que produce en un determinado ámbito (los Pazos) la llegada de un extraño (Julián) que pretende modificar radicalmente la situación moral que allí se encuentra, para convertir

14 Minutos 02:54 a 04:20 (aproximadamente) del capítulo 4º; se pueden ver en: http://www.rtve.es/alacarta/videos/los-pazos-de-ulloa/pazos-ulloa-capitulo-4/4131880/?pais=ES

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103-113. eISSN: 2184-7010 112 JOSÉ MIGUEL GONZÁLEZ HERRÁN aquello en un modelo de familia cristiana, su fracaso, derrota y expulsión consiguiente, en el capítulo penúltimo, marcarían claramente el final de su aventura Esa es la opción de Gonzalo Suárez (y sus coguionistas) en su serie de 1985 para TVE. Si con ello su lectura “traiciona” el sentido de la novela de Pardo Bazán es algo cuya discusión prefiero dejar abierta.

REFERENCIAS

Alonso Fernández, A. (2004). Gonzalo Súarez: entre la literatura y el cine. Oviedo: Universidad - Kassel Edition Reichenberger. Costa Villaverde, E. (2007). Los Pazos de Ulloa on the Screen: Cultural Representations in Adaptation. En Film and Film Culture. Special Issue: Transformation and Transference. Vol 4. University of Ulster and Waterford Institute of Technology, Cork. UK and Ireland. pp. 68-75. González Herrán, J. M. (2004). Los Pazos de Ulloa, de Emilia Pardo Bazán y Gonzalo Suárez: un comentario de textos. En C. Becerra (Ed.), El cine de Gonzalo Suárez (Lecturas : Imágenes, 3), Pontevedra: Mirabel Editorial, pp. 143-155.

_____ (2007). Novelas españolas del siglo XIX en series de televisión: Los Pazos de Ulloa y La Regenta. En M. García Casado (Ed.), La creatividad como instrumento de comunicación: Análisis, procedimientos y aplicaciones, Santander: Universidad de Cantabria, pp. 25-38.

_____ (2011). El final de Los Pazos de Ulloa (1886), de Emilia Pardo Bazán. En La fin du texte (textes réunis et présentés par F. Bravo), Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, pp. 384-400.

_____ (2012). Del libro a la televisión: Los Pazos de Ulloa - La Madre Naturaleza de Emilia Pardo Bazán (1886-1887) y Los Pazos de Ulloa, de Gonzalo Suárez (1985). Conferencia inaugural de las “VI Jornadas de Estudos Espanhóis e Hispano-americanos: Crear, pensar, interpretar: del texto literario al audiovisual”. Instituto de Letras e Ciencias Humanas, Universidade do Minho; Braga (Portugal), 19 de abril de 2012 [inédita].

_____ (2019). El episodio compostelano de Los Pazos de Ulloa, en Emilia Pardo Bazán (1886) y en Gonzalo Suárez (1985), Volvoreta: revista de Literatura, Xornalismo e Historia do Cinema, nº 3: Wenceslao Fernández Flórez y los escritores gallegos en lengua española, pp. 7-24 [edición electrónica].

_____ (2020). Los Pazos de Ulloa - La Madre Naturaleza, de Emilia Pardo Bazán: del libro (1886-1887) a la televisión (1985), Siglo Diecinueve (Literatura Hispánica), 26, Sección monográfica: Homenaje a Maryellen Bieder, pp. 87-104. accesible en: https://www.siglodiecinueve.com/index.php/SDiec/article/view/144

Gutiérrez Aragón, M.; G. Suárez; C. Rico-Godoy (1985). Los Pazos de Ulloa [guion de una serie de televisión, basado en las novelas de Emilia Pardo Bazán Los Pazos de Ulloa. La Madre Naturaleza, s.a.; copia mecanografiada, inédita].

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103–113. eISSN: 2184-7010 EL FINAL DE LOS PAZOS DE ULLOA 113

Hernández Ruiz, J. (1991). Gonzalo Suárez: un combate ganado a la ficción. Alcalá de Henares: Festival de Cine. Herrero Figueroa, A. (2004). Pardo Bazán e o cinema. Los Pazos de Ulloa, hipertexto. En Estudos sobre Emilia Pardo Bazán e recompilación de dispersos, Lugo: Servicio de Publicaciones, Diputación Provincial de Lugo; accesible en: http://www.cervantesvirtual.com/obra- visor/estudos-sobre-emilia-pardo-bazn-e-recompilacin-de-dispersos-0/html/00c6daa2- 82b2-11df-acc7-002185ce6064_37.html#I_11_ Pardo Bazán, E. (1999). Los Pazos de Ulloa. La Madre Naturaleza. En Obras Completas, II, ed. de D. Villanueva y J. M. González Herrán, Madrid: Biblioteca Castro.

Villanueva, D. (2000). Los Pazos de Ulloa ante la crisis de la novela. En Emilia Pardo Bazán, Los Pazos de Ulloa, ed. de E. Penas, pp. IX-XXIV.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 103-113. eISSN: 2184-7010

AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS: A ADAPTAÇÃO DO ROMANCE DE MARIA ADELAIDE AMARAL PARA AS TELAS E A MEMÓRIA DA DITADURA BRASILEIRA

AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS: THE ADAPTATION OF MARIA ADELAIDE AMARAL'S NOVEL TO THE SCREENS AND THE BRAZILIAN DICTATORSHIP MEMORY

LAÍS NATALINO* [email protected]

Este artigo dedica-se ao (re)conhecimento da obra intermediática da autora luso-brasileira Maria Adelaide Amaral e busca destacar os eventos sociais e políticos – em especial no que se refere ao período da ditadura militar no Brasil – que são recuperados na adaptação do romance Aos meus amigos (1991) para a televisão na minissérie Queridos amigos (2008), exibida pela Rede Globo. O texto está organizado a partir de três pontos: uma breve descrição da vida e obra da autora; a discussão da importância das minisséries na construção de sua carreira e principalmente na recuperação da história do/no Brasil; e o revisitar o período da ditadura brasileira através da adaptação de Aos meus amigos (1991). Pretende-se, portanto, dar visibilidade e destaque ao trabalho de Maria Adelaide Amaral como mulher, novelista e dramaturga que experienciou a ditadura e expõe essa experiência em sua obra.

Palavras-chave: Adaptação; Maria Adelaide Amaral; Ditadura brasileira; Memória.

This paper aims to review the intermediatic work of the Luso-Brazilian author Maria Adelaide Amaral and highlights social and political events – especially in Brazil's dictatorial period – that are revisited in the adaptation of the author's novel Aos meus amigos (1991) to a TV miniseries called Queridos amigos (2008) broadcast by Rede Globo. The study is organized in three points: first, a brief description of the author's life and work; secondly, a discussion about the importance of TV miniseries in the construction of the author's career, as well its importance for recover history in/of Brazil; thirdly the rediscovery of the Brazilian dictatorial period through the Aos meus amigos the TV miniseries adaptation. Therefore, it is intended to give visibility and prominence to the work of Maria Adelaide Amaral as a woman, novelist and playwright who experienced the dictatorship and exposed this experience in her work.

Keywords: Adaptation; Maria Adelaide Amaral; Brazilian dictatorship; Memory.

Data de receção: [2020-01-31] Data de aceitação: [2020-04-21] DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2513

* Investigadora doutorada, Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0003-2456-708X 116 LAÍS NATALINO

Se não partirmos da realidade, não conseguiremos fazer ficção. A ficção só é possível a partir do conhecimento profundo da realidade. — Maria Adelaide Amaral

1. Introdução

Para Maria Adelaide Amaral, as minisséries históricas são uma grande oportunidade de o Brasil conhecer o Brasil. Partindo dessa ideia, o presente texto tem por objetivo (re)conhecer a obra intermediática da autora e observar que temáticas, fatos sociais e políticos são recuperados na adaptação do romance Aos meus amigos (1991) para as telas na minissérie Queridos amigos (2008), em especial no que se refere ao período da ditadura militar no Brasil. O silenciamento e a opressão vivenciados por duas décadas de governo militar interferiram não só no cotidiano do país, mas também em suas manifestações culturais e artísticas, uma vez que artistas de todas as esferas estiveram, durante esse período, sob constante vigilância. Com as Diretas Já1, entre 1983 e 1984, a aprovação da emenda constitucional, em 1985, e o fim dos vestígios da ditadura, começaram a surgir trabalhos artísticos que discutem e descrevem os Anos de Chumbo2. É então nesse contexto que surge o romance Aos Meus Amigos (1991), que, como muitas outras manifestações artísticas da época, recuperam os eventos e as emoções vivenciadas durante o período ditatorial. Para Reis, “Aos meus amigos elabora um retrato, nem sempre repousante e sereno, de um grupo de amigos, cujo percurso existencial, de contorno multifacetado, esbarra no contexto opressor da ditadura” (2013, p. 226). No romance, escrito por Maria Adelaide Amaral, e na minissérie, adaptada pela mesma autora, os personagens são atravessados por questões políticas do período, e especialmente a minissérie “é permeada por relações pessoais, experiências e lembranças que retratam a transição do período ditatorial à redemocratização do país” (Fonseca, 2017, p. 79). As obras funcionam assim como excelente material para a recuperação dessa parte da história do País. Assim, este artigo busca discutir como o período ditatorial é recuperado nas obras; observar o contexto em que estas são produzidas e veiculadas; bem como destacar os fatos sociais, econômicos e políticos que são evidenciados em seus enredos. Para tanto, são destacadas algumas questões relacionas à adaptação do romance para as telas. O texto encontra-se organizado a partir três pontos: uma breve descrição da vida e da obra de Maria Adelaide Amaral; a discussão da importância das minisséries na construção de sua carreira e principalmente na recuperação da história do/no Brasil; e a recuperação da ditadura brasileira através da adaptação de Aos meus amigos (1991). Pretende-se, sobretudo, evidenciar a obra da autora como mulher, novelista e dramaturga que experienciou a ditadura e expõe essa experiência em sua obra.

1 Movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido entre 1983 e 1984. 2 A expressão anos de chumbo origina-se com um fenômeno ocorrido na Europa Ocidental, relacionado com a Guerra Fria e com a estratégia da tensão. No Brasil, representa o período mais repressivo da ditadura militar no Brasil, estendendo-se basicamente do fim de 1968 até o final do governo Médici, em março de 1974.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010 AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS 117

2. Vida e obra intermediática de Maria Adelaide Amaral

Maria Adelaide Almeida Santos do Amaral nasceu em Valongo em 1942. Sua família, que pertencia ao ramo da ourivesaria, imigrou para o Brasil em 1954, instalando-se na cidade de São Paulo. Seu contato com a arte surge quando ainda era pequena, em Portugal, onde já tinha acesso a livros, cinema e espetáculos circenses. Em diversas entrevistas3 menciona que sonhava em ser atriz e, em 1957, durante sua adolescência, atuou no Teatro da Juventude em um programa em comemoração dos vinte e cinco anos da Revolução Constitucionalista Brasileira dirigido por Júlio Gouveia, diretor de teatro e televisão e um dos precursores da televisão no Brasil. Posteriormente, em 1960, protagonizou uma novela na TV Cultura e, no ano seguinte, depois de participar de uma comédia na TV Excelsior, gravada em videotape, desistiu de sua carreira de atriz após ver, pela primeira vez, sua imagem no vídeo. Nos tempos de colégio em São Paulo sua amizade com Décio Bar4 influenciou sobremaneira sua formação, uma vez que este era leitor de Heidegger, Kant, Hegel e Sartre. Foi neste momento que ela também passou a conhecer Erich Fromm, Simone Beauvoir e Fernando Pessoa. Formou-se em Jornalismo pela Escola de Comunicações da Fundação Cásper Líbero e por dezasseis anos trabalhou na Editora Abril, época na qual escreveu suas primeiras peças teatrais. Em 1975, escreveu seu primeiro texto dramatúrgico, inspirado no corte de funcionários de uma empresa em São Paulo: A resistência. O texto foi premiado no concurso do Serviço Nacional de Teatro (SNT), mas a peça não pôde ser encenada em função da censura da época. Outro texto da autora também interditado foi Cemitério sem cruzes, uma reportagem cênica escrita para integrar a Feira Brasileira de Opinião, em 1978, e que tratava de aspetos socioculturais de trabalhadores da construção civil. Seu primeiro texto a ser encenado foi Bodas de papel, escrito em 1976 e montado em 1978, em São Paulo. A obra foi amplamente reconhecida e recebeu os prêmios Molière, Governador do Estado, Ziembinski e APCA. Em 1986, publicou seu primeiro livro, Luísa: quase uma história de amor pela Editora Nova Fronteira e ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance daquele ano. O texto traz uma profunda reflexão sobre a construção (e descontrução) do olhar feminino através da personagem principal: Luísa. O livro deu origem à peça teatral De braços abertos, dirigida por José Possi Neto. Entrou para a televisão em 1979, a convite de Lauro César Muniz para colaborar na novela Os gigantes. Entretanto, é com o convite de Cassiano Gabus Mendes, em 1990, para escrever com ele a novela Meu bem, meu mal que a dramaturga passa a dedicar-se à carreira de novelista. A partir daí foi contratada como autora da Rede Globo5 e, após trabalhar como colaboradora em diversas novelas, em 1997, escreveu como autora principal o remake da novela Anjo mau. Como se pode observar, a produção artística de Maria Adelaide Amaral transita em diferentes formas de autoria e seu percurso temático está marcado por textos que se

3 A exemplo, ver Drauzio Varella (2016). 4 Poeta, escritor, realizador e jornalista que confrontou a ditadura militar com a sua arte. Se envolveu em atividades políticas e culturais e nos anos 60 fez parte do grupo literário Poetas Novíssimos, conhecidos como “malditos”, porque se contrapunham à estética e ao formalismo da poesia concreta. 5 Criada em 1965 no Rio de Janeiro, a Rede Globo de Televisão passa a se consolidar como emissora de maior audiência no país a partir do final da década de 1960, ultrapassando a TV Tupi. Esse crescimento se dá principalmente pelo investimento da empresa em dois setores: o jornalismo e a teledramaturgia.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 115–126. e ISSN: 2184-7010 118 LAÍS NATALINO relacionam a dramas familiares e afetivos e aspetos socioculturais de diversos grupos da classe média brasileira. A maneira experimental como ela descobre-se como dramaturga chama atenção de Araújo (2009, p. 35), que considera este um dos fatores que levaram seus campos de atuação a se abrirem para a literatura e para teledramaturgia. Para Araújo (2009, p. 35), Maria Adelaide Amaral opera em uma “’dramaturgia em trânsito’ e seu ponto de partida é a página”. Uma nova forma de a dramaturgia de Maria Adelaide Amaral chegar às telas foram as minisséries, especialmente as adaptações literárias, que deram ainda mais destaque ao nome da autora.

3. As minisséries de Maria Adelaide Amaral e a recuperação da história do/no Brasil

Em 2000, ao lado de João Emanuel Carneiro e Vicent Villari, Maria Adelaide Amaral escreveu sua primeira minissérie, A muralha, inspirada no livro homônimo de Dinah Silveira de Queiroz. Essa minissérie fez parte das comemorações pelos 500 anos de Descobrimento do Brasil e surge, então, em um contexto em que a imprensa, o mercado editorial, a produção acadêmica, artística e mais uma variedade de setores da iniciativa privada e do Governo Federal brasileiro promovem uma série de iniciativas para revisitar a História do País. Em 2001, Maria Adelaide Amaral escreveu Os Maias, uma adaptação da obra de Eça de Queiroz, e dois anos mais tarde adaptou A casa das sete mulheres (2003) a partir da obra homônima de Letícia Wierzchowski, que conta a história da Revolução da Farroupilha, um dos mais longos movimentos separatistas da primeira metade do século XIX. Já em 2004, como parte das comemorações pelos 450 anos da cidade de São Paulo, escreveu, em conjunto com Alcides Nogueira, a minissérie Um só coração, que se passa na Semana de Arte Moderna de 1922 e traz para o enredo importantes artistas da época, como Mário de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Essa minissérie também possibilita um revisitar à peça Tarsila, escrita por Maria Adelaide Amaral em 2003 e baseada em episódios da vida da pintora modernista Tarsila do Amaral e de seus principais amigos, expoentes do modernismo brasileiro. Ainda no âmbito das minisséries históricas, Adelaide escreve, em 2006, JK, minissérie baseada na biografia do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Em seguida, escreveu, ainda, outras duas minisséries: Dalva e Herivelto (2010), na qual abordou a história do casal de músicos Dalva de Oliveira e ; e Dercy de verdade (2012), baseada na biografia da comediante Dercy Gonçalves (Memória Globo, 2020 s/p). Em todas essas produções observa-se o emparelhamento de narrativas históricas e biográficas (Araújo, 2009, p. 110) em “uma das convenções mais usadas nas minisséries históricas, que é a de recontar o passado usando como elemento de sustentação uma biografia, uma micro-história que articula os demais percursos” (Tesche, 2006, p. 2). Através das “micro-histórias”, a minissérie “revela estruturas e códigos sociais de um determinado lugar e época, fonte e forma de aliança ou conflito entre o tradicional e o novo” (Tesche, 2006, p. 2). Cabe pontuar que as telenovelas e a minisséries são gêneros comuns à narrativa seriada, entretanto, há algumas características que as diferenciam. Quanto ao formato das minisséries, Rondini (2007, pp. 1–2) elucida que há três considerações que o

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010 AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS 119 determinam: a) o número de capítulos (mais de um e bem menos capítulos que uma novela); a) construção da produção considerando o fato de ser aberto ou fechado quanto à escrita (estar ou não concluído quando a minissérie está sendo exibida); e c) as temáticas ligadas à realidade nacional (construídas por meio de textos originais ou adaptados e o horário e o período de exibição). Um aspeto interessante colocado pelo autor relaciona-se com o horário de exibição das minisséries, que normalmente são apresentadas por volta das 22 horas, o que, segundo ele, resulta em menores interferências relacionadas à censura, possibilitando a inovação e a abertura para temas ou assuntos polêmicos que se aprofundam em questões históricas, comportamentais e de violências. A minissérie, segundo Araújo (2009, p. 110), também se diferencia da novela não só pela extensão, mas por trazer a figura do autor/a mais bem delimitada, isto é, o/a autor/a tem mais liberdade, uma vez que o público não interfere no enredo como costuma ocorrer na exibição das novelas, em que, de acordo com os índices de audiência dos episódios, os/as autores/as podem alterar a trama ou as características de personagens, de modo a satisfazer e manter o público. Outra particularidade apontada por Reimão (2004, p. 29) é que as minisséries, especialmente as oriundas de adaptações literárias, parecem ter a função de legitimar o veículo TV no conjunto das produções culturais nacionais e no sistema cultural brasileiro como um todo. No que se refere à recuperação da História e a tentativa de retratar o Brasil nas telas através de minisséries, a mesma autora aponta que:

(…) este não é um fenômeno recente, ao contrário, é um fato que acompanha este formato televisivo específico desde sua ascensão, no início da década de 1980, período que marca a falência da TV Tupi e certo desinteresse da audiência pelas telenovelas. (Reimão, 2004, p. 109).

A autora explica que a necessidade e a preocupação de que a produção artística, cultural e televisiva represente o Brasil a partir dos olhos dos brasileiros e enquanto nação surge na década de 1980, ainda aliada à ideologia da ditadura, que pretendia fazer a integração do país pelos media. No que diz respeito à produção de minisséries na TV Globo entre 1980–1990, cabe mencionar a minissérie Anos rebeldes (1991) de Gilberto Braga e Sérgio Marques, que teve grande repercussão por tratar da opressão e da censura do regime militar durante o período conhecido metaforicamente como “anos de chumbo” devido às arbitrariedades e violências perpetradas pelos militares contra o povo brasileiro. Ao considerar as manifestações culturais como produtos e também produções do social, compreende-se que filmes, novelas e minisséries sejam, então, afetadas pelo contexto social, assim como, constitutivas dele e, dessa forma, analisar minisséries que tratam de temas históricos e especificamente de períodos de regime ditatorial é tentar compreender que traços desse período socio-histórico do país são representados, postos em evidência, rememorados, ou silenciados, ressinificando, assim, tanto a História do país quanto a de seus sujeitos. É nesse contexto que se discute, aqui, a adaptação do romance Aos meus amigos (1991) de Maria Adelaide Amaral para as telas na minissérie Queridos amigos (2008).

4. Aos meus (queridos) amigos e o re(conhecimento) da ditadura brasileira

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 115–126. e ISSN: 2184-7010 120 LAÍS NATALINO

Estruturado basicamente por discurso direto, o romance Aos meus amigos assinala uma encenação mais organizada na forma de diálogos do que em descrições. Em seu texto, assim como ocorre em conversas reais, os fatos e personagens são construídos através de referências e reminiscências. Para Araújo (2009, p. 133), o romance tem uma extensão que o palco não sustentaria, senão com muitos cortes e reduções. As telas, por outro lado, dão margem para que os personagens possam expandir-se das páginas e ganhar novos conflitos e características. Maria Adelaide Amaral, em entrevista com Zean Bravo, para O Globo (2008) comenta que nunca havia pensado na adaptação da obra para TV, mas sim para cinema. Ela elucida que na televisão sempre acabou adaptando, recriando ou trabalhando com personagens e fatos históricos, o que exigia que o trabalho fosse o mais fiel à realidade possível. Ela admite sua preferência em trabalhar com conteúdos para televisão por apreciar as duas pontas do processo, a inicial (escrever) e a final (editar), e, considerar- se, ainda, uma boa editora “porque gosta de cortar” e acredita que “menos é mais”. Isso talvez justifique alguns aspetos da adaptação da obra. A minissérie Queridos amigos, escrita com a colaboração de Letícia May, é composta de 25 capítulos, com duração de 40 minutos, exibidos pela Rede Globo de televisão às 23 horas, entre 18 de fevereiro e 28 de março de 2008. Este foi o primeiro trabalho exclusivamente autoral de Maria Adelaide na televisão, uma vez que não contou com nenhuma biografia ou obra de outro autor como fonte adaptativa. Para a autora, Queridos amigos foi a única obra verdadeiramente pessoal que escreveu para televisão.

Foi uma grande viagem à minha memória e às minhas entranhas. Às vezes era muito doloroso escrever porque revivia e nem sempre era fácil reviver certas situações. Em alguns momentos, me senti devassada, exposta, dilacerada. Em carne viva. Em outros momentos experimentava total euforia. Estava cercada de mortos, de lembranças alegres e outras bem tristes. Era tudo tão remoto, tão próximo. E ver aqueles atores maravilhosos dando corpo e alma aos personagens era incrível, intenso. Insuportável algumas vezes. Uma catarse sempre. (Araújo, 2009, p. 146).

O enredo do romance e da minissérie é baseado em histórias reais da vida da escritora, tendo como tema central as memórias de um tempo de fraternidade, de coletividade, de troca e de alegrias em meio a um tempo de sombra: os “Anos de chumbo”. A trama ocorre entre outubro e novembro de 1989, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e revisita o cenário da década de 1970, durante o período da ditadura militar no Brasil (1964–1985). Nesse contexto, um grupo de amigos com ideais de esquerda vive uma grande história de amor e amizade que se articula em torno de memórias, reencontros e desencontros, afetivos e políticos. Os amigos se conhecem no auge da ditadura no país, estabelecem uma amizade profunda e se autodenominam uma ‘família’, a qual, entretanto, distancia-se com os passar do tempo e em função das relações amorosas, da política, das mágoas e dos ressentimentos mal resolvidos. A ‘família’ volta a se reunir no contexto da morte de um dos amigos, Léo6, um escritor e publicitário que, na minissérie, é interpretado por Dan Stulbach. Neste momento, ninguém sabe ao certo se a ‘família’ ainda existe; ninguém nem ao menos sabe se os antigos vínculos de amizade ainda estão (ou podem) ser mantidos. O romance inicia-se com o anúncio da morte de Léo que motivado por um impulso suicida-se ao jogar-se pela janela. Já na minissérie, depois de descobrir que está doente, ele simula a própria morte numa preparação para o seu suicídio, que só ocorre semanas

6 Este personagem é inspirado em Décio Bar, amigo da autora a quem o romance é dedicado.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010 AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS 121 depois, já nos episódios finais. Sua morte é, então, delicadamente e amorosamente organizada na minissérie e, tal como o próprio personagem menciona, ele faz da sua morte uma obra de arte que faz emergir os antigos sonhos, os ideais e as paixões de seus queridos amigos. A diretora da minissérie, Denise Saraceni, menciona, no making of da minissérie, que o grande desafio foi tirar o olhar pessoal da autora e transformá-lo em personagens que retratassem esse momento histórico brasileiro pouco lembrado. Isto pode explicar um aspeto importante na adaptação da obra, que é que os personagens do livro não são exatamente os mesmos da minissérie. Por exemplo, personagens importantes da série, como a Vânia (Drica Moraes) e a Raquel (Maria Luiza Mendonça) são apenas citadas no livro e algumas que nem lá aparecem, tornam-se essenciais na trama da minissérie, como é o caso das travestis Cintia e Brenda. Isto evidencia o fato de que, na adaptação do romance, além das omissões e acréscimos de personagens, todos parecem ganhar novas características e personalidades. Relativamente aos personagens da minissérie, Fonseca aponta para uma distinta gama de arquétipos que representam uma geração múltipla:

(…) o amigo amoroso que sente saudades dos amigos, no entanto não tem apego com o presente, Léo; a psicóloga bem-sucedida, Lúcia; a mulher divorciada, Lena; a hippie espiritualizada, Bia; o jornalista que diz-se comunista, Tito; o jornalista frustrado na profissão e casamento, Ivan; o yuppie bem sucedido, Rui; a mãe de família traída pelo marido, Raquel; o professor universitário, Pingo; o homossexual com o vírus da AIDS, Benny; o poeta depressivo, Pedro; a ex-revolucionária que tornou-se classe alta, Vânia. (2017, pp. 78–79)

A diretora, Denise Saraceni, também comenta que para retratar o período da ditadura brasileira, foi necessário usar várias referências artísticas da época e preparar o elenco com uma imersão a partir de filmes e documentários que recuperam não só a história, mas aspectos referentes às emoções vivenciadas naquele período e alusivas aos eventos retratados no enredo. Um exemplo dessas referências, segundo ela, foi o documentário da volta de Betinho7 (Herbert José de Sousa) do exílio. A maneira como o material de pesquisa é incorporado na estrutura da minissérie revela um caráter narrativo que, muitas vezes, assemelha-se a uma estética documental, em que percebemos como a obra é influenciada por outros gêneros textuais, como a biografia, o documentário e o relato testemunhal, reconstruídos a partir de uma só história. A experiência de Maria Adelaide Amaral como jornalista também foi decisiva para seus trabalhos Aos meus amigos e Queridos amigos, uma vez que o contexto social nacional e mundial aparece no enredo das obras e é representado através de uma sociedade em momentos de transição (política e econômica). Alguns temas retratados são: a queda do muro de Berlim, o colapso dos regimes comunistas do Leste, o fim da Cortina de Ferro como divisor de hegemonias políticas, a dominação de União Soviética e dos Estados Unidos, as eleições diretas para a Presidência da República no Brasil, a inflação que superava 50% ao mês no País, as altas taxas de desemprego e, especialmente, o funcionamento do jornalismo brasileiro nesse contexto. Esses eventos, somados e entrelaçados com as histórias dos personagens, promovem uma trama carregada de questionamentos. Há, sobretudo, uma tentativa de desconstrução e restauração do passado a partir de reflexões relacionadas à distância e à perda do afeto que alimentava aquele antigo grupo, que, estimulado pela contracultura

7 Betinho foi um importante sociólogo e ativista dos direitos humanos que, por mobilizar-se contra o regime e em prol de causas sociais, foi obrigado a se exilar no Chile, em 1971.

