Carta do Editor

stamos celebrando o Ano concebida por Alexandre Medeiros a importância da aquisição automá- Mundial da Física (AMF) cujo dando seqüência à série de entrevistas tica de dados em um laboratório bá- E objetivo principal é a divulga- com grandes cientistas. O movimento sico de ensino e sugerem formas de ção da Física em todos os setores da político em favor da paz proposto pelo introduzi-la. Simples e eficazes expe- sociedade exaltando sua relevância filósofo Bertrand Russel e por Einstein rimentos e demonstrações de física como a ciência mais fundamental (não é discutido por Fernando de Sousa moderna para o Ensino Médio são quer dizer que seja a mais importante!), Barros que realça o caráter pacifista apresentados em artigo de Marisa suas contribuições para melhor com- do grande cientista. A contribuição do Cavalcante, Cristiane Tavolaro e Rafael preensão do Universo em que vivemos “radiante céu do Brasil” à compro- Haag. e para o desenvolvimento tecnológico. vação da teoria da relatividade geral Sugerimos ainda a leitura do livro Na educação, buscamos alertar o pú- durante o eclipse de 1919 em Sobral é Física Para o Brasil: Pensando Para o blico e as autoridades para a necessidade descrita pelo historiador Antonio Au- Futuro, elaborado pela SBF, para uma imperiosa da melhoria do ensino desta gusto Passos Videira. Um cânone da visão geral sobre a Física desenvolvida disciplina em todos os níveis e, em par- literatura sobre Einstein publicada no atualmente no Brasil e como deve es- ticular, estabelecer estratégias para Brasil foi estabelecido pelo físico e tar inserida na vida social e econô- motivar os jovens para o estudo da Fí- divulgador da Ciência Carlos Alberto mica. sica. Santos. Ao final apresentamos uma A FnE continua com sua campa- A escolha do ano de 2005 deve-se cronologia da vida de Einstein. nha para inserir a Física Moderna e à comemoração do centenário dos tra- A FnE traz uma série de artigos Contemporânea em todos os níveis de balhos produzidos por de divulgação com o intuito de atua- ensino. Esperamos que esta edição es- que tiveram um impacto extraordi- lizar e motivar os leitores para temas pecial, além de reverenciar a figura de nário na Física do século XX: a teoria atuais da Física Contemporânea. Luis Albert Einstein, contribua para este da relatividade restrita, a hipótese do Carlos de Meneses mostra como a Fí- fim. fóton, a equivalência da massa- sica permeia todo o nosso cotidiano a energia e a teoria do movimento partir de observações em sua própria browniano e suas implicações para a sala de trabalho. Áreas da Física mais confirmação da existência de átomos. fundamentais como a cosmologia, as No Brasil, a Sociedade Brasileira partículas elementares e as interações de Física escolheu o XVI Simpósio Na- fundamentais da natureza são descri- cional do Ensino de Física realizado no tas por Rogério Rosenfeld, José início do ano no Rio de Janeiro para Helayël-Neto e Maria Cristina abrir as atividades do AMF-2005 de Abdalla. A matéria em sua for- modo a registrar categoricamente sua ma mais bem estruturada preocupação com a qualidade atual do com sua rica arquitetura e a ensino de Física. nanotecnologia (o que é e para Nesta edição, dedicada ao AMF, que serve?) são discutidas por prestamos um tributo a Einstein que Belita Koiller e Peter Schulz, se inicia com um ensaio sobre seus respectivamente. Rita de Oli- trabalhos de 1905 por Ildeu C. Morei- veira introduz o leitor no ra. Carlos Fiolhais, físico português e mundo da complexidade, dos autor de Física Divertida, nos convence sistemas caóticos e dos frac- de que a Física, decorridos 100 anos tais. São temas bastante atuais dos trabalhos de Einstein, continua a e de muito interesse para nos- nos dar prazer e divertir. O menos ba- sos alunos. dalado artigo de Einstein sobre o Visando ao uso de novas movimento browniano, mas de fun- tecnologias da informação e damental importância para a aceita- comunicação no ensino de Fí- ção da hipótese atomística da matéria, sica, Flávia Rezende e Susana é abordado em nível acessível ao En- de Sousa Barros exploram os sino Médio (assim esperamos!), por sistemas hipermídia de apren- Silvio Salinas. Os primeiros anos de dizagem de Ciências com Einstein são percorridos numa con- exemplos concretos. Eliane versa imaginária com ele mesmo Veit e colaboradores mostram

