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Revista do Instituto Humanitas IHUNº 467 | Ano XV 15/06/2015

ISSN 1981-8769 (impresso) ISSN 1981-8793 (online)

Linguagem e Interação Diálogo, identidade e cultura

Joaquim Dolz: Multilinguismo e diversidade cultural - as identidades em diálogo Anna Bentes: O jogo discursivo enquanto arma nas lutas de classes Maria Cecília Pérez de Souza e Silva: A construção de liberdades e capacidades na interação linguística

Castor Bartolomé Maria Inês Azambuja: Rafael Senra: Ruiz: As mazelas das cidades Fernando Brant, o Do cuidado de si ao e as doenças urbanas menino sentinela deciframento de si das esquinas Editorial Linguagem e Interação. Diálogo, identidade e cultura

m um mundo complexo e ao rato, Livre-docente do Instituto de mesmo tempo interligado, Estudos da Linguagem da Unicamp. Ecuja Torre de Babel contem- A interface entre tecnologia e os porânea é construída pelas intera- processos de ensino–aprendizagem ções entre os humanos e as tecnolo- é descrita por Rafael Vetromille- gias, um dos desafios é a promoção -Castro, professor e coordenador do diálogo entre as diversas iden- do Programa de Pós-Graduação em tidades e culturas. Este é o tema Letras stricto sensu da Universi- em discussão na edição da revista dade Federal de Pelotas – UFPel e IHU On-Line desta semana em que professor na área de língua inglesa A IHU On-Line é a revista do Instituto se realiza, em São Leopoldo, o III do Centro de Letras e Comunicação Humanitas Unisinos - IHU. Esta publi- da mesma universidade. cação pode ser acessada às segundas-feiras Congresso Internacional Linguagem no sítio www.ihu.unisinos.br e no endereço e Interação, promovido pelo Progra- Maria Cecília Pérez de Souza e www.ihuonline.unisinos.br. ma de Pós-Graduação em Linguísti- Silva, professora e pesquisadora ca Aplicada da Unisinos. do Programa de Pós-Graduação A versão impressa circula às terças-feiras, a Contribuem para o debate o pro- em Linguística Aplicada e Estudos partir das 8 horas, na Unisinos. O conteúdo fessor Joaquim Dolz, da Universi- da Linguagem na PUC-SP, fala so- da IHU On-Line é copyleft. bre sua aposta na promoção de um dade de Genebra – UNIGE, Suíça, Diretor de Redação letramento que se fundamenta em que discute o multilinguismo. Inácio Neutzling ([email protected]) Xoán Lagares, professor da Uni- uma lógica mais aberta. versidade Federal Fluminense – UFF, Johannes Wagner, professor de Jornalistas descreve os principais problemas na Linguagem e Comunicação na Uni- João Vitor Santos - MTB 13.051/RS formação de políticas linguísticas. versidade do Sul da Dinamarca, ([email protected]) A valorização das línguas con- aborda a questão do desafio da Leslie Chaves – MTB 12415/RS ([email protected]) sideradas minoritárias é o tema aquisição de segunda língua na so- 2 Márcia Junges - MTB 9.447/RS abordado por Tereza Maher, pro- ciedade multilíngue. Completam a edição a entre- ([email protected]) fessora Livre-docente do Depar- Patrícia Fachin - MTB 13.062/RS tamento de Linguística Aplicada e vista com Eli Bartra, professora e ([email protected]) coordenadora do Curso de Letras pesquisadora da Universidad Autó- Ricardo Machado - MTB 15.598/RS da Universidade Estadual de Cam- noma Metropolitana – Xochimilco, ([email protected]) pinas – Unicamp. México, sob o título Neofeminismo Também docente no mesmo de- e arte popular na América Latina e Revisão Carla Bigliardi partamento e universidade, Anna o artigo A filosofia como forma de vida (III) – Do cuidado de si ao deci- Christina Bentes debate o estudo Projeto Gráfico do popular na linguagem. framento de si, de autoria do Prof. Ricardo Machado Vera Lúcia Paiva, doutora em Dr. Castor Bartolomé Ruiz. Linguística e Filologia pela Univer- Por sua vez, o artigo de Rafael Editoração Rafael Tarcísio Forneck sidade Federal do – Senra, autor do livro Dois lados da mesma viagem. A mineiridade e o UFRJ e coordenadora do projeto de Atualização diária do sítio Clube da Esquina, faz a memória pesquisa Aprendendo com Memórias Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia de Falantes e Aprendizes de Língua da “travessia” de Fernando Brant, Fachin, Cristina Guerini, Fernanda Forner, Estrangeira – AMFALE, analisa a am- “cuja obra é tão importante para Matheus Freitas e Nahiene Machado. pliação de projetos educacionais de tanta gente”. aquisição de outros idiomas. A IHU On-Line agradece a impor- Já Maria do Carmo Oliveira, pro- tante e decisiva contribuição do Prof. Dr. Anderson Bertoldi, profes- fessora do Departamento de Letras sor e pesquisador do PPG em Lin- e Supervisora de Graduação na guística Aplicada da UNISINOS, na Pontifícia Universidade Católica assessoria e parceria na construção – Rio, explica como as linguagens e realização desta edição. no trabalho estabelecem uma nova A programação completa do III ordem interacional. Instituto Humanitas Unisinos - IHU Congresso Internacional Lingua- Douglas Maynard, professor e Av. Unisinos, 950 gem e Interação, promovido pelo pesquisador do Departamento de São Leopoldo / RS Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Wis- CEP: 93022-000 Linguística Aplicada da Unisinos, consin, Estados Unidos, fala sobre a pode ser acessada no link http:// Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 interação entre médico e paciente. bit.ly/1QywYEn e-mail: [email protected] Os principais aspectos da conver- A todas e a todos uma boa leitura Diretor: Inácio Neutzling gência entre a Linguística Aplicada e uma ótima semana! Gerente Administrativo: Jacinto e a Neurolinguística é o assunto tra- Schneider ([email protected]) tado na entrevista com Edwiges Mo- Imagem da capa: Wikimedia Commons

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Destaques da Semana

6 Destaques On-Line 8 Linha do Tempo 10 Castor Bartolomé Ruiz: A filosofia como forma de vida (III) 17 Rafael Senra: Fernando Brant, o menino sentinela das esquinas 20 Eli Bartra: Neofeminismo e arte popular na América Latina

Tema de Capa

24 Joaquim Dolz: Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo 28 Xoán Lagares: Políticas linguísticas: formas totalitárias de imposição de regras e interesses 33 Tereza Maher: Valorização das línguas indígenas e multiculturalidade no Brasil 37 Anna Christina Bentes: O jogo discursivo enquanto arma nas lutas de classes 42 Vera Lúcia Paiva: O aprendizado para além dos muros da escola 45 Maria do Carmo Oliveira: A linguagem e a racionalização das emoções no mundo do trabalho 49 Douglas Maynard: A conversa como remédio 3 52 Edwiges Morato: Interface entre Linguística Aplicada e Neurolinguística: complexificando os estudos acerca da linguagem em doenças neurológicas 59 Rafael Vetromille-Castro: O descompasso entre os mundos digital e educacional no ensino de línguas 63 Maria Cecília Pérez de Souza e Silva: A construção de liberdades e capacidades na interação linguística 68 Johannes Wagner: O desafio da aquisição de segunda língua numa sociedade multilíngue

IHU em Revista

72 Agenda de Eventos 73 Maria Inês Azambuja: As mazelas das cidades e as doenças urbanas 77 Publicações 78 Sala de Leitura 79 Retrovisor

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Destaques da Semana DESTAQUES DA SEMANA TEMA DE CAPA

Destaques On-Line Entrevistas publicadas entre os dias 08-06-2015 e 12-06-2015 no sítio do IHU.