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 115–126. e ISSN: 2184-7010 122 LAÍS NATALINO da época, viveu as ilusões de esquerda durante a ditadura militar no Brasil. Veja-se a passagem que segue do romance:

Não sei se a gente tem saudade daquilo que realmente viveu, ou daquilo que pensou ter vivido, ou daquilo que desistiu de viver. A memória seleciona e idealiza, Lu - disse Pedro, lembrando-se do tempo em que era um sucesso e do qual sentia uma saudade dolorosa. (Amaral, 2008, p. 156).

Outra questão interessante que merece ser destacada é que, na minissérie, quase todos os personagens estão ou já estiveram direta ou indiretamente ligados à política. Os mais diretamente envolvidos são Ivan e Tito, jornalistas, ex-presos políticos; Pedro, autor de romances que denuncia os porões da ditadura militar; Bia, presa e torturada no DOI-Codi (Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Até os que não alinharam com a luta armada no País, ajudaram a esconder amigos, mobilizaram suas relações para resgatá-los da prisão ou órgãos da repressão, ou facilitaram suas partidas para o exílio. A autora, Maria Adelaide Amaral, alega nunca ter se filiado a nenhum partido político, entretanto sempre se alinhou à esquerda. Durante a ditadura, sobretudo nos anos 1970, declara ter feito parte daquele grupo de pessoas que subscrevia abaixo- assinados contra a repressão, ajudava as famílias de companheiros presos e dava suporte à imprensa. Esse posicionamento pode ser deduzido a partir do modo como escreve o romance e a minissérie e principalmente no modo como constrói seus personagens. Fonseca menciona que esses personagens e suas peculiaridades “representam uma geração múltipla, que para além de seus perfis pessoais pós redemocratização do país, são atravessados pela afetividade, e, através dela, fortalecem-se uns aos outros nas adversidades do período” (2017, p. 78). Além disso, a recuperação do período ditatorial não é trazida apenas em tom de sofrimento, e trauma, mas também a partir do espírito de coletividade e de politização do cotidiano (2017, p. 78). A abertura da minissérie, criada pelo design Hans Donner a partir de imagens do artista plástico Elifas Andreato, e a música escolhida como tema de abertura (Nada será como antes, de ) já fazem referência a essa recuperação socio- histórica, evidenciando como todos tornaram-se reféns, direta ou indiretamente, da violência política vivenciada no período da ditadura e como esta interferiu nas opções profissionais, nos ideais e na vida pessoal dos/as brasileiros/as.

Eu já estou com o pé nessa estrada Qualquer dia a gente se vê Sei que nada será como antes amanhã Que notícias me dão dos amigos? Que notícias me dão de você? Sei que nada será como está, amanhã ou depois de amanhã Resistindo na boca da noite um gosto de sol Num domingo qualquer, qualquer hora Ventania em qualquer direção Sei que nada será como antes…

As questões de gênero também aparecem na trama da minissérie ao abordar assuntos como independência financeira, estupro, divórcio, traição, homossexualidade e transexualidade. Há, também, uma forte problematização da questão da tortura e do estupro de mulheres nas prisões ditatoriais e os impactos psicológicos e emocionais dessas violências, questões que não aparecem propriamente no romance. Para Wolff (2015, p. 983) toda tortura é, de certa forma, também sexual, uma vez que sempre se inicia com o ato de exposição da nudez, entretanto, no que se refere

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010 AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS 123 especialmente aos insultos de cunho sexual, a autora destaca que, no caso das mulheres, permeava sempre a ideia de corresponsabilidade perante a violação. Isso fica muito evidente em várias cenas da minissérie em que Bia (interpretada por Denise Fraga), torturada no DOI-Codi, em 1964, lembra do que ouvia enquanto estava presa e sendo torturada: “Chegou teu macho, vagabunda. Não adianta fazer de conta que não gosta. Eu vou te dar uma coisa melhor que o Chico Doce” (porrete utilizado para estuprar presos). Pode-se dizer que, na minissérie, a tortura foi utilizada para sensibilizar o público, uma vez que, segundo Wolff (2015, p. 983), a tortura e a dor são capazes de evocar sentimentos de empatia e compaixão. A autora menciona, ainda, que a descrição das formas de tortura é uma estratégia usada para gerar uma emoção, representando, também, quase que uma dor física. Para ela, esses relatos descrevem dor, mas também sentimentos como raiva, vergonha, desespero. Chama especialmente a atenção uma das cenas mais emocionantes da minissérie em que a mãe de Bia, Iraci, (interpretada por ) fica frente a frente com o torturador de sua filha e lê um diário que relembra detalhes das grandes violências praticadas contra sua filha (e contra tantas outras mulheres). Nesta cena, o torturador defende-se e usa a frase “Se tem uma coisa que eu respeito, é mãe (…). Não há ninguém que eu respeite mais do que minha mãe”. Aqui, aparece a estratégia política muito bem- sucedida durante a ditadura que é o uso e a promoção de ideias e sentimentos ligados à maternidade e à família. Na minissérie, os mesmos sentimentos são usados desta vez para denunciar os crimes e violências cometidos durante o regime. No enredo, Bia recusa-se a denunciar seu torturador, pois acredita que este não seria punido e poderia, ainda, querer se vingar e tentar novos ataques contra ela. Apesar de ser uma mulher meiga, que estuda astrologia, budismo e acredita em um grande amor, a personagem Bia traz a dor, o medo e os traumas irreparáveis da tortura. As emoções de Bia, como menciona Wolff (2015, p. 975), “se entrelaçam em uma retórica que apela para os sentimentos da opinião pública com objetivos políticos”. É importante mencionar o contexto político no qual a minissérie foi ao ar. Fonseca (2017, p. 72) comenta que nos anos 2000, a ficção brasileira contemporânea, começou a revisitar temas ligados ao Anos de Chumbo. Nesse período, multiplicam-se, no panorama audiovisual brasileiro, os trabalhos de diferentes autores, realizadores e instâncias enunciadoras com produções que tratam da ausência de liberdade, da tortura do exílio, “obras de reconstituição, militância e crítica, que conferem uma abordagem histórica às narrativas e traçam um panorama do período circunscrito pela ditadura militar” (2017, p. 73). Para Oricchio (2003, p. 104),

Recuperar este tempo seria, de certa forma, uma maneira, um recurso, não apenas para voltar a falar de política numa época em que ela se encontra desvalorizada, mas válido como estratégia para repolitizar uma sociedade que não pode ou não deseja se pensar nesses termos.

As produções que tratam de forma crítica desse passado parecem estar cada vez mais comprometidas no âmbito da produção televisiva brasileira. Com um governo que se contrapõe aos ideais de esquerda e que celebra o período de ditadura militar, o País parece passar por um novo tempo de silenciamento, em que o processo de censura é velado e principalmente imposto por meio dos órgãos financiadores, inibindo a expressão e do diálogo entre os/as brasileiros/as. Desde 2013, o Brasil percorre uma dinâmica de polarização político-ideológica cujo centro simbólico é o Partido dos Trabalhadores (PT). Em meio a múltiplas pautas, surgiram no contexto brasileiro, mobilizações intensas em prol dos serviços públicos de qualidade e da moralidade na política com o tema anticorrupção. Em 2015, após o

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 115–126. e ISSN: 2184-7010 124 LAÍS NATALINO impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, do PT, e das eleições de 2018, que resultaram na vitória do então Presidente, Jair Bolsonaro, houve uma intensificação das pautas conservadoras no País. Essa divisão político-ideológica pela qual a sociedade brasileira atravessa desde 2013 até os dias de hoje (2020) faz com que este trecho do romance de Maria Adelaide Amaral nos pareça muito atual:

- Sinto saudade do tempo em que a gente era amigo. (…) - Nós temos que ficar juntos. Nós, que apesar de todas as diferenças nos queremos tanto, por tudo o que vivemos, pela cumplicidade que muitas vezes não é verbal, mas que se expressa na nossa afetividade, na agressão, no carinho que temos uns pelos outros, que é o carinho pela nossa juventude, nós não podemos romper, nos afastar. (Amaral, 2008, p. 202).

5. Considerações finais

O reencontro dos amigos, no romance, ocorre em um momento de luto, a morte de Léo. Na minissérie, por outro lado, o reencontro ocorre em um momento festivo, em que ele organiza uma festa em sua casa, para rever ‘a família’. Apesar da diferença situacional percebe-se que tanto no romance quanto na minissérie o reencontro perpassa por representações de nostalgia, do que poderia ter sido do futuro que lhes fora roubado durante o período da ditadura, seja devido ao tempo no exílio, seja pelas prisões e tortura, como pelas transformações sociais deixadas por essa época. Mais que o reencontro de um grupo de amigos afetados pelo contexto social e político do Brasil no período da ditadura, as duas obras possibilitam o reencontro com a história do/no País e do modo como ela atinge individualmente diferentes classes de brasileiros. A maestria com que Maria Adelaide Amaral desenvolve seus trabalhos como escritora, dramaturga e novelista e principalmente como expõe sua experiência de vida em sua obra, além de promover a recuperação da história do Brasil, proporciona que seu público se identifique com a época retratada, seja através dos afetos, das relações ou das emoções que os personagens produzem no entrelaçar de suas histórias com a História do País. Ademais, evidencia-se que as obras de Maria Adelaide Amaral aqui analisadas promovem interfaces interessantes com a construção da memória, dos direitos humanos, da produção cultural e do protagonismo das mulheres. Assim, com sua obra, estabelece pontes entre o passado e o presente e faz-nos refletir sobre as atuais políticas de preservação dos lugares de memória. Relativamente ao sentido de preservação do passado, Ferraz e Campos (2018, p. 181) mencionam que um dos maiores problemas é o das disputas pelas memórias coletivas. Para os autores, é fundamental considerar três aspectos das disputas no campo da memória:

(a) movimentos políticos de transformações necessitam também de mudanças no campo da memória, ou seja, as leituras do passado afetam o cenário político do presente e do futuro; (b) a impossibilidade de se controlar plenamente construções ou mudanças no campo da memória; (c) e que memórias traumatizantes e dissidentes da memória oficial são capazes de sobreviver no nível do ”não-dito” durante anos. (Ferraz & Campos, 2018, p. 184).

Discutir diferentes produções artísticas que tratam do período ditatorial brasileiro, fomenta que este seja constantemente revisitado a partir de leituras transversais. Além disso,

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010 AOS MEUS (QUERIDOS) AMIGOS 125

Pensar o lugar político da memória deste período em nossa sociedade, sem ignorar o passado ou essencializá-lo talvez possa nos auxiliar. As cicatrizes produzidas pelo esquecimento e pelo silêncio podem nos levar à reatualização dos traumas individuais e coletivos. (Ferraz & Campos, 2018, p. 181).

É especialmente importante observar e discutir a participação de mulheres como experienciadoras e produtoras de arte durante e após a ditadura no Brasil e, sobretudo, explorar como essas mulheres (re)constroem sua memória e traduzem suas vivências em suas obras, uma vez que a relação entre as opressões que sofreram no passado e e as que ainda sofrem no presente são imprescindíveis para pensar questões de gênero, poder e memória.

REFERÊNCIAS

Amaral, M. A. (2008). Aos meus amigos (2.ª ed.). São Paulo: Globo.

Amaral, M. A. (s/d) Maria Adelaide Amaral. Enciclopédia Itaú Cultural. Consultado em http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa18034/maria-adelaide-amaral

Amaral, M. A. (s/d). Memória Globo. Consultado em https://memoriaglobo.globo.com/perfil/maria-adelaide-amaral-2/

Amaral, M. (Guionista) & Saraceni, D (Realizadora). (2008). Queridos amigos [Série televisiva]. Brasil: Rede Globo.

Araujo, L. C. (2009). Dramaturgia em trânsito: O teatro de Maria Adelaide Amaral da página às telas. (Dissertação de mestrado). Universidade de Brasília, Brasília.

Bravo, Z. (2012, janeiro 10). Maria Adelaide Amaral, autora de 'Queridos amigos', relembra a década de 80. O Globo. Consultado em https://oglobo.globo.com/cultura/maria-adelaide- amaral-autora-de-queridos-amigos-relembra-decada-de-80-3633504

Ferraz, J. D.A. F. e Campos, L. P. (2018). Os lugares de memória da ditadura: Disputas entre o poder público e os movimentos sociais. Cadernos de Sociomuseologia (pp.179-208), 55 (11).

Fonseca, E. V. (2017). A ficção televisual contemporânea e a temática da ditadura militar brasileira. Comunicologia (pp.67-83), 10 (1).

Oricchio, L. Z. (2003). Cinema de novo: Um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade.

Reimão, S. (2004). Livros e televisão: Correlações. São Paulo: Ateliê Editorial.

Reis, E. P. dos. (2013). Resenha de: AMARAL, Maria Adelaide. Aos meus amigos. São Paulo: Globo, 2009. 312 p. Revista do CESP. v. 33, n. 50. jul.-dez.

Roda Viva. [Roda Viva]. (2015, maio 27). Roda viva: Maria Adelaide Amaral 2015 [Registo vídeo]. Consultado em https://www.youtube.com/watch?v=A_nK-vJfBd0

Rondini, L. C. (2007). As minisséries da Globo e a grade de programação. Livro de atas: Intercom – Sociedade Brasileira de estudos Interdisciplinares de Comunicação. XXX

Revista 2i, Vol. 2 N.º 1, 2020, pp. 115–126. e ISSN: 2184-7010 126 LAÍS NATALINO

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos, 29 de agosto a 2 de setembro. p. 1-15. Consultado em http://www.adtevendo.com.br/2007.

Saraceni, D. [Jordão Qualquer]. (2008, novembro 22). Making of: Queridos amigos 1.ª parte. [Registo vídeo]. Consultado em https://www.youtube.com/watch?v=pziY1TFTMt0

Tesche, A. M. (2006). Midiatização da história nas minisséries da Globo. Unirevista, 1 (3), (pp.1-12)

Varella, D. [Drauzio Varella]. (2016, abril 14). Drauzio entrevista Maria Adelaide Amaral [Registo vídeo]. Consultado em https://www.youtube.com/watch?v=sSO-5nYPu10.

Wolff. C. S. (2015). Pedaços de alma: Emoções e gênero nos discursos da resistência. Estudos feministas, 23 (3), 975–989.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 115-126. eISSN: 2184-7010

MEDIOPATÍAS EL ESCRITOR Y LA (DES)LEGITIMACIÓN CULTURAL DE LA TELEVISIÓN EN ESPAÑA O LA REPRESENTACIÓN-NARRACIÓN FRENTE A LA REPRESENTACIÓN-ATRACCIÓN

MEDIOPATHIES THE WRITER AND THE CULTURAL (DE)LEGITIMISATION OF TELEVISION IN SPAIN OR REPRESENTATION-NARRATION VERSUS REPRESENTATION-ATTRACTION

LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ* [email protected]

A lo largo de la historia de los dispositivos ópticos y audiovisuales nos encontramos con la representación-narración y la representación-atracción, siendo la televisión ejemplo de esta última, aunque incluya ficciones y otras producciones más propias de la primera. La confusión entre lo que pertenece a una y otra ha llevado mayoritariamente a los escritores españoles a deslegitimar culturalmente dicho medio desde la época del franquismo hasta la actualidad y, por el contrario, a legitimar las ficciones de producción extranjera, por parecerles más próximas a la narrativa y el cine de calidad, instalándose en una perspectiva literariocentrista y cinecentrista que choca con el heterocentrismo cultural propio de nuestra época.

Palavras-Chave: televisión; literatura; autores españoles.

Throughout the history of optical and audiovisual devices we find representation-narration and representation-attraction, with television being an example of the latter, although it includes fictions and other productions more typical of the former. The confusion between what belongs to one and the other has led most Spanish writers to delegitimize this medium culturally from the time of Franco to the present and, on the contrary, to legitimize the fictions of foreign production, because they seem to be closer to narrative and quality cinema, installing themselves in a literary- centric and cinecentric perspective that clashes with the cultural heterocentrism of our time.

Keywords: television; literature; Spanish authors.

Data de receção: 2019-11-21 Data de aceitação: 2020-3-30 DOI: https://doi.org/ 10.21814/2i.2259

* Profesor Titular, Universidade de Santiago de Compostela, Facultade de Humanidades, Santiago de Compostela, España. ORCID: 0000-0002-1549-714X 128 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ

Sabido es que la visión a distancia o “tele-visión” es una de las querencias más antiguas de la sociedad occidental. Sin necesidad de remontarnos a aquel espejo de Luciano de Samósata que, en el siglo II de nuestra era, permitía ver desde la luna a los habitantes de la tierra, durante el siglo XVII fueron bastantes los autores que atribuyeron en sus ficciones a los espejos mágicos ese viejo sueño consistente en el acceso visual y simultáneo en el tiempo a un mundo ubicado en un espacio distante del espectador. Espejos y anteojos sirvieron a tal fin a Bernardo de Balbuena (El Bernardo, 1624), Vélez de Guevara (El diablo cojuelo, 1641) y Rodrigo Fernández de Ribera (Los anteojos de mejor vista, ¿1620?), convirtiendo lo visto a su través en algo atractivo y sorprendente para los ojos, pues el primero de ellos hablará del “gusto a los ojos, y al sentido espanto” y del “deleite a la vista” (Balbuena, 1852, p. 270) producidos por estas pantallas primerizas. El gusto para los ojos y las asombrosas visiones encontraron una fórmula singular de integración en Leibniz, el filósofo y matemático alemán de ese mismo siglo, bajo la denominación de “academia de las representaciones”. En 1675 publicó en francés un texto escasamente relevante en el conjunto de su producción, pero que a nosotros debería interesarnos de modo especial: “Drôle de pensée, touchant une nouvelle sorte de representations”. Ese pensamiento jocoso, o “drôle de pensée”, planteaba la necesidad de crear una “academia de las representaciones” en la que se pudiesen ofrecer al público, al selecto e instruido y a las grandes masas, un panorama de todas las ciencias y diversiones a cargo de artistas, científicos, poetas, artesanos y charlatanes de todo pelaje: astronomía, física, medicina, óptica, historia natural, autómatas, juegos de agua, juegos de cartas, conciertos, ejercicios de funambulismo, comedias y obras teatrales, exhibición de telescopios, microscopios, cajas ópticas, etc.; y todo ello articulado por proyecciones de linterna mágica. Se pretendía divulgar la cultura y la ciencia por medio del entretenimiento, y, mediante el hermetismo, asombrar a los espectadores con la tecnología del momento (Leibniz, 1958, pp. 758–768). Esta proposición de Leibniz anticipaba lo que iba a darse más tarde, en los siglos XVIII y XIX con los múltiples espectáculos de la plaza pública (linternas mágicas, mundinuevos, panoramas, sombras chinescas, recitadores y contadores de historias, cartelones de ciego, volatines y espectáculos de magia, etc.) y con el cinematógrafo-atracción de los primeros tiempos, el que abarca desde su nacimiento hasta los años 1908–1910, aproximadamente; aquel cine que respondería a un paradigma diferente al que triunfó después, que fue el del cine narrativo.1 El cinematógrafo-atracción, a diferencia del posterior cinematógrafo-narración, se inscribiría, según algunos, dentro del paradigma de la escena de finales del siglo XIX, compuesto por varias unidades de significación, desde el café-concierto, al teatro de sombras, las fantasmagorías, el circo, o el teatro de variedades, entre otras pertenecientes a distintas series culturales, y del que Méliès sería un representante cualificado (Gaudreault, 2008). En realidad, y más allá del cine — que no pasa de ser una anomalía en su singularidad dentro de una historia de los dispositivos ópticos que abarca varios siglos — creo que se podría hablar, siguiendo la línea trazada por Leibniz, de cuando menos dos paradigmas

1 Para todo lo referido a Leibniz, a los experimentos científicos destinados al entretenimiento, y a los espectáculos de la plaza pública durante los siglos XVII y XVIII, vid. Fernández (2006).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 129 básicos de la representación visual que se alternan a lo largo del tiempo: el de la representación-narración, que tiene como eje el relato de historias sustentadas en un universo diegético propio, y el de la representación-atracción, que se orienta hacia la pura manifestación visual, válida por sí misma, dirigida al espectador como una presencia inmediata que busca su asombro, sin apoyarse en un universo diegético coherente, y en la que la enunciación y la actio del aquí y ahora históricos domina sobre la narración de sucesos.2 Sin duda lo más cercano en la actualidad a la representación-atracción o a aquella “academia de las representaciones” de Leibniz, excluidos productos cinematográficos del tipo de los blockbusters y tráilers en los que también se observa el dominio de la atracción sobre la narración, es la televisión con su hibridismo de programas tan variados que se suceden sin aparente orden ni concierto. Obsérvese, por ejemplo, lo próximo que estaba José Martínez Ruiz Azorín en 1967, poco antes de su muerte, a una concepción de este tipo, cuando destacaba la condición transfronteriza y poliédrica del medio, que, al mismo tiempo que lo alejaba del arte y de la narración de historias, lo aproximaba al desorden propio de la vida, carente de cualquier argumento previo y sometido al aquí y el ahora de la palabra tanto o más que al dictado de la imagen:

Estoy, pues, ante un cine de urgencia. Craso error. El cine es una representación total, parcial, acaso insinuada simplemente de la vida. Y lo que de este aparato sale no es una historia argumentada, sino un argumento vivo, parece ser la vida misma desencorsetada, sin la sublimación que opera el arte sobre ella. El televisor, este televisor al menos, no quiere proponerme una historia de inmediato, sino que me está ofreciendo palabras, imágenes […] que están desasistidas de una concepción previa […] todo se mueve, se traslada, todo se sale de sí mismo como gestofronterizando su misma esencia. Estoy asombrado. Esto es fascinante. Esto es poliédrico. Y desperfilizador. Y bullente. Y vertiginoso. (Muñiz, 1977, p. 7)

Es esta una actitud muy parecida a la que tenía aquel personaje de una de las Historias para no dormir de Narciso Ibáñez Serrador — una de las series más relevantes de la televisión del franquismo — de título “El televisor”, de 1974, que se asombraba ante cada nuevo programa televisivo por parecerle sorprendente. De manera que frente al relato de conjunto y la unidad de visión propios del cine o la novela, cada programa, incluida la publicidad, era el relato mismo. Un recorrido lleno de fragmentos o digresiones en los que detenerse, pasando de un género al siguiente. Se crea, así, una distancia tonal, temática y emotiva, entre unos y otros, a la vez que se introduce el espectáculo de la plaza pública con sus múltiples atracciones propio de siglos anteriores en el ámbito privado de la sala de estar. Entremos, pues, en el domicilio de la familia más conocida de España, que no es otra que la de los Alcántara, protagonistas de la serie más popular del primer canal de la Televisión Española, la de más larga duración y de mayores audiencias, de título Cuéntame como pasó.3¿Qué es lo que ven sus personajes a través del aparato transmisor de imágenes de su sala de estar?

2 Aunque el concepto de ‘atracción’ fue el eje de los planteamientos teóricos sobre el cine del director ruso Eisenstein, especialmente en lo que él llamó el “montaje de atracciones”, aquí no se utiliza con el mismo sentido del citado cineasta, pues aparecen imbricados no solo el discurrir temporal de géneros no ficcionales y ficcionales distintos, sino también el predominio de la enunciación, de un ‘aquí’ y ‘ahora’ históricos, frente a la narración de un relato. 3 Serie sobre una familia de clase media, los Alcántara, desde 1968 hasta los años noventa del siglo pasado, y su evolución en consonancia con los cambios políticos, sociales y económicos de España, desde la época de Franco hasta la transición y los gobiernos socialistas. A través de sus componentes (los padres, la abuela y los cuatro hijos), de sus distintas posiciones políticas y vitales, se ven reflejadas las ambiciones de mejora de quienes emigraron del campo a la ciudad en esos años. Tales deseos van unidos a la creencia en un futuro

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010 130 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ

Aunque solo tienen ante sí dos cadenas de televisión de titularidad pública, las de RTVE, porque a esas alturas todavía no habían aparecido ni las televisiones privadas ni los canales de pago, lo cierto es que ven de todo, pasando de una atracción a otra: programas musicales como el Festival de Eurovisión (el del “La, la, la” de Massiel; y el del “Vivo cantando”, de Salomé), series extranjeras, especialmente Carlitos, uno de los hijos más pequeños (Los invasores, Bonanza) y españolas (Curro Jiménez, Verano azul), informativos y directos (la llegada del hombre a la luna en 1969, el Arias Navarro llorón por la muerte de Franco en 1975, las elecciones de 1977 y las del triunfo del PSOE en 1982), comedias de situación con entrevistas que tanto le gustan a Herminia (La casa de los Martínez), concursos (1,2,3, responda otra vez), magacines (el Directísimo de 1974 presentado por José M.ª Íñigo), debates (La Clave), programas infantiles (La bola de cristal, de 1984), etc. Pertenecen a períodos distintos — el franquismo, la transición a la democracia, los años de los primeros gobiernos socialistas — pero tienen dos cosas en común: reflejan las tres funciones generalmente atribuidas al medio, las de informar, divulgar y entretener, con predominio de esta última sobre las otras dos; y dan cuenta de algo propio de la televisión como es su capacidad de poner en contacto al espectador con sus semejantes de cualquier parte del mundo, de hablar de otros como si se tratase de él mismo, al compartir idéntico imaginario y parecidos valores comunitarios, autorreconociéndose en los otros, en su cotidianeidad y banalidad, trátese de los concursantes del 1,2,3, responda otra vez, de la familia de clase media de La casa de los Martínez, del didactismo identitario de una cierta realidad nacional de Curro Jiménez, o de la necesidad de diálogo entre unos y otros que los nuevos tiempos de la Transición traían consigo y que era lo más preciado de La Clave. Es el mismo efecto de familiaridad que se puede dar en tiempos más próximos entre los jóvenes espectadores y los participantes de Operación Triunfo y Gran Hermano, o en la visión patrimonial acerca de la historia de España de series como Cuéntame y El Ministerio del Tiempo, por citar solo varios ejemplos recientes. ¿Y acaso no era el autorreconocimiento a través de una ficción que hablaba del ‘yo’ del lector o del espectador al tratar de la vida de los personajes, lo más significativo de la novela realista del XIX o de la comedia de Lope de Vega? Nuevos géneros como la novela del XIX o la comedia del XVII, y nuevas tecnologías como la televisión, exigen un nuevo lector o espectador en el que el entretenimiento, el autorreconocimiento, y las formas de compromiso e identidad con el mundo que le rodea, le hacen formar parte de una misma comunidad con el medio que reinterpreta ese mundo. No hablamos por tanto de criterios estéticos, ni de mayor o menor calidad de su producción. Acercarse a los programas televisivos es entender que la valoración de los mismos pasa por reconocer la creación de un nuevo espectador, de “ese voraz consumidor de realidades sorprendentes” como le llamó Vázquez Montalbán (2007, p. 289), que goza al mismo tiempo de las atracciones y de las ficciones narrativas ofrecidas por aquellos, y que reinterpreta el mundo al reconocerse en las imágenes de dicho espejo. Esto es, una perspectiva más sociológica e histórica que literaria o estética, si bien esta última quizá nos serviría para acercarnos a los programas de no ficción de TVE de los años sesenta del pasado siglo.

político más abierto que permita la integración de todos en un país sin violencia y más democrático. Se tratan asuntos muy variados, desde el gusto por el consumo y la pérdida de las raíces tradicionales, hasta la represión policial, la falta de libertades y su llegada con la democracia, los principales acontecimientos políticos del período transicional, el 23-F, la especulación inmobiliaria, el turismo, el amor libre, los problemas de pareja o la movida madrileña, basculando entre lo íntimo y lo histórico-social. Los premios y el apoyo de la audiencia la han convertido en la principal serie sobre ambos períodos históricos. El formato ha sido adaptado en Portugal por la RTP y en Italia por la RAI.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 131

Imaginemos, entonces, lo que habría ocurrido si los Alcántara hubiesen invitado a un escritor a su casa en esos años que van desde 1968, en que compraron su televisor, hasta pasada la transición. Probablemente algo muy parecido a lo que describe el narrador y poeta Andrés Trapiello:

Durante los años del franquismo y, por inercia, buena parte de los primeros de la transición, no era fácil encontrar a una persona de izquierdas, o sea, progre, que afirmara que veía la televisión, y mucho menos que admitiera que se lo pasaba bien haciéndolo. Se consideraba una terrible claudicación, de modo que si alguien tenía que aludir a algo visto en la tele, hacía acompañar su comentario por un ‘el otro día, de casualidad, vi tal o cual cosa’, o ‘tenían en casa de mi padre puesta la tele y vi…’. Tuvieron que pasar muchos años para que algunos reconociéramos que en la tele veíamos no solo telediarios o películas de arte y ensayo, sino otras muchas cosas frívolas, a menudo deleznables. (Trapiello, 2015, pp. 60–61)

Efectivamente, la televisión tuvo siempre entre su audiencia más fiel a los escritores, fuese durante el franquismo o en los años siguientes, por lo que no nos choca que algunos hayan reconocido ya en el siglo presente esa fascinación por el horror que sienten ante la emisión de ciertos programas, generalmente de las televisiones españolas, con lo que de los Alcántara habríamos venido a dar en las alcantarillas de lo vulgar. Javier Marías admite que “hay personajes, emisiones, espectáculos que nos horripilan tanto que no podemos apartar la vista o el oído de ellos. Es la fascinación del horror” (Marías, 2009, p. 102). Y pone a continuación algunos títulos:

Los lectores memoriosos saben que he sido fiel seguidor de Los Soprano, El ala oeste de la Casa Blanca, Deadwood, Mad Men y 24, pero estas series […] entran dentro del buen gusto convencional. Lo que nunca he dicho es que también he seguido —a ráfagas, bien es verdad— Los Serrano, francamente zafia en su conjunto; que estoy viendo algún episodio de Águila Roja que de niño no habría tolerado ni en tebeo; que desde hace varias temporadas procuro estar al tanto de Amar en tiempos revueltos […] y que de vez en cuando me asomo a Dónde te escondes, corazón (aquí sí por el horror). (Marías, 2009, p. 102)4

La confesión le honra, pues pocos se atreverían a decirlo, pero nos muestra una doble y, quién sabe si grave, mediopatía, que en el siglo XXI parece afectar a muy variados e importantes escritores como después veremos. Esta doble enfermedad televisiva consiste básicamente en una adicción a las series extranjeras, especialmente las norteamericanas, y el rechazo de las producciones españolas. Por tanto, amor sin condiciones a aquella parte de la cultura de masas que ciertas élites han entronizado por parecerles cercanas al mejor cine y a la literatura, y reparos melindrosos ante aquella otra parte, la de las series españolas, que merece el ‘vulgar aplauso’ de las masas, como diría Lope de Vega. ¿Y lo que no son ficciones sino atracciones? Ah, eso ya entra en el capítulo de lo deleznable o de lo que no tiene el menor interés. Bien es verdad que entre el período al que se refiere Trapiello — el franquismo y la transición — y el que afecta a Javier Marías hay ciertas diferencias y matices en cuanto a la posición de los escritores que conviene tener presentes. En la España de Franco la televisión fue un instrumento al servicio de la manipulación de las conciencias y de la difusión de los valores del nacionalcatolicismo. Pero si no fue totalmente monolítica se debió en parte a la colaboración de muchos escritores que combatieron ese ideario y hallaron los caminos para mostrar su disidencia con él. Bastantes de entre los que trabajaron en TVE pertenecían al grupo de los vencedores en la Guerra Civil y no fueron más allá de una crítica amable de las circunstancias de la vida

4 A las series citadas habría que añadir Juego de tronos, cuyas temporadas Javier Marías admite haber visto dos veces, y de cuyo autor, George R. R. Martin, alaba una capacidad imaginativa que “nos ha proporcionado placer a millones” (2019, p. 82).