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 Carta do Editor 3 ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ Introdução matéria. Em abril, com sua tese de Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física, doutoramento sobre as dimensões

Universidade Federal do Rio de Janeiro erna (Suíça), meados de maio moleculares e, em maio, com sua ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ de 1905. Após uma noite de análise do movimento browniano, ele reflexões intensas, um empre- possibilitou a confirmação experi- B a gado de 3 classe do escritório de pa- mental definitiva da existência de tentes, que mal completara 26 anos, átomos e moléculas. Não é à toa que agradece a seu amigo Michele Besso 1905 foi designado o annus mirabilis (1873-1955): “Obrigado! Resolvi – em latim, ano miraculoso, admirá- completamente o problema. Uma vel – de Einstein. Entre março e setem- análise do conceito bro, produziu cinco 2 de tempo é a solu- E = mc . trabalhos extraor- ção.” No dia ante- Com essa fórmula – talvez, a dinários que muda- rior, Albert Einstein mais famosa da Ciência – riam a face da Ciên- (1879-1955) tinha Einstein fundiu as leis da cia moderna e que discutido com Bes- conservação da massa o tornariam o cien- so cada detalhe de e da energia tista mais famoso uma questão que o do século passado. perseguia há tempos. Seis semanas Uma das mais importantes e in- depois, enviaria um manuscrito para trigantes cartas da história da Ciência, a prestigiosa revista Annalen der de Einstein para seu amigo Conrad Physik, estabelecendo a relatividade Habicht (1876-1958), em maio de especial e unificando duas áreas da 1905, registrou esse momento: Física: a mecânica e a eletrodinâmica. Eu lhe prometi quatro trabalhos. O Em setembro, como conseqüência da primeiro trata da radiação e das pro- nova teoria, deduziu a expressão priedades energéticas da luz e é muito E = mc2. Com essa fórmula – talvez, revolucionário como você verá. O se- a mais famosa da Ciência –, fundiu Há 100 anos, um jovem físico, trabalhando gundo é uma determinação dos tama- a as leis da conservação da massa e da como técnico de 3 classe em um escritório de nhos reais dos átomos a partir da patentes em Berna (Suíça), publicou cinco energia. Meses antes, em março, havia difusão e da viscosidade de soluções trabalhos. Todos de excelente qualidade. Dois proposto uma hipótese radical, que deles mostrariam, com base em teorias simples diluídas de substâncias neutras. O levaria quase duas décadas para ser e elegantes, como poderia ser demonstrada terceiro prova que, baseado na hipó- aceita: a luz exibe um comportamento experimentalmente a realidade física de átomos tese da teoria molecular do calor, cor- e moléculas, assunto ainda controverso no início corpuscular, ou seja, granular. pos da ordem de 1/1000 mm, suspen- do século passado. É impressionante que um único Os três artigos restantes alteraram profunda- sos em líquidos, devem executar um cientista, em poucos meses, tenha mente a face da física moderna. No primeiro a movimento aleatório observável, que dado contribuições tão importantes ser concluído naquele ano, o jovem rebelde e é produzido pelo movimento térmico; contestador propôs o que mais tarde ele classi- para a Ciência e que alteraram de fato, os fisiologistas observaram ficaria como a idéia mais revolucionária de sua profundamente nossas concepções vida: a luz, sob certos aspectos, apresenta uma movimentos de pequenos corpos em sobre o espaço e o tempo, bem como natureza granular. Em julho e setembro, con- suspensão, inanimados, os quais cha- sobre a estrutura da radiação. Outra cluiu os dois últimos artigos de 1905 e aos quais mam de ‘movimento browniano’. O seu nome estaria associado para sempre. Eles, revolução, mais silenciosa e que se quarto artigo, neste momento apenas em conjunto, dariam origem à teoria da rela- estendeu por séculos, receberia um tividade, que destruiria o caráter absoluto atri- um rascunho grosseiro, é uma eletro- impulso essencial de Einstein no buído, durante séculos, ao tempo e ao espaço. dinâmica de corpos em movimento, Seu nome: Albert Einstein. mesmo ano: a teoria atômica da