Taxação sobre patrimônio e renda. Alternativas ao ajuste fiscal

Entrevista especial com Róber Iturriet Avila, professor da Unisinos e pesquisador da Fundação de Economia e Estatística – FEE Publicada em 12-06-2015 Disponível em http://bit.ly/1cQjDoe O ajuste fiscal e o aumento de alguns tributos, a exemplo da conta de energia, embora seja “controverso”, é consequência das medidas adotadas pelo governo nos últimos três anos. Para entender o que acontece na economia brasileira hoje, é preciso “fazer uma análise olhando um pouco mais atrás”, pontua Róber Avila em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Ao que tudo indica, o “ensaio desenvolvimentista” proposto pelos governos Lula e Dilma “ficou para trás, e a bo- nança passou”. Contudo, os efeitos do baixo crescimento econômico poderiam ser 6 enfrentados de outro modo, caso o Estado brasileiro optasse por tributar a renda, Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br o patrimônio e as grandes fortunas.

Vila Autódromo: desapropriações ocorrem ao largo de processos judiciais

Entrevista especial com Clarissa Pires Naback, graduada e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio Publicada em 11-06-2015 Disponível em http://bit.ly/1GjduvB Há um “nó” na situação jurídica da Vila Autódromo, diz Clarissa Pires Naback, ao analisar as remoções que estão sendo feitas na região desde a década de 1990. De acordo com ela, a área onde está situada a Vila é, segundo a Lei Complementar nº 74 de 2005, uma área “destinada para moradia social”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Clarissa explica que nos anos 1990 a abertura de um processo de regularização fundiária “culminou com a outorga de títulos de concessão real de uso. Além disso, em 2011, a sentença da Ação Civil Pública

que o Município movera em 1993 contra a ocupação do terreno foi parcialmente Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br favorável à comunidade, determinando apenas o reassentamento das casas que se localizavam na Faixa Marginal de Proteção Ambiental”.

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Políticas da Multidão: a luta diária por um mundo melhor e uma vida menos ordinária

Entrevista especial com Adriano Pilatti, doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, com pós-doutorado em Direi- to Público Romano pela Universidade de Roma I – La Sapienza Publicada em 10-06-2015 Disponível em http://bit.ly/1FPdt03 “As grandes e mais positivas mudanças são feitas por quem ousa desobedecer. Nosso futuro depende dos desobedientes”, defende Adriano Pilatti em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. A construção permanente da cidadania é o trabalho silencioso e diário da multidão nas metrópoles. “As políticas da multidão são as lutas pela liberação, são as lutas por direitos. Lutas pelo direito de afirmar

suas subjetividades, seja no sentido de lutar pelo direito de ser quem se é, seja no Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br sentido de lutar pelo direito de tornar-se outro ou outra”, argumenta. Os desafios de ser livre em um espaço-tempo onde as subjetividades parecem ser absorvidas pela estética capitalista dizem respeito às lutas pelo bem “comum”, ou seja, aqueles bens que não pertencem nem ao Estado nem à iniciativa privada.

Redução da maioridade penal? Todos perderemos

Entrevista especial com André Pacheco Teixeira Mendes, doutorando, mestre e bacharel em Direito pela PUC-Rio Publicada em 09-06-2015 Disponível em http://bit.ly/1f73gp7 “Qual dado, número ou estudo demonstra que essa alteração legislativa vai pro- 7 duzir o efeito de redução da violência esperado pela sociedade?”, pergunta André Mendes em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ao comentar o Projeto de Lei – PL que propõe a redução da maioridade penal. A polêmica PEC 171/1993, que sugere a redução da idade penal de 18 para 16 anos, deverá ser votada na Câ- mara dos Deputados no final deste mês. Contrário à aprovação do PL, Mendes lem- bra que, embora a responsabilidade penal inicie aos 18 anos, “a responsabilidade

legal de um jovem que comete crime começa aos 12 anos”. A partir dessa idade, Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br explica, jovens infratores são submetidos a medidas socioeducativas e alguns são privados da liberdade.

As Olimpíadas e as remoções no Rio de Janeiro. Um pacote de imposições draconianas

Entrevista especial com Gerardo Silva, professor adjunto da área de Planeja- mento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC – UFABC Publicada em 08-06-2015 Disponível em http://bit.ly/1IzL3dC “A luta da comunidade da Vila Autódromo é a mais emblemática da resistência popular aos megaeventos”, diz Gerardo Silva à IHU On-Line. De acordo com ele, embora as pessoas vivam na Vila há mais de 40 anos, ela “constitui quase uma obsessão para a prefeitura do Rio de Janeiro desde a década de 90”. Segundo Sil- va, com a realização das Olimpíadas, a pressão aumentou e novas famílias serão removidas. “Marcaram as casas para remoção sem comunicar as pessoas, oferece- ram indenizações irrisórias, prometeram moradias ainda por construir, dividiram a comunidade. Alguns decidiram sair, mas outros ainda resistem, com muita deter- Fonte imagem: www.ihu.unisinos.br minação e coragem, e com o apoio de diversos setores da sociedade civil”, pontua.

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Linha do Tempo A IHU On-Line apresenta seis notícias publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU entre os dias 08-06-2015 e 12-06-2015, relacionadas a assuntos que tiveram repercussão ao longo da semana.

Católicos e Lares brasileiros já Irmã Dorothy poderia evangélicos em têm mais animais que ser a santa padroeira cruzada contra a crianças da próxima encíclica palavra gênero na do Papa Francisco educação “É aconselhado cada vez mais que as famílias de filhos únicos Quando a carta encíclica do Grupos religiosos estão em uma cruzada nas câmaras muni- supram a falta de um irmão ou Papa Francisco sobre o meio cipais brasileiras para evitar que irmã com um animal de estima- ambiente for publicada em 18 a palavra “gênero” passe a fazer ção que pode se tornar o melhor de junho, parecerá óbvio para parte dos planos municipais de amigo e confidente”, escreve a maioria das pessoas quem é o educação, o conjunto de metas santo padroeiro do documento: que as prefeituras terão que Juan Arias, escritor e jornalista, São Francisco de Assis, o grande 8 adotar pelos próximos dez anos e em artigo publicado pelo jornal amante de toda a criação que vi- que estão sendo votadas em vá- El País, 10-06-2015. rios pontos do país neste ano. Em veu nos séculos XII e XIII e cujo Segundo ele, “é positivo que São Paulo, a pressão surtiu efeito famoso “Cântico das Criaturas” e o termo desapareceu, na últi- os lares brasileiros, e mais nes- dá o título ao texto pontifício: ma quarta-feira, das 34 páginas ses momentos nos quais essa ‘Laudato Si’. que estão sendo discutidas desde sociedade sofre de medos e de- 2012. No entanto, Francisco deixou sencantos com seus governantes A pressão repete o que já foi escapar na quinta-feira (11 de que deveriam oferecer seguran- visto no ano passado, durante a junho) uma pista indireta de que ça e confiança, estejam povoa- discussão do Plano Nacional de há um outro forte candidato a Educação, em Brasília, quando dos com os queridos bichos de patrono, alguém muito mais per- o lobby religioso, liderado espe- estimação em vez de armas e to no tempo e que ainda não foi cialmente pelos deputados evan- muros eletrificados. Dessas ar- gélicos, também suprimiu a pala- declarado santo formalmente: a mas e desses muros nunca vai vra do texto final. É apenas mais Irmã Dorothy Stang, missionária um exemplo da mobilização de nascer essa “molécula do amor” americana assassinada no Brasil grupos religiosos para fazer valer que vive no coração desses seres em 2005 ao defender a floresta suas posições nas discussões re- que nos ensinam a difícil virtude amazônica e os direitos dos agri- lacionadas à inclusão e direitos da fidelidade. cultores pobres. humanos no Brasil.