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010 132 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ cotidiana (Álvaro de Laiglesia, Tomás Borrás, César González Ruano, Rafael García Serrano, José M.ª Pemán…), pero otros se situaban en la izquierda política o en posiciones antifranquistas y así lo hicieron notar en muchas de sus aportaciones, como Antonio Gala, Carlos Muñiz, Uxío Novoneira, Isaac Montero, Marcial Suárez, Alberto Méndez, Ana Diosdado, Jaime de Armiñán, Fernando Fernán-Gómez, Jesús Fernández Santos, etc. A pesar de su buen hacer, especialmente de los tres últimos mencionados, con producciones de gran calidad, y de la presencia de importantes programas culturales, la televisión fue deslegitimada desde mediados de los años sesenta en adelante por escritores e intelectuales, impidiendo que durante mucho tiempo se pudiese hacer una reflexión seria sobre el medio. Hubo, ciertamente, un gran entusiasmo inicial en los primeros años del mismo, que llevaron, por ejemplo, a Jaime de Armiñán a decir que “Yo estoy seguro que Lope de Vega y Cervantes — que eran hombres de su tiempo — serían felices si vivieran de escribir para la televisión” (Cortés-Cavanillas, 1965, p. 55). Y probablemente no le faltase razón. Pero la corriente contraria se fue imponiendo progresivamente a medida que nos acercamos al final de esa década y entramos en la siguiente. Aunque las primeras estimaciones negativas se dieron ya en el Primer Coloquio Internacional sobre Novela celebrado en Formentor, en la isla de Mallorca, en 1959, las mayores diatribas habían de venir de varios libros del dramaturgo José M.ª Rodríguez Méndez y de Manuel Vázquez Montalbán,5 que recogían sus reflexiones publicadas antes en varias revistas, especialmente en aquellas dos que durante esos años representaban el pensamiento progresista y antifranquista de origen cristiano y marxista, Cuadernos para el Diálogo y Triunfo, ambas habitualmente muy críticas con la televisión del momento. Lo que se le reprochaba básicamente era el ofrecer una “infracultura” y un “infraarte” simplificadores y carentes de cualquier complejidad, volcado hacia la diversión y que hacía del espectador un rehén de la sociedad de consumo sometido al neocapitalismo y manipulado por el poder político; posición que estaba emparentada con los postulados marxistas de los filósofos de la Escuela de Fráncfort, que tenía en Theodor W. Adorno y Hannah Arendt a los mayores deslegitimadores de los medios de comunicación, pudiendo añadírseles quizá Herbert Marcuse. Tal planteamiento serio y hosco de la cultura, demonizador de cualquier aspecto lúdico y espectacular del medio televisivo, encubría en realidad bajo su formulación aristocratizante diferentes miedos de los escritores en un momento en el que el centro del sistema cultural, ocupado hasta entonces por las artes agrupadas tradicionalmente bajo el marchamo de la ‘alta cultura’, en especial la literatura, estaba dejando paso a aquellas otras manifestaciones de la periferia cultural entre las que ocupaba un lugar principal la televisión. Algunos la vieron como un competidor formidable que podía hacerles perder lectores, muchos como un sistema de producción estandarizado y sujeto a una creación colectiva y a una coerción genérica que impedía la creatividad individual del escritor, otros, en fin, como un medio al servicio de la propaganda del régimen de Franco con el que no se podía colaborar. En conclusión, un engendro capaz de producir tan solo subproductos culturales para la diversión de las masas alienadas.6 Durante la transición y hasta el presente, la participación de los escritores en la televisión ha seguido siendo muy notable, como guionistas de series de ficción y no ficcionales, o como presentadores y directores de programas (Juan Goytisolo, Carmen Martín Gaite, Ana Diosdado, Isaac Montero, Vázquez Montalbán, Jesús Fernández Santos, Terenci Moix, Ray Loriga, Lorenzo Silva, Eduardo Ladrón de Guevara, Ignacio

5 Los textos de Rodríguez Méndez son Los teleadictos (1971) y Carta abierta a televisión española (1973), el de Vázquez Montalbán El libro gris de televisión española (1973). 6 Para todo esto puede verse a Palacio (2010) y a Fernández (2014).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 133 del Moral, Fernando Savater…).7 A pesar de ello, no se aprecian variaciones sustanciales en su consideración del medio, aunque sí ciertos matices diferenciadores con respecto al pasado. En la década de los noventa del pasado siglo Fernando Savater volvía a establecer la jerarquía tradicional con respecto a la lectura: “Hasta en el peor de los casos, leer es ya una forma de pensar, mientras que las imágenes por sí solas se limitan tumultuosamente a estimular maneras de sentir o padecer…” (Savater, 1993, p. 3); en tanto que Vargas Llosa, en un texto leído al recibir el Premio de la Paz en 1996 de los editores y libreros alemanes, “Dinosaurios en tiempos difíciles”, manifestaba algo parecido, al situarse entre los dinosaurios condenados a desaparecer: “las imágenes de las pantallas divierten más, entretienen mejor, pero son siempre parcas, a menudo insuficientes y muchas veces ineptas para decir […] ‘la verdad y toda la verdad’. Y su capacidad crítica es por ello muy escasa” (Vargas Llosa, 2012, pp. 219–220). El razonamiento en ambos pecaba de una confusión entre los media y los productos concretos emitidos por aquellos. Confusión que, en el caso que nos ocupa de la televisión, venía de antiguo y que ha seguido manteniéndose hasta el día de hoy sin que a nadie se le haya ocurrido cuestionar si la visión de un documental histórico, de un programa literario, o de una entrevista relevante, emitidos por aquella, puede ser menos provechosa que la lectura de una novela de aeropuerto de los géneros romántico, histórico o policíaco, que suelen transformarse a veces en best sellers.8 Quizá al notar hacia dónde conducía el argumento es por lo que el propio Savater matizaba lo dicho al reconocer cierta dignidad en los medios visuales: “Son una de las riquezas indiscutibles de nuestro siglo y, manejadas por mentes rectas y manos hábiles, pueden ser instrumento decisivo de conocimiento y por tanto de emancipación humana” (Savater, 1993, p. 3). En el mismo año que Savater, el dramaturgo y escenógrafo Francisco Nieva tachaba a la televisión de “mala portera” y denunciaba la irrupción de la imagen del “famoso”, lo que llevaba al intelectual a retraerse de su participación en el medio (1996, pp. 442–444). Era el momento de gran audiencia de las televisiones privadas, que emitían desde hacía pocos años, lo que le servía a Juan Marsé para recoger el guante de Nieva sobre los “famosos” y elaborar en 1994 un relato tronchante y disparatado sobre las relaciones entre el escritor y la televisión en “El caso del escritor desleído”, primer repaso crítico y muy mordaz de las emisiones de las cadenas públicas y privadas de entonces. En una anticipación del filme de Woody Allen Desmontando a Harry, el escritor Errelese, reacio hasta el momento a aparecer en la televisión, resulta desenfocado en su primera entrevista hasta que poco a poco se va desleyendo del todo y desaparece un 23 de abril, Día del Libro, luego de haber admitido que “La televisión está creando una nueva especie humana, un mundo de opinantes mastuerzos y de mirones descerebrados, adiposos e impotentes, y a mí no se me ha perdido nada en ese mundo” (Marsé, 2002, p. 417).9

7 Fernando Savater es el autor de una valiosa serie de trece capítulos para la televisión argentina de título Lugares con genio, en la que se vinculan ciertas ciudades con sus escritores, desde Baroja o Dante a Kafka, Borges, Paz y Neruda, entre otros. 8 Con su lucidez e ironía habituales el actor, director, y escritor, Fernando Fernán-Gómez rechazaba el argumento absolutista de la maldad innata del medio televisivo: “Paso muy agradables horas frente al televisor. No estoy de acuerdo con la opinión, tan divulgada por la prensa escrita, de que toda la televisión es mala. No comprendo cómo puede ser mala, así, en general, absolutamente una programación que nos ofrece coloquios, charlas, diálogos con gentes del pueblo que no sabe expresarse o con profesores y políticos que difícilmente se hacen entender, poemas correcta o espléndidamente recitados, incendios, patinaje artístico sobre hielo, guerras, óperas […] ¿Cómo decir que es despreciable todo lo que aparece por la pantalla casera en las aproximadamente, cuatro mil horas de programación que nos ofrece al año?” (Fernán Gómez, 1995, p. 242). 9 Juan Marsé, además de haber ejercido la crítica de televisión en la revista Bocaccio durante los años 1970 y 1971, y de ser el guionista de la serie Vida privada (1987) basada en un texto de José M.ª Segarra, no ha

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010 134 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ

Desde luego si los escritores daban la espalda al medio, salvo excepciones, este se despreocupaba de ellos a causa del igualitarismo arrasador de autoridades y prestigios provocado por el heterocentrismo icónico y cultural de nuestros días, derivándose del mismo una pérdida de la posición central que ocupó durante siglos la literatura y una rebaja de la influencia de escritores e intelectuales en beneficio de otras figuras televisivas que ‘comunican’ mejor. Por ello un despechado Vargas Llosa nos advertía en La civilización del espectáculo de un empobrecimiento de las ideas y de la falta de interés de la sociedad por los intelectuales debido a la primacía de las imágenes sobre las ideas, y de ahí el arrinconamiento de los libros (Vargas Llosa, 2012, pp. 46–47). Lo malo de ciertas minorías ilustradas cuando penalizan el ocio como diversión y espectáculo, o deploran la supuesta imbecilidad de unas masas que se dejan arrastrar pasivamente por las imágenes, es la obcecación en convertir sus gustos en mayoritarios. No creo que esta posición sea tanto una cuestión de arrogancia elitista, como generalmente se ha dicho, cuanto de falta de comprensión del propio ser televisivo, en el que lo relevante es una dispositio caracterizada por el flujo de atracciones diferentes que no deben ser valoradas en función de lo que constituye el ser de la literatura, la elocutio o, lo que es igual, la organización del discurso en torno a las calidades de un lenguaje apto para la narración y el pensamiento. Si como el propio Vargas Llosa (2007, p. 284) reconoce en otro texto, la ficción pretende dotar de orden mediante las palabras y la organización temporal de los hechos a una vida que es caótica, y la televisión era, por el contrario y al decir de Azorín, esa misma vida transformada en bullicio y desencorsetada de cualquier orden previo, ¿a qué viene el mezclar procesos discursivos diferentes, las atracciones por un lado, las narraciones por el otro, analizándolas con los mismos criterios?, ¿acaso se produce en los escritores una “nostalgia del orden” existente en el lenguaje literario y en el sistema cultural, frente al heterocentrismo y al desordenado flujo de las imágenes-atracción televisivas? En la televisión lo que no es información es entretenimiento, aunque quede cierto espacio para la divulgación cultural, y ello exige una perspicuitas adecuada, un lenguaje apropiado para cada auditorio. Esa perspectiva no ha de medirse con los criterios estéticos de la literatura, sino con los que corresponden a las atracciones desde hace cientos de años, es decir, la capacidad para entretener, para asombrar y para facilitar el autorreconocimiento identitario del espectador. Algo que tampoco se ha sabido entender en el presente. En el siglo XXI, y especialmente en la última década, llegaron las series de cadenas y plataformas norteamericanas de pago como HBO, AMC, Netflix, y otras varias, y con ellas la enésima edad dorada de la televisión (y ya van unas cuantas, casi una por generación). Esto ha provocado el fenómeno de la legitimación de ese componente de la cultura de masas televisiva, el de la ficción extranjera, por parte de algunos escritores, a la par que otros han seguido con la cantinela tradicional del rechazo del entretenimiento por carecer de la complejidad de lo escrito. En ambos casos, sin embargo, el resultado es el mismo, pues las dos actitudes conllevan la minusvaloración de lo producido por las televisiones españolas, no solo de esa heterogénea mezcla de variedades y vanidades que componen el flujo televisivo cotidiano, sino también de las ficciones de cadenas públicas y privadas. Con ello se reitera una situación habitual, la de que mientras las audiencias masivas de las cadenas en abierto valoran las producciones españolas, los escritores apenas las tienen en cuenta porque prefieren lo emitido por las cadenas de pago o por vídeo bajo demanda de distribuidoras como Amazon o Netflix. Al rebufo de series como Los soprano, The wire, Breaking bad, Mad men, Juego de tronos, y otras, se ha erigido un nuevo canon y una práctica cultural legitimada por ciertos dejado nunca de referirse a la nefasta influencia cultural y educativa de la televisión, como hizo en su discurso de recepción del Premio Cervantes en el año 2008.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 135 grupos de clase media progresista de profesiones liberales, los escritores entre ellos, que aunque participan de lo que tradicionalmente han sido las ficciones de la cultura popular han consolidado las diferencias culturales de siempre, separándose de lo que son los gustos mayoritarios de la audiencia (Cascajosa Virino, 2016, pp. 260–265). Dicho culturalismo de las series ha sido promovido desde tribunas muy diversas, académicas y periodísticas, no siempre desinteresadas ni al margen de las estrategias comerciales de poderosos grupos de comunicación españoles. De manera que en la última década nos encontramos con abundantes reportajes de periódicos nacionales de gran tirada y sus suplementos dedicados a las series extranjeras y sus creadores, al contraste de pareceres en esos medios y las opiniones de los autores españoles sobre las mismas, y a la publicación en sus páginas de relatos escritos por algunos de los creadores españoles de series de televisión.10 La excusa es siempre la misma: esas series son la literatura de nuestra época. El celofán literario o cinematográfico, según los casos, es el envoltorio que permite volver a la vieja perspectiva literariocentrista o cinecentrista de una cultura que ha perdido cualquier centro o jerarquía de referencia, y en ese sentido muy similar a lo acontecido con los dispositivos ópticos anteriores al cinematógrafo durante el siglo XIX. Desde luego la mediopatía tiene grados, y en unos casos parece más difícil de curar que en otros. Para algunos, como Juan José Millás, la serie Perdidos es una de las causas de haberse convertido en un espectador de series de televisión “en un proceso semejante al que en otra época de mi vida me convertí en lector” (2008, p. 52). Para otros, como el “teleshakespeariano” Jorge Carrión, autor de varias novelas, entre ellas una que con el título Los muertos (2010) versa sobre una serie de televisión, hay ficciones que mezclan literatura y cine “pero con una fórmula que solo ha sabido encontrar la televisión de alta calidad”, de ahí que en ella Dickens siga estando vivo “en el compromiso político y en el compromiso con el material narrado” (2014, p. 7). A través de tales palabras vemos las dos claves del entusiasmo seriéfilo que se ha apoderado de muchos, la calidad artística y la reflexión ética capaz de legitimar moralmente al medio, se supone que, por ir más allá del puro entretenimiento, y sin que ello tenga que ver con ninguna supuesta crisis de la novela o el cine contemporáneos como se ha venido argumentando. Por lo que no resulta extraña la referencia a Dickens o, por extensión, a la novela del siglo XIX, que también había atendido críticamente a la realidad histórica de su entorno. Tal hace, desplazándose un poco desde la visión irreductible de antaño, Mario Vargas Llosa cuando, después de alabar por su calidad ciertas series de contenido político del tipo de The wire, House of cards, Homeland, y la danesa Borgen, admite que son continuación de las novelas por entregas que escribieron en el XIX Dickens, Balzac y Dumas, y que el mejor espejo del año 2017 “no está en la gran literatura, ni en las películas realmente creativas, sino en esas seriales que […] son meros puentes que se cruzan y olvidan al instante” (2017, p. 13). En parecida dimensión se movían unos años antes autores tan diferentes como Juan José Millás y Carlos Ruiz Zafón. El primero, al admitir que las series son en el siglo XXI lo que fue la gran novela del XIX, justificando su adhesión a ellas “no porque sean entretenidas […] sino por la información que nos dan acerca del mundo en que vivimos” (Martínez Roig, 2008, p. 49). El segundo, dando pellizcos de monja a la narrativa actual — para la que, según él se imagina, escribirían hoy Dumas, Shakespeare y Dickens — al atribuir a los creadores de esas series norteamericanas “buena parte de la mejor narrativa que se hace en el mundo. Es irónico que sea en la televisión, que a menudo es el escaparate de lo peor que tiene que ofrecer el

10 Durante el verano de 2015 varios guionistas españoles escribieron en el periódico El País un conjunto de relatos: Eduardo Ladrón de Guevara, Carlos López, Javier Olivares, Virginia Yagüe, Helena Medina, Mónica Martín-Grande y Manuel Ríos San Martín.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010 136 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ sistema, donde están apareciendo las mejores propuestas de creación dramática” (Martínez Roig, 2008, p. 49). De un modo semejante a ellos, Javier Marías consideraba intercambiables Los Soprano y La comedia humana de Balzac (Marías, 2008, p. 56), mientras que para Enrique Vila-Matas la serie Mad men sería lo equivalente a un conjunto de cuentos o fragmentos, más próxima a los grandes renovadores de la narrativa del siglo XX que a la del XIX (Vila-Matas, 2015, p. 9), aunque sin olvidarse tampoco de Los soprano, a la que dedicaba uno de sus relatos.11 Fernando Savater resumía todo ese clima de escritores abducidos por las ficciones televisivas norteamericanas diciendo que “Parece indudable que las series de televisión se han apoderado de la imaginación narrativa de casi todos nosotros” (2013, p. 38). Y tanto que se apoderaron, pues durante estos años no ha existido género literario que dejase de contribuir al enaltecimiento de esta afición. Además de la novela de Jorge Carrión y del relato de Vila-Matas ya mencionados, podríamos citar, por poner algunos ejemplos, el texto ganador del Premio de la Asociación Española de Críticos Literarios Brilla, mar del Edén (2014), de Andrés Ibáñez, que combina el referente de la serie Perdidos con el Decameron y el Quijote, los varios relatos de Aixa de la Cruz en Modelos animales (2015), algunos de los poemas de la antología Serial (2014), a cargo de Ana Santos Payán y Luna Miguel, e incluso piezas teatrales por capítulos y cuya trama se demora varios meses, a semejanza de las series televisivas, como Días como estos (2012), de Luis López de Arriba, o las dos de Julio León Rocha y Fran Pérez: La noche de las flores y Teatro a pelo. Es verdad que tal visión positiva sobre las series extranjeras no es la única. Marta Sanz volvía a las diatribas de otros tiempos cuando criticaba ese papanatismo literario: “En una ceremonia in de la confusión entre lo popular y lo elitista, en un falso difuminado de los límites, nos fascinan la banalización de la literatura sometida a la superficialidad de ciertos lenguajes audiovisuales y la metamorfosis seudointelectual del entretenimiento televisivo” (2014, p. 79). Y cuando la bicha del entretenimiento se convierte en telebasura solo resta acudir al visionario Pier Paolo Pasolini para, utilizándolo como ariete, advertirnos de nuevo de sus peligros, como hace Antonio Muñoz Molina, quien, siendo niño, se había sentido tan fascinado por la televisión: “Lo que él [Pasolini] vio venir […] fue la Edad de la Basura […]; la basura de la televisión que iba a trastornar Italia desde los tiempos de Berlusconi y luego nos contagió a nosotros, y ahí sigue, segregando su grosería como un vertido tóxico incesante…” (2017, p. 15). Luego de escuchar estos y otros comentarios anteriores, uno tiene la sensación de que muchos de nuestros escritores no se han leído a Ortega y Gasset cuando valoraba positivamente la diversión y el aspecto lúdico de los espectáculos: “La distracción, la diversión es algo consustancial a la vida humana […] no es algo de lo que se pueda prescindir. Y no es frívolo el que se divierte, sino el que cree que no hay que divertirse” (1982, pp. 93–94). Idea compartida por los ilustrados y científicos de los siglos XVIII y XIX, pero rechazada por nuestros ‘ilustrados’ de hoy. Lo que sí parece claro, no obstante, es que el discurso televisivo y sus estrategias comunicativas está permeabilizando el sistema literario español hasta afianzarse como un referente importante de casi todos los géneros que lo constituyen algo de lo que ya hizo mención en su momento Carmen Peña Ardid (2017).12 Podemos encontrarnos en la actualidad — de un modo semejante a lo ocurrido en otros períodos anteriores como el

11 El relato, con el título de “La tumba de Melville”, apareció publicado en El País Semanal, n.º 1681, el 14 de diciembre del 2008, en las páginas 62–69. 12 El novelista Luis Goytisolo advertía en su discurso de recepción en la RAE en 1995 de cómo la antigua tendencia de los narradores de acercamiento a los recursos del cine, se había trocado “a la vuelta de pocos años, en corriente de aproximación al relato televisivo” (1995, p. 96).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 137 franquismo y la transición —, con referencias paródicas a la telerrealidad y las comedias de situación en los cuentos de Javier Calvo (Risas enlatadas, 2001) y Berta Marsé (“Los Pons Pons”, de 2009, relato cuyo referente más inmediato es El primo Pons, de Balzac, de la serie “Los parientes pobres” de La comedia humana), o en alguna de las novelas de Marta Sanz (Farándula, 2015) y Francisco Casavella (El día del Watusi, 2002–2003); sin que tampoco falten los casos en los que el formato de ciertos programas televisivos configura la estrategia narrativa: el talk-show sobre la infidelidad amorosa de Algo tan parecido al amor (2007), de Carmen Amoraga, el reality-show embutido en el marco del género negro de Esta es su vida (2014), de José Sanclemente, que bien pudiera seguir los pasos de aquella lejana y ácida novela corta de Manuel Vázquez Montalbán, Asesinato en Prado del Rey, de 1987, o, en fin, el recuerdo de los programas sobre fenómenos paranormales embutido en el traje de las novelas de caballerías de La noche fenomenal de Javier Pérez Andújar (2019), en la que se combinan los referentes del cómic con los de varios programas muy conocidos de la televisión del franquismo y la transición como El hombre y la tierra o Un, dos, tres…responda otra vez. Más singular, si cabe, es el poemario de Diego Doncel El fin del mundo en las televisiones (2015), que organiza las diferentes partes como si fuesen los contenidos de distintos canales televisivos, y en donde el medio es uno de los instrumentos de dominación y sometimiento de la población, puesto que como allí se lee “Los bárbaros ocupan las pantallas de todas las televisiones” (2015, p. 96). Después de todo lo anterior no deja uno de sorprenderse de lo lejos que quedan hoy de los arrebatados elogios de la ficción extranjera, de unos, y de los improperios destemplados, de otros, aquellas estimaciones más ecuánimes de la televisión y su audiencia popular, como la de Ginés Liébana, por ejemplo. Este pintor, poeta y novelista del grupo cordobés Cántico, alababa, según testimonio de Francisco Nieva, los culebrones hispanoamericanos de principios de la década de los noventa del siglo pasado, muy seguidos por los espectadores. Estimaba en ellos el marco balzaciano del relato, también el que lo primitivo o elemental de su anécdota acertaba en descubrir lo fundamental de los aspectos dramáticos de la vida, y el que, a pesar de su falta de calidad en el lenguaje y la producción, iba dirigido a un público inocente de los amaneramientos del arte moderno pero capaz de admitir mejor aquella obra decidida a comunicar “por lo derecho” esas verdades fundamentales del ser humano (Nieva, 1996, pp. 338–342). Dicha valoración sobre un género tan menospreciado por los espectadores cultos de entonces, subrayaba precisamente los distintos niveles de lectura con los que un programa podía y debía ser afrontado, ninguno de ellos superior al otro, aunque muchas atracciones viniesen vestidas con el ropaje del entretenimiento para el público más popular. Quizá por esto debe ser estimado como se merece que una de las mejores series de producción española de los últimos años, El Ministerio del Tiempo, muy novedosa en cuanto al tratamiento de la historia española y una de las más seguidas en las redes sociales por sus espectadores, finalizase la tercera temporada con un homenaje al medio televisivo representado por la serie Historias para no dormir, de Narciso Ibáñez Serrador. Así se reivindicaba el papel de la televisión española, incluida la del período franquista, como una de las instituciones históricamente relevantes en el acontecer y el desarrollo cultural de este país, fuese a través de las ficciones narrativas españolas o de las atracciones, tan denostadas ambas por los escritores e intelectuales hasta el día de hoy.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010 138 LUIS MIGUEL FERNÁNDEZ