4 1905: Um Ano Miraculoso Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 ondulatória ganharia força e se con- unificação na descrição física da solidaria com a teoria eletromagnética natureza, explicar fenômenos novos, da luz proposta pelo escocês James como o efeito fotoelétrico, que não Clerk Maxwell (1831-1879). podiam ser entendidos com base na A luz passa, então, a ser vista co- física clássica: “Penso que as observa- mo uma onda eletromagnética que se ções sobre a radiação do corpo negro, propaga no éter, o meio material que, a fotoluminescência, a produção de acreditava-se, lhe dava suporte. Mas, raios catódicos [elétrons] pela luz ultra- no início do século passado, um pro- violeta, e outras classes de fenômenos blema começou a obscurecer o céu da concernentes à produção e à transfor- teoria ondulatória para a radiação lu- mação da luz, parecem mais compre- minosa: como explicar a intensidade ensíveis se admitirmos que a energia da radiação emitida por um material da luz está distribuída de maneira aquecido, a uma dada temperatura, descontínua no espaço. Segundo a hi- em função da freqüência dessa mesma pótese proposta aqui, na propagação radiação? A teoria ondulatória usual de um raio luminoso, emitido por uma não conseguia descrever corretamente fonte pontual, a energia não está dis- o fenômeno – que ganhou o nome tribuída de maneira contínua sobre ‘radiação do corpo espaços cada vez negro’, porque o Segundo a hipótese maiores, mas é experimento passou proposta aqui, na propaga- constituída de um Einstein em seu primeiro emprego como a ser feito usando-se ção de um raio luminoso, número finito de perito de patentes. um recipiente metá- emitido por uma fonte quanta de energia lico fechado, aqueci- pontual, a energia não está localizados em pon- que utiliza uma modificação da teoria do, e observando-se distribuída de maneira tos do espaço, cada do espaço e do tempo. a radiação emitida contínua sobre espaços cada um se deslocando por uma pequena vez maiores, mas é sem se dividir e po- Vamos fazer uma incursão por es- abertura nele feita. constituída de um número dendo ser absorvido ses trabalhos, que, escritos em estilo O físico alemão Max finito de quanta de energia ou produzido ape- conciso e direto, são jóias preciosas da Planck (1858- localizados em pontos do nas em bloco.” Esta cultura universal. Sempre que possí- 1947), em uma ten- espaço, cada um se última frase é, tal- vel, nos apoiaremos nas palavras de tativa desesperada deslocando sem se dividir e vez, a mais revolu- Einstein. Comentaremos também de encontrar uma podendo ser absorvido ou cionária na Física do características de seu autor e aspectos solução, fez a hipó- produzido apenas em bloco século passado. do contexto da Ciência, da tecnologia tese, em 1900, de Einstein, 1905 Nascia o conceito de e da cultura de sua época que podem que a troca de ener- fóton – nome dado contribuir para um melhor entendi- gia entre a radiação luminosa e a ao quantum de luz após 1926 – e, com mento de sua façanha. matéria só pode ocorrer através de ele, a era da física quântica moderna. quantidades com um certo valor mí- A partir desse conceito, Einstein Uma idéia revolucionária nimo – o quantum de energia – e não deduziu uma expressão matemática A disputa sobre a constituição da de forma contínua, como exigido pela para descrever o efeito fotoelétrico, no luz – se onda ou partícula – tem uma teoria ondulatória. Insatisfeito com qual elétrons são arrancados de pla- história que remonta ao século 17, sua própria proposta e considerando- com os ingleses Isaac Newton (1643- a um artifício provisório, Planck ten- 1727) e Robert Hooke (1635-1703) e taria inúmeras vezes encontrar outra o holandês Christiaan Huygens maneira de chegar à expressão expe- (1629-1695). Newton defendia uma rimentalmente correta a que chegara teoria corpuscular para a luz, ao con- e que preservasse o caráter contínuo trário de seus dois contemporâneos. da radiação. Ao longo do século 18, o modelo new- Einstein, com seu trabalho de mar- toniano predominou, embora tendo ço de 1905, ‘Um ponto de vista heu- críticos importantes. No século se- rístico sobre a produção e a transfor- guinte – com o inglês Thomas Young mação da luz’, vai muito além de (1773-1829) e o francês Augustin Planck. Com grande ousadia e origi- Fresnel (1788-1827) e com as expe- nalidade, introduz uma hipótese física riências de dois outros franceses, revolucionária: a própria radiação tem Armand Fizeau (1819-1896) e Leon uma estrutura discreta (ou atomística). O escritório de patentes de Berna no tempo Foucault (1819-1868) –, a teoria Seu propósito era, além de buscar uma em que Einstein trabalhava lá.