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Francisco aprova Pressão e protestos de Discursos e ações processo de estudantes, deputados pelo clima global responsabilização de e líderes adiam PEC se encaixam em bispos em casos de da maioridade uma “bifurcação da abuso sexual realidade” Relatório foi lido em sessão O Papa Francisco aprovou a tumultuada, que culminou com Muitos elementos levam a pen- proposta de um novo sistema de pessoas feridas e passando mal, sar que o mundo em breve con- responsabilização para os bispos mas não foi votado. Eduardo seguirá chegar a um acordo so- católicos que não lidarem ade- Cunha disse que levará matéria bre o clima. Em uma entrevista quadamente com as denúncias ao plenário dia 30. Parlamenta- recente a vários veículos inter- de abuso sexual cometidos pelo nacionais da mídia, Laurent Fa- res querem mais tempo. clero, naquele que pode ser bius, o ministro francês das Rela- 9 A pressão dos parlamentares um avanço importante em uma ções Exteriores, afirma acreditar contrários à redução da maio- questão que vem atormentando que os países responsáveis por ridade penal, as articulações a Igreja em nível mundial. quase 90% das emissões terão do Executivo com o PSDB para submetido suas propostas de re- Proposto pelo Cardeal Sean apresentação de uma alternati- dução até a 21ª Conferência das O’Malley, de Boston, a pedido va à proposta e os protestos de Partes na Convenção-Quadro das de uma comissão pontifícia que estudantes na Câmara dos De- Nações Unidas sobre Mudança do trata dos casos de abuso sexual putados, na tarde de hoje (10), Clima (CQNUMC), ou COP21, que na Igreja, o sistema dá poderes levaram a votação do relatório deve ser realizada em dezembro para que a Congregação para a da Proposta de Emenda Consti- em Paris. Doutrina da Fé – CDF julgue os tucional (PEC) 171, que trata do bispos “no que diz respeito a cri- Infelizmente, há fortes indí- mes de abuso de poder relacio- tema, a ser adiada para a pró- cios de que essas promessas, nados com abusos de menores”. xima quarta-feira (17). A decisão quaisquer que sejam elas, não Ele também lança um novo de- foi tomada pelos integrantes da serão cumpridas. Ou, pelo me- partamento na CDF que estará comissão especial que analisa a nos, que jamais virarão algo que encarregado de realizar o traba- PEC depois de um pedido de vista possa ter um efeito avaliável so- lho de julgar tais bispos. coletivo feito pelos deputados. bre o clima.

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ARTIGO DA SEMANA A filosofia como forma de vida (III) Do cuidado de si ao deciframento de si

Por Castor Bartolomé Ruiz

cuidado de si filosófico visava capacitar os sujeitos para governar-se e também saber governar corretamente os outros. As práticas éticas “Odo cuidado de si tinham o objetivo político do governo: governo de si e governo dos outros. As práticas de contraconduta propõem formas de vida como resistências às formas de governo ilegítimas ou indesejadas. As contracondutas se inserem na tradição ética do governo de si como resistência a ser governado ou como proposta de governar-se com um novo estilo de vida”, escreve Castor Ruiz1. Castor Bartolomé Ruiz é professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos. É graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Espanha. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Escreveu inúmeras obras, en- tre elas: Os paradoxos do imaginário (São Leopoldo: Unisinos, 2003); Os labirintos do poder. O poder (do) simbólico e os modos de subjetivação (Porto Alegre: Escri- tos, 2004) e As encruzilhadas do humanismo. A subjetividade e alteridade ante os 10 dilemas do poder ético (Petrópolis: Vozes, 2006).

1I de existência através do qual o sujeito pudesse conse- guir uma vida eudaimônica (feliz). Como destacamos em outros textos anteriores, a fi- A possibilidade de criar uma forma de vida além da losofia antiga, ao menos desde Sócrates2 (século 470- pura necessidade biológica diferencia o ser humano 399 a.C.) até Santo Agostinho3 (354-430 d.C.), tinha do resto das espécies animais. Não existe um cami- como objetivo principal ajudar a criar uma forma de nho único nem predefinido para criar uma existência vida diferenciada da mera vida animal ou das puras feliz, o modo de existência tem que ser criado e rein- preocupações da subsistência biológica. O escopo ventado a cada circunstância, daí que tenham sido principal da filosofia era ajudar a construir um estilo propostas diferentes escolas filosóficas com variáveis e divergências. Na diversidade de escolas filosóficas 1 O professor publicou na edição 461 da IHU On-Line, de 23-03- antigas, havia alguns pontos de convergência. Um as- 2015, o artigo A Filosofia como forma de vida, disponível em http:// bit.ly/1KxRiPj. Na edição 466, de 01-06-2015, publicou A Filosofia pecto comum a todas as escolas era a convicção de como forma de vida (II), disponível em http://bit.ly/1IJRiym. (Nota que o sujeito humano deveria construir-se a si mesmo da IHU On-Line) enquanto sujeito. A subjetividade era concebida como 2 Sócrates (470 a.C.–399 a.C.): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. Sócrates não -va uma tarefa a ser criada, produzida, modelada pela lorizava os prazeres dos sentidos, todavia escalava o belo entre as ação do próprio sujeito sobre si mesmo. Neste ponto, maiores virtudes, junto ao bom e ao justo. Dedicava-se ao parto das a ação da subjetividade era assimilada à criação esté- ideias (Maiêutica) dos cidadãos de Atenas. O julgamento e a execução de Sócrates são eventos centrais da obra de Platão (Apologia e Críton). tica do artista. (Nota da IHU On-Line) 3 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, 354-430): bispo, escritor, II – Cuidado de si, uma obra de arte teólogo, filósofo, foi uma das figuras mais importantes no desenvol- vimento do cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado pelo neo- platonismo de Plotino e criou os conceitos de pecado original e guerra A obra de arte, a diferença da mera cópia, é uma justa. Confira a entrevista concedida por Luiz Astorga à edição 421 criação aberta a várias possibilidades de ser. A con- da IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla, disponível em http://bit.ly/ cepção da obra já é sempre uma inovação que o ar- ihuon421. (Nota da IHU On-Line) tista deve fazer, mas o grande desafio acontece na