REFERENCIAS

Balbuena, B. (1852). El bernardo. Madrid: Gaspar y Roig. Carrión, J. (2014, septiembre 13). Literatura expandida. El País-Babelia, 7. Cascajosa Virino, C. (2016). La cultura de las series. Barcelona: Laertes. Cortés-Cavanillas, J. (1965, mayo 23). Del cero al infinito. Un guionista de televisión: Jaime de Armiñán, ABC, 46–55. Doncel, D. (2015). El fin del mundo en las televisiones. Madrid: Visor. Fernán-Gómez, F. (1995). Desde la última fila. Madrid: Espasa Calpe. Fernández, L. M. (2006). Tecnología, espectáculo, literatura: Dispositivos ópticos en las letras españolas de los siglos XVIII y XIX. Santiago: Universidad. _____ (2014). Escritores y televisión durante el franquismo. Salamanca: Universidad. Gaudreault, A. (2008). Cinéma et attraction: Pour une nouvelle histoire du cinématographe. Paris: CNRS. Goytisolo, L. (1995). El impacto de la imagen en la narrativa española contemporánea. Academia: Revista del cine español, 12, 87–96. Leibniz, G. W. (1958). Drôle de pensée touchant une nouvelle sorte de representations. La nouvelle revue française (octubre), 758–768. Marías, J. (2008, octubre 5). Los soprano. Como la comedia humana. El País Semanal, 1671, 56. _____ (2009, mayo 10). Día de confesiones. El País Semanal, 1702, 102. _____ (2019, febrero 3). Insaciabilidad. El País Semanal, 2210, 82. Martínez Roig, A. (2008, octubre 5). La caja tonta es más lista. El País Semanal, 1671, 46–50 y 57–60. Marsé, J. (2002). Cuentos completos (ed. Enrique Turpin). Madrid: Espasa Calpe. Millás, J. J. (2008, octubre 5). Perdidos: Entre el sueño y la vigilia. El País Semanal, 1671, 52– 53. Muñiz, M. (1977, marzo 21 al 27 marzo). Azorín, cronista de televisión (documento inédito). Tele/Radio, 1004, 7. Muñoz Molina, A. (2017, junio 24). La verdad a cualquier precio. El País-Babelia, 15. Nieva, Francisco (1996). El reino de nadie. Madrid: Espasa Calpe. Ortega y Gasset, J. (1982). Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Revista de Occidente/Alianza Editorial. Palacio, M. (2010). Los intelectuales y la imagen de la televisión cultural. En A. Ansón et al. (Eds.), Televisión y literatura en la España de la Transición (1973-1982) (pp. 11–24). Zaragoza: Institución Fernando el Católico. Peña Ardid, C. (2017). Cinefilias al margen de la sala de cine: Huellas del cine y la televisión en la novela del siglo XXI. Tropelías: Revista de Teoría de la Literatura y Literatura Comparada, 437–450. https://doi.org/10.26754/ojs_tropelias/tropelias.201722241 Sanz, M. (2014, septiembre 13). Desprestigio de la palabra. El País-Babelia, 7. Savater, F. (1993, junio 26). Leer para despertar. El País-Babelia, 2. _____ (2013, enero 22). Carácter y destino. El País, 13. Trapiello, A. (2015). Seré duda (Salón de pasos perdidos). Madrid: Pre-Textos.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127–139. eISSN: 2184-7010 MEDIOPATÍAS 139

Vargas Llosa, M. (2007). El arte de mentir. En F. Gutiérrez Carbajo y J. L. Martín Nogales (Eds.), Artículos literarios en la prensa (1975-2005) (pp. 281–287). Madrid: Cátedra. _____ (2012). La civilización del espectáculo. Madrid: Alfaguara. _____ (2017, enero 22). Las seriales. El País, 13. Vázquez Montalbán, M. (2007). Nada. En F. Gutiérrez Carbajo y J. L. Martín Nogales (Eds.), Artículos literarios en la prensa (1975-2005) (pp. 288–289). Madrid: Cátedra. Vila-Matas, E. (2015, marzo 29). Peggy no se casó. El País Domingo, 9.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 127-139.e ISSN: 2184-7010

O QUE AS PERSONAXES LEN AS ALUSIÓNS LITERARIAS NA PEQUENA PANTALLA

WHAT THE CHARACTERS READ BOOK ALLUSIONS IN THE SMALL SCREEN

PATRICIA ALONSO JANEIRO* [email protected]

A literatura está presente na ficción televisiva a través das adaptacións, pero as obras literarias tamén se amosan de forma directa na pantalla, ben como homenaxe ás fontes das que beben os creadores, para establecer a atmósfera dun episodio ou dun arco argumental, ou cun fin didáctico. Mediante a análise dalgúns exemplos, este artigo tentará profundar na relación simbiótica entre ambos medios e demostrar que esta intermedialidade non só é enriquecedora para a serie televisiva, senón que tamén dota de nova vida as obras literarias que esta amosa.

Palavras-Chave: televisión; ficción seriada; literatura; referencias literarias; intermedialidade.

Literature is present in TV fiction through adaptations, but literary works are also featured directly onscreen, sometimes serving as a homage showrunners pay to their literary sources, sometimes to set the mood of a particular episode or a season arc, sometimes for a didactic purpose. This article intends to examine in depth the symbiotic relation between both media, using the analysis of some examples to do so, and thus prove that intermediality not only contributes to elevate the TV series but it also provides the literary works the series refers to with new life.

Keywords: television; serialized fiction; literature; literary allusions, book allusions, intermediality.

Data de receção: 2020-01-31 Data de aceitação: 2020-03-17 DOI: https://doi.org/ 10.21814/2i.2514

* Profesora de inglés de ensino secundario, Santiago de Compostela, Galiza (España). ORCID: 0000-0002- 4078-0334 142 PATRICIA JANEIRO

“Sam: If you really want to publish more books, I guess that's okay with us. Chuck: Wow. Really? Sam: No, not really. We have guns and we will find you. — Supernatural S05E09 The Real Ghostbusters

1. Introdución: consideración teóricas

Os conceptos de intermedialidade e transmedialidade veñen sendo obxecto de estudo nas últimas décadas, con diferentes definicións e alcance do termo propostas para eles desde distintas perspectivas críticas. Para redactar este artigo, baseámonos no traballo de Jan Baetens e Domingo Sánchez-Mesa (2015), no que propoñen definir a intermedialidade non só como unha relación entre distintos medios senón tamén como unha cualidade do medio en si, porque nunca permanece illado, e a transmedialidade para referirse ao feito de que as obras, no caso que nos ocupa as literarias, teñen a posibilidade de reaparecer noutros medios. Os autores citan tamén unha serie de procesos que levan tendo lugar neste cambio de século como factores que incentivan a transmedialidade, a popularización de novas linguaxes e a proliferación de plataformas que distribúen produtos culturais entre eles. Tomando estas consideracións terminolóxicas como base, facemos uso do concepto de intermedialidade como unha categoría crítica para analizar a influencia que a literatura ten nun medio como a televisión, e do concepto de transmedialidade para nos referir ás alusións literarias nas series que imos analizar. Isto é especialmente relevante no caso das producións estadounidenses, nas que abondan as adaptacións literarias: só en 2019, as cadeas de televisión daquel país estrearon máis de 30 series televisivas baseadas en novelas e cómics, fronte ás 2 adaptacións que se estrearon no mesmo período en España1. O certo é que nas series españolas, sen atrevernos a aventurar unha razón, observamos pouco interese polas referencias transmedia. Por este motivo, centraremos esta análise nas series estadounidenses.

1.1. Información e formación literarias na televisión

Os estudos sobre intermedialidade e transmedialidade ocúpanse decote das adaptacións televisivas de obras literarias ou das influencias da literatura na televisión. Moitas das producións televisivas da última década que están a ser estudadas dentro dos programas de literatura comparada son adaptacións, quer literais – Game of Thrones (HBO, 2011– 2019), The Handmaid’s Tale (Hulu, 2017–actualidade), The Leftovers (HBO, 2014– 2017) –, quer aculturizadas – Sherlock (BBC, 2010–actualidade) –, quer interpretativas – Penny Dreadful (Showtime, 2014–2016) –, de obras igualmente relevantes da literatura. Non é casual que a auxe das adaptacións coincida coa chamada “terceira idade de ouro da televisión” (Marcus, 2013), definida pola procura dunha estética visual e narrativa propias, complexas e afastadas das series de finais do século XX. Segundo propón De Biasio (2017), estas novas narrativas televisivas responden aos gustos culturais e á traxectoria académica de moitos guionistas e creadores. É innegable que a experiencia de David Simon como xornalista da sección local do Baltimore Sun informou as súas series

1 Datos tirados de Wikipedia e do blog Fuera de Series, respectivamente.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.141–151. ISSN: 2184-7010 O QUE AS PERSONAXES LEN 143

Homicide: Life on the Street (NBC, 1993–1999), The Corner (HBO, 2000) e The Wire (HBO, 2002–2008). Quizais menos coñecidas sexan as licenciaturas en literatura de Matthew Weiner, creador de Mad Men (AMC, 2007–2015), Robert Carlock, escritor en 30 Rock (NBC, 2006-2013), ou David Benioff e D.B. Weiss, creadores de Game of Thrones, mais é obvio que a narrativa ‘literaria’ transpira tamén os seus guións, desde a concepción dos episodios individuais até o xeito de entretecer as distintas tramas dunha temporada. Esta conexión literaria esténdese tamén a creadores e guionistas que comezaron a súa carreira como novelistas de certo éxito, como Richard Price – The Wire, The Night Of (HBO, 2016), The Deuce (HBO, 2017–2019) –, Tom Perrotta – The Leftovers – ou Gillian Flynn – Sharp Objects (HBO, 2018) – (De Biasio, 2017). Desde que as canles de televisión por cable e ultimamente as plataformas de streaming comezaron a apostar pola produción propia, a liberdade creativa que lle garanten aos autores fan da televisión un campo de probas para novas formas narrativas, non só transmediais senón tamén puramente televisivas. Desta experimentación, ou expansión do formato clásico do serial televisivo, saen as distintas formas nas que a literatura está presente nas series e que centran a análise deste artigo. Abordaremos primeiro algúns exemplos de alusións directas a obras literarias, para despois afondar en tres correntes que integran o libro na serie televisiva máis alá da simple mención: o libro como fío condutor do episodio, o libro como parte da trama e, finalmente, o libro como recurso didáctico dentro da ficción. En todos estes casos establécese unha relación simbiótica entre os dous medios: por unha banda, as referencias literarias elevan a categoría artística do produto televisivo ao vencellar este á literatura, pero, se facemos caso das teses de Ludot-Vlasak (2017), a relación entre ambos medios non está, ou non debe estar xerarquizada, xa que as referencias intertextuais nas series de televisión tamén dotan de nova vida os textos literarios. Neste sentido, convén analizar os exemplos estudados neste artigo á luz do estudo levado a cabo por Fedele, Masanet e Ventura (2019), no que postulan que as series televisivas teñen potencial para se converter en ferramentas educativas e transformadoras para a mocidade.

2. O libro na pequena pantalla

A literatura está presente na ficción televisiva a través das adaptacións e tamén a través dos propios creadores do medio. Porén, existe unha terceira vía pola que as obras literarias informan e inspiran a ficción televisiva: no canto de adaptar o relato literario ao formato televisivo, hai guionistas que prefiren amosar as fontes das que beben de forma directa na pantalla, dun xeito semellante ao de François Truffaut en La Nuit américaine (1973) cando vai sacando dun paquete unha serie de libros sobre os directores de cine aos que quere render homenaxe. As razóns para esta homenaxe directa son tan variadas coma as técnicas empregadas para amosala na pantalla. Nalgúns casos, o produto televisivo parte dunha idea orixinal pero ten unhas influencias claras que os creadores queren deixar patentes. A serie de época Mad Men, por exemplo, repara nas vidas dun grupo de publicistas de Madison Avenue durante a época dos sesenta. A perspectiva diacrónica envolve toda a serie, cos acontecementos máis importantes na historia dos Estados Unidos puntuando os momentos relevantes da vida dos protagonistas, por iso ten sentido que os libros que figuran en Mad Men sirvan tamén a ese fin, como cando as secretarias da oficina se pasan en secreto Lady Chatterley’s Lover, de D.H. Lawrence, un libro popular na altura, especialmente pola súa carga erótica. Matthew Weiner non só empregou Mad Men como

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 141–151. ISSN: 2184-7010 144 PATRICIA JANEIRO mostrario dos seus gustos literarios, senón que tamén escolleu algúns deses textos para que figurasen de forma máis prominente na serie, como o libro de poemas Meditations in an Emergency, de Frank O’Hara, cuxos versos foron incorporados, na voz de Don Draper, ao primeiro episodio da segunda temporada, “For Those Who Think Young” (Dean, 2009) e volve aparecer como título dun episodio posterior. Algo semellante acontece na serie xeracional Gilmore Girls (2000-2007), centrada na relación entre unha nai nova e unha filla adolescente. Aquí Rory Gilmore, a filla, é unha rapaza estudosa á que lle encanta ler, e a serie subliña esta idea enchendo o cuarto de Rory de libros e facéndoa mencionar máis de 200 títulos ao longo da serie, malia que as súas conversas se limitan a recomendalos e non desenvolven moito máis a relación entre os dous medios. No episodio da terceira temporada “Those Are Strings, Pinocchio”, por exemplo, Rory fai referencia a varios libros e autores no seu discurso de graduación do instituto para exemplificar o moito que lle gusta ler: “Vivo en dous mundos. Un deles é un mundo de libros. Vivín no condado de Yoknapatawpha de Faulkner, perseguín a balea branca a bordo do Pequod, loitei canda Napoleón, naveguei nunha balsa con Huck e Jim, fixen cousas absurdas con Ignatius J. Reilly, fun a bordo dun tren lóbrego con Anna Karenina e paseei polos camiños de Swann.” (Garber, 2016) Porén, ningún deses títulos ten máis relación co episodio, como adoita acontecer coas mencións casuais de Rory á literatura.

2.1 O libro como fío condutor

As referencias literarias non só ligan o produto televisivo a unha tradición ‘culta’, elevándoo de categoría artística e ao mesmo tempo converténdoo en recurso didáctico para as clases de literatura, como propón Julia L. Grant (2010), senón que tamén axudan a establecer o ton da narración, do mesmo xeito que o fai a música ambiental ou a paleta de cores. Seguindo coa reflexión de Grant (2010), nos episodios “Out of Mind, Out of Sight” e “Earshot”, de Buffy the Vampire Slayer (The WB/UPN, 1997–2003), a introdución de dúas obras de Shakespeare nas aulas do instituto da protagonista (The Merchant of Venice e Othello, respectivamente), dá conta das preferencias literarias do creador Joss Whedon, pero tamén liga os temas universais de Shakespeare cos temas universais de BtVS, a serie sobre unha adolescente californiana que un día descubre que sobre ela recae a responsabilidade de salvar o mundo loitando contra todo tipo de monstros que se agochan nas sombras. No primeiro dos episodios que nos ocupan, os estudantes discuten en clase o papel de Shylock como marxinado, e as distintas reaccións de alumnado e profesora perante os lamentos de Shylock reflíctense nun flashback no tratamento que cada un deles deu a unha rapaza marxinada do propio instituto, convertida agora en antagonista do episodio; en “Earshot”, Buffy aproveita a recentemente adquirida capacidade de escoitar os pensamentos de quen está ao seu redor para darlle á profesora as respostas que quere oír sobre Othello e asombrar os seus compañeiros de clase, pero ao se referir a Iago como “o reverso tenebroso de Othello”, tamén establece un paralelismo entre ela e a súa igual, a cazadora Faith, que na terceira temporada da serie encarna o lado escuro de Buffy, contra o que esta terá que loitar para non rematar como Othello. Deste xeito, Shakespeare está presente na serie non só por mención directa no guión senón tamén como fío condutor de toda a temporada. Esta idea de enmarcar a narración dentro dos temas universais da literatura repítese no episodio “Beauty and the Beasts”, que comeza e remata con Buffy lendo unha pasaxe de The Call of the Wild, de Jack London, a un Angel que acaba de

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.141–151. ISSN: 2184-7010 O QUE AS PERSONAXES LEN 145 regresar dunha dimensión infernal para facer xusto a viaxe oposta á que fai Buck no libro, de salvaxe a domesticado. Pretty Little Liars (ABC Family/Freeform, 2010–2017), baseada nas novelas de Sara Shepard, é unha serie de misterio que xira arredor de catro amigas do instituto mentres se recuperan pola desaparición e misteriosa morte da líder do grupo. A serie comeza coas mensaxes ameazantes dunha figura chamada “A” que tenta desvelar os segredos máis escuros da cuadrilla, e pouco a pouco vai despregando unha serie de recursos de intriga e elementos pseudo-fantásticos que complican a trama. É doado desbotar esta serie como un produto de entretemento para adolescentes, sen reparar nas continuas referencias intertextuais que a sitúan como outro exemplo de televisión que aspira a ser algo máis ca televisión. En Pretty Little Liars, as referencias literarias son dos dous tipos vistos até agora: nos primeiros episodios, parte da acción transcorre no instituto, especialmente nas aulas, onde as personaxes principais debaten sobre as novelas de referencia do temario estadounidense co seu profesor de literatura, que é á súa vez un aspirante a escritor. Pero en ocasións as referencias son máis sutís, presentes só no título ou nun comentario das protagonistas, e axudan a establecer o ton do episodio, como acontece co uso do nome “Vivian Darkbloom” (un dos sobrenomes de Vladimir Nabokov), que unha das rapazas emprega nas súas escapadas con mozos maiores, ou o lugar que a antagonista das mozas, “A”, escolle para agochar unha carta que roubou no episodio “The Perfect Storm”: a copia do libro Great Expectations, de Charles Dickens, que está na biblioteca do instituto. A través dunha serie de flashbacks, o libro fai de caixa de resonancia dos temas da serie: Great Expectations, unha das novelas máis complexas de Dickens, ten unha estrutura de caixas chinesas, na que un misterio aparece dentro doutro como a propia carta apareceu dentro do libro, pero tamén como os misterios da trama se van sucedendo, e o tema central da novela é, asemade, a relación de poder entre Estella e Pip, que atopa o seu reflexo na relación de poder entre Allison (a moza desaparecida) e Emily, a autora da carta de amor agochada no libro. Outro exemplo deste uso de referencias literarias directas para establecer o ton dun episodio, ou de toda unha serie, atopámolo na comedia de Michael Schur The Good Place (NBC, 2016–2020), na que uns personaxes con vidas non demasiado exemplares morren e van a ese ‘lugar bo’ do título. Eleanor, a protagonista, é consciente de que as súas accións na terra non a fan merecedora dun sitio no paraíso e ten medo de que en calquera momento a boten de alí, polo que procura a axuda dun profesor de ética filosófica tamén defunto para que a axude a ser mellor persoa. A partir deste momento a serie vira en tratado filosófico, no que as eternas preguntas sobre o sentido da vida, a moral e a identidade son tan significativas para a trama como os enredos dos protagonistas. En The Good Place os conceptos filosóficos están representados de diversas formas, normalmente a través dun diálogo rápido e enxeñoso, pero tampouco faltan as referencias aos libros e os autores de cabeceira de Chidi, o profesor de filosofía, desde o imperativo categórico de Kant até o existencialismo de Søren Kierkegaard. O feito de que a serie conte cun filósofo como asesor (Goldhill, 2018) confirma que os autores buscan algo máis que simplemente empregar os libros de filosofía como mero decorado, como nas comedias de situación dos 90 e primeiros 2000 se empregaba a casa, o café, ou o centro de traballo. No drama This Is Us (NBC, 2016–presente), que se desenvolve adiante e atrás ao longo de varias décadas, o núcleo da familia branca protagonista, Jack e Rebecca Pearson, adopta un bebé negro tras perder un dos seus fillos nun parto múltiplo. O neno, Randall, medra querido no seo dunha familia branca, pero ao chegar á adolescencia comeza a facerse preguntas identitarias e a atoparse coa realidade dos conflitos raciais, que o seu pai non é quen de comprender porque non se decata dos seus propios privilexios. É entón

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 141–151. ISSN: 2184-7010 146 PATRICIA JANEIRO cando Randall procura un guieiro na figura do seu profesor de literatura (o único membro negro do claustro no seu colexio privado), o que o seu pai percebe coma unha ameaza á relación co fillo. No episodio da cuarta temporada “The Dinner and the Date”, Jack convida o profesor a cear a casa. Despois dunha tensa cea, na que un Jack exasperado lle di ao profesor “non lle podo aprender ao meu fillo a ser negro”, este regálalle un libro dun poeta do que Jack nunca escoitara falar: Langston Hughes. Ao final do episodio, Jack lévalle o libro ao seu fillo (a quen o profesor xa tiña a intención de regalarllo) e xuntos len o poema “I, too, sing America”. Non é a primeira vez que a poesía aparece na serie: na primeira temporada, o pai biolóxico de Randall, quen tamén escribe, regálalle a Rebecca o libro Poem Counterpoem, de Margaret Danner e Dudley Randall, e de aí saca Rebecca o nome do neno. Porén, o poema de Hughes non só permea este episodio concreto, senón toda a serie, dando claves para entender o lugar de Randall na familia, a súa procura dunha voz propia, e a dolorosa ignorancia dos seus pais con respecto ás cuestións raciais: o poema, publicado en 1926, comeza cunha alusión directa ao referente literario de Hughes, Walt Whitman. Whitman escribiu “I sing the body electric” [Celebro o corpo eléctrico] e asociou a enerxía dese corpo a todas as virtudes da democracia americana, na que o poder emana de cada individuo actuando de acordo cos seus iguais, por iso continúa “I hear America singing, the varied carols I hear...” [Escoito cantar a América, a variedade de cantos que escoito...] (Ward, 2016). Hughes esixe facer parte desa voz diferenciada pero harmónica dos cidadáns ao declarar explicitamente “I, too, sing America” [Tamén eu celebro América], reclamación que queda máis patente no derradeiro verso: “I, too, am America” [Tamén eu son América]. Esa voz, harmónica pero única, é a que Randall leva procurando durante toda a súa infancia e adolescencia, cando vai anotando nunha libreta os nomes de todas as persoas negras que coñece, ou cando o seu pai, momentos antes da cea na que acabará descubrindo a Hughes, lle di que el non ve branco ou negro, que só ve o seu fillo, e Randall vese obrigado a retrucar “daquela non me ves”, poñendo de manifesto que Jack, por moi boa intención que teña, non vive no mesmo mundo có seu fillo nin se vai ter que enfrontar ás mesmas dificultades. É por isto que “I, too, sing America” é posibelmente a referencia literaria máis importante de toda a serie: non só define a relación entre Jack e Randall, senón entre dúas culturas cuxo choque é a raíz mesma da historia do seu país. É outro poema o que pecha o ciclo ascendente de Walter White/Heisenberg en Breaking Bad (AMC, 2008–2013) e preconiza o derrubamento do seu imperio. Na serie, un profesor de química de instituto que, pese á súa brillante mente, non é quen de gañar o respecto de ninguén nin de chegar a fin de mes, descubre que ten un tipo de cancro moi agresivo, e decide empregar os seus coñecementos para fabricar e vender metanfetamina, e así pagar o seu tratamento e deixar a súa familia nunha boa situación económica cando morra. Canto máis ascende Walter White no mundo da droga, máis arrogante vira e máis se esquece do seu propósito inicial, poñendo en perigo a súa familia e o seu socio no negocio do ‘cristal’. Pero Breaking Bad é unha serie que fala sobre todo de decisións e consecuencias, e na súa última temporada estas alcanzan a Walt, que ve como os seus dous mundos (o que construíu como capo da droga e o anterior a este, o do tímido profesor e pai de familia) se derruban perante os seus ollos. O creador Vince Gilligan decidiu titular o antepenúltimo episodio da serie “Ozymandias”, en alusión directa ao soneto de Percy Bysshe Shelley que describe os restos da outrora grandiosa estatua do faraón Ramsés II (Ozymandias é o seu nome grego) para subliñar a inevitable decadencia de todos os líderes e dos seus imperios. Neste caso o poema non figura explicitamente no episodio (alén do título), senón que o episodio enteiro é unha recreación case literal do poema: comeza cunha escena do pasado, cando Walt e o seu socio Jesse cociñaron por primeira vez a metanfetamina que deu orixe ao imperio de Walt, e despois volve ao tempo

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.141–151. ISSN: 2184-7010 O QUE AS PERSONAXES LEN 147 presente, facendo reconto das baixas producidas despois dun enfrontamento entre dous axentes da DEA (un deles cuñado de Walt) e unha banda de neonazis que nalgún momento traballou para el. Se o poema describe dúas xigantescas pernas de pedra sen torso no deserto e preto delas un rostro partido medio afundido na area, a imaxe amosa a Walt debruzado no deserto, co rostro desencaixado pola perda do seu cuñado e amigo (e, seguramente, tamén do seu imperio). Ao longo do episodio, os personaxes principais van caendo de xeonllos ao chan co rostro desencaixado pola dor, provocando así un efecto de onda expansiva cuxo epicentro é o poema de Shelley, até que finalmente volvemos ver a planicie do deserto de Novo México, inmutable, o mesmo que no poema “Of that colossal wreck, boundless and bare/The lone and level sands stretch far away” [da ruína colosal, area ilimitada/ Se estende ao lonxe rasa, núa, abandonada] (Shelley, 2009). Malia que, como dixemos, o soneto non se menciona no episodio agás no título, o actor Bryan Cranston, que interpreta a Walt, recitouno fóra de cámara para unha promoción dos capítulos finais da serie, reforzando así a conexión do poema coa auxe e caída de Walter White.

2.2 O libro como parte da trama

Hai outras ocasións nas que as referencias aos libros non só funcionan para establecer o ambiente ou para amplificar os temas da serie, senón que se integran no argumento e pasan as formar parte das múltiplas capas da trama; é normalmente o caso das series de ciencia ficción construídas arredor dun misterio, como Lost. Para unha serie que quere ser tantas cousas á vez, as referencias intermediais semellan obrigadas. Na serie, cunha narrativa enfiada arredor de múltiplas liñas temporais que saltan adiante e atrás, os superviventes dun accidente de avión enfróntanse ao descoñecido nunha illa misteriosa. Ao longo das seis temporadas aparecen case 100 obras literarias citadas, referidas ou nas mans dos protagonistas, desde a Biblia até A Brief History of Time, de Stephen Hawking, co cal non é difícil atopar conexións entre ao menos algunhas delas e os xiros argumentais da serie. Como afirma Jorge Carrión en Teleshakespeare (2011), moitas destas referencias atópanse no título do episodio e nel atopamos as claves interpretativas do mesmo. Se ben é certo que estas interpretacións poden chegar a ser forzadas cando se realizan a posteriori, os creadores da serie, Carlton Cuse e Damon Lindelof, aclararon en varias ocasións que algúns deses libros deitan pistas sobre puntos importantes da trama: “Escollemos os libros de xeito meticuloso e específico, e debatemos sobre as implicacións temáticas de escoller certos libros, por qué os estamos usando nesa escena, e qué queremos que a audiencia deduza desa escolla” (Damon Lindelof, en Bradner, 2010). A comezos da segunda temporada, por exemplo, Cuse e Lindelof insinuaron que na novela de Brian O’Nolan, The Third Policeman, agochábanse as claves de moitos dos segredos da serie. A conexión tampouco pasara desapercibida para os fans desde que viran a Desmond lendo o libro no primeiro episodio da temporada: as vendas da novela disparáronse nas semanas posteriores á emisión do episodio (Entertainment R.T.E., 2007). De xeito semellante, La invención de Morel, do arxentino Adolfo Bioy Casares, que o personaxe Sawyer le nunha escena da temporada 4, garda moitos paralelismos coa trama da serie: trátase, en ambos casos, de protagonistas que chegan de forma improbábel a unha illa do Pacífico que semella deserta pero resulta estar habitada por personaxes misteriosas, na que o tempo non transcorre de forma lineal, e na que unha serie de elementos externos (a máquina de Morel e os engranaxes da illa en Lost) axudan os protagonistas a alterar os planos da realidade. Ademais, as dúas obras están enraizadas no mito do eterno retorno, co protagonista de La Invención de Morel

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 141–151. ISSN: 2184-7010 148 PATRICIA JANEIRO revivindo a mesma semana desde que chega á illa, e as personaxes de Lost tendo que revivir o accidente que lles levou a ela. Curiosamente, ao se tratar dunha novela que está fóra do sistema literario anglosaxón, este feito é sistematicamente ignorado na maioría de artigos e páxinas web que analizan as referencias literarias máis evidentes de Lost.