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 1905: Um Ano Miraculoso 5 pleto do comportamento da luz se tintos de prudência e audácia, cujo estende até os dias de hoje. equilíbrio é necessário para o lento progresso da Ciência humana.” A dança dos átomos A tese de doutorado de Einstein, O movimento irregular de uma pela Universidade de Zurique (Suíça), partícula muito pequena mergulhada ‘Uma nova determinação das dimen- em um fluido – fenômeno denomi- sões moleculares’, girava em torno do nado movimento browniano – é oca- mesmo tema: a existência e o compor- sionado por choques com as molé- tamento dos átomos e das moléculas. culas do fluido, que estão agitadas em Ele combinou resultados da hidrodi- razão de sua energia térmica (calor). nâmica clássica com os da teoria da Membros Fundadores da Academia Olimpia: a partir da esquerda Conrad Essa foi a principal inferência feita por difusão para criar um novo método Habicht, Maurice Solovine e Einstein. Einstein em seu segundo trabalho de de determinação das dimensões mole- 1905: ‘Movimento de partículas em culares e do número de Avogadro. cas metálicas pela incidência de suspensão em um fluido em repouso Para isso, teve que trabalhar com uma radiação. Mas anos se passariam an- como conseqüência da teoria cinética teoria molecular para os líquidos, ta- tes que a expressão de Einstein fosse molecular do calor’. Einstein previu refa bem mais difícil que para os confirmada por experimentos realiza- a variação (média) na posição da par- . Os átomos e as moléculas não dos pelo físico norte-americano Rob- tícula ocasionada por essas colisões, podiam ser observados diretamente ert Millikan (1868-1953). Este diria variação essa que pode ser medida pela pelos microscópicos então existentes. mais tarde: “Passei dez anos da minha observação em um microscópio. De- Einstein inventou uma maneira indi- vida testando a equação de Einstein duziu também uma maneira de se reta de fazê-lo: uma teoria simples e de 1905. Contrariando minhas expec- calcular o número de Avogadro (cerca elegante que, a partir da medida de tativas, em 1915, fui compelido a de 6 x 1023), ou seja, o número de áto- quantidades macroscópicas, como a validá-la sem ambigüidade, apesar de mos (ou moléculas) existentes em viscosidade de um líquido e o coefi- seu caráter não razoável, pois parecia uma quantidade ciente de difusão de Em 1909, Einstein, em um violar tudo o que sabíamos sobre a pré-fixada – o cha- uma substância ne- de seus momentos mais interferência da luz.” A descoberta da mado átomo-gra- le imersa, permitia visionários, havia proposto lei do efeito fotoelétrico daria a Eins- ma (ou molécula- determinar as di- uma fusão das caracterís- tein o prêmio Nobel de Física de 1921. grama) – de um mensões das molé- ticas ondulatórias e No entanto, se a fórmula propos- elemento químico culas dissolvidas. corpusculares da radiação. ta por Einstein foi confirmada, a idéia ou substância. Usou os dados dis- Sete anos depois, dos quanta de luz enfrentava a opo- Einstein termi- poníveis para o açú- desenvolveu a idéia da sição da imensa maioria dos físicos, nou o trabalho ofe- car dissolvido na emissão e da absorção entre os quais Planck, Millikan e o di- recendo aos opo- água e, com isso, estimuladas da luz – que namarquês Niels Bohr (1885-1962). nentes da teoria pode fazer uma boa daria as bases teóricas para Foi somente após a descoberta do atômica um experi- estimativa das di- o desenvolvimento do laser chamado efeito Compton – descober- mento que poderia mensões das molé- na década de 1950 to, em 1923, pelo físico norte-ame- testar a sua previ- culas. O trabalho, ricano Artur Compton (1892-1962) são: “Se [ela] não assim como a inter- e no qual, como se fosse uma partí- estiver correta, isso significaria um ar- pretação estatística do movimento cula, a luz (ou melhor, um fóton) tem gumento de peso contra o conceito browniano, foi aceito rapidamente e a direção de sua trajetória desviada ao cinético-molecular de calor. Espere- deu início à teoria das flutuações, que colidir com um elétron – e com as mos que logo venha um pesquisador encontrou depois enorme gama de experiências dos alemães Hans Geiger para elucidar esta questão importante aplicações científicas, indo da econo- (1882-1945) e Walther Bothe (1891- para a teoria do calor.” Esse desafio mia à matemática. 