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execução da mesma. Criar uma obra de arte é um de- losofia como forma de vida sabia que o empenho por safio cujo resultado é imprevisível. De modo similar, o construir um estilo de existência não tinha um ponto sujeito deve pensar sua forma de vida como uma cria- final onde poderia parar, nem um paraíso vital onde ção cujo resultado é imprevisível porque não é uma poderia sentar-se para, simplesmente, desfrutar des- cópia de outros modos de vida. Criar a própria forma sa existência. A filosofia como forma de vida propunha de vida era para a filosofia antiga a melhor e maior que a felicidade almejada era sempre uma conquista obra de arte que cada sujeito pode realizar em sua a ser feita, uma luta permanente por manter o pa- vida. O modo de existência tornava-se uma obra de tamar de excelência (virtude) que alguém poderia arte, com todas as implicações da dimensão estética. atingir no seu modo de vida. Optar por uma forma de Na dimensão estética da existência sobressai a vida vida significava adentrar-se numa condição agônica da como uma forma bela de ser, a dimensão criativa de si existência. A vida filosófica não se limita a sobreviver constitui-se na motivação permanente do agir. biologicamente ou se conforma com suprir as meras necessidades primárias; essa vida deverá criar uma Nesta perspectiva, entende-se melhor porque para forma de existência própria ciente de que haverá de os gregos e romanos a estética era tão relevante nas optar por uma condição agônica. Isso significa que, na diversas esferas da vida social. Não era só porque gos- forma de vida, o sujeito é impulsionado a uma tensão tavam de ornamentar bem as casas ou as cidades. A permanente de si para consigo, uma espécie de vigi- estética cultivada na pintura, arquitetura, escultura, lância de si e de aprimoramento de si permanente. Da música, literatura, teatro era um tênue reflexo da- mesma forma que o atleta para manter seu condicio- quela que era a principal obra de arte que cada sujei- namento físico aprimorado é obrigado a praticar per- to deveria criar: sua forma de vida. manentemente os exercícios, a opção por uma forma de vida bela exige a condição agônica de praticar per- III – O cuidado de si, uma condição manentemente as virtudes essenciais para essa forma agônica de vida. A beleza estética da forma de vida exige a condição agônica da prática da virtude. Ética e esté- Como sabemos, esta prática da filosofia para criar tica estão conexas nesta forma de vida, porém ambas uma forma de vida tinha uma denominação específica encontram-se perpassadas pela tensão agônica. na filosofia antiga, o epiméleia heautoû (cuidado de si). Cada escola filosófica tinha conhecimentos (me- IV – O cuidado de si e askese lhete ), como as concepções metafísicas, cosmológi- 11 cas, lógicas, éticas e políticas, também propunham Um terceiro aspecto comum às diversas escolas filo- exercícios (askese) diferentes através dos quais pre- sóficas no epiméleia heautoû encontra-se no objetivo tendiam conseguir uma forma de vida diferenciada. principal da forma de vida filosófica, que se identifica Porém, todas elas enfatizavam que o objetivo do com a liberdade. O rigor das askeses, a exigência das epiméleia heautoû era ajudar o sujeito a adquirir as práticas de si, a severidade no estilo de existência ti- diversas virtudes (arete) essenciais para criar essa for- nha por objetivo possibilitar que o sujeito aprendesse ma de vida. A virtude era concebida como uma habili- a ser livre. A liberdade era entendida como o resulta- dade boa, diferente do vício que era um hábito mau, do final das práticas de si. Ninguém nascia sabendo ser através da qual o sujeito conseguiria ir dando forma a livre, nem se concebia a liberdade como algo formal sua vida. A virtude já era um trabalho de si sobre si, que todos temos ao nascer por direito – como é con- através da virtude modelava em si mesmo seus sen- cebido nas sociedades modernas –, a liberdade era o timentos, emoções, representações, para conseguir resultado a conseguir na forma de vida. Ser livre sig- obter o tipo de atitudes e hábitos que desejava para o nificava não ser dominado pelos impulsos da natureza estilo de existência a ser atingido. (vícios), nem pela influência dos outros (sociedade). Entre as virtudes, destacava-se o domínio de si Ser livre era o resultado da virtude do domínio de si (enkrateia). Os exercícios (askeses) propostos por (enkrateia) que habilitava o sujeito para conseguir o cada escola filosófica eram diferentes, porém a maio- governo de si. ria caracterizava- se pelo rigor de si, a exigência de si. Muitos deles impunham uma austeridade de vida V – A filosofia e a verdade extrema, caso dos cínicos e estoicos, outros exigiam um alto rigorismo em determinadas práticas de vidas. Michel Foucault4 que pesquisou, entre outros, a filo- Ainda outros demandavam uma severidade no modo sofia como forma de vida na filosofia antiga, assinala de comportar-se em determinadas circunstâncias. 4 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas obras, des- Em geral, todos os exercícios do epiméleia heautoû de a História da Loucura até a História da sexualidade (a qual não eram rigorosos do sujeito para consigo mesmo e exi- pôde completar devido a sua morte) situam-se dentro de uma filosofia giam uma severidade de vida, às vezes extrema, de do conhecimento. Foucault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, tal modo que o sujeito era levado a manter uma per- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 119, de manente atitude agônica de existência. 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 06- 11-2006, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364, de 06-06- O agôn (luta, combate) era a marca do epiméleia 2011, intitulada ‘História da loucura’ e o discurso racional em debate, heautoû. O sujeito que entrava neste caminho da fi- disponível em http://bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo

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que para melhor compreender desde a modernidade antiga a verdade mais importante não era a científica este debate da filosofia como forma de vida seria per- ou a lógica, senão a verdade ética que se tornava uma tinente fazer uma distinção entre os tipos de verdade forma de vida. que operam nestas práticas. A modernidade priorizou um tipo de verdade objetiva, científico-tecnológica VI cujo estatuto de verdade independe da vida do sujeito e também não afeta, em princípio, o modo de vida do Foucault propõe que se decidimos manter esta dis- sujeito. Essa verdade objetiva e externa é a verdade tinção entre as formas de verdade, haveria que de- que hoje se venera como a única verdade e denomina- nominar os conhecimentos das verdades objetivas mos de científica. de ciência ou, talvez, filosofia moderna. Enquanto a Porém, há outras formas de a verdade ser além desta prática da verdade como forma de vida, a verdade verdade objetiva ou científica. Na filosofia como forma como veridição seria uma espiritualidade. Neste caso, de vida coloca-se em jogo outra forma de verdade que a filosofia como forma de vida seria uma forma de -es afeta o sujeito na sua forma de ser e vice-versa, o modo piritualidade cujo estatuto de verdade não é inferior de ser do sujeito está implicado no tipo de verdade que à verdade científica, como prega a modernidade. A es- vive. A verdade da filosofia como forma de vida é uma piritualidade seria uma responsabilidade da filosofia, verdade que se torna verdadeira na medida em que o uma vez que a ética exige as práticas de veridição sujeito a assume como tal para si no seu modo de viver. através das quais se constitui a verdade numa forma Ao aceitar uma verdade, um valor, uma convicção, uma de vida. crença como verdadeira para sujeito, essa verdade se implica no modo de ser do sujeito a tal ponto que ela VII modifica sua vida na medida em que o sujeito tenta vi- ver segundo essa verdade. É uma verdade cuja veraci- As escolas filosóficas antigas estavam convictas que dade se comprova no modo como ela é vivida. São ver- a verdade filosófica era uma forma de veridição, uma dades éticas, que correspondem à ética como forma de forma de vida. Por isso, quando alguém entrava numa vida tal e como era entendida na filosofia antiga. Nesta escola filosófica mudava de vida, optava por criar um relação do sujeito com a verdade, há uma imbricação estilo de existência e ser tornava discípulo. A filosofia entre ambos ao extremo do sujeito constituir-se como moderna entende que a verdade é objetiva e científi- tal através das verdades que pratica criando sua forma ca e ensina a verdade como conhecimento e não como 12 de vida, e a verdade adquire o estatuto de verdadeira veridição ou forma de vida. Por isso, modernamente na medida em que ela é efetivamente praticada como se aprende filosofia e não se vive filosoficamente. Al- uma forma de vida. Uma verdade que é dita mas não é guém que se matricula num curso se torna aluno de praticada se torna um conceito formal, vazio de senti- filosofia e não discípulo de uma forma de vida. Talvez do e por isso sua condição de verdade fica fragilizada, por isso a filosofia moderna cada vez mais está colo- ao extremo de ela não ser uma verdade efetiva na vida nizada pelas verdades objetivas como única forma de do sujeito. verdade. A ética na filosofia antiga era concebida como uma VIII – O cuidado de si e o prática das verdades e não como um tratado de verda- cristianismo des. A esta relação que implica a verdade com a prá- tica de vida do sujeito Foucault denominou de veridi- A questão a respeito de como e quando a filosofia ção. Este neologismo mostra um tipo de verdade que deixou de ter por escopo principal a criação de uma existe na relação com os sujeitos, verdades que são forma de vida, é complexa. Foucault entende que foi vividas como verdadeiras pelos sujeitos, e sem essa na transição moderna para uma racionalidade obje- vivência seu estatuto de verdade perde consistência tiva e instrumental que operou definitivamente esta porque se torna uma verdade formal e vazia. As práti- ruptura, o que ele denominou de “momento cartesia- cas de veridição seriam aquelas em que o sujeito vive no”. Embora, segundo Foucault, a ruptura já ocorreu as verdades e as verdades constituem o modo de ser gradualmente com o predomínio da cultura cristã no do sujeito. Neste caso, a forma de vida se constitui ocidente. Hadot5 por sua vez sustenta que foi na he- através das práticas de veridição, em que as verdades gemonia da teologia cristã sobre a filosofia que esta filosóficas, éticas, são encarnadas pelos sujeitos num modo de existência. Ainda cabe destacar, mais uma 5 Pierre Hadot: filósofo francês, é um dos coautores do livro Dicio- vez, que para a filosofia antiga o resto das verdades nário de ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003. Suas (metafísicas, cosmológicas, físicas, lógicas, etc.) exis- pesquisas concentraram-se primeiramente nas relações entre helenis- mo e cristianismo, em seguida, na mística neoplatônica e na filosofia tiam em função das práticas de veridição ou da cons- da época helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição tituição ética de uma forma de vida. Para a filosofia geral do fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em português pode ser lido o livro de sua autoria O que é a filosofia antiga? (São biopolítico da vida humana, de 13-09-2010, disponível em http:// Paulo: Loyola, 1999). Para uma resenha da obra confira a revista Sín- bit.ly/ihuon343, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida tese 75 (1996), p. 547-551. A resenha do original francês é de Henrique nua. Um debate, disponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda C. de Lima Vaz. Por sua vez, em português foi publicado, em novem- a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, disponível em bro dr 2014, o seu livro Exercícios Espirituais e Filosofia Anti- http://bit.ly/ihuem13, Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line) ga, por É Realizações Editora. (Nota da IHU On-Line)