2.3 O libro como recurso didáctico

Non podemos pechar esta análise das referencias directas a obras literarias sen volver falar do pacto entre o medio popular (a televisión) e o medio culto (a literatura). Como acabamos de ver, son as series cun público obxectivo adolescente as que máis exploran as múltiplas posibilidades desa relación: Pretty Little Liars non só emprega clásicos da literatura universal como conector temático das súas tramas, senón que fai referencias frecuentes ao cine clásico e mesmo, nun alarde de creatividade visual incríbel para unha serie do seu perfil, recrea cadros de Edward Hopper en escenas puntuais para deleite do público que as descobre, como unha broma secreta entre os realizadores da serie e os amantes da pintura realista (Buckley, 2010). En Buffy the Vampire Slayer, os libros non só están presentes nos exemplos mencionados, senón que boa parte da acción transcorre na biblioteca do instituto (nas primeiras tres temporadas), e un dos personaxes clave, a figura paterna que guía a Buffy durante a súa viaxe cara á madurez, é o bibliotecario Mr. Giles. Os personaxes da serie pasan boa parte de cada temporada estudando libros antigos na biblioteca, e cando xa non están no instituto fano na casa de Mr. Giles ou na tenda de maxia que este merca. O interesante é que Buffy e os seus amigos non fan nada por disimular o aburrido que resulta en ocasións investigar, a serie non emprega montaxes nas que as agullas do reloxo pasan a toda velocidade e eles devoran libro tras libro ávidos de coñecementos, pero si hai moitas escenas nas que os mozos tentan zafar da ardua tarefa, non atopan o que están buscando, ou confunden información vital, como lle pode pasar a calquera adolescente que se mergulla nun feixe de libros e artigos académicos para facer un traballo da escola. Todo ese esforzo, porén, ten a súa recompensa no campo de batalla, cando Buffy aplica o aprendido para vencer os monstros, pero o que o fai máis valioso é a ensinanza que de aquí se extrae, máis se cabe, insistimos, considerando cal é público obxectivo da serie: canto máis lemos e máis aprendemos, máis difícil é que os monstros nos dean medo, xa sexan os ficticios ou os do día a día. BtVS consigue integrar no seu argumento unha visión da literatura e o estudo como algo enriquecedor sen caer no didactismo que o público adolescente adoita rexeitar, e esa é unha parte importante do seu éxito, e de que siga a ser obxecto de estudo académico máis de 15 anos despois de que finalizase a súa emisión. A derradeira serie da que imos falar neste estudo tamén está orientada a un público mozo e bebe tamén da inspiración temática de BtVS. Supernatural (The WB/The CW, 2005–actualidade) é un drama sobrenatural que xira arredor de dous irmáns, Sam e Dean Winchester, que perderon á súa nai a mans dun demo cando eran cativos e desde aquela percorren as estradas secundarias dos Estados Unidos cazando monstros. No caso desta serie podemos falar de transmedialidade, xa que, o mesmo que aconteceu con BtVS, o canon da serie está a ter a súa expansión en forma de banda deseñada, libros e mesmo unha serie de anime centrada nas dúas primeiras temporadas da serie orixinal. Ademais, o elemento distintivo de Supernatural son os recursos meta-televisivos que emprega case desde o comezo, que se intensifican cando na temporada 4 se introduce o personaxe de Chuck Shurley, presentado como un profeta que recibe directamente a palabra de Deus e a transforma en novelas de aventuras onde dous personaxes chamados Sam e Dean Winchester perden a súa nai a mans dun demo e percorren as estradas secundarias dos

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.141–151. ISSN: 2184-7010 O QUE AS PERSONAXES LEN 149

Estados Unidos cazando monstros. Deste xeito os protagonistas da serie atópanse cunha serie de novelas que relatan o que está a acontecer nas súas vidas e o que estamos a ver os espectadores na serie. Neste caso apenas hai referencias a libros reais, senón que se crea un culto literario ficticio dentro da propia serie; non obstante, a investigación volve xogar un papel fundamental, cos irmáns alternando entre fontes dixitais e volumes antigos para procurar información. Volvemos, polo tanto, ao eloxio da literatura presente en BtVS e Pretty Little Liars, máis se cabe cando, en temporadas posteriores, os protagonistas descobren os vestixios dunha antiga sociedade secreta que se dedicou a estudar e compilar todas as particularidades dos monstros contra os que eles loitan, que tiña o acaído nome de “Men of Letters” (Homes de Letras) e cuxo cuartel xeral está cheo de libros de consulta.

3. Conclusión: o pacto intermedial

Fronte ao discurso por veces apocalíptico que preconiza a alienación da mocidade e a súa insensibilización perante a vida real debido á exposición ás mensaxes perniciosas da televisión, podemos contrapoñer todos os exemplos vistos neste artigo. Por unha banda, os creadores de televisión non viven alleos a outras expresións culturais, polo que os seus coñecementos e as súas preferencias agroman tamén nas creacións orixinais, sen necesidade de recorrer á adaptación televisiva. Esas influencias pasan por amosarlle ao espectador os libros que forman parte da lista de lectura das personaxes, dando lugar, como xa vimos, a un anovado interese por eses títulos, pero tamén a establecer un diálogo con esas obras anteriores que as pode converter en parte da trama ou da ambientación da serie, caso, por exemplo, do poema “Ozymandias” de Percy Bysshe Shelley ou do “I, too” de Langston Hughes. Isto prestixia as series televisivas, ao as asociar a un medio “culto”, e pode axudar a rachar cos prexuízos que moitos académicos semellan ter cara a televisión, ao mesmo tempo que educa a novos espectadores noutras formas de arte. Por outra banda, a relación entre os dous medios é mutuamente enriquecedora, xa que, como no caso das listas de libros de Rory Gilmore ou Lost, as referencias intermediais fan que os libros reflectidos na pantalla adquiran nova popularidade e que volvan ser obxecto de estudo e análise. A relación intermedial é, por tanto, proveitosa tanto para as series como para a literatura, e especialmente para o público, que pode navegar entre ambos medios e atopar distintos niveis de complexidade nas series e novos significados nas obras literarias que até o momento lle pareceran contidas en si mesmas.

REFERENCIAS

Baetens, J. & Sánchez-Mesa, D. (2018). Literature in the expanded field: Intermediality at the crossroads of literary theory and comparative literature. Interfaces [Online]. Consultado en http://preo.u-bourgogne.fr/interfaces/index.php?id=245

Berbert, M. (Produtor) & Truffaut, F. (Guionista/Director). (1973). La nuit américaine [Filme]. Paris, France: Les Films du Carrosse, PECF, Produzione Internazionale Cinematografica.

Biasio, A. D. (2017, August 8). Contemporary television series and literature: An intense, transformative embrace. Fusion Magazine. Consultado en

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 141–151. ISSN: 2184-7010 150 PATRICIA JANEIRO

https://www.fusionmagazine.org/contemporary-television-series-and-literature-an- intense-transformative-embrace/

Bradner, L. (2010, May 14). Lost reading list: the show's creators discuss literary influences, from Stephen King to Flannery O'Connor. Los Angeles Times. Consultado en https://latimesblogs.latimes.com/showtracker/2010/05/lost-in-books-.html

Buckley, N. (2010, July 5). Pretty little liars: Hopper and teen noir. Norman Buckley. Consultado en http://normanbuckley.com/blog/pretty-little-liars/pretty-little-liars-hopper-and-teen- noir/

Carrión, J. (2011). Teleshakespeare. Madrid: Errata Naturae.

Dean, W. (2009, February 11). Reviewing Mad men: season two, episode one – For Those Who Think Young. The Guardian. Consultado en https://www.theguardian.com/culture/tvandradioblog/2009/feb/11/mad-men-don-draper

Entertainment, R. T. E. (2007, January 10). Lost boosts interest in The third policeman. RTÉ. Consultado en https://www.rte.ie/entertainment/2006/0220/406298-lost/

Fedele, M., Masanet, M. J. & Ventura, R. (2019). Negotiating love and gender stereotypes: Prevalence of amor ludens and television preferences rooted in hegemonic masculinity. Masculinities and Social Change, 8 (1), 1–43. https://doi.org/10.17583/MCS.2019.3742

Fogelman, D. & Oyegun, K. (Guionistas). (2019). The dinner and the date [Episodio de serie televisiva]. In I. Aptaker, E. Berger, G. Ficarra, D. Fogelman, C. Gogolak, K. Olin, J. Requa & J. Rossenthal (Produtores executivos), This is us. Los Angeles, CA: NBC.

Garber, M. (2016, November 28). The Gilmore girls revival has it out for Outsiders. The Atlantic. Consultado en https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2016/11/the-fault-in- stars-hollow/508841/

Gilligan, V. & Walley-Becket, M. (Guionistas). (2013). Ozymandias [Episodio de serie televisiva]. In V. Gilligan, M. Johnson & M. Maclaren (Produtores executivos), Breaking bad. Los Angeles, CA: AMC.

Goldhill, O. (2018, October 12). Meet the philosopher behind The good place. Quartz. Consultado en https://qz.com/quartzy/1421632/the-philosophy-in-the-good-place-is-vetted-by-a-real- philosopher/

Goldstick, O. & Goldsmith, M. (Guionistas). (2010). The perfect storm [Episodio de serie televisiva]. In O. Goldstick, I. M. King, B. Levy & L. Morgenstein (Produtores executivos), Pretty little liars. Los Angeles, CA: ABC.

Grant, Julia L. (2010). Slaying Shakespeare in high school: Buffy battles the merchant of Venice and Othello. In J. A. Kreider & M. K. Winchell (Eds.), Buffy in the classroom: essays on teaching with the vampire slayer (pp. 202–212). Jefferson, N.C: McFarland & Co.

Ludot-Vlasak, R. (2017). Les séries télévisées au prisme de l’intertextualité: quelques perspectives sur les frontières du littéraire. TV/Series [Online], Consultado en http://journals.openedition.org/tvseries/2183

Marcus, B. K. (2013, October 9). Tv's third golden age: B.K. Marcus. Fee. Consultado en https://fee.org/articles/tvs-third-golden-age/

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.141–151. ISSN: 2184-7010 O QUE AS PERSONAXES LEN 151

Onieva, A. (2019, Diciembre 24). Todas las series españolas emitidas en 2019, de la peor a la mejor. Fuera de Series. Consultado en: https://fueradeseries.com/todas-series-espanolas- 2019-peor-a-mejor-fe7bcdc8dd6b

Palladino, D. (Guionista). (2003). Those are strings, Pinocchio. [Episodio de serie televisiva]. In G. Polone, A. Sherman-Palladino & D. Palladino (Produtores executivos), Gilmore girls. Los Angeles, CA: The WB.

Shelley, P. B. (2009). Ode ao Vento Oeste e outros poemas (trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos). São Paulo: Hedra.

_____ (2017). Selected Poems and Prose. London: Penguin.

Ward, D. C. (2016, September 22). What Langston Hughes’ powerful poem “I, too” tells us about America’s past and present. Smithsonian Magazine. Consultado en https://www.smithsonianmag.com/smithsonian-institution/what-langston-hughes- powerful-poem-i-too-americas-past-present-180960552/

Weiner, M. & Veith, R. (Guionistas). (2008). For those who think young. [Episodio de serie televisiva]. In M. Weiner (Produtor executivo), Mad men. Los Angeles, CA: AMC.

Whedon, J. & Espenson, J. (Guionistas). (1999). Earshot [Episodio de serie televisiva]. In J. Whedon & D. Greenwalt (Produtores executivos), Buffy the vampire slayer. Los Angeles, CA: The WB.

Whedon, J. & Noxon, M. (Guionistas). (1998). Beauty and the beasts [Episodio de serie televisiva]. In J. Whedon & D. Greenwalt (Produtores executivos), Buffy the vampire slayer. Los Angeles, CA: The WB.

Whedon, J. (Guionista). (1997). Out of mind, out of sight [Episodio de serie televisiva]. In J. Whedon & D. Greenwalt (Produtores executivos), Buffy the vampire slayer. Los Angeles, CA: The WB.

Whitman, W. (1961). Leaves of Grass. The First (1855) Edition. London: Penguin.

Wikipedia Editors (n.d.). List of 2019 American television debuts. Consultado en https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_2019_American_television_debuts

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 141–151. ISSN: 2184-7010

UN CASO DE TRANSPOSICIÓN INTERMEDIAL DE LA NOVELA CORTA DE JOSÉ MARÍA DE PEREDA A LA FICCIÓN TELEVISIVA EN HORA ONCE

AN INTERMEDIAL TRANSPOSITION CASE FROM JOSÉ MARÍA DE PEREDA'S SHORT NOVEL TO "HORA ONCE" TELEVISION FICTION

RAQUEL GUTIÉRREZ SEBASTIÁN* [email protected]

Este trabajo aborda un estudio sincrónico de un caso de transmedialidad cuyo texto base es una novela corta del escritor realista español José María de Pereda, Blasones y talegas (1871). En 1971 la segunda cadena de televisión pública española encargó a un guionista, Carlos Vélez, y a una realizadora, Josefina Molina, la creación de un producto audiovisual que, con la apariencia de una dramatización televisada, reelaboraba el texto de Pereda convirtiéndolo en un programa de televisión para ser consumido por los espectadores del último tercio del siglo XX. La investigación contextualiza este programa y señala los puntos de convergencia y de diferencia entre la obra de Pereda, el guion dramatizado y la versión televisiva.

Keywords: Pereda; Blasones y talegas; transmedialidad.

This work deals with a synchronous study of a case of transmediality whose basic text is a short novel by the Spanish realist writer José María de Pereda, Blasones y talegas (1871). In 1971 Spanish public television commissioned a screenwriter, Carlos Vélez, and a filmmaker, Josefina Molina, to create an audiovisual product that, with the appearance of a televised dramatization, reworked Pereda's text, turning it into a television program to be consumed by the spectators of the last third of the twentieth century. The research lines of convergence and difference between Pereda's work, the dramatized script and the television version.

Keywords: Pereda; Blasones y talegas; transmediality

Data de receção: 2020-02-28 Data de aceitação: 2020-04-02 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2532

* Professora titular, Universidad de Cantabria, Departamento de Filología, Espanhã, ORCID: 0000-0002- 1170-6098 154 RAQUEL GUTIÉRREZ SEBASTIÁN

En el presente trabajo nos proponemos abordar un caso concreto de intermedialidad que pueda ayudarnos a entender el proceso por el que los textos literarios, en este caso, un relato de José María de Pereda, se han convertido mediante una transformación textual en guiones dramatizados para televisión y, finalmente, en episodios televisados. Estos cambios se inscriben en un proceso cultural más amplio de la evolución de Televisión española en un camino que la llevó desde la adaptación de obras teatrales originales a este paso intermedio, en cierto modo innovador, de la reescritura de textos narrativos para convertirlos en otro tipo de producto cultural destinado a un amplio sector de la población. La televisión pública de España pretendía, dentro de sus intereses generales de formación y entretenimiento de los ciudadanos, presentar en un formato breve obras literarias importantes del imaginario cultural. Estos procesos de intermedialidad se desarrollaron en la Televisión española a finales de los años 60 y principios de los 70 y tuvieron como marco el programa Hora once, al que posteriormente nos referiremos con cierto detalle. Acabo de aludir al concepto de intermedialidad, y de acuerdo con lo indicado por Ruth Cubillo (2013, p. 171), que cita a Irina Rajewski, consideramos que todo crítico que emplee este concepto debe definir, siquiera someramente, cuáles son los parámetros desde los que está abordando este término, en suma, que aclare las reglas de juego, pues los estudios teórico-literarios actuales están utilizando paradigmas fronterizos para abordar un fenómeno cultural complejo, el de las relaciones entre las artes y la tecnología en sus variadas manifestaciones. Este análisis sincrónico de una obra de Pereda llevada a la televisión, que se enmarcará dentro de una contextualización de los procesos audiovisuales que la originaron, se puede englobar dentro del paradigma de la transmedialidad, entendiendo este término como lo define Carlos Reis:

No universo conceptual da intermedialidade estão compreendidas outras noções cuja justificação se encontra na singularidade de manifestações decorrentes do impulso dialógico que ficou mencionado. Derivo agora para o conceito de transmedialidade e, uma vez que me situo no terreno dos estudos narrativos, entendo-o como a vigência do princípio da narratividade em múltiplas linguagens, géneros e contextos mediáticos. A par da transmedialidade e em direta relação com ela, o conceito de transposição intermediática estabelece novos critérios de abordagem e um posicionamento epistemológico renovado, traduzido no estudo da adaptação (p. ex., do romance ao cinema ou à banda desenhada). (Reis, 2019, p. 32)

En nuestro caso, trataremos de analizar, en palabras de Reis, la transposición intermediática del texto narrativo del escritor del realismo español José María de Pereda, Blasones y talegas, a un texto dramático de Carlos Vélez, que fue la base de una producción audiovisual dirigida por Josefina Molina. Tres creadores, dos literarios y una del ámbito visual. Dos autores que interpretan y transforman un texto base, una novela corta. Un proceso en tres fases que contextualizaremos y desgranaremos en las páginas de este estudio. A diferencia de lo sucedido con la obra de otros escritores del realismo, entre los que destacan Benito Pérez Galdós, Emilia Pardo Bazán o Clarín, la narrativa de José María de Pereda no ha suscitado interés para los creadores audiovisuales. Bien es cierto que muchas de las adaptaciones cinematográficas más logradas de los textos narrativos de esos grandes autores se han producido a partir de los años 80 y se han presentado, sobre todo, en formato de serie. Destacables son las series Fortunata y Jacinta (1980) de Mario

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.153-161. eISSN: 2184-7010 UN CASO DE TRANPOSICIÓN INTERMEDIAL 155

Camus, Los pazos de Ulloa (1985) de Gonzalo Suárez y La Regenta de Méndez Leite de 1995. No es menos cierto que, sobre todo, en el caso de Pérez Galdós, contamos con una cierta tradición cinematográfica de novelas llevadas al cine antes de la aparición de la gran serie de Mario Camus, entre las que destacan: Nazarín (1959) y Vidiriana (1961) de Luis Buñuel, así como Tormento de Pedro Olea (1974). Como he indicado anteriormente, el caso de José María de Pereda ha sido diferente del de sus compañeros de generación literaria, pues su obra no ha sido puesta en imágenes, y únicamente se ha realizado la adaptación televisiva que estudiamos en este trabajo teniendo como base un texto del escritor. Esta falta de interés de los creadores audiovisuales por los textos peredianos parece cumplir el deseo del novelista, que siempre mantuvo un gran rechazo hacia la adaptación de sus obras a otros formatos. En vida del escritor algunas de sus obras narrativas breves, como La leva y Blasones y talegas fueron convertidas en zarzuelas y estrenadas en Madrid con discretísimo éxito, y de dos de sus novelas, La Montálvez y La puchera, se realizaron adaptaciones teatrales que no consintió en estrenar el novelista. Varias cartas cruzadas entre Pereda y el dramaturgo y crítico Luis Ruiz Contreras, que pretendió realizar estas adaptaciones, recogen algunos de los motivos que esgrimió el polanquino para rechazarlas, aunque bajo ellos se oculte el miedo al fracaso de un novelista consolidado que ya estaba en la recta final de su carrera literaria. Indica Pereda en una de esas cartas que: “Si han de reflejarse los caracteres del libro en la obra dramática, necesita esta unas dimensiones desacostumbradas e inaguantables en el escenario, y si ha de reducirse la novela a las proporciones toleradas en el teatro, quedan las figuras sin color y los sucesos sin importancia alguna.” (Ruiz Contreras, 1903, p. 84). En el caso de la obra que nos ocupa, Blasones y talegas, tuvieron que pasar cien años para que se produjera el proceso de transmedialidad que la convirtió en un episodio televisado de la España de los años 70. La novela corta Blasones y talegas se publicó dentro del libro Tipos y paisajes. Segunda serie de Escenas Montañesas, un volumen que editó la madrileña imprenta Fortanet el 15 de junio del año 1871 (González Herrán, 1983, pp. 35–36) y en el que se recogían un total de doce artículos de costumbres y/o relatos anteriormente aparecidos en la prensa, entre los que sobresale sin duda por sus valores literarios el que nos ocupa, pero en el que se agrupan además interesantes textos costumbristas como Dos sistemas, Para ser buen arriero, Ir por lana o La romería del Carmen. Se trataba, pues, de una parte del segundo libro de Pereda, dentro del ámbito literario del costumbrismo al que pueden adscribirse además de las dos series de Escenas Montañesas, otros dos volúmenes peredianos posteriores: Tipos trashumantes (1877) y Esbozos y rasguños (1881). Este libro venía a confirmar al escritor montañés como uno de los cultivadores del género de costumbres, tras unos intentos juveniles fallidos de dedicación al mundo teatral. La fortuna literaria de Pereda, en progresivo decaimiento desde la muerte del escritor en 1906 durante todo el siglo XX, olvido del que solamente se salvaron sus dos novelas más importantes: Sotileza (1885) y Peñas arriba (1895) había producido un vacío más que notable de ediciones sueltas de sus relatos breves y pudo no ser una casualidad que un año antes de esta producción televisiva, en 1970, apareciera en Alianza una edición de La leva y otros cuentos del novelista cántabro, a cargo de Laureano Bonet. Entre esos otros cuentos se encontraba incluido Blasones y talegas. No es descabellado pensar que el guionista que creó el texto base para el programa, Carlos Vélez, conociera esta edición, pues hubo una reseña de la misma en La Vanguardia, el 10 de septiembre de 1970, lo que prueba que tuvo una cierta difusión en España. Poco más de un año después de la publicación de la edición de Bonet, el 4 de diciembre de 1971, la segunda cadena de Televisión española emitió una adaptación teatral de esta novela dirigida, como se ha indicado, por Josefina Molina con guion un

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 153-161. eISSN: 2184-7010 156 RAQUEL GUTIÉRREZ SEBASTIÁN poco anterior de Carlos Vélez. Se trataba de una producción para el programa Hora once, un espacio dedicado a la dramaturgia televisada que permaneció en antena en un momento de auge del teatro en televisión, entre los años 1968 y 1974, auge del que fue el producto más emblemático el conocido Estudio 1. En Hora once se ponían en escena obras teatrales y narrativas, generalmente breves, que se adaptaban mediante guiones televisivos a la pequeña pantalla. Desde el nacimiento del programa, de la mano de la actriz argentina Susana Mara, el propósito fue emplear como base de los guiones textos de grandes autores, pero la peculiaridad que nos interesa resaltar a los efectos de este trabajo es que pasó de ser un espacio especializado en la exhibición televisiva de obras teatrales a poner en escena en la pequeña pantalla narraciones cortas, pues su creadora pensó que, sin las ataduras escénicas, podía crearse un formato nuevo en la televisión (Bernat Conde, 2017, p. 159). Por tanto, la transposición intermediática de los textos base, la reformulación de los mismos, constituyó un elemento determinante en el avance hacia la creación de nuevos formatos televisivos. En el camino recorrido por la televisión desde la presentación directa de obras dramáticas televisadas, a la adaptación de obras teatrales a la televisión, hasta llegar a las series con guiones originales, estas reescrituras de textos narrativos previos supusieron un eslabón interesante, porque trajeron al panorama cultural español del momento obras de grandes autores, en este caso narradores del realismo europeo y americano, que fueron exhibidas en la Televisión española y por tanto, pudieron ser consumidas por un sector amplio de la población. El repaso por los 160 episodios emitidos a lo largo de los casi siete años de duración de Hora once arroja un sorprendente escrutinio, en el que encontramos novelas y relatos de los siglos XIX y XX, obras dramáticas de variados autores como Valle-Inclán, Tennessee Williams, Hellman, Ibsen, Becket, Marceau o Giraudoux, y, excepcionalmente, algunas obras adaptadas de dramaturgos clásicos españoles, como Tirso de Molina. Todos estos textos han sido sometidos a un proceso de transformación y convertidos en guiones televisados. Es llamativa la gran presencia de narradores de la segunda mitad del siglo XIX, cuarenta textos de esa época son empleados como base para los guiones, obras de Balzac y Stendhal entre los franceses, Tolstoi, Kuprín, Dostoievski y Turgeniev entre los rusos y de los británicos Dickens, Thomas Hardy y Oscar Wilde. La narrativa norteamericana tiene también una importante presencia, con obras de Washington Irving, Jack London, Bret Harte, Melville, Edgar Allan Poe, Mark Twain y Henry James. Del novelista Eça de Queiros se adapta el relato El tesoro y solamente tres de los episodios toman como base narraciones de los escritores realistas españoles: La pródiga de Pedro Antonio de Alarcón, Cuento futuro de Leopoldo Alas, “Clarín” y Blasones y talegas de José María de Pereda. Junto con la selección de obras en este programa, es destacable la presencia de dos directoras, entonces noveles, que resultaron determinantes en la renovación del panorama televisivo español: Pilar Miró y Josefina Molina. Esta última dirigió ocho episodios, el que inauguró el programa, La metamorfosis de Kafka, en 1968, La marquesa de O., (versión televisiva emitida en 1971), un clásico alemán del XIX, obra de Heinrich Von Kleist, cuya última versión dramática en España fue dirigida por Magüi Mira y protagonizada por Amaia Salamanca en 2009, y también de 1971 son otros cuatros trabajos de la misma directora: las transposiciones intermediáticas del cuento de Poe Eleonora, protagonizado por Ana Belén en la versión para televisión, Blasones y talegas de Pereda, una de las novelas cortas de la Novelas a Marcia Leonarda de Lope de Vega, La prudente venganza y Vera, un cuento cruel de Villiers de l´Isle Adam. Un año más tarde, Molina adapta El cochero de Gorki y El hombre que corrompió una ciudad de Mark Twain. Probablemente estos primeros trabajos de Molina en la puesta en “televisión” de textos literarios fueran ensayos de sus grandes creaciones fílmicas,