1957), em 1925, que o conceito viria encontrou ressonância no físico fran- A tese foi concluída em 30 de abril a ser aceito amplamente pelos físicos. cês Jean Perrin (1870-1942). Após de 1905, mas teve uma história longa Em 1909, Einstein, em um de seus cuidadosos experimentos que confir- e tortuosa. Em 1901, Einstein havia momentos mais visionários, havia maram as previsões de Einstein, Perrin já submetido uma dissertação à Uni- proposto uma fusão das caracterís- concluía em 1913: “A teoria atômica versidade de Zurique – esse original ticas ondulatórias e corpusculares da triunfou. Numerosos ainda há pouco, não sobreviveu –, mas retirou-a no radiação. Sete anos depois, desenvol- seus adversários enfim conquistados início de 1902, possivelmente por su- veu a idéia da emissão e da absorção renunciam, um após o outro, às des- gestão de seu supervisor Alfred Kleiner estimuladas da luz – que daria as ba- confianças que por longo tempo fo- (1849-1916). Em janeiro de 1903, ses teóricas para o desenvolvimento ram legítimas e, sem dúvida, úteis. abandonou seus planos de tese dizen- do laser na década de 1950. Mas o Será em torno de outras idéias que do: “Essa comédia toda já me aborre- problema de um entendimento com- prosseguirá agora o conflito dos ins- ceu.” Em 1905, no entanto, retomou

6 1905: Um Ano Miraculoso Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 à idéia do doutorado. As razões eram tinha já décadas de suces- claras: isso podia ajudá-lo na ascensão so. Por outro lado, a me- no escritório de patentes e abriria a cânica clássica contava chance de uma carreira acadêmica. Se- com mais de 200 anos de gundo sua irmã, Maja (1881-1951), êxito quase absoluto em ele tentou inicialmente que o trabalho seu domínio descritivo. sobre a relatividade constituísse a dis- No entanto, as equações sertação, o que teria sido rejeitado. de Maxwell do eletro- Voltou-se, então, para uma questão magnetismo não são ao feitio dos físicos de Zurique, uma compatíveis com o prin- investigação mais solidamente escora- cípio da relatividade, que da em experimentos. E teve êxito. está na base da mecânica Einstein veria também, posteriormen- clássica. Como conciliá- te, falharem várias tentativas de con- los? Hipóteses ad hoc – ou Físicos influentes na época: Da esquerda para a direita, seguir um certificado para lecionar seja, forjadas a partir do Walther Nernst, Einstein, Max Planck, Robert Millikan e nas universidades, o que só consegui- fenômeno que querem Max von Laue. ria em 1908. Outro detalhe curioso, explicar e sem maiores difundido em algumas de suas biogra- fundamentações teóricas – haviam com o primeiro, a saber, que a luz fias, é que Kleiner aprovou a tese de sido formuladas, especialmente pelo sempre se propaga no espaço vazio 1905, mas reclamou que ela estava físico holandês Hendrik Lorentz com uma velocidade definida c, que é muito curta – 17 páginas apenas. (1853-1928), mas não ofereciam independente do estado de movimento Einstein acrescentou uma única frase, uma solução teórica aceitável aos do corpo emissor. Esses dois postula- e ela foi aceita sem comentários, o que olhos de Einstein. Sua proposta será dos são suficientes para se construir divertiu particularmente seu autor. radical e aparentemente inconsistente: uma teoria simples e consistente (...). estender o princípio da relatividade A introdução de um “éter luminífero” Novas concepções sobre para toda a Física e introduzir a hipó- provar-se-á supérflua ... espaço e tempo tese adicional da independência da Note-se a coragem do jovem físico velocidade da luz em relação ao movi- Enviado em 30 de junho de 1905, ao eliminar, com uma frase curta, a mento da fonte que a emite. o artigo ‘Sobre a eletrodinâmica dos noção de éter de suas considerações, O início do artigo de Einstein deixa corpos em movimento’ abordava o conceito que era um paradigma secu- claro seu propósito de unificar as duas conflito aparente entre a teoria ele- lar da Física como meio transmissor teorias: tromagnética e o princípio da relati- da luz e aceito como ‘realidade’ por vidade – pelo qual as leis da Física Como é bem conhecido, a eletrodinâ- praticamente todos os cientistas de devem ter a mesma forma para todos mica de Maxwell – tal como usual- sua época. O resultado, decorrente de os observadores inerciais, ou seja, não mente aceita no momento – quando suas premissas, de que a luz tem a acelerados –, originado da mecânica aplicada a corpos em movimento, mesma velocidade para todos os clássica. O eletromagnetismo oferecia produz assimetrias que não parecem