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cedeu para aquela a tarefa de construir uma forma de 224), Hipólito de Roma9 (170-236), Ireneu de Lyon10 vida, ficando para a filosofia a especulação racional (século II-202), Agostinho de Hipona11 (354-430), etc. dos conceitos. Cabe então perguntar-se qual a relação foram filósofos ou formados em escolas filosóficas. Ao entre o cristianismo e a filosofia como forma de vida? construírem o discurso teológico cristão verteram nele Como ocorreu essa relação? os problemas e as categorias filosóficas das escolas e modelaram o estilo de vida das nascentes instituições O cristianismo, como toda religião, produz um dis- cristãs a partir da forma de vida dessas escolas filosó- curso cujas verdades criam uma forma de vida. Qual- ficas. Como resultado dessa simbiose, encontramos, a quer religião tem por objetivo criar formas de vida partir do século III, um cristianismo perpassado, cada acordes com as convicções e valores nela propostos. vez mais, pela filosofia greco-romana. No caso do cristianismo, talvez sejam relevantes al- guns esclarecimentos que por óbvio às vezes não se levam em conta. Na origem do cristianismo, ou seja, IX na pregação e vida de Jesus e seus discípulos, assim como nas primeiras décadas das primeiras comunida- Contudo, não foram os teólogos cristãos os primeiros des cristãs, existia pouca influência da filosofia grega a cruzar a filosofia com a teologia bíblica nem com a ou, se quisermos, uma influência muito diluída que se ética do cuidado de si. Entre os antecedentes pré-cris- 12 aprecia mais no chamado quarto evangelho, ou evan- tãos há que mencionar o filósofo Filon de Alexandria gelho de João, e nos escritos de São Paulo. Nos escri- (20 a.C. a 50 d.C.), que criou uma escola filosófica em tos do Novo Testamento prevalece a matriz semita e a Alexandria direcionada a ensinar o epiméleia heautoû, tradição bíblica das sinagogas. que ele denominou de escola dos Terapeutas. Nesse momento histórico, Alexandria era a cidade cultural e Os ensinamentos, discursos e verdades contidos nos comercial mais importante do mediterrâneo, inclusi- Evangelhos e no conjunto dos livros bíblicos se desen- ve mais influente que Roma, lembremo-nos da famosa volveram na matriz da cultura oriental semita, com biblioteca de Alexandria. Filon era judeu e na escola maior influência da cultura persa, egípcia e babilô- filosófica seguiu, predominantemente, os princípios nica, entre outras, e difusa influência da cultura gre- neoplatônicos com influências estoicas e cínicas. Em ga nos denominados escritos sapienciais. Dado que a suas obras, Filon tentou, por exemplo, uma releitura expansão das comunidades cristãs aconteceu em sua do Deus bíblico como Logos platônico. Também propôs maioria pelas cidades do império romano, onde pre- uma filosofia como forma de vida, para tanto ensinava dominava a cultura grega, a filosofia foi penetrando na a prática do epiméleia heautoû como cura da alma. 13 elaboração teológica do discurso cristão por influência Na sua escola se praticava a filosofia como “terapia de cultural natural. Muitos cristãos gregos tinham se for- vida” e os que a frequentavam se autodenominavam mado nas escolas filosóficas antes de serem cristãos. terapeutas. Eles praticavam a therapeutiké, assim Já no século II e principalmente a partir do século III como os médicos a iatrike. Uma obra de Filon que encontramos a teologia cristã permeada pelas catego- teve grande influência na época e posteriormente foi rias das escolas filosóficas, ao extremo de que muitos De vita contemplativa. filósofos se tornaram cristãos por perceberem no cris- tianismo uma culminação da própria filosofia. foi um prolífico escritor cristão, de grande erudição, ligado à Escola De fato, quase todos os chamados Padres da Igreja, Catequética de Alexandria. (Nota da IHU On-Line) como Clemente de Alexandria6 (185-254), Tertuliano 9 Hipólito de Roma (160-235 d.C.): grande teólogo romano, de Cartago7 (160-220), Orígenes de Alexandria8 (185- presbítero e defensor extremado da fé católica. Fez oposição acirrada ao papa Zeferino, que na sua opinião não estava suficientemente preparado para detectar e denunciar as heresias que atentavam contra a Igreja de Roma. Hoje é venerado como santo. (Nota da IHU 6 Clemente de Alexandria (ou Tito Flávio Clemente): escritor, On-Line) teólogo, apologista cristão grego nascido em Atenas. Pesquisou as 10 Ireneu de Lyon, ou Ireneu de Lião (130-202 d.C.): padre da igreja, lendas menos compatíveis com os valores cristãos. Sua abertura a teólogo e escritor cristão, é considerado santo pelas igrejas Católica fontes familiares aos não cristãos ajudou a tornar o cristianismo mais Romana e Ortodoxa. Seu dia é comemorado, pela primeira, em 28 de aceitável para muitos deles. Clemente foi um erudito numa época junho, e pela segunda em 23 de agosto. (Nota da IHU On-Line) em que os cristãos eram geralmente pouco letrados e abertamente 11 Santo Agostinho (Aurélio Agostinho, 354-430): bispo, hostis a intelectuais. Não obstante, foi capaz de construir argumentos escritor, teólogo, filósofo foi uma das figuras mais importantes no lógicos convincentes, baseados nas escrituras e na filosofia, a favor desenvolvimento do cristianismo no Ocidente. Ele foi influenciado do cristianismo e contra os gnósticos de Valentim, que, baseados em pelo neoplatonismo de Plotino e criou os conceitos de pecado original Alexandria – o mais importante centro de atividade intelectual da e guerra justa. Confira a entrevista concedida por Luiz Astorga à época – estavam em plena expansão. (Nota da IHU On-Line) edição 421 da IHU On-Line, de 04-06-2013, intitulada A disputatio de 7 Tertuliano: foi um prolífico autor das primeiras fases do Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla, disponível em http://bit. Cristianismo, nascido em Cartago na província romana da África. Foi ly/ihuon421. (Nota da IHU On-Line) o primeiro autor cristão a produzir uma obra literária (corpus) em 12 Fílon de Alexandria: filósofo judeu-helenista que viveu durante latim. Ele também foi um notável apologista cristão e um polemista o período do helenismo. Tentou uma interpretação do Antigo contra a heresia. Embora conservador, organizou e avançou a nova Testamento à luz das categorias elaboradas pela filosofia grega e da teologia da Igreja antiga. Ele é talvez mais famoso por ser o autor mais alegoria. Foi autor de numerosas obras filosóficas e históricas, onde antigo cuja obra sobreviveu a utilizar o termo “Trindade” (em latim: expôs a sua visão platônica do judaísmo. Surge como o primeiro Trinitas). (Nota da IHU On-Line) pensador a tentar conciliar o conteúdo bíblico à tradição filosófica 8 Orígenes de Alexandria ou Orígenes, o Cristão (185-253): foi ocidental. Neste sentido, é mais conhecido por sua doutrina do um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos Padres gregos. logos, sobre a qual ainda se encontram à espera de solução inúmeras Um dos mais distintos pupilos de Amônio de Alexandria, Orígenes controvérsias. (Nota da IHU On-Line)