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.153-161. eISSN: 2184-7010 UN CASO DE TRANPOSICIÓN INTERMEDIAL 157 adaptaciones de grandes novelas españolas: Doña Luz de Juan Valera, en un episodio de la serie Los libros (1976), la serie en seis capítulos sobre la novela de Delibes El camino (1978) y Entre naranjos de Blasco Ibáñez, adaptación de la obra del valenciano a una miniserie de tres capítulos emitida en 1998. En estos primeros episodios televisivos, esta realizadora y otros de su momento, como Pilar Miró, impulsaron una renovación de la realización televisiva y de las adaptaciones de las obras literarias al lenguaje cinematográfico, pues pusieron interés, por ejemplo, en el movimiento de la cámara, que dejó de ser fija, pasó a integrarse en la acción y a hacer primeros planos de personajes y objetos. Este abandono paulatino de la cámara frontal produjo una mirada multiperpectivística de la acción presentada, lo que conllevó novedades en los planteamientos televisivos y en el modo en el que se podía poner en imagen determinados aspectos de las obras literarias. (Baget-Herms, 1974). El estudio sincrónico de algunos aspectos del episodio Blasones y talegas puede constituir un ejemplo ilustrativo del modo de trabajar de estos profesionales de la televisión, de cómo leen e interpretan el texto de Pereda y de cómo realizan la transposición intermedial del mismo. El guion, de notable calidad, como algunos de los productos dramáticos de la televisión pública de aquellos años, transformó los seis capítulos de los que constaba la novela corta de Pereda en un texto teatral de diecisiete escenas, respetó en muchos momentos el contenido del diálogo de los personajes, uno de los aspectos más valorados de la narrativa del narrador decimonónico, introdujo algunos caracteres nuevos y fue, en líneas generales, bastante fiel al contenido de la obra base. Además de un guion valioso, es destacable el excepcional elenco de actores que la Televisión española empleó en el montaje. En la obra actuaban nombres tan conocidos como José Vivó, una jovencísima Julieta Serrano, actriz que suele aparecer en muchas películas de Pedro Almodóvar, Erasmo Pascual, Joaquín R. Pueyo, María de la Riva, Manuel Calvo, Francisco Algora y José Carlos Plaza. La base del relato de Pereda era la pintura de la decadencia de la rancia hidalguía montañesa, que, a causa de su declive económico, debía unirse con la clase de los nuevos ricos. Don Robustiano, un hidalgo rural arruinado, incapaz de adaptarse a la pérdida de sus privilegios, enfermo de orgullo y agobiado por sus deudas, se veía obligado a permitir el matrimonio de su hija Verónica con Antón, hijo de Toribio Zancajos, un jándalo, es decir, un emigrante de Cantabria a tierras andaluzas, que había vuelto rico de Andalucía, que regentaba la taberna del pueblo y que con sus talegas podía salvar de la ruina a la casta blasonada de los Tres-Solares. Partiendo del retrato caricaturesco y costumbrista del quijotesco don Robustiano, el novelista llevaba al lector hacia el clímax del quinto y sexto capítulos, en los que se narraba el matrimonio y el futuro económicamente halagüeño del hidalgo rodeado de su hija, su yerno y sus nietos. El punto de partida del guion que posteriormente puso en imágenes Josefina Molina es similar: la primera escena sitúa a don Robustiano sentado en su sitial. Para presentar ante el espectador las raídas vestimentas del hidalgo, se utiliza el recurso de mostrar a su hija Verónica cuidando estos vestidos. La decadencia que el lector del texto del escritor cántabro puede percibir entre sus páginas se muestra teatralizada a través de la presentación del ambiente: el salón de una casa rural sin apenas ornatos, oscuro y lóbrego, con la imagen de un personaje anacrónico, el de don Robustiano, en el centro de la escena ocupando una especie de trono, y la cocina parca en provisiones, más bien sucia, en la que cenan, en la tercera escena, sopas de pan duro y leche Verónica y su padre, pomposamente sentados a la mesa y servidos por dos criados (personajes que no aparecen en la novelita, como posteriormente indicaré).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 153-161. eISSN: 2184-7010 158 RAQUEL GUTIÉRREZ SEBASTIÁN

Se presenta visualmente también la contraposición de los blasones frente a las talegas que es el eje de la novela. Si bien en los capítulos del relato esta dualidad se muestra ante el lector haciendo protagonista del primer capítulo a don Robustiano y del segundo a Toribio Zancajos, en la versión televisiva, el antagonismo se produce cambiando de escenario y así, las tres escenas iniciales se desarrollan en la decrépita casona de los Tres- Solares y la cuarta traslada la acción a la taberna del jándalo, con lo que el espectador puede percibir esa contraposición entre la clase hidalga y el pueblo. Las siguientes escenas del guion y de su versión audiovisual siguen bastante fielmente el relato perediano y recogen dos episodios sustanciales del mismo: la declaración amorosa que Antón hace a Verónica, en la que el diálogo de los personajes sigue muy de cerca el del texto de Pereda, y las entrevistas entre Zancajos y el hidalgo: la primera en la que este solicita la mano de su hija, la segunda en la que se produce el derrumbe de la torre señorial en una noche de tormenta, derrumbe que simboliza la decadencia de la clase hidalga, y la tercera en la que don Robustiano, forzado por la situación económica y la caída de la casona tiene que aceptar el matrimonio. Finaliza el producto audiovisual con la escena de la boda, que en la novelita ocupa el quinto capítulo. En este último tramo entre las tres creaciones se advierten diferencias: la novela concluye, en el sexto capítulo, con la narración de las comodidades materiales entre las que discurre pacíficamente la vida del hidalgo tras su aceptación del dinero del jándalo, y se presenta una cierta variación de su escala de valores, en la que la nobleza del corazón ha pasado a ocupar el puesto preponderante que antes tenía la nobleza de los blasones. El guion dramatizado y llevado a la televisión concluye, sin embargo, con un tono mucho más pesimista, pues presenta a don Robustiano vestido de gala, sentado en su sitial en la polvorienta y decrépita cuadra de su casona, mientras la familia y amigos disfrutan del banquete nupcial. Es la imagen de un personaje que ha llegado al culmen de su degradación, no se ponen en escena los beneficios económicos que le reportará la boda, sino que Carlos Vélez y Josefina Molina presentan un espacio oscuro, que sitúa en el centro a un hidalgo que reniega de su propio futuro y se complace en la contemplación de las miserias a las que ha llegado su propia casta. Posiblemente este final un tanto diferente se deba a la particular interpretación de los creadores de las dos transposiciones, que parecen entender como estático al personaje de don Romualdo y quieren dar relevancia a su incapacidad de adaptarse a los nuevos tiempos y costumbres. Aunque acabo de subrayar en los párrafos precedentes el seguimiento bastante escrupuloso del texto de Pereda por parte del guionista, quisiera señalar algunos aspectos que diferencian la creación audiovisual de la literaria. El primero de ellos se refiere al aumento del número de personajes en la adaptación y en algunos cambios que se operan en ciertos caracteres que existen en el texto narrativo base. Respecto al primero de los aspectos citados, es lógico que al poner en escena un texto se requiera que aparezcan personajes para crear ambiente, como los parroquianos de la taberna o los asistentes a la boda de Verónica y Antón. Pero además de la aparición de estos extras, la versión teatral televisada proporciona protagonismo a los personajes de los criados, que apenas aparecen esbozados en el texto narrativo. En el discurso literario se alude a una “vecina ya entrada en años, chismosa y cuentera, que les hacía los recados, y que, por un fenómeno inexplicable, se había ganado el afecto y, lo que es más asombroso, la familiaridad de don Robustiano,” (Pereda, 2006, p. 57), y en escena este personaje es encarnado por una vieja sorda, la actriz María de la Riva, presentada como criada de la familia y tal como indicaba la voz narradora, única confidente de Verónica. Igualmente se da el estatus de criado, y no de ocasional ayudante, como en la novela, al mozo que sirve de paje a don Robustiano. Por otro lado, se presenta en escena un amigo

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.153-161. eISSN: 2184-7010 UN CASO DE TRANPOSICIÓN INTERMEDIAL 159 y confidente de Antón que no se encontraba entre los caracteres literarios. Este personaje, encarnado por Francisco Algora, sirve como vehículo de la información que en el relato daba la voz narradora en tercera persona, pues Antón habla con él sobre sus anhelos y sentimientos hacia la hidalga y además este personaje protagoniza dos escenas humorísticas que no están en el texto literario, creadas probablemente para aligerar el tono un tanto lúgubre que iba adquiriendo la pieza teatral televisada. En la primera de ellas el personaje empuja literalmente a Antón para que hable con Verónica a la salida de misa y en la segunda protagoniza un discurso de tono jocoso en el banquete nupcial. Posiblemente la directora de la adaptación quisiera aprovechar la vis cómica de ese secundario de lujo que fue Algora, actor fallecido en 2016 y muy conocido por sus papeles en comedias, tanto en la gran pantalla como en el teatro. Por otro lado, la creación de personajes cómicos que sirven de contrapunto a situaciones dramáticas y son confidentes de los protagonistas es un recurso habitual desde la comedia lopesca. Además de estas diferencias entre teatro y novela corta referidas a los personajes y que surgen casi siempre de las dificultades de adaptar el relato a la escena, aparece otra diferencia que considero más significativa referida a la ambientación. Las vestimentas, los utensilios, el mobiliario o las casas recreadas inciden en una deslocalización de la obra y no se presentan elementos regionales: no se recrea el ambiente de una aldea del norte de España, sino que el aspecto general de casas e indumentaria parece el de cualquier pueblo castellano y recuerda mucho las ambientaciones de las obras dramáticas del Siglo de Oro. Junto con este detalle, que posiblemente fuera buscado para tratar de dar un interés más general a la acción presentada o que se puede deber también a la existencia de atrezzos previos utilizados en las frecuentes adaptaciones televisadas de obras del teatro clásico, es significativo el eco cervantino que se desprende no solamente de la decrépita figura del hidalgo, sino de los detalles de ambiente. Es el caso del hidalgo don Robustiano, presentado en la novela como un personaje ridículo que nos recuerda a don Quijote. Como señala Laureano Bonet, se trata de “un personaje chiflado, anacrónico, «alienado», precisamente a causa de su desfasamiento histórico,” (Bonet, 1970, p. 31). Su retrato literario está en determinados momentos cercano a la caricatura y, por eso, no es extraño que el autor del guion y la realizadora televisiva se hayan fijado en esa vertiente quijotesca del personaje, cuyo idealismo y anacronismo se aprecian en su alter ego teatral, y además hayan extendido la quijotización al ambiente, presentando ciertos elementos caballerescos en los decorados, como el trono, el libro de linajes o las armas y aderezos de don Robustiano y su rocín, elementos que aparecen también en el texto literario. A ellos se une el lenguaje altisonante y arcaico muy cervantino también que se emplea en las tres producciones y que resulta un acierto en boca del estupendo actor que encarna al hidalgo, el catalán José Vivó. Esta adaptación televisiva consiguió llevar a escena dignamente el texto de Pereda, y no incurrió en los temidos defectos que había anticipado el novelista en la carta que citábamos al inicio de este trabajo, defectos que le hacían rechazar las adaptaciones de sus obras a las tablas: los sucesos narrados fueron llevados al escenario con bastante orden, los caracteres retratados se encarnaron en unos extraordinarios actores, una porción bastante elevada de los diálogos se reprodujo de modo casi literal y la interpretación del eje central de la novelita fue acertada. Los creadores que partieron del texto base de Pereda añadieron en su transposición elementos de ambiente que situaban el texto en una tradición clásica y castiza y lo deslocalizaban, con lo que se perdía en cierto modo el regionalismo que desprende la obra de Pereda. Sin embargo, esa supuesta pérdida del valor regional puede entenderse como la presentación visual del mundo tradicional español, cercano a la España negra, a referentes culturales como Zurbarán y otros pintores del Siglo de Oro. Esta seriedad confiere unas tonalidades sombrías a la

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 153-161. eISSN: 2184-7010 160 RAQUEL GUTIÉRREZ SEBASTIÁN producción audiovisual y culmina en el final del producto televisivo que insiste en la soledad, tristeza y sentimiento de pérdida del personaje de don Robustiano. Esa cámara subjetiva, móvil, que no se limita a la visión frontal se acerca a la cara del hidalgo para mostrar el gesto de abatimiento del personaje. Es un hidalgo que lo pierde todo, según los autores de los textos transmediales y, por tanto, no puede ser feliz. El final, en el discurso literario de Pereda, era distinto. El hidalgo, después de haber vendido sus blasones, disfruta de su posición económica y de sus nietos de sangre mezclada, tan feliz como Lázaro en la cumbre de su buena fortuna. La ironía que el narrador literario proyecta sobre el personaje que ha abandonado sus convicciones hace que la criatura literaria evolucione. Paradójicamente, el producto televisivo presenta de modo estático al personaje, pues al guionista y a la realizadora les ha impactado más el espíritu antiguo del hidalgo que su conversión en un hombre de su tiempo. En definitiva, el análisis de este episodio de Hora once ejemplifica las transformaciones intermediales que sufre un texto y resultan particularmente interesantes porque son cambios que afectan a su naturaleza genérica: de la novela corta al guion dramatizado y del guion dramatizado al episodio televisado. Asimismo, las relaciones de los creadores de los nuevos formatos con el texto revelan la lectura o recepción productiva que el clásico del XIX tiene en el siglo XX, y simplemente el hecho de elegir un texto de un escritor poco leído en el siglo pasado supone un riesgo que asumieron Vélez y Josefina Molina. Finalmente resulta un elemento interesante que la necesidad de reflejar la riqueza y pluralidad de los textos literarios tomados como base sea uno de los motores de las transformaciones técnicas que asumieron unos realizadores vanguardistas para su época. Se muestra, por tanto, el potencial innovador de la literatura como base de la recepción productiva, de la transmedialidad, así como la importancia otorgada por la Televisión pública española de esos años a la transmisión de un acervo cultural clásico a una mayoría de espectadores. Curiosamente, la adaptación de esos textos clásicos, de los grandes narradores europeos en general, y en el caso que nos ha ocupado de Pereda, indujo a los creadores audiovisuales a la innovación técnica y formal, en ese vínculo nunca interrumpido entre tradición y modernidad del que hablaba el narrador mexicano Carlos Fuertes: “Para crear debes estar consciente de las tradiciones, pero para mantener las tradiciones debes de crear algo nuevo.”

REFERENCIAS

Alborg, J. L. (1996). José María de Pereda. En Realismo y Naturalismo. La novela. Historia de la literatura española. Parte I. Volumen V. (pp. 589–742). Madrid: Editorial Gredos.

Baget-Herms, J. M. (1974). La generación de la TV-2. Imagen y sonido, 135.

Bernad Conde, M. S. (2017). Realización y dirección de programas dramáticos en Televisión Española (1956-1975): Acercamiento a la figura del realizador audiovisual. (Tesis doctoral, Universidad Complutense de Madrid, Madrid, España). Recuperado de eprints.ucm.es/42260/1/T38675.pdf

Bobes Naves, M. del C. (2001). La Regenta: Cómo se construye un personaje de novela y cómo lo construye el cine. Ínsula, 659, 6–9.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp.153-161. eISSN: 2184-7010 UN CASO DE TRANPOSICIÓN INTERMEDIAL 161

Bonet, L. (1970). Introducción. En J. M. de Pereda, La leva y otros cuentos. (pp. 8–33). Madrid: Alianza.

Cubillo Paniagua, R. (2013). La intermedialidad en el siglo XXI. Diálogos. Revista electrónica de Historia, 14 (2), 169–179.

González Herrán, J. M. (1983). La obra de Pereda ante la crítica literaria de su tiempo. Santander: Concejalía de Cultura del Excelentísimo Ayuntamiento de Santander y Ediciones Librería Estvdio.

González Herrán, J. M. (2011). Imágenes para La Regenta: De Juan Llimona y Francisco Gómez Soler (1884-1885) a Fernando Méndez-Leite (1994-1995). En R. Gutiérrez Sebastián y B. Rodríguez Gutiérrez (Eds.), Literatura Ilustrada Decimonónica. 57 perspectivas (pp. 293–314). Santander: ICEL19-Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cantabria.

Lara, A. (1991-92). Galdós y el cine en DRACO. Revista de Literatura Española. 3–4, 17–25.

Madariaga de la Campa, B. (1991). Pereda. Biografía de un novelista. Santander: Ediciones Librería Estvdio.

Pereda, J. M. (2006). Blasones y talegas (Edición, introducción y notas de Raquel Gutiérrez Sebastián). Santander: Editorial Tantín.

Reis, C. (2019). Intermedialidade: hipótese de trabalho e casos de estudo. Revista 2i: Estudos de identidade e intermedialidade, 1 (Especial), 31–41.

Ruiz Contreras, L. (1903). La novela en el teatro: Cartas del señor D. José M. de Pereda con aclaraciones y comentarios. Madrid: Imprenta de Ambrosio Pérez y Compañía.

Santos, A. (1998). Donde hay hechos, están demás los comentarios (sobre los Blasones, las talegas y la honra desengañada). Boletín de la Biblioteca de Menéndez Pelayo, LXXIV, 569–586.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 153-161. eISSN: 2184-7010

VÁRIA

VARIA

RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ UMA LEITURA DE “MENINO A BICO DE PENA” DE

PORTRAIT OF THE HUMAN CONDITION AS A BABY AN INTERPRETATION OF “MENINO A BICO DE PENA” BY CLARICE LISPECTOR

Pedro Meneses* [email protected]

Neste artigo, elabora-se uma leitura de um conto de Clarice Lispector, “Menino a bico de pena”. Essa leitura atravessará outros contos e romances da autora, para elucidação de alguns temas recorrentes neste território textual. Demonstra-se como, a partir da observação de um bebé, Clarice Lispector define um posicionamento ético em que a alegria, a criação e o tempo são conceitos significativos. Para além disso, nos seus textos, as ideias de alegria e felicidade não se relacionam com o conjunto de valores humanos dominante, o que instiga uma leitura pós- humanista.

Palavras-Chave: Clarice Lispector; ética; alegria; tempo; criação; humano

In this article, we offer a reading of a short story by Clarice Lispector, “Menino a bico de pena”. This reading will cross other short stories and novels by the author, to elucidate some recurring themes in this textual territory. This article shows how, in the mentioned short story, from the observation of a baby, Clarice Lispector defines an ethical position in which joy, creation and time are significant concepts. Furthermore, in her texts the ideas of joy or happiness are not related to the dominant set of human values, which incites a post-humanist reading.

Keywords: Clarice Lispector; ethics; joy; time; creation; human

Data de receção: 21-02-2020 Data de aceitação: 25-05-202 DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2529

* Professor Visitante, Universidad de los Andes, Bogotá, Colômbia. ORCID: 0000-0001-7856-9166 166 PEDRO MENESES

Sim: cair até a abjecção. Eis a ambição deles. — Clarice Lispector

escreve-se com o desejo, e eu não paro de desejar. — Roland Barthes

1. Menino desenhado com subtileza

Gostaria que este fosse um ensaio sobre um bebé representativo do género humano. Não do sentimento de que Clarice Lispector se afasta, porque é obstáculo à descoberta da escrita, mas do género humano como cavalo indomesticado ou raça híbrida originária atravessados em desejo. A paixão segundo o bebé, uma hipótese. O processo tosco de escrita segundo um bebé, outra possibilidade. Como retratar o movimento ético? – seria outra pergunta formulável a partir do conto de Clarice Lispector, “Menino a bico de pena” (Lispector, 2001, pp. 64-67), publicado em Felicidade Clandestina (1971), escrito a partir de uma crónica – a qual já era uma ficção – escrita para o Jornal do Brasil no dia 18 de outubro de 1969. Este conto será tomado como ponto de partida para uma reflexão breve sobre temas importantes na obra da autora. Como retratar o movimento sem que isso implique a morte? É um texto também ele inexato como o bebé, como a vida, como a escrita, diríamos, seguindo Clarice Lispector, que escreveu em Água viva: “Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não pega mais” (Lispector, 2012, p. 12). E ainda: “Isto é uma tempestade de cérebro e uma frase mal tem a ver com a outra” (Lispector, 2012, p. 68). O movimento não se deixa mortificar, retratar; a escrita é, para Clarice, a possibilidade de o cavalo novo correr sem o freio. Escrita da saúde que reivindica a possibilidade de saltar de tema em tema, de derivar, rebarbativa a ter que somente contar uma história. Clarice permite-se atravessar muitos temas com o seu estilo oracular e denso. Assim se constitui uma escrita do desejo, oposta ao tédio, que luta por preservar um impulso selvagem e visa esquecer o conhecimento da técnica literária e das estruturas dos géneros. Escrita do informulável, impossível de concetualizar, como o bebé, protagonista da história de “Menino a bico de pena”: “Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então, ele estará ao meu alcance” (Lispector, 2001, p. 64). Menino cujos afetos e movimentos apenas a subtileza da pena poderá tentar representar. Nenhuma representação possuirá a intensidade que a vida do menino exibe ostensivamente. Apenas mais tarde, tendo sido educado, o menino poderá ser retratado e conhecido. Trata-se de um conto em que se reflete também sobre a relação entre uma mãe e um bebé e sobre as temáticas significativas daqui derivadas.

2. Atualidade: alegria

Como escrever sobre um bebé? Como desenhá-lo? “Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive” (Lispector, 2001, p. 64), afirma o narrador. Apenas com muita delicadeza seria possível desenhar a “extrema atualidade em que ele vive”, a sua ligação intensa com o mundo. Usar carvão seria uma falta de subtileza e de rigor, uma vez que, na atualidade, as formas não são rígidas. A atualidade é exercício no presente puro, em que o tempo se torna desejo. No movimento atual, o sujeito perde a forma – e a identidade. Escrever não é atividade rígida executada

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 167 com plano prévio, mas criação de um plano de subdesenvolvimento. Implica não pensar antes do ato da escrita de modo a poder ser atravessado o desconhecido por via de novos usos da língua: “Escrever como um cão que faz um buraco, um rato que faz a toca. E, por isso, encontrar o seu próprio ponto de subdesenvolvimento, o seu patoá, o seu próprio terceiro mundo, o seu próprio deserto” (Deleuze & Guattari, 2003, p. 42). O bebé não se deixa corromper pelo futuro. Ainda não foi educado, nem engrossou com sentimentos humanos, nem conheceu a grande avidez de viver. É um criador que irão educar, engrossar: “Falar, e sobretudo escrever, é jejuar” (Deleuze & Guattari, 2003, p. 44). Em A paixão segundo G.H., fala-se da aspiração comum a ser cada vez mais humano, com mais sentimentos, mais beleza, mais sucesso, em contraposição à alegria insípida do mortal:

Até então eu estivera tão engrossada pela sentimentação que, ao experimentar o gosto da identidade real, esta parecia tão sem gosto como o gosto que tem na boca uma gota de chuva. É horrivelmente insípido, meu amor. (Lispector, 2000, p. 83)

Assim sendo, apenas é possível retratar os sujeitos que são constituídos pelos valores do humano e desconhecem a atualidade: “Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Pois assim fizemos conosco e com Deus. O próprio menino ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera” (Lispector, 2001, p. 64).1 O retrato do bebé depende, pois, da sua domesticação, na qual ele participa delicadamente: “Coopera sem saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu auto-sacrifício” (Lispector, 2001, p. 64). A humanização é o abandono da atualidade, do inferno, da alegria, do deserto; o grande lamento da protagonista de A paixão segundo G.H. consistiu em ter desprezado o deserto por tanto tempo: “Ao me ter humanizado, eu me havia livrado do deserto” (Lispector, 2000, p. 74). O bebé, por seu turno, é deserto, “actualidade que queima” (Lispector, 2000, p. 81), inferno. Antes do humano, segundo Clarice, havia o modo primitivo de se ligar com o mundo, de procurar a alegria. A educação corresponde, por seu turno, à aprendizagem de um modo funcionário de viver, em que se procura avidamente mascarar o vazio com comportamentos da multidão: somar experiências com modos sofisticados, grandes palavras, sentimentos humaníssimos. Já o bebé ensina a desaprendizagem do humano; é o antes do humano, outro nome para pré-história, It, Deus, atonal, barata: “Trinta mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos?” (Lispector, 2001, p. 64).2 Apesar de tudo, o menino aceita ser educado porque não quer enlouquecer:

Ultimamente ele tem treinado muito. E assim continuará progredindo até que, pouco a pouco – pela bondade necessária com que nos salvamos – ele passará do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à expressão, da existência à vida. Fazendo o grande sacrifício de não ser louco. (Lispector, 2001, pp. 64-65)

O menino não quer mudar a cabeça a cada instante; por um instinto de obediência, tudo aceita. Sai do atual que possibilita levitar e entra no peso do quotidiano, que o torna

1 Como é sabido, Clarice Lispector também foi pintora, pelo que o conto em análise poderia ser lido tendo em consideração a sua obra pictórica ou os textos da autora sobre o ofício da pintura. 2 O menino parece pertencer à raça do Ele-ela arcaica descrita no conto “Onde estivestes de noite”. Antes da divisão que inaugura a nostalgia e o futuro, havia uma espécie, os mortais, que não entristecia porque no mundo sempre faltará a metade de tudo: “Arriscavam tudo, já que fatalmente um dia iam morrer, talvez dentro de dois meses, talvez sete anos – fora isto que Ele-ela pensava dentro deles” (Lispector, 1999, p. 44).

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010 168 PEDRO MENESES permeável à exasperação. Mais tarde, poderá compreender que esta bondade é abdicação de ser quem se é. Com medo da má consciência que lhe é provocada, poderá realizar o grande sacrifício de não ser e converter-se, também ele, na má consciência dos outros. É da importância de devir-inumano que fala Clarice, da loucura em que o corpo se esquece de si próprio (meditando), assim tornando possível a ação:

Quero o inexpressivo. Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais. Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em “pureza”, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras. (Lispector, 2000, p. 127)

O inumano é a travessia das zonas de intensidade do corpo, a descoberta de uma alegria tranquila. Tal possibilidade do corpo resulta da sincronização, inteiramente no presente, de movimento corporal e pensamento. É a “construção do plano de imanência” em que esta “consciência-corpo” se livrou das forças grosseiras que a cerceavam, pertencendo “ao grande plano cósmico”, à “pura energia sem Forma”, como afirma José Gil num capítulo em que se relaciona o pensamento de Gilles Deleuze e os exercícios do âsana (Gil, 2018, pp. 214-215). No trecho clariciano, misturam-se conceitos, que dançam e são torcidos: a humanidade avulta na desumanidade, no fim do juízo e de uma certa visão épica da existência. Humanidade como anelo de felicidade grossa, insistente e violenta, onde só cabe a pureza – que, por exclusão de partes, somente em cada um seria encontrada. Como também se pode inferir a partir do excerto citado, amostra das reflexões que a autora elabora de modo distinto em vários passos do seu território textual (incluindo-se o conto “Menino a bico de pena”), esta humanização que avidamente se procura é falsa. Porque o açúcar dos sentimentos humanos não aceita esbarrar no ‘não’: é intransigente, agressivo. A fome de mundo é insaciável; no entanto, o mundo não é extensão do leite materno. A busca ávida da doçura é, muitas vezes, abdicação de autoconstrução ética, enquanto o fervor humano é indisponibilidade para a vida quase na proporção em que se afirma com radicalidade verdadeiro. Deste modo, o devir-inumano clariciano é, paradoxalmente, a construção árdua de um modo ético de se ser humano; é da ordem do instintivo, ainda não ensopado pela humanização, como se pode ler em A hora da estrela: “Com esta história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada dia é um dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevo com o corpo” (Lispector, 2002, p. 19). O desejo depende do reconhecimento em vida de que se vai morrer, condição para o exercício ético, urgente, e para um “real acesso ao outro” (Mourão, 2015, p. 179). Este desejo encontra- se do outro lado da multidão, dos seus hábitos e interesses. Esse desejo – a escrita – concretiza-se “ousa[ndo] tomar o gosto (para o que é preciso atenção) do habitual”, refere Maria Filomena Molder num ensaio intitulado “Sobre a alegria” (Molder, 2017, p. 261). Hábitos individuais, distintos da violência da sentimentação, do açúcar.3 Neste ensaio, Molder considera a repetição como essencial para a alegria. Quando a repetição dá lugar à interrupção, avulta a tristeza, a catástrofe:

3 Uma expressão tomada de empréstimo de Roland Barthes a partir de Manhã de Adília Lopes: “Barthes escreveu já não sei onde cito de cor: o açúcar é violento. Acho que tem razão” (Lopes, 2015, p. 94). A obra de Adília Lopes permite-nos compreender como o açúcar do sentimento pode promover lógicas tribais de exclusão e, inclusive, violência. Essa outra vida prometida significaria, ainda, um adiamento permanente daquilo que se pode, a incapacidade de “afetar e ser afetado”: “Este era já o projecto de Nietzsche: definir o corpo em devir, em intensidade, como poder de afectar e ser afectado, quer dizer, Vontade de poder” (Deleuze, 2000, p. 177; itálicos do autor). Muitas vezes, pois, uma existência açucarada implicará uma vida

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 169

A interrupção mais terrível desse vínculo dá-se na visão catastrófica do mundo, aquela em que nada voltará a nascer, aquela em que a luz do dia não regressará. Esse desabamento de qualquer repetição, o poder hostilíssimo do que nunca mais se pode esperar, é o Apocalipse. (Molder, 2017, p. 262)

A suspensão do exercício habitual (da escrita) é apocalíptico. Seria possível recolher em entrevistas de Clarice Lispector, ou na sua obra, afirmações em que se manifesta tristeza pela interrupção do processo criativo a que o mundano, o cansaço, a luta, obrigam. Antes do regresso ao conto sobre o inumano que o bebé ensina, cite-se um passo de outro conto, “Tanta mansidão”, em que se elucida quanto ao tipo de alegria característico do processo de escrita:

Em pleno dia era noite, e essa coisa que não quero ainda definir é uma luz tranquila dentro de mim, e a ela chamariam de alegria, alegria mansa. Estou um pouco desnorteada como se um coração me tivesse sido tirado, e em lugar dele estivesse agora a súbita ausência, uma ausência quase palpável do que era antes um órgão banhado da escuridão da dor. Não estou sentindo nada. Mas é o contrário de um torpor. É um modo mais leve e mais silencioso de existir. (Lispector, 1999, p. 86)

A escrita é despojamento da ‘sentimentação’, do mundano; exercício repetitivo, gaia ciência em que se descobre o desconhecido na linguagem, no outro, na interioridade. Não é alegria ruidosa, dos que vencem e celebram, mas dos conscientes de que por enquanto estão vivos. É por esta razão que a escrita supõe a ausência de identidade ou retrato fixos e implica a coragem da discrição, um certo anonimato em que escrever é possível. Uma alegria sóbria e lúcida, equivocamente confundida com torpor. Em A paixão segundo G.H., pode ler-se como esta alegria foi aprendida graças ao encontro com a barata: “com fome apenas do pouco, com fome apenas do menos” (Lispector, 2000, p. 100). Uma escrita que não é espampanante nem possui os rigores e detalhes do relatório (definida, antes, por simplicidade lexical e estranheza sintática) é consonante com o estilo de vida defendido. É expressão, ainda, da voracidade de viver, de uma certa embriaguez. Em litígio com esta alegria, encontra-se uma outra, desesperada e pouco lúcida, perseguida com avidez por algumas personagens de Lispector, como a do conto de abertura de Laços de família, “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, cujo título elucida precisamente o nosso argumento. Exemplifique-se com um passo em que são observadas minuciosamente as aspirações de uma rapariga embriagada – de vinho, jactância, sentimentos grossos – durante um jantar:

E se lhe estavam brilhantes e duros os olhos, se seus gestos eram etapas difíceis até conseguir enfim atingir o paliteiro, em verdade por dentro estava-se até lá muito bem, era-se aquela nuvem plena a se transladar sem esforço. Os lábios engrossados e os dentes brancos, e o vinho a inchá-la. E aquela vaidade de estar embriagada a facilitar-lhe um tal desdém por tudo, a torná-la madura e redonda como uma grande vaca. (Lispector, 1990, p. 10)

Tal embriaguez de humanidade4 redunda no mais raso niilismo. Uma personagem de “A menor mulher do mundo”, conto de Clarice Lispector incluído em Laços de família (1960), reconhece inclusive risco de maldade no desejo feroz de felicidade: “E considerou de “desespero passivo”, como destaca Clarice Lispector na crónica “Aprendendo a viver” (Lispector, 2013, p. 226); essa existência é imposta violentamente, quantas vezes subtraindo possibilidades, subtraindo mundo. Em L’Abécédaire, Deleuze sintetiza, a propósito de A de Animal, o que está aqui em causa: “É curioso, pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo o mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais têm mundos” (Boutang, 1996). 4 Em sentido contrário, Gilles Deleuze e Claire Parnet (2004, p. 71) afirmam que a grande embriaguez só no deserto é possível: “Tentamos extrair do álcool a vida que contém, sem beber – a grande cena da embriaguez com água pura em Henry Miller. Dispensar o álcool, a droga e a loucura, é isso o devir, o devir- sóbrio, para uma vida cada vez mais rica.”