observadores, quaisquer que sejam uma descrição unificada dos fenôme- ser inerentes aos fenômenos. (...) seus movimentos, estava em conflito nos elétricos, magnéticos e ópticos e Exemplos desse tipo, juntamente com com o senso comum e com a mecâ- as tentativas infrutíferas de detectar nica de Newton, que previa velocida- qualquer movimento da Terra em des diferentes quando medidas por relação ao “meio luminoso”, sugerem observadores que se movem um em que os fenômenos da eletrodinâmica, relação ao outro. Isso forçou Einstein assim como os da mecânica, não a uma revisão dos fundamentos cine- possuem propriedades corresponden- máticos da Física: rediscutiu os tes à idéia de repouso absoluto. Suge- conceitos de tempo e de espaço e a ma- rem, além disso, (...) que as leis da neira como são mensurados. Sua eletrodinâmica e da óptica sejam vá- nova definição para se medir o tempo lidas para todos os sistemas de refe- e sincronizar os relógios, por meio de rência para os quais as equações da sinais luminosos, levou ao abandono mecânica são válidas. Elevaremos da noção de tempo absoluto: dois essa conjectura (o conteúdo da qual eventos que são simultâneos para um será daqui para frente chamado de observador (com um relógio) em “Princípio da Relatividade”) ao sta- repouso não são simultâneos para um Einstein e seu melhor amigo Michele tus de um postulado, e também intro- observador em movimento. Da nova Besso, a quem agradece no artigo da Relatividade pela colaboração e valiosas duziremos outro postulado, que é formulação decorrem alguns resulta- sugestões. apenas aparentemente irreconciliável dos físicos importantes:

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 1905: Um Ano Miraculoso 7 quantidades enormes de energia e como quarta dimensão, funde-se com vice-versa. A massa e a energia são as outras três espaciais. Concepção de fato equivalentes. Concluiu o artigo similar fora já expressa por Poincaré. de maneira cuidadosa, mas premoni- Na apresentação de suas idéias, tória: “A massa de um corpo é uma Minkowski diria em 1908: “As visões medida de seu conteúdo de energia; de espaço e tempo que desejo apre- se a energia muda de E, a massa varia sentar a vocês cresceram do solo da no mesmo sentido de E/c2... Não é im- física experimental e daí nasce o seu possível que, com corpos cujo conteú- vigor. Elas são radicais. Daqui para do de energia é variável em um alto frente, o espaço por si mesmo, e o grau (por exemplo, com sais de rádio), tempo por si mesmo, estão destinados a teoria possa ser colocada à prova a se tornarem meras sombras, e so- com sucesso. Se a teoria corresponder mente uma espécie de união dos dois aos fatos, a radiação carrega inércia preservará uma realidade indepen- entre os corpos emissores e os corpos dente.” absorvedores.” Escreveu na época O contexto e a fonte da para um amigo: “O argumento é di- vertido e sedutor; mas, por tudo que criatividade sei, o Senhor poderia estar zombando Um motivo de intensa discussão A coordenação de relógios nas torres de comigo...” Não era zombaria. Na dé- e controvérsia entre os estudiosos da Berna poderia ter contribuído para a defi- cada de 1930, expe- obra de Einstein é a Poincaré também nição de simultaneidade proposta por rimentos vieram fonte de sua criati- desenvolveu trabalhos Einstein. confirmar as ex- vidade e os cami- importantes sobre a pectativas ali colo- nhos que o condu- relatividade e deduziu i) o tempo flui em taxas diferentes cadas. E, em 1945, ziram a suas teorias. muitas das expressões para observadores em movimento a bomba atômica – Ele não tinha o cos- matemáticas contidas na relativo entre si; tanto os intervalos que Einstein, por tume de guardar teoria. No entanto, ele não de tempo quanto os comprimentos muito tempo, du- seus manuscritos, atribuiu uma realidade física medidos variam com o observador, vidou que pudesse nem se preocupou significativa às expressões a dando origem, respectivamente, ao ser construída e cu- muito em recons- que chegara, ao contrário que se convencionou chamar dilata- jo uso condenou truir a linha de suas de Einstein ção temporal e contração espacial; fortemente – mos- reflexões. Mas mui- ii) a nova lei de somas das veloci- traria, de forma tas reconstruções dades – que não obedece mais à soma trágica, o acerto e o poder de suas históricas, mais ou menos plausíveis, direta das velocidades v = v1 + v2, co- idéias. têm sido feitas, levando em conta suas mo ocorria na mecânica