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Um exemplo ilustrativo dos processos de transferên- cias e rupturas significativas nas práticas filosóficas do cia das técnicas filosóficas do cuidado de si para as epiméleia heautoû. Inicialmente percebe-se como a técnicas da espiritualidade cristã encontra-se no pa- grande maioria das askeses praticadas pelas escolas ralelismo quase literal que existe entre a obra de Filon filosóficas foi assumida por muitos grupos cristãos, em de Alexandria, De fuga et inventione (Sobre a fuga e especial pelo monacato e posteriormente passaram a o achado) e a obra de Ambrosio13 (340-397) intitulada ser parte da formação do clero e da vida religiosa. A De fuga saeculi (Sobre a fuga do mundo secular). Fílon espiritualidade cristã adotou muitas das técnicas utili- analisa a noção de fuga em um midrash judaico de Nm zadas pelas escolas filosóficas, entre elas os exercícios 35, 11-4 com categorias filosóficas. A fuga de Jacó o espirituais, a meditatio, o retiro, o aconselhamento, conduz a uma atividade ascética e à procura de refú- a austeridade de vida, o controle de si, a direção de gio ou exílio. Fílon enumera cinco tipos de cidades- consciência, etc. -exílio que coincidem com seis potências divinas. O Embora houvesse uma grande influência da filosofia logos ou palavra divina é a primeira cidade ou me- como forma de vida, especificamente do epiméleia trópole da qual derivam as outras. Ambrósio escreveu heautoû, na espiritualidade cristã posterior ao sé- sua obra De fuga saeculi sem esconder que era uma culo III, também houve rupturas significativas. Para- espécie de plágio da obra de Fílon, desde o título até doxalmente estas rupturas vieram provocadas pelo a divisão da obra. Ambrósio apresenta os princípios dualismo antropológico e cosmológico que se conso- do ascetismo cristão como fuga do mundo e na enu- lidou na teologia cristã destes séculos. As influências meração dessa fuga retoma literalmente os passos de platônicas, gnósticas e até maniqueístas sedimenta- Fílon adaptando-os à teologia cristã. O tema da fuga ram uma visão dual do ser humano com uma alma constituir-se-á num dos elementos discursivos centrais presa no corpo e o espírito contraposto ao mundo. do monacato cristão e sua ascética ou forma de vida. O dualismo antropológico e cosmológico herdado do É conveniente lembrar e ressaltar a importância de platonismo, do gnosticismo, do maniqueísmo se con- Ambrósio na consolidação do discurso cristão do sécu- taminou com uma determinada noção de pecado e lo IV. Foi formado nas escolas filosóficas de Roma, es- tornou o corpo, o mundo e a matéria algo negativo e tudando literatura, direito e retórica. Conhecia muito fonte de tentação. bem o grego, o que lhe permitiu ler e traduzir para Uma antropologia e cosmologia dualistas origina- o latim as obras de vários filósofos, entre eles as de ram uma teologia cristã bipolar. A visão dualista foi 14 Fílon de Alexandria. Antes de ser cristão, e seguindo crescendo no cristianismo até tornar-se hegemônica a tradição da família nobre romana a que pertencia, no século V. Ela se consolidará e ampliará ao lon- ocupou vários cargos políticos muito relevantes no go da chamada Idade Média com as influências das império romano (prefeito consular e governador da culturas dos povos germânicos que suplantaram o Ligúria) o que lhe deu grande conhecimento e influên- império romano. Estes povos apagaram o conceito cia da corte imperial. Não era sequer cristão quando de cidadania grego e de república romana, anu- numa assembleia da Igreja de Milão, capital na época lando o sentido da liberdade desenvolvido nestes da Ligúria 14, foi aclamado para que se tornasse bispo. contextos. No seu lugar, impuseram uma forma de Sua eloquência e influência discursiva ficou registrada sociedade estamental na qual o valor principal era na época em muitas anedotas, entre elas aquela que a obediência e seu modelo de subjetivação era o Agostinho de Hipona, que era um filósofo neoplatônico súdito. Lembrando que a queda de Roma ocorreu com grandes influênciasmaniqueas , ao escutá-lo falar em 476 d.C., perceberemos a influência histórica na Igreja de Milão decidiu tornar-se cristão. subsequente da cultura dos povos germânicos no cristianismo já romanizado. Um exemplo dessa in- X fluência encontra-se no paralelismo do sentido da obediência na lex Visigothorum (lei dos visigodos) e O processo de imbricação da filosofia na teologia o modo como a obediência é exaltada nos escritos cristã a partir do século III provocou algumas influên- cristãos da época.

13 Aurélio Ambrósio: mais conhecido como Ambrósio, foi arcebispo Se não partimos do princípio de que toda religião de Mediolano (moderna Milão) que se tornou um dos mais influentes é intrinsecamente negativa ou que perverte a condi- membros do clero no século IV. Ele era prefeito consular da Ligúria e ção humana, como sustentam várias posições filosó- Emília, cuja capital era Mediolano, antes de tornar-se bispo da cidade ficas contemporâneas, a análise crítica de qualquer por aclamação popular em 374. Ambrósio era um fervoroso adversário do arianismo. Tradicionalmente atribui-se a Ambrósio a promoção prática religiosa deverá contextualizar-se no tempo do canto antifonal, um estilo no qual um lado do coro responde de e no espaço de determinadas práticas e discursos e forma alternada ao canto do outro, e também a composição do Veni no momento histórico que acontecem, sob pena de redemptor gentium, um hino natalino. É um dos quatro doutores da Igreja originais e é notável por sua influência sobre o pensamento de cairmos num juízo universal genérico dessa religião. Santo Agostinho. (Nota da IHU On-Line) O cristianismo, como todas as práticas religiosas (Is- 14 Ligúria: região do noroeste da Itália com 1,7 milhão de habitantes lamismo, Espiritismo, Budismo, Judaísmo, Animismo) e 5 410 km², cuja capital é Gênova. Tem limites ao sul com o mar é um fenômeno complexo e plural cuja compreensão Lígure a oeste com a França, a norte com o Piemonte e com a Emília- Romanha, e a leste com a Toscana. É uma região de grande apelo crítica, na perspectiva filosófica, deve levar em con- turístico pelas suas belezas naturais. (Nota da IHU On-Line) ta suas práticas concretas nos tempos e espaços que