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010 170 PEDRO MENESES a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes que mataremos por amor” (Lispector, 1990, p. 64). Para além da maldade a que uma certa aspiração à felicidade ou à alegria – sem ética, sendo, por isso, inexatas tais designações – conduz, estes considerandos de mãe permitem pôr a hipótese segundo a qual uma educação demasiado adstrita a certos valores da humanidade afasta os filhos da animalidade (do espontâneo) que permite não só fazer como compadecer-se dos outros. Em vários pontos da obra clariciana é reescrito esse momento epifânico em que a vida se revela. Nesse instante prenhe, torna-se evidente que a mortalidade é a única hipótese da alegria e que viver segundo certos pressupostos metafísicos é uma calúnia. A revelação da vida implicará o ofício ético de fazer-se e escrever. No conto “A ira”, a referida conexão entre felicidade e maldade é desenvolvida num estilo próximo do ensaístico: “Minha gula pelo mundo: eu quis comer o mundo, e a fome com que nasci pelo leite, essa fome quis se estender pelo mundo, e o mundo não se queria comível” (Lispector, 2001, p. 80). Distingue-se a alegria ética de um outro tipo de alegria, tribal, a luxúria dos que desejam comer o mundo: comer e beber muito e bem, ser visto com felicidade embrutecida, com sucesso e vitória, para isso gritando, gemendo,5 porque só esse anelo desesperado tornaria, enfim, a vida digna de ser vivida:

E depois foi quando o amor pelo mundo me tomou: e isso já não era a fome pequena, era a fome ampliada. Era a grande alegria de viver – e eu pensava que esta, sim, é livre. Mas como foi que transformei, sem nem sentir, a alegria de viver na grande luxúria de estar vivo? (Lispector, 2001, p. 81)

A expectativa comum da grande alegria de viver não é livre, infere-se; será talvez uma expressão do medo – daquilo que se pode, medo de não pertencer à estrutura social, de não desejar o desejo do Outro. Escolher ser quem fatalmente se é, essa coragem discreta, não é tão frequente.

3. O acrobata

Regressemos ao conto “Menino a bico de pena” sobre um bebé e seus micromovimentos. O contexto em que surge o bebé é minimal: está em casa, a mãe está presente. Como em outras obras da autora, existe uma quase ausência das “circunstâncias exigidas pelo realismo formal” (Diogo, 2006, p. 167) para o desenvolvimento da ficção e das personagens que a compõem. As circunstâncias de lugar e tempo são quase neutralizadas, porquanto o mais urgente – tentar compreender melhor o ser humano – se sobrepõe ao atraso – narrativo e ético – imposto pelo realismo formal: “O romance na obra de Lispector é algo como ciências humanas (...)” (Diogo, 2006, p. 182). Também as crónicas e os contos são ciências humanas e, afinal, bem realistas. O narrador do conto em análise afirma que a loucura seria a construção do “possível” (Lispector, 2001, p. 65), ou seja, do desejo, ambos permitidos por movimentos com energia e ética: “Eu não sou louco por solidariedade com os melhores de nós que, para construir o possível, também sacrificaram a verdade que seria uma loucura” (Lispector, 2001, p. 65). A maior loucura seria renunciar ao que um corpo pode, direcionando a vida

5 Alusão ao conto “Onde estivestes de noite”: “Eles queriam fruir o proibido. Queriam elogiar a vida e não queriam a dor que é necessária para se viver, para se sentir e para amar. Eles queriam sentir a imortalidade terrífica. Pois o proibido é sempre o melhor. Eles ao mesmo tempo não se incomodavam de talvez cair no enorme buraco da morte. E a vida só lhes era preciosa quando gritavam e gemiam. Sentir a força do ódio era o que eles melhor queriam. Eu me chamo povo, pensavam” (Lispector, 1999, pp. 46-47).

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 171 contra ela própria. Antes de ser convencido por um delírio argumentativo de que é impossível dançar, de que a vida é fardo suportado efemeramente, de que, enfim, tudo é igual e nada vale a pena (o niilismo), o bebé segue livremente os fluxos do que pode um corpo. O conto acompanha-o nos seus intentos titubeantes para caminhar; como um funâmbulo, cada humano vive sem conhecer as consequências dos seus atos, nem o futuro:

Da cozinha a mãe se certifica: você está quietinho aí? Chamado ao trabalho, o menino se ergue com dificuldade. Cambaleia sobre as pernas, com a atenção inteira para dentro: todo o seu equilíbrio é interno. Conseguido isso, agora a inteira atenção para fora: ele observa o que o ato de se erguer provocou. Pois levantar-se teve conseqüências e conseqüências: o chão move-se incerto, uma cadeira o supera, a parede o delimita. (Lispector, 2001, p. 65)

Na leitura alegórica aqui solicitada, os primeiros passos do humano configuram o seu modo de existir, pois é obrigado, em cada etapa da vida, a adaptar-se a contextos em que cair é possibilidade forte. Sobre base frágil, dois pés, o bebé impõe a si mesmo o movimento de maneira a evitar a queda. Como alternativa ao equilíbrio da “identidade socialmente reforçada” (Diogo, 2006, p. 183), o humano instiga-se movimento, que desequilibra, mas também entusiasma, permitindo avançar. A ética é, pois, o essencial tornado urgente. Na linha de uma positivação dos ascetismos feita pela Modernidade a partir da Antiguidade e do Renascimento, Peter Sloterdijk, em Tens de mudar de vida, recupera a metáfora nietzschiana do humano como funâmbulo: “Tudo fala neste sentido: quem procura homens encontra ascetas; quem observa ascetas descobre acrobatas” (Sloterdijk, 2018, p. 84). Os que se afastaram dos valores e das atividades sociais dominantes – da ideologia – são acrobatas em regime de autoconstituição (escritores que se levantam muito cedo são um bom exemplo). O bebé representa a intrepidez que avança para não cair no vazio coagido da identidade socialmente reforçada. Representa, também, a possibilidade de o humano, através da repetição de exercícios éticos, transcender o finito, o mundano, para alcançar a leveza que impede o sombrio cansaço de existir. A este propósito, Sloterdijk (2018, p. 85) cita Kafka: “O verdadeiro caminho é sobre um arame que não está tenso nas alturas, mas quase rente ao chão. Parece mais feito para se tropeçar nele do que para se caminhar sobre ele.” Ainda que a declinação kafkiana do funâmbulo seja menos entusiasta e ascensional do que a nietzschiana – dado que a ética parece quase equivaler a um alçapão – destaca, ainda assim, o deslocamento das tensões ascéticas para o terreno e a necessidade de exercício com atenção constante ao mínimo interior e exterior, sem os quais tropeçar seria inevitável. Trata-se de uma corda rente ao chão; todavia, com projeção para o improvável. A partir deste ponto, Sloterdijk relerá o pensamento nietzschiano enquanto atualização da potência individual, exercício afirmativo que visa ultrapassar os limites performativos estabelecidos no passado. Esta leitura extraordinária do pós-humano com lente ética está relacionada com o abandono da sentimentação por parte de G.H.. O neutro – It, insosso, barata – que as personagens claricianas descobrem é a atualidade do bebé que nenhum retrato consegue fixar. O neutro é outrossim designado por inumano, é o animal corrompido apenas pelo urgente. Trata-se da transcendência descoberta em movimento, no imanente, no silêncio entusiasmado da escrita. O improvável realizado asceticamente, num desvio do humano, do santo, dos valores dominantes:

Para o sal eu sempre estivera pronta, o sal era a transcendência que eu usava para poder sentir um gosto, e poder fugir do que eu chamava de ‘nada’. Para o sal eu estava pronta, para o sal eu toda me

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010 172 PEDRO MENESES

havia construído. Mas o que minha boca não saberia entender – era o insosso. O que eu toda não conhecia – era o neutro. E o neutro era a vida que eu antes chamava de o nada. O neutro era o inferno. [...] É que não se tratava mais de fazer alguma coisa: o olhar neutro da barata me dizia que não se tratava disso, e eu o sabia. Só que não estava suportando ficar apenas sentada e sendo, e então queria fazer. Fazer seria transcender, transcender é uma saída. (Lispector, 2000, p. 68)

A Antiguidade, segundo Nietzsche e Sloterdijk, desafia-nos a realizar exercícios éticos; é, em síntese, acervo antropotécnico que possibilita a afirmação da existência no presente.

4. A saúde e a presença

Para Nietzsche, era importante que a desconstrução da metafísica permitisse reconfigurar a existência individual. Injunção que, mutatis mutandis, se lê em várias figurações claricianas da cena da escrita. Essa transformação existencial – os protagonistas dos romances de Lispector, a começar por G.H., refletem sobre um eu passado em contraponto ao eu presente, e, portanto, são textos iniciáticos – é injunção urgente a desfrutar da “saúde do momento”, segundo a bela expressão de Goethe recuperada por Pierre Hadot numa obra importante, Não te esqueças de viver: “De facto, para Goethe, era precisamente essa a característica da vida e da arte antigas: saber viver no presente, conhecer aquilo a que ele chamava, como veremos, ‘a saúde do momento’” (Hadot, 2019, p. 19). Tanto a barata que G.H. descobre, como a atualidade que instintivamente o bebé explora, revelam a saúde do momento, expressão que pode ser interpretada não só segundo uma vinculação à existência, mas também de modo literal, pois a saúde – física, psicológica, social – avulta da referida intrepidez e de escolhas de como viver. Nesta discussão, há autores que defendem que tal saúde é inconsciente, espontânea, está em acordo com a natureza; seria, por isso, mais provável encontrá-la no homem antigo. Esta era a posição de Goethe (Hadot, 2019, p. 28), para quem a inquietação romântica se devia a um exercício compulsivo do pensamento e da consciência. Talvez este posicionamento seja questionável, argumenta Pierre Hadot, posto que também nos textos antigos é possível colher exemplos de inquietação. Nietzsche defenderá, por seu turno, que a saúde do momento resulta de um exercício da vontade feito a todo o instante:

Mas o que Nietzsche muito bem foi que essa serenidade se conquistava, não era inata, que resultava de um imenso esforço da vontade: para ele, tratava-se de uma vontade estética de deitar sobre os horrores da existência o véu ofuscante da criação artística. O que realmente existia na Antiguidade era, sobretudo, a vontade filosófica de encontrar a paz na alma através da transformação de si e do modo de olhar o mundo. (Hadot, 2019, p. 31)

São infernais, segundo Clarice Lispector, os seres que recusam o humano em função do fazer, da criação artística. Contrastivamente, a maioria das pessoas vive em busca inquieta de mais sal, poder, sucesso, reconhecimento; atormentados, angustiados e absorvidos pela insatisfação dos seus desejos, depreciam o essencial, a potencialidade do presente. Enquanto o tempo se esvai, é desprezada a vida como criação, como explica Goethe neste passo belíssimo de uma carta a um amigo, o músico Zelter:

A presença tem realmente qualquer coisa de absurdo; imaginamos que é assim: vemos, sentimo-nos. Confiamos nisso. Mas não temos consciência do benefício que podemos tirar desses instantes. Queremos dizer o seguinte. O ausente é uma pessoa ideal, enquanto as pessoas que estão aí, presentes, aparecem aos olhos umas das outras como triviais. É de facto muito estranho que, devido à realidade

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 173

da presença, o ideal desapareça quase que por completo. Será provavelmente por essa razão que, para os Modernos, o ideal apenas se manifesta como nostalgia. (Goethe citado em Hadot, 2019, p. 20)

O ideal nunca coincide com o presente; com esta formulação, entende-se melhor em que consiste a melancolia. Os momentos da atualidade do bebé ou os da escrita relevam do espanto do real. Nada do que é significativo é adiado; nem real, nem presença são rebaixados à condição de trivialidade. Porque a presença é trivial, a trivialidade tornar- se-á o presente. Os Modernos seriam, em consequência, mais distraídos, estariam dessincronizados, des-espacializados, fora do tempo e do espaço, devido à expectativa de um ideal. Talvez esta sensibilidade seja mais exasperadamente atual no século XXI. Em Clarice Lispector, o real equivale ao insosso criativo. Ensopar a vida de humanidade seria ofender a vida, desconhecê-la. Em consonância com este raciocínio, é possível ler este passo paradoxal de A paixão segundo G.H.: “A nostalgia não é do Deus que nos falta, é a nostalgia de nós mesmos que não somos bastante; sentimos falta de nossa grandeza impossível – minha atualidade inalcançável é meu paraíso perdido” (Lispector, 2000, p. 121). São relançados os dados do jogo existencial: a nostalgia deverá existir em relação ao presente, tempo em que não somos bastante. A nostalgia de Deus é desejo insatisfeito de plenitude, o qual, por sua vez, engendra a carência que pouco ou nada permite fazer (nos termos de Hadot, a nostalgia reforçaria a equivalência da presença com a trivialidade). A conquista da tranquilidade e da saúde depende do usufruto do presente, prenhe de sentido ético, sem a inquietação quanto ao que o passado poderia ter sido, nem a respeito daquilo que o futuro reserva:

Tal como para o epicurista, para o estóico é a iminência da morte que concede ao instante presente o seu valor. “É necessário realizares cada acção da tua vida como se fosse a última”, diz Marco Aurélio. Assim, cada instante é tomado em toda a sua seriedade, em todo o seu valor, em todo o seu esplendor, e passamos a ver claramente a vanidade do que perseguimos com tanta inquietação e que a morte nos arrancará. É preciso viver cada dia com uma consciência tão aguda, com uma atenção de tamanha intensidade, que possamos dizer ao fim de cada dia: vivi, isto é, realizei a minha vida, tive tudo o que podia esperar da vida. Como diz Séneca: “Quem formou assim o seu carácter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança”. (Hadot, 2019, p. 40)6

Só a consciência da iminência da morte permitirá que cada instante seja “tomado em toda a sua seriedade, em todo o seu valor”, mas também “em todo o seu esplendor”. Existe um fundo estoico na obra clariciana: descobrir o insosso significa conquistar o presente, desejando. A presença implica a coincidência de um corpo consigo próprio e com o espaço e o tempo em que efetivamente se encontra. Para Maria Filomena Molder, foi Lispector quem deu a melhor resposta à pergunta formulada por S. Agostinho em De civitate dei: “Existe entre os homens esta grande questão: o homem pode ser feliz e mortal?” (citado em Molder, 2017, p. 267), quando afirmou em A descoberta do mundo: “Amar a vida mortal, isso é a felicidade” (citada em Molder, 2017, p. 267). A descoberta da alegria mansa é, assim, o amor da mortalidade:

De morrer, sim, eu sabia, pois morrer era o futuro e é imaginável, e de imaginar eu sempre tivera tempo. Mas o instante, o instante este – a actualidade – isso não é imaginável, entre a actualidade e eu não há intervalo: é agora, em mim. — Entende, morrer eu sabia de antemão e morrer ainda não me exigia. Mas o que eu nunca havia experimentado era o choque com o momento chamado “já”. Hoje me exige hoje mesmo. [...]

6 Pierre Hadot (2019, pp. 31-42) explica com outro desenvolvimento como, neste ponto da argumentação, se cruzam o dever estoico com o prazer epicurista, pois ambas as doutrinas advogam o aproveitamento do tempo, ainda que por razões e motivações distintas.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010 174 PEDRO MENESES

A hora de viver é tão infernalmente inexpressiva que é o nada. Aquilo que eu chamava de “nada” era no entanto tão colado a mim que me era... eu? e portanto se tornava invisível como eu me era invisível, e tornava-se o nada. [...] São onze horas da manhã no Brasil. É agora. Trata-se exactamente de agora. Agora é o tempo inchado até os limites. (Lispector, 2000, pp. 63-64)

Em sentido inverso, a melancolia e a angústia nascem quando se pensa e vive sobretudo noutro tempo que não o presente. Em nome de segurança e tranquilidade, são esquecidos os deveres mortais. A alegria implica, segundo Molder, arriscar não guardar para amanhã, viver com uma dose de perigo:

O dia de amanhã, o dia do nosso medo, da nossa previdência, o dia da formiga, é um dia da prudência que não convém idolatrar (haverá outro dia do amanhã, o da herança, mas o seu uso não vem agora ao caso), pois impede o estar diante dos agoras, uma sombra que não deixa ver o risco que nos cabe por estarmos vivos. Nestes tempos que correm, o mais grave dos esquecimentos, pois só aprofundando o risco poderemos salvar-nos (é em Thoreau e a Bernanos que Clarice Lispector vai alicerçar a sua compreensão). Ainda mais que um esquecimento, um irreconhecimento combativo: a luta cega pela segurança. O carácter anestesiador dessa luta observa-se no viver como se houvesse outra vida para viver, fazendo soar a cantilena do diabo: adia, adia... (Molder, 2017, p. 270)

O presente é a hipótese do sagrado (e de uma certa maldade, que, se lida com Georges Bataille, consiste em ousar não pensar no futuro, não fazer do cálculo o centro da existência). À reflexão de Molder estará subjacente uma crónica de Clarice, “Aprendendo a viver” (Lispector, 2013, pp. 225-227), publicada no Jornal do Brasil em 28 de dezembro de 1968, na qual são feitas referências a Thoreau e Bernanos. No estilo denso habitual, a autora defende a importância de usufruir do presente, sendo feitas, para o efeito, duas citações de Thoreau. A primeira: “A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos” (como citado em Lispector, 2013, p. 226). Tantas vezes os nossos movimentos diários são os do medo, onde começam invisivelmente sofrimentos psíquicos e somáticos – há sempre o trabalho, a obrigação social de sentir e viver, o sôfrego sucesso, o e-mail. Esta autocondenação, esta dureza consigo próprio, criam, segundo Clarice e Thoreau, uma espécie de mal-estar, inviabilizando o possível, provocando a angústia, criando, inclusive, uma “covardia desnecessária” (Lispector, 2013, p. 226). Este julgamento perverso é desconstruído por Thoreau: “Creio que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força” (como citado em Lispector, 2013, p. 226). Outra frase extraordinária, que refere a importância da agência ética. Que o dia de cada um corresponda à síntese existencial elaborada no último poema de Livro da dança de Gonçalo M. Tavares (2018, p. 134): “a felicidade é mais importante que a realidade, portanto”.

5. A necessidade de consolo e o amor

Em “Menino a bico de pena”, o bebé, após tentar caminhar, cai. Sentado, olha em redor em busca do menino que a mãe supostamente havia chamado. Nesse movimento, cai e chora:

Com esforço e gentileza ele olha pela sala, procura quem a mãe diz que ele está chamando, vira-se e cai para trás. Enquanto chora, vê a sala entortada e refratada pelas lágrimas, o volume branco cresce até ele – mãe! absorve-o com braços fortes, e eis que o menino está bem no alto do ar, bem no quente e no bom. (Lispector, 2001, p. 66)

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 175

A mãe consola-o de nova queda, envolve-o “bem no quente e no bom”. Depois disso, o bebé adormece até ser sobressaltado, em sonhos, pela palavra nova que aprendeu, mas de que não se lembra: “E para o seu terror vê apenas isto: o vazio quente e claro do ar, sem mãe” (Lispector, 2011, p. 66). Como aconteceu depois da queda, o bebé necessita de consolo devido à ausência. Por conseguinte, chora muito:

Quase desfalece em soluços, com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio, ninguém o conhece se ele não disser e contar, farei tudo o que for necessário para que eu seja dos outros e os outros sejam meus, pularei por cima da minha felicidade real que só me traria abandono, e serei popular, faço a barganha de ser amado, é inteiramente mágico chorar para ter em troca: mãe. (Lispector, 2011, p. 66)

Neste passo em discurso indireto livre, escutamos a voz do bebé dando eco às queixas humanas, refletindo sobre a impossibilidade de satisfazer a necessidade de consolo, como se o mundo estivesse em débito permanentemente. A dor isola o bebé do exterior; a mãe é o nome para tudo o que os humanos estão dispostos a fazer para não sentir nenhum tipo de abandono. O “compreensível”, a doxa que garantem a popularidade e “a barganha de ser amado”, a angústia a que cada um se entrega para que lhe seja concedida atenção, tudo isso é feito em detrimento da “felicidade real”. O texto instiga ao abandono do próprio lamento e ao da reivindicação – por vezes, violenta – de compensação, de prazeres. Afirma Molder:

O que estás a fazer nem sempre tem bons resultados. Deita fora essa proximidade contigo, põe de lado esse feitiço da rememoração a quente. Põe o lamento na boca de outrem. Desfaz essa amizade com o teu próprio lamento. Deita pela borda fora os objectos sensíveis com os quais encheste a memória, alguns são surpreendentes, mas tens de te livrar deles e talvez te reapareçam desfigurados, macerados pelas ondas, transformados em pertenças do mar. Já não são mais teus, já não te protegem. Estão prontos para serem pastos das tuas chamas. Assim como os tens são refractários ao fogo, não consegues transformá-los em cinzas. E é isso por que anseias, sem saberes como fazê-lo. Tenta o que te disse. Requer uma disciplina feroz, uma frieza, um desprendimento, a que terás de obedecer sem teres de te decidir. (Molder, 2017, pp. 182-183)

Deitar fora o passado é árduo: os objetos, as memórias, as sensações, os gestos que o representam e que são rememorados, por vezes, de modo obsidiante, mantêm-nos um passo atrás da vida, colocam o corpo atrás da sua realização possível. Clarice chama a este sacrifício de “grossa indiferença irradiante” (Lispector, 2000, p. 138). E explica-o:

A despersonalização como a destituição do individual inútil – a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser. Pouco a pouco tirar de si, com um esforço tão atento que não se sente a dor, tirar de si, como quem se livra da própria pele, as características. Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível por mim. [...] A despersonalização como a grande objectivação de si mesmo. (Lispector, 2000, p. 140)

Despersonalizar-se é decisão ética, não é possível ser de outra maneira. Abandonar a sensação de que o mundo está em dívida – abandonar a ‘mãe’ – não significa abandonar os outros. Pelo contrário, pois apenas concedendo ao instante o seu valor se garantirá que a presença de quem amamos não é trivial. A mãe responde solícita ao choro da criança que anseia por ser reconhecida – e poderá ansiá-lo tanto a ponto de sacrificar a leveza:

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010 176 PEDRO MENESES

Até que o ruído familiar entra pela porta e o menino, mudo de interesse pelo que o poder de um menino provoca, pára de chorar: mãe. Mãe é: não morrer. E sua segurança é saber que tem um mundo para trair e vender, e que o venderá. (Lispector, 2001, p. 66)

Nesta síntese incrível, mãe corresponde à vontade de continuar vivo e com força. Mãe como desejo de não morrer; a mãe garante que a vontade de querer viver continua (este desejo, refira-se rapidamente, é confundido com a maldade muitas vezes). O bebé, infere- se com um certo desencanto, irá fazer tudo para ter atenção dos demais, para ser humano. Porém, ensaie-se outra leitura para este final. Considere-se o cuidado posto no filho, que, após constatar que lhe ia ser mudada a fralda, volta a chorar: “Pois se você está todo molhado!” (Lispector, 2001, p. 66). Esta atenção serena aos alarmes de existir depende da urgência ética solicitada pelo aqui e agora; depende da não postergação da vida. Em síntese: a ligação afetiva entre humanos – o amor, a ternura – resulta da consciência da mortalidade. Sob o olhar cuidadoso da mãe, a criança lembrar-se-á, em êxtase, da palavra aprendida durante o dia, talvez o primeiro desacerto com o espontâneo: “fonfom” (Lispector, 2001, p. 66). A criança aprende o amor e a cultura através do cuidar atento da mãe. A sobrevivência humana assenta, pois, nesta ausência de funcionalidade – no amor, urgente, aqui e agora.

REFERÊNCIAS

Boutang, P-A. (Realizador & produtor). (2004). L’abécédaire de Gilles Deleuze avec Claire Parnet [DVD]. Paris: Éditions Montparnasse.

Deleuze, G. (2000). Crítica e clínica (trad. P. E. Duarte). Lisboa: Edições Século XXI.

Deleuze, G. & Guattari, F. (2003). Kafka. Para uma literatura menor (trad. R. Godinho). Lisboa: Assírio & Alvim.

Deleuze, G. & Parnet, C. (2004). Diálogos (trad. J. G. Cunha). Lisboa: Relógio d’Água.

Diogo, A. A. L. (2006). A Dama e o relógio. In Teoria com tipos móveis (pp. 143-202). S/l: Pena Perfeita.

Gil, J. (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio d’Água.