newtoniana Note-se que o físico e matemático – permite resolver a aparente incon- francês Henri Poincaré (1854-1912), sistência entre seus dois princípios já independentemente de Einstein, desen- mencionados; volveu trabalhos importantes sobre a iii) ocorre variação da massa do relatividade e deduziu muitas das objeto com a velocidade. expressões matemáticas contidas na Essa reformulação dos conceitos teoria. No entanto, por razões varia- fundamentais de tempo e espaço, to- das, que têm sido muito discutidas pe- mados como dados a priori por sécu- los historiadores – entre as quais, sua los, constitui-se certamente em uma visão filosófica mais convencionalista das revoluções mais importantes da e menos realista que a de Einstein e a Ciência, embora seu próprio autor manutenção da noção de éter – não não pensasse assim: ele a via como atribuiu uma realidade física signi- um aperfeiçoamento da física clássica. ficativa às expressões a que chegara, Em setembro de 1905, em um ao contrário de Einstein. artigo de apenas três páginas, com um Em 1907, o matemático russo titulo interrogativo, ‘A inércia de um Hermann Minkowski (1864-1909), corpo depende de seu conteúdo ener- que havia sido professor de Einstein gético?’, Einstein deduziu uma fór- na Escola Politécnica de Zurique Trajetória aleatória de uma pequena mula, relacionando a energia (inércia) (Suíça), teve a importante idéia de partícula imersa em um líquido. Figura de um corpo com sua massa, que in- considerar o espaço e o tempo conjun- original do livro Átomos de Perrin que dica que quantidades muito pequenas tamente, constituindo um contínuo comprovou experimentalmente a teoria de de massa podem ser convertidas em quadridimensional no qual o tempo, Einstein.

8 1905: Um Ano Miraculoso Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 características particulares, a situação tividade. Também, ao propor a hipó- à colocação clara do cerne do proble- da Física em sua época e o contexto tese do quantum de luz, não foi mo- ma, se segue o elenco de premissas, o em que estava inserido. vido por nenhum experimento par- desenvolvimento dos modelos – ou Segundo ele mesmo, o que o dis- ticular. Partiu da constatação de uma das teorias – e as conseqüências expe- tinguia era uma insaciável curiosi- profunda diferença formal entre a des- rimentais deles decorrentes. dade: “Eu não sou nem especialmente crição da matéria e a dos campos Einstein era um mestre na arte, inteligente, nem especialmente dota- eletromagnéticos. Enquanto a teoria que teve também expoentes em Gali- do. Sou apenas curioso, muito curio- da matéria pressupõe um número leu e Maxwell, de construir experi- so.” Esse aspecto, aliado a uma grande finito de átomos – mentos mentais – capacidade de autodidatismo, iniciara- ou seja, partículas Sou um herético, repetia produzidos apenas se já na infância. Exibia também uma distribuídas de for- Einstein com freqüência. A na imaginação e que capacidade muito grande de concen- ma descontínua no pouca reverência com as estão além de nossa tração e de se dedicar intensamente a espaço –, a teoria autoridades, inclusive univer- capacidade de reali- um mesmo problema por anos a fio. eletromagnética faz sitárias, e a postura crítica zá-los diretamente Até 1905, Einstein de certa forma cor- uso de ondas, que permanente quanto às no laboratório – pa- ria por fora, às margens da Ciência são descritas por verdades adquiridas foram ra refletir sobre os institucionalizada. Era dotado de funções matemá- sempre um traço marcante princípios básicos notável autoconfiança e alta dose de ticas contínuas. de sua personalidade e da Física. Já em rebeldia: “Sou um herético”, repetia No contexto podem ter contribuído para 1895, com 16 anos, com freqüência. A pouca reverência formativo, o envol- sua dificuldade em conseguir começou a refletir com as autoridades, inclusive univer- vimento da família um cargo em universidades sobre a questão do sitárias, e a postura crítica permanen- de Einstein em ne- depois de formado éter e a propagação te quanto às verdades adquiridas gócios ligados à tec- da luz. Concebeu de foram sempre um traço marcante de nologia elétrica – uma das fronteiras início um experimento mental que o sua personalidade e podem ter contri- tecnológicas da época – deve tê-lo acompanharia por dez anos: o que buído para sua dificuldade em conse- influenciado significativamente. Seu ocorre se acompanharmos uma on- guir um cargo em universidades