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acontecem. Não caberia fazer um julgamento genera- e o que devemos fazer com elas e por elas. Utiliza a lizado do cristianismo, ou de qualquer outra religião, metáfora do cambista que examina as moedas que lhe a partir de uma determinada prática e época, por trazem e aceita ou não trocar por outras em função muito que tenha sido hegemônica durante séculos. A da qualidade, de igual forma deveremos fazer com as rigor, qualquer religião se modifica no tempo e nos representações que nos invadem. contextos históricos, o que nos impede de formular Cassiano não está preocupado com analisar a na- um juízo totalizante. tureza da representação, como faziam os estoicos, o No caso que nos ocupa, encontramos uma pluralida- intuito da meditação que propõe é decifrar o grau de de de práticas cristãs, às vezes divergentes e contrá- pureza da própria representação, colocando sob sus- rias entre si, que se confrontam abertamente dentro peita ao sujeito que tem as representações. Por que do mesmo marco eclesial do denominado cristianismo. tem essas representações? De onde vêm? Quem as pro- Essas práticas diferentes podem ser minoritárias, mas voca? Vêm de Deus ou do demônio? não por isso estão destituídas de verdades significati- vas; elas podem acontecer nas periferias ou no centro Na antropologia dualista, o sujeito não mais se per- do próprio espaço eclesial, mas suas verdades têm tence no domínio de sua natureza, agora a sua na- ecos diferentes nos seus contextos históricos e devem tureza está decaída, contaminada e pecaminosa. Sua ser analisadas pelos efeitos produzidos nos sujeitos e vontade é também uma vontade caída, enfraquecida sociedades. pelas tentações da matéria, do mundo e o corpo. A condição de natureza decaída introduz a desconfian- XI – O deciframento de si ça de si, que se torna o primeiro princípio através do qual se desloca as práticas do cuidado de si para um No marco deste discurso dualista e das novas influ- deciframento da natureza de si. ências culturais posteriores ao século III d.C., a prá- O discurso dualista, hegemônico no cristianismo tica filosófica do epiméleia heautoû sofreu uma rup- medieval, utiliza as mesmas técnicas das práticas do tura provocada por uma determinada teologia cristã, cuidado de si, porém com desvios importantes. No produzindo o que Foucault denominou a prática do epiméleia heautoû greco-romana as askeses têm por deciframento de si. O objetivo inicial da epiméleia objetivo que o sujeito adquira o domínio de si (enkra- heautoû era conseguir o domínio de si para atingir teia) como meio para fortalecer a sua vontade e capa- uma liberdade de si, porém a ruptura provocada pelo cidade de ser livre; isso será possível através do domí- 15 cristianismo medieval introduziu a suspeita como mé- nio dos impulsos viciosos da natureza ou as influências todo através do qual o sujeito tinha que lidar consigo negativas da sociedade. O deslocamento de sentido mesmo. Numa visão dualista, o problema do cuidado das técnicas do cuidado de si provocou uma outra rup- de si se transfere para o deciframento dos desejos. O tura. O deciframento de si não tem por objetivo um sujeito deve decifrar se aquilo que deseja como forma domínio de si para propiciar a autonomia do sujeito, de vida é de Deus ou do diabo, é uma graça ou uma ele persegue a repressão daquela parte decaída e má tentação. da natureza humana que existe dentro de nós que a No contexto de uma antropologia dualista as prá- considera intrinsecamente corrompida. O domínio é ticas de si são deslocadas para aprender a decifrar transformado em repressão dos instintos em negação os desejos interiores do sujeito, procurando sua na- dos desejos da natureza que forem considerados im- tureza íntima, sua bondade ou maldade intrínseca. puros ou constitutivamente maus. Por exemplo, nos exercícios da meditação estoica se O deciframento de si estimula uma repressão em ensinava a compreender o valor das representações grande escala de todos os elementos da natureza para, relativizando-as em seus significados, perce- humana contaminados pelo pecado original ou per- ber a banalidade das coisas que nos afetam. Com vertidos em si mesmos. A caracterização da natureza isso se almejava atingir um grau de autonomia do su- decaída identificou alguns elementos centrais dessa jeito frente aos acontecimentos que o atingiam. Já perversão natural, entre eles, o corpo, a sexualida- nos exercícios propostos, por exemplo, pelo monge de, a noção de prazer, o mundo em sua totalidade. Cassiano (360-435, fundador do monacato na Europa De alguma forma, tudo o que tinha uma conotação ocidental)15, desloca-se o problema do conteúdo das material era percebido pelo viés neoplatônico de representações para a sua origem na psique. Cassiano forma inferior que, além disso, se tornaram teolo- inclusive utiliza nas suas reflexões metáforas comuns gicamente impuros. Neste deslocamento vemos se ao estoicismo recomendando estar sempre vigilantes mesclarem os vícios clássicos (ira, inveja, cobiça, sobre as imagens que se nos oferecem às representa- luxúria, ambição, etc.) com a noção de natureza ções para decidirmos quais devem ficar dentro de nós decaída. Na encruzilhada dessa natureza pervertida 15 João Cassiano (monge Cassiano): teólogo cristão, do período encontra-se um sujeito que não mais se pertence en- patrístico, monge de Marselha na atual França. Foi o principal teólogo quanto sujeito, encontrando-se radicalmente fragili- da controvérsia semipelagiana e fundador do monasticismo ocidental. Reconhecido como um monge crítico e um dos padres do deserto. zado pelo pecado e à mercê de forças externas que (Nota da IHU On-Line) podem lhe dominar.