Hadot, P. (2019). Não te esqueças de viver. Goethe e a tradição dos exercícios espirituais (trad. M. E. Santos). Lisboa: Relógio d’Água.

Lispector, C. (1999). Onde estivestes de noite [1974]. Rio de Janeiro: Rocco.

_____ (2000). A paixão segundo G. H. [1964]. Lisboa: Relógio d’Água.

_____ (2001). Melhores contos. Clarice Lispector (ed. W. N. Galvão). São Paulo: Global Editora.

_____ (2002). A hora da estrela [1977]. Lisboa: Relógio d’Água.

_____ (2012). Água viva [1973]. Lisboa: Relógio d’Água.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2010, p163-177. eISSN: 2184-7010 RETRATO DO GÉNERO HUMANO QUANDO BEBÉ 177

_____ (2013). A descoberta do mundo. Crónicas [1984]. Lisboa: Relógio d’Água.

_____ (s/d). Laços de família [1960]. Lisboa: Relógio d’Água.

Lopes, A. (2017). Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim.

Molder, M. F. (2017). Dia alegre, dia pensante, dias fatais. Lisboa: Relógio d’Água.

Mourão, L. (2015). Do formato mulher em Ruy Belo (pp. 175-183). In M. A. Athayde (org.), Literatura explicativa. Ensaios sobre Ruy Belo. Lisboa: Assírio & Alvim.

Sloterdijk, P. (2018). Tens de mudar de vida. Sobre antropotécnica (trad. C. Leite). Lisboa: Relógio d’Água.

Tavares, G. M. (2018). Livro da dança (pref. J. Studart) [2001]. Lisboa: Relógio d’Água.

Revista 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 165-177. eISSN: 2184–7010

ENTREVISTAS

INTERVIEWS

LITERATURA Y TELEVISIÓN EN EL SIGLO XXI ENTREVISTA CON JORGE CARRIÓN

XAQUÍN NÚÑEZ SABARÍS* [email protected]

Las producciones televisivas y seriales han renovado las narrativas actuales, transformando modelos, prácticas, contenidos y cánones. También el literario. Nadie mejor que Jorge Carrión para ponerle voz al complejo ecosistema mediático en el que nos encontramos en el siglo XXI. Esta entrevista reflexiona sobre las interacciones entre texto y pantalla, literatura y televisión, público y reconocimiento. Fronteras que siempre han sido muy porosas cuando analizamos lo literario y cuya dificultad crece exponencialmente en el universo de la multiplataforma y la democratización de dispositivos de última generación.

Sobre Jorge Carrión

Profesor universitario, crítico, periodista cultural, escritor… La actividad profesional de Jorge Carrión evidencia su compromiso académico y cultural. Es una de las voces de referencia para conocer y reconocer el universo creativo actual, desde una perspectiva global. Sus críticas, entrevistas y artículos en periódicos como La Vanguardia, Clarín o The New York Times o revistas especializadas analizan con profundidad y claridad expositiva la compleja convergencia cultural de las dos primeras décadas de siglo. El papel que juega la lectura y la literatura en este universo ha centrado algunos de sus ensayos más reconocidos como Librerías (2013) y, muy recientemente, Contra Amazon (2019), en los que reflexiona sobre la performatividad del acto de leer y defiende el papel de las librerías como el espacio apropiado para la materialización cultural, transcendiendo el consumo rápido y aséptico. El lugar de la ficción ha ocupado también el centro de buena parte de su producción literaria. Con las novelas Los muertos (2010) y Los huérfanos (2014) vindica al personaje de ficción, partiendo de las series televisivas de alcance global. A la articulación intermedial entre la pantalla y el libro le ha dedicado uno de los ensayos más leídos y citados sobre el tema: Teleshakespeare (2011). Sobre televisión y literatura hablamos en esta entrevista.

Entrevista com Jorge Carrión

Xaquín Núñez: En tus trabajos es una constante la atención a los libros, a la literatura, a sus espacios, desde un punto de vista que podríamos considerar clásico. Sin embargo,

* Professor associado com agregação, Universidade do Minho, Centro de Estudos Humanísticos, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0001-5311-742X

182 ENTREVISTAS también han tenido una preocupación constante por las nuevas narrativas y, en concreto, las series televisivas. ¿Cuándo empieza tu interés por ello?

Jorge Carrión: Vengo de los estudios de Humanidades y de un doctorado en Literatura Comparada. La mayor parte de mi vida pensé y estudié la cultura en una tensión entre lo oral y lo textual. Aunque soy más de contemporánea, en la universidad estudié a Homero y la literatura medieval, tengo formación clásica y siempre analicé la literatura más allá de la materialización textual. Fue, justamente, al final de mi tesis, cuando me liberé de ese esquema más clásico, sin renunciar a él, gracias a una lectura que supuso para mí una revelación. Con el libro de mi amigo Eloy Fernández Porta, Afterpop (2005), me doy cuenta de que estaba reprimiendo mis gustos de adolescencia y juventud, porque también vengo de leer cómics, de consumir cine de aventuras, de superhéroes, de ciencia-ficción. De modo que leo a Eloy y veo que tengo todo un capital, debido a la fascinación y al interés por esos géneros, que constituye un gran archivo, que tiene que ver con la fantasía y los lenguajes populares. Y, en ese momento, empiezo a leer mucho cómic, Watchmen, de Alan Moore, la obra de Frank Miller, y recupero todas mis lecturas de superhéroes y, en paralelo, de los grandes clásicos de la novela gráfica, que no conocía. Además, en Chicago, donde había estado en 2005 trabajando en mi tesis doctoral, vi 24, que fue mi primera experiencia con una serie. Cuando vuelvo a Barcelona, ese mismo año, empiezo a ver en DVD los grandes clásicos de HBO: The Sopranos, Deadwood, The Wire… y ahí es donde me doy cuenta de que hay un arte narrativo importante en la televisión y, a partir de entonces, me olvido un poco del eje oralidad-textualidad (aunque lo estoy recuperando con el podcast) y, durante quince años, me centro en pensar y escribir sobre la gran tensión de nuestra época, entre lo textual y lo audiovisual, o lo que es lo mismo, entre el formato libro y el formato pantalla.

X.N.: En Teleshakespeare hablas, de hecho, en que la complejidad semiótica en la que nos encontramos halla siempre un camino de comprensión desde la lectura literaria de esta realidad. Un contexto en el que confluye la innovación creativa con la cultura masiva, quizás como nunca había sucedido desde la época del Barroco.

J.C.:

Yo diría que lo que está ocurriendo en este cambio de siglo, y que empezaría en los años noventa, se puede leer como una vuelta de tuerca a la cultura posmoderna. Como una post-posmodernidad, si se puede decir. En Teleshakespeare hablo acerca de cómo series de la segunda década del siglo XXI a menudo hacen un giro manierista respecto a procedimientos de series de la primera década. Pero yo me inclino a pensar que el símil sería más bien con el Renacimiento, en la medida en que se está transformando la transmisión de la cultura o del conocimiento. Nace otra forma de relacionarse con la información o el arte, igual que en los siglos XIV y XV ocurrió con Petrarca, Fotografía Beto Gutiérrez Dante, Miguel Ángel o Leonardo. En ese

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 181-186. eISSN: 2194-7010 ENTREVISTAS 183 momento también cambió globalmente la manera de leer, que luego la imprenta terminó de catapultar. En ese sentido, diría que las series son muy clásicas, todavía no hemos encontrado una serie como lo que el Quijote hace con los libros de caballerías. Son más bien afirmativas, no hay metanarración. Es un momento de afirmación, de una nueva cultura. Tanto en las series, como en Youtube, Instagram o Facebook, como en tantos otros ámbitos. Quizás en algún momento esa explosión tenga un momento barroco.

En todo caso, son símiles que utilizamos para entendernos, ya que, en realidad, no hay modo de comprender orgánicamente lo que está pasando. En el Renacimiento había una sintomatología limitada, que se concentraba en algunos espacios, que permitía interpretar lo que estaba pasando; pero hoy en día, hay tantas escenas, tantos actores, tantos fenómenos que no es posible llegar a una comprensión general de la situación. X.N.: De hecho, con mi símil, apuntaba más al contexto. Ese período de generalización de la imprenta, de creación de teatros para un público amplio, de literatura comercial, como la que hacen Lope o Shakespeare, para una población que había descubierto el ocio. Quizás pueda asemejarse al mundo de las plataformas y de producción de contenidos que crecen exponencialmente.

J.C.: La cultura de la plataforma, de hecho, sí que es muy barroca, no tanto los contenidos. Sí es cierto que hay una expansión global del concepto de teatro como entretenimiento: Netflix, HBO, Amazon, Sky, etc. Pero los contenidos son, más bien, clásicos, mientras el marco es muy barroco. Facebook es muy barroco, Netflix es muy barroca, pero los contenidos son convencionales.

X.N.: Volviendo a la lectura literaria de esta realidad y a la retroalimentación intermedial. Se estudian a menudo los préstamos literarios en la pantalla, pero tal vez la legitimación cultural de las series, como anteriormente el cine, está también modificando la manera de escribir…

J.C.: Yo diría que las series se han nutrido muchísimo de la literatura y que la literatura contemporánea empieza a usar los recursos de las series. Por ejemplo, hay mucha más elipsis, más contrapunto, más zapping, más saltos temporales. Aunque sean recursos clásicos, ahora se usan con una ausencia de prejuicios y una velocidad del siglo XXI. También hay experimentos literarios concretos directamente relacionados con las series, como los de Mark Danielewski o los míos.

X.N.: ¿Crees que esta porosidad creativa está modificando el canon narrativo? ¿Hay escritores clásicos que pierden o ganan actualidad?

J.C.: Acerca de la lectura literaria y la mención anterior que has realizado a Teleshakespeare, señalaría que es un ensayo creativo. Es decir, defiendo una posición desde la que pienso como escritor y leo desde la literatura, al igual que cada cual lo hace desde su propio sistema. Esto para introducir la cuestión de que yo diría que no hay un canon, sino muchos cánones. No hay un único canon, global y válido. Yo podría hacer mi canon de narraciones y en mi cabeza pensaría en novelas, en series, en cómics, en películas, sin discriminarlos; pero, en general, se tiende a segmentar el canon en géneros y lenguajes que remiten a estructuras antiguas. En el fondo, casi aristotélicas. Queremos, en suma, que Aristóteles nos ayude a entender el caos creativo de nuestra época. En ese sentido, creo que el canon literario en España, si se ve en términos de producción

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 181–186. eISSN: 2184-7010 184 ENTREVISTAS académica, de premios, funciona como si nada de lo que estamos comentando hubiera ocurrido. Se están canonizando y premiando libros que casi siempre ignoran este nuevo ecosistema creativo y todas estas nuevas reglas del juego.

Si tú observas los Premios Nacionales o de la Crítica de los últimos años, ves que se tiende a premiar lo ya conocido. Al menos en la literatura española. En la literatura traducida sí se puede reconocer cierta novedad. Por ejemplo, en España sí se ha constatado la importancia de libros como Verano, de Coeetze, que es una novela extraordinaria y muy innovadora, o Lincoln en el Bardo, de George Sanders. Dos novelas realmente en sintonía con nuestra época. Pero, en cambio, es difícil encontrar novelas de los últimos diez años de escritores españoles que sean al mismo tiempo innovadoras y reconocidas. Creo que escribir para el futuro, aunque sea ingenuo y utópico decirlo, valdrá la pena, porque habrá herramientas de revisión del canon, en el cual se hará justicia con obras que han sido desdeñadas.

X.N.: Esta pulsión por la intertextualidad, lo metanarrativo, de la que también hablas en tus trabajos, parece renovar el interés y la actualidad de ciertas corrientes y escritores consagrados, en detrimento de otros. Borges, Bolaño o Piglia, dentro de la literatura hispánica, irradian universalidad.

J.C.: Mi reflexión anterior iba en el sentido de los escritores actuales. El canon de la literatura hispanoamericana me parece bastante más justo. Roberto Bolaño o Ricardo Piglia, recientemente fallecidos, César Aira, Mario Bellatin o Cristina Rivera Garza están cultivando un nuevo modo de escribir y de crear y están siendo justamente valorados por ello.

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 181-186. eISSN: 2194-7010 ENTREVISTAS 185

Fotografía Beto Gutiérrez

X.N.: En efecto, la literatura y la lectura no se ha fragilizado en este nuevo contexto. Quizás, sí, como recurso de entretenimiento, ya que el best seller manifiesta ahora mejor acomodo en otros medios.

J.C.: Yo diría que nunca ha sido lo literario. De hecho, en la época de Cervantes era el libro de caballerías, en la época de mi madre era Corin Tellado, los bolsilibros y las novelas de escritores con seudónimo de la editorial Bruguera. La literatura popular y la mala literatura siempre han sido best-seller. Yo creo que eso no es nuevo, ya que es una constante histórica. En efecto, las series de televisión, las buenas y las malas, no están quitando horas de lectura. Creo que leemos más que nunca, consumimos más cultura que nunca, porque somos más cultos que nunca. En la historia de la humanidad no había habido tanta población alfabetizada. Realmente yo no veo elementos de apocalipsis o pesimismo. El problema es que todos somos creadores, somos fotógrafos, escritores. Hay espacio para que todos publiquemos, lo que no hay es suficiente espacio para el reconocimiento. No hay reconocimiento ni consumidores para todos y ahí está la frustración. El desequilibrio es que hay tantos o más creadores que consumidores y muchos creadores que no consumen.

X.N.: Esta cultura fan y prosumidora está tratada en tu novela Los muertos, como un guiño al consumo poliédrico de hoy en día.

J.C.: El fenómeno fan, tal como nos descubrió Henry Jenkins, ha sido mucho más activo y político de lo que creíamos. Estamos en una época en que el fenómeno fan tiene una

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 181–186. eISSN: 2184-7010 186 ENTREVISTAS energía creativa muy valiosa, no solo en términos de mercado simbólico, sino también económico. Los consumidores fanáticos son los que apoyan la viabilidad de proyectos narrativos. En Los muertos intenté llevar eso al extremo porque, por un lado, están George Carrington y Mario Alvares, que son creadores clásicos, grandes artesanos, pero se dan cuenta de que para llegar a un público masivo no pueden hacer la serie, novela o película que le gustaría, sino la que se pueda comercializar en Fox, en un gran canal comercial de la época. Lo que hacen es hackear el sistema y hacer una obra sofisticada y artística, pero con apariencia comercial y con una voluntad tópica de transformación social, la de ser justos con nuestros muertos, tanto reales como de ficción.

X.N.: Las cadenas y plataformas globales han posibilitado, no obstante, la difusión de una producción deslocalizada, con series que consiguen transcender su ámbito local (véase, por ejemplo, el caso de la serie Fariña), pero da la sensación de que los modelos narrativos resultan poco diversos.

J.C.: Estoy bastante de acuerdo en el caso de España, aunque a mí Fariña me parece la mejor serie española que he visto. Y, en relación con la repetición de modelos exitosos, vi algo en Fariña que no había visto en Narcos. Se desmarca en varios aspectos, el más transcendental, a mi juicio, es que parte de un libro. Las mejores series de los últimos años son adaptaciones de libros: Juego de Tronos, El cuento de la criada, Chernobyl, Fariña, I love Dick, The Leftovers, Watchmen …La adaptación se ha convertido en un gran recurso. Por otro lado, en Narcos hay mucha muerte y violencia, aspecto que Fariña evitó, más fiel al comportamiento del narco gallego. Sería, además, muy fácil exagerar para darle al espectador lo que se cree que quiere, cuando en realidad se puede ser fiel al libro de Nacho Carretero y conseguir una serie de alto nivel.

Eso no siempre suele ocurrir en la industria televisiva. Por ejemplo, Amazon Video Prime empezó con series más experimentales, como I love Dick, que me gustó mucho, pero enseguida apostaron por series más convencionales, con las pautas o modelos que comentabas anteriormente. Es la dictadura del algoritmo. Y es un cambio histórico de elites culturales: de los críticos, los editores o los catedráticos a los linajes algorítmicos.

De todos modos, tenemos que ampliar el foco a otras partes del mundo, como hace Frédéric Martel en Cultura Mainstream. Veremos que hay producciones en Japón, Brasil, Oriente medio, Bollywood en las que las propuestas narrativas tienen un notable acento local. Aun habiendo modelos hegemónicos, es verdad que hay toda una variedad de producción, que se desvía de una pauta central y unívoca. Diría que hay muchas y simultáneas, como todo el mundo del manga y de la producción coreana y japonesa, con gran capacidad de crear sus propios modelos, no supeditados al modelo americano. Vivimos en una época fascinante, caracterizada por la variedad y la superproducción. Se pueden vivir con angustia, pero yo prefiero vivirlas como oportunidades, para el placer como lector y para la apropiación como creador.

Barcelona-Braga, 30 de junio de 2019.

DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2696

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 181-186. eISSN: 2194-7010

RECENSÕES

REVIEWS

ANTONIO J. GIL GONZALEZ & PEDRO JAVIER PARDO (EDS.). Adaptación 2.0. Estudios comparados sobre intermedialidad. Binges: Orbis Tertius, 2018, 302 pp.

M. DOLORES LERMA SANCHIS* [email protected]

Antonio J. Gil González y Pedro Javier El libro responde, de este modo, a un Pardo editan Adaptación 2.0. Estudios contexto social y cultural contemporáneo comparados sobre intermedialidad. El en el cual el espacio central de lo literario volumen se estructura en tres partes, la se comparte con otras narrativas digitales, primera se ocupa de la Introducción, que audiovisuales, escénicas o gráficas, y en el los editores subtitulan “Intermedialidad: que las reescrituras creativas expanden sus Modelo para armar”; en la segunda, bajo campos. Ante este panorama, el objetivo el título “Transmedialidad: reescrituras del estudio es “someter a una reescritura” críticas”, se presentan seis estudios conceptos clave como los de adaptación, firmados por Pedro Javier Pardo, Javier reescritura, intermediación, transescritura, Sánchez Zapatero, Vicente Luis Mora, transmedialidad o intermedialidad para Fernando González, José Antonio Pérez tornarlos compatibles y consensuados Bowie y Antonio J. Gil González; la desde una perspectiva teórica, tercera parte la ocupa un “Breve terminológica y metodológica. Con este diccionario intermedial” de José Seoane fin, la introducción busca servir de marco Riveira. conceptual a los estudios incluidos en la “Intermedialidad: Modelo para armar” segunda parte del volumen, creando un es el título del texto que introduce el libro. espacio de investigación donde converjan Gil González y Pedro Javier Pardo áreas de conocimiento dispersas entre los avanzan los objetivos de la publicación estudios literarios y culturales, la historia que pretende ser “una síntesis teórica y del arte y la comunicación audiovisual, metodológica de los principales conceptos que los autores proponen denominar y trabajos desarrollados por el grupo de Estudios comparados sobre estudios sobre literatura y cine (GELYC) intermedialidad, adaptando el término de la Universidad de Salamanca” (pág. Comparative Media Studies. 13). Con esta publicación, el grupo, Antonio Gil González y Pedro Javier dirigido por Pérez Bowie, da por Pardo enfocan la intermedialidad finalizados los proyectos de investigación extrínseca que, fruto de la proliferación de “Transescritura, transmedialidad, relaciones y contactos entre los medios transficcionalidad: relaciones tradicionales y nuevos, resulta de los contemporáneas entre literatura, cine y avances tecnológicos que combinan nuevos medios, II” e “Intermedialidad, códigos, tecnologías, soportes y medios. A adaptación y transmedialidad en el cómic, partir de ahí, relacionan la intermedialidad el videojuego y los nuevos medios”. con los conceptos de intertextualidad y

* Professora Auxiliar, Universidade do Minho, Instituto de Letras e Ciências Humanas, Departamento de Estudos Românicos, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0001-6704-5199

190 RECENSÕES transtextualidad de Genette (1989) para, a integrar los diferentes fenómenos y continuación, distinguir tres tipos de prácticas transmediales.” (págs. 88–89). fenómenos en la intermedialidad — En el capítulo titulado “Análisis del multimedialidad, remedialidad y repertorio transmedial: Sherlock Holmes transmedialidad— en línea con la en la pantalla”, Sánchez Zapatero dirige la propuesta de Rajewski (2005). atención al ámbito audiovisual para En el ensayo se revisan las ilustrar las propuestas teóricas y particularidades de las tres categorías terminológicas sobre la transmedialidad apoyándose en ejemplos de casos expuestas en la introducción a través de la concretos de diferentes medios como inmensa obra transmedial surgida películas, novelas gráficas, videojuegos, alrededor del personaje de Sherlock cómics, pinturas, novelas o series. Sin Holmes en los medios televisivo y embargo, el estudio se orienta a la cinematográfico. De este modo, se transmedialidad interpretada como propone “aplicar una terminología precisa “trasvase no solo de obras sino también de y rigurosa que permita definir y materiales argumentales, o incluso diferenciar de forma clara los procesos de repertorios y patrones narrativos, entre adaptación, reescritura y expansión que el diferentes medios.” (pág. 21). Los autores universo diegético originalmente creado introducen al lector en una serie de por Arthur Conan Doyle ha ido sufriendo nociones (cross-media o ‘transmediación’ con el paso del tiempo.” (pág. 95). Las y transmedia) y de descripciones de las conclusiones al estudio del corpus operaciones sobre el contenido (imitación, audiovisual holmesiano destacan la reescritura y transficción). La operatividad del marco conceptual introducción, que funciona como base de propuesto, no obstante, ante una obra de todo el estudio, concluye con la sugestiva estas dimensiones y características se y abierta visión de la transmedialidad rechaza la rigidez metodológica. como “un híbrido mutante entre la Vicente Luis Mora, en su ensayo sobre transescritura de los repertorios “La morfología compleja del transmedia: establecidos, y (…) su adaptación al un estado de la cuestión”, insiste en la medio.” (pág. 37, cursiva en el original). diversidad conceptual y de Bajo el título “Transmedialidad: denominaciones utilizadas en el campo reescrituras críticas”, la segunda parte del transmedia sobre el cual se ha investigado volumen reúne seis estudios. En el primero desde diferentes ámbitos disciplinares: la —“De la transescritura a la filología, la teoría de la literatura, la transmedialidad: poética de la ficción literatura comparada, la teoría de la transmedial”— Pedro Javier Pardo, en un comunicación, los estudios culturales, los paseo por la jungla terminológica, revisita estudios sobre los medios audiovisuales, las propuestas de Gérard Genette, los estudios de transmedialidad, etc. En Lubomír Doležel y Richard Saint-Gelais, este sentido, el autor ofrece una extensa y entre otros, para presentar un modelo completa terminología y bibliografía del explicado siempre a través de ejemplos y ámbito de la transmedialidad. Según definido por la confluencia de los Mora, la terminología de Jenkins resulta conceptos de transescritura y más operativa para observar la transmedialidad. En la transescritura, o complejidad —idea central en su migración de universos diegéticos, donde discurso— de los relatos transmedia en los la transferencia ocurre entre obras y la cuales, siguiendo la idea de Bellón (2012) transmedialidad donde se da entre medios. expuesta en el inicio del texto, “la película El ensayo remata con una gramática y el libro están ideados previamente como transformacional abierta “que ofrece la obras o composiciones separadas, posibilidad tanto de discernir como de dirigidos a crear efectos diferentes y

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 189-192. eISSN: 2184-7010 RECENSÕES 191 complementarios en soportes distintos, sin apunta para un cambio de interés del que uno sea la mera extensión, adaptación medio a la mediación. A continuación se o continuación del otro.” (pág. 149, centra en dos modos de entender los cursiva en el original). fenómenos intermediales: el sincrónico y El siguiente capítulo lleva por título el diacrónico. “En torno a la adaptación como fenómeno Desde la perspectiva sincrónica, intermedial”, donde José Antonio Pérez Rajewsky ve la intermedialidad como una Bowie aborda la complejidad del categoría crítica para el análisis de fenómeno de la adaptación desde un producciones concretas, a las que llama enfoque pragmático y pluridisciplinar. El “configuraciones”. En oposición, la texto formula el doble objetivo de perspectiva diacrónica de Müller entiende comprobar la compatibilidad de la la intermedialidad como “eje de terminología creada por el grupo de pertenencia” histórico cuyo objeto son los investigación con las propuestas de otros procesos y los protagonistas los medios. A estudios, así como comentar otras continuación, González continua su categorías problemáticas sobre el revisión del término intermedialidad concepto de adaptación. describiendo los cuatro modos En función de estos objetivos, el autor distinguidos por Schröter: sintético, presenta críticamente las propuestas de formal, transformacional y ontológico. Por Bárbara Zecchi y Thomas Leitch sobre las último, presenta los trabajos más recientes relaciones intermediales entre el texto de Routhier, Méchoulan. literario y el cinematográfico. Zecchi parte En el último ensayo titulado de la idea de la adaptación como un “tejido “Intermedialidad.es: el ecosistema de intertextualidades y dialogismos” para narrativo transmedial” Antonio J. Gil aplicar el término “cinematización”. Sobre González vuelve sobre la intermedialidad Leitch, Pérez Bowie detalla las diez aclarando, ampliando y ejemplificando el categorías de las prácticas de adaptación concepto, así como otras nociones teóricas propuestas por este autor contrastándolas examinadas a lo largo de la obra que ahora con las usadas por su grupo de enriquece con multitud de ejemplos desde investigación. los más canónicos a los más actuales. De El texto finaliza con una reflexión esta forma, para englobar el fenómeno sobre otros aspectos de la praxis intermedial da cuenta de infinidad de cinematográfica para los cuales el enfoque combinaciones que se dan entre el cine, los intermedial resulta insuficiente, por lo que videojuegos, la literatura, la prensa, las se necesita de un enfoque intramedial. series televisivas, los cómics, la novela Pérez Bowie recorre diferentes categorías gráfica, las telenovelas, los documentales y prácticas actuales que revelan como la o los juegos de mesa. El extenso análisis adaptación queda superada por el trasvase desarrollado se documenta con ejemplos y reciclaje de materiales ficcionales entre del ámbito global e hispánico, con diversos soportes, lo que conduce al productos culturales tanto de la cultura problema de la pérdida de homogeneidad popular como de masas. de los diversos medios (pág. 181). Por último, cierra el libro la coda En “Estudios intermediales y titulada “Breve diccionario intermedial”, temporalidad: Un acercamiento de José Seoane Riveira, con un preliminar”, Fernando González García esclarecedor y sistemático trabajo de describe una perspectiva histórica del recopilación de términos y conceptos término. Así, a partir de la propuesta de abordados en los capítulos anteriores, que síntesis histórica de Jean-Marc Larrue que sirve de guía o apoyo en la lectura de divide los estudios intermediales en dos Adaptación 2.0. El utilísimo glosario, fases, la mediática y la postmediática, y además de ofrecer definiciones completas,

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 189-192. eISSN: 2184-7010 192 RECENSÕES remite a las páginas y autores que en esta un trabajo riguroso y muy útil para quien obra utilizan los términos. se adentra en la reflexión y el estudio de Indudablemente, estamos ante un valioso los procesos intermediales que en el siglo instrumento que orienta la consulta de este XXI cobran importancia gracias al denso volumen al mismo tiempo que lo dinamismo de las nuevas tecnologías y a sintetiza. los cambios en los modos de El libro reseñado aporta al lector un comunicación. Este tipo de interesante conjunto de estudios en torno a investigaciones, abiertas a las relaciones la intermedialidad. A pesar de la establecidas entre los diferentes espacios complejidad del tema y la profusión de artísticos, permiten penetrar en las conceptos expuestos los ensayos conexiones entre los textos creativos proporcionan abundantes referencias exponiendo mundos más complejos, bibliográficas, ilustraciones, cuadros, sugestivos y enriquecedores. aplicaciones prácticas a diversos ejemplos y medios que ayudan al lector a comprender los conceptos más abstractos DOI: https://doi.org/10.21814/2i.2697 que requieren una lectura atenta. Sin duda,

REVISTA 2i, Vol. 2, N.º 1, 2020, pp. 189-192. eISSN: 2184-7010