pai – que queria vê-lo formado em da luminosa com a mesma velocidade depois de formado, em 1900. Note- engenharia elétrica – e seu tio produ- dela? Ela ficaria ‘congelada’, em uma se que Einstein conviveu na Suíça, co- ziam equipamentos de precisão para estranha forma de onda não mo- mo estudante universitário, em um medidas elétricas e dínamos. Por outro vente? Para Einstein, esse experimento ambiente no qual abundavam socia- lado, como estudante universitário, mental juvenil foi o primeiro passo listas, anarquistas e intelectuais con- Einstein passava longas horas no para a teoria da relatividade especial. testadores e inovadores. laboratório: “Trabalhei a maior parte Em 1902, com dois amigos Habicht e Outro aspecto marcante em Eins- do tempo no laboratório de Física, fas- Maurice Solovine (1875-1958), criou tein é sua visão de Ciência. Tinha pro- cinado com o contato direto com a um ‘clube’ informal, a Academia funda crença na racionalidade do experiência.” Já sua atividade no es- Olímpia. Leram e discutiram longa- mundo: o real pode ser descrito por critório de patentes – de junho de 1902 mente vários autores clássicos, leis científicas, e o comportamento da a outubro de 1909 – foi “uma verda- incluindo obras de físicos e filósofos. natureza ser entendido a partir de al- deira benção para mim. Isso me Nessa última categoria, entre os que guns princípios ge- forçou a um pensa- mais o influenciaram, estavam Poin- rais e esteticamente Do ponto de vista filosófico, mento multilateral caré e o físico austríaco Ernst Mach belos. A Física deve- os avanços fundamentais e também forneceu (1838-1916), com textos que trata- ria ser formulada a que Einstein realizou em um importante vam da crítica aos fundamentos da partir de princípios 1905 dependeram de modo estímulo para a re- mecânica clássica, bem como o esta- abrangentes e ‘sim- crucial de sua forte adesão flexão em Física”. tístico inglês Karl Pearson (1857- ples’, e as teorias a uma crença na realidade Ao longo de sua 1936) e o filósofo escocês David Hume devem naturalmen- das entidades físicas no vida, o interesse (1711-1776), com críticas sobre o te resistir ao crivo nível atômico, preconizada pelas máquinas per- procedimento da indução em ciência, experimental. Os por Maxwell e Boltzmann maneceu aceso: ti- além de Maxwell e do físico austríaco artigos de 1905 ini- rou algumas paten- Ludwig Boltzmann (1844-1906). Do ciam-se quase todos com uma tes de invenções feitas sozinho ou com ponto de vista filosófico, os avanços insatisfação de Einstein com alguma colegas – uma delas, a de um refrige- fundamentais que Einstein realizou assimetria ou incompatibilidade en- rador, desenvolvido juntamente com em 1905 dependeram de modo cru- tre domínios da Física e a necessidade o físico húngaro Leo Szilard (1898- cial de sua forte adesão a uma crença de superá-las a qualquer custo. Toda 1964). Seu trabalho na análise das pa- na realidade das entidades físicas no sua obra gira em torno de buscar des- tentes pode ter também contribuído nível atômico, preconizada por Max- crições unificadoras da Física. Isso para seu estilo direto e pouco usual well e Boltzmann. ocorreu, como vimos, no caso da rela- de escrever artigos científicos no qual, O contexto no qual Einstein se in-

Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005 1905: Um Ano Miraculoso 9 também abordou a questão da sincro- reu em Princeton (Estados Unidos), nização dos relógios sob vários em 18 de abril, aos 76 anos de idade. ângulos. Além de refletir filosofica- Viveu profundamente também as mente sobre a medida do tempo, ao contradições políticas e sociais de seu presidir o Bureau de Longitude ele aju- tempo. Lutador incansável pela paz, dou a desenvolver métodos para socialista ‘emocional’ e crítico do so- cobrir o mundo com um tempo sin- cialismo real, opôs-se ao nazismo, ao cronizado, pela uti- macartismo – per- lização de transmis- Einstein viveu, refletiu e seguição a supostos sões telegráficas. produziu em uma arena simpatizantes de re- Tudo isso mos- onde convergiam: a física, gimes de esquerda tra que algumas das na tradição dos grandes nos Estados Unidos visões predominan- mestres; a filosofia, com a –, à guerra e à cor- tes sobre Einstein crítica à natureza do conhe- rida armamentista. são parciais e incor- cimento e a tecnologia, com Pagou alto preço retas. A visão empi- os aparelhos elétricos, os pessoal por isso. rista ingênua atri- relógios e as novas Quant