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XII Idade Média e nos Estados aristocráticos. Seria muita presunção atribuir ao cristianismo o poder exclusivo O sujeito vê-se confrontado com o deciframento de de modelar estas formas de poder, já que existem si como única alternativa para entender a origem dos outros fatores. Encontramos uma imbricação inte- seus desejos numa natureza que está radicalmente ressada de ambas as práticas – a religião cristã, o decaída e por isso facilmente pode lhe levar ao en- modelo estamental da soberania –, que propicia uma gano de si. Outra ruptura que o deciframento de si densificação da obediência como valor social e uma provocou foi na relação do discípulo com o mestre. legitimação do paradigma do súdito como ideal de Antes, na epiméleia heautoû filosófica, o aconselha- vida. mento do mestre visava ao amadurecimento como autonomia do discípulo, no deciframento de si o discí- XV – As contracondutas como pulo estará perenemente sujeito a um mestre que lhe formas de vida deverá dizer o que é verdadeiro e o que está errado. O aconselhamento transforma-se na direção da conduta Há que destacar que houve outras práticas de re- dos outros. sistência em ambos os espaços, social e eclesial. Ao longo dos séculos surgiram diversos movimentos de XIII contestação social e de renovação religiosa. Estas re- sistências aconteceram nos diversos períodos e em vá- No deciframento de si o discípulo se torna depen- rios âmbitos. Foucault denominou a estes movimentos dente do mestre. Nesta relação opera-se uma outra de “contracondutas”, porque todos eles tinham em ruptura, já que no epiméleia heautoû filosófico al- comum a resistência a serem conduzidos de modo ser- mejava-se a liberdade, enquanto no deciframento de vil, opunham resistência ao modelo de subjetivação si aspira-se à obediência. A obediência se tornará a do súdito e questionavam a preeminência da obediên- grande virtude do deciframento de si. As askeses que cia submissa. antes contribuíam para criar um domínio de si livre, Há uma estreita relação entre epiméleia heautoû e agora produzem uma obediência firme. A obediência a prática do governo. O cuidado de si filosófico visa- será mais virtuosa quanto mais cega e submissa se va capacitar os sujeitos para governar-se e também mostre. A obediência será a virtude que evitará que o saber governar corretamente os outros. As práticas discípulo caia no erro da tentação. Obedecendo sem- éticas do cuidado de si tinham o objetivo político 16 pre ao mestre e ao superior, àquele que sabe mais, há do governo: governo de si e governo dos outros. As uma garantia maior de que a alma não será enganada práticas de contraconduta propõem formas de vida pelo tentador nem induzida pela tentação. como resistências às formas de governo ilegítimas ou indesejadas. As contracondutas se inserem na tradi- XIV ção ética do governo de si como resistência a ser governado ou como proposta de governar-se com um O deciframento de si operou uma quinta ruptura ao novo estilo de vida. modificar substancialmente o modelo de subjetiva- Foram muitos os movimentos de contraconduta ção. As askeses filosóficas eram tão rigorosas quanto que ocorreram ao longo dos séculos do cristianismo poderiam ser as práticas do cristianismo medieval, po- medieval, entre eles tiveram um destaque histórico rém aquelas visavam à liberdade do sujeito ajudando- os movimentos dos séculos XII e XIII, que combinaram -o a construir uma vida feliz (eudaimonia), enquanto a insurgência social contra as condições de extrema estas reforçavam o espírito de obediência e submissão miséria com a renovação teológica de novas formas na passagem deste mundo que não tem sentido em si de vida cristã. O franciscanismo é um exemplo pa- mesmo. A prática do epiméleia heautoû visava à cria- radigmático de movimento de contraconduta que, ção da subjetividade do cidadão, um cidadão que na no século XIII, propõe a criação de uma forma de fase socrática definia livremente o destino da pólis e vida própria que, renunciando a toda propriedade, na fase helenística era cosmopolita e republicano. O estabelece-se uma relação de uso com as coisas; com deciframento de si, ao incentivar a prática da obe- isso, diferenciava-se do modelo aristocrático esta- diência submissa, produz como modelo de subjetiva- mental da sociedade e confrontava-se com a hierar- ção o súdito. O ideal de subjetivação no deciframento quia enriquecida da Igreja. de si é a submissão irrestrita, nela o sujeito se torna virtuoso ao anular sua vontade de decidir, e decidir A filosofia como forma de vida sofreu rupturas segundo a vontade de seu superior ou mestre. Este significativas na sua inserção no modelo do cristia- nismo medieval. Ela continuou a existir, predomi- modelo de subjetivação constituiu a base social da nantemente, numa prática do deciframento de si. servidão consentida durante toda Idade Média. Embora o deciframento de si fosse uma prática do- A submissão obediente ou a obediência submissa minante nas instituições cristãs deste período, não se tornará a grande virtude social até o pensamento era a única prática herdeira da tradição filosófica do crítico moderno. A obediência foi o valor ideológico cuidado de si, as práticas de contraconduta são um por excelência do modelo estamental de poder na exemplo disso.

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ARTIGO DA SEMANA Fernando Brant, o menino sentinela das esquinas

Por Rafael Senra

e Fernando Brant era um alquimista da pedra filosofal da mineirida- de, ele encontraria nos vestígios moleculares dessa rocha algumas “Sverdades fundamentais. Ali, ele pôde ler que um amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves. Ou que o medo de amar é o medo de ser livre”, escreve Rafael Senra, recordando “a “travessia” final desse ser humano cuja obra é tão importante para tanta gente”. Rafael Senra é autor do livro Dois lados da mesma viagem. A mineiridade e o Clube da Esquina, publicado pela Editora Bartlebee. O livro é baseado na sua dissertação de mestrado, onde discute a influência das tradições mineiras nas canções de e do Clube da Esquina. Eis o artigo. “Morte vela sentinela sou / do corpo desse meu irmão que já se vai/ Revejo nessa hora tudo que ocorreu / memória não morrerá”. 17

Diante da perda de Fernando Brant, autor de algu- Ainda no início do Clube da Esquina, um jovem mas das mais emblemáticas canções do Clube da Es- Fernando Brant já se atentou para o fato de que a quina, me vem à mente uma de suas mais belas letras, memória não é apenas algo estanque, cristalizada “Sentinela”, e que uso aqui como metáfora para pen- em livros de história e bustos de generais. Um dos sar a relevância e a perenidade do que ele e sua obra mais fecundos legados da memória da humanidade significam para a música popular brasileira. está na oralidade, nas histórias passadas de geração “Sentinela” foi talvez a primeira letra em todo o em geração oralmente. Tanto é que mesmo culturas lastro de canções do Clube a assumir um viés memo- que não se amparam tanto na escrita quanto outras rialista. De acordo com Brant: culturas ditas “civilizadas” tem também seu lastro “Sentinela” foi uma viagem imaginária, onde apro- de memória. veitei uma referência pessoal para falar também da realidade política brasileira daquele momento, final Um narrador de esquinas dos anos 1960. A letra é um pouco anterior ao AI-5. Em princípio, eu tinha falado com o Bituca que iria fazer Dentro do Clube da Esquina, acredito que as letras uma homenagem ao Seu Francisco, que servia café lá de Brant foram as que mais se propuseram ao dever no Juizado de Menores, onde eu trabalhava. Para mim de erigir mitos e documentos de seu universo (Minas o Seu Francisco era um tipo de pessoa que significava Gerais). Ele acabou por encarnar o mesmo arquétipo um monte de coisas, um sábio. Era um cara do povo de “narrador” que enxergara em Seu Francisco, per- que estava vivo e forte, mas imaginei a história dele sonagem principal de “Sentinela”. mais para frente, o dia de sua morte, o velório, e o que aquilo representava para mim. (…) Mas por isso Através do suporte da letra de canção popular, Brant mesmo, por ele ser esse irmão querido, eu tinha que se propôs a legar para as futuras gerações uma série continuar, ser fiel à memória dele (BRANT. Apud: VILA- de dados culturais de que não poderiam RA, 2006, p.67). se perder no tempo.

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Essa figura do narrador foi muito bem descrita Diversas letras de Brant funcionam como rochas líri- por Walter Benjamin, em seu ensaio Experiência e cas que guardam estes monumentos perdidos da iden- Pobreza: tidade mineira. Em Beco do Mota, ele fala de uma “Sabia-se exatamente o significado da experiência: rua boêmia de Diamantina, e utiliza o fim dessa zona ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma como metáfora para a repressão da ditadura. concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; Em Aqui Óh, ele fala dos nostálgicos “namorinhos de de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histó- portão”, ao mesmo tempo em que discute também o rias; muitas vezes com narrativas de países longín- caráter desconfiado e esquivo dos mineiros. quos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas Em Nos Bailes da Vida, podemos sentir toda a emo- que saibam contar histórias como elas devem ser con- ção e a sinestesia da sofrida vida dos músicos que tadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão durá- cumprem sua vocação, mesmo em condições pouco veis que possam ser transmitidas como um anel, de glamorosas. geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com Em Ponta de Areia, ele transforma em letra de can- a juventude invocando sua experiência?” (BENJAMIN, ção uma matéria que fez quando era repórter da re- 1993, p.114). vista O Cruzeiro, sobre uma linha de trem que ligava os estados de Minas Gerais e Bahia. Em todo o cir- Documentos poéticos cuito percorrido pelo trem, ele elenca diversos tra- ços culturais que ameaçavam se perder em meio ao Em 2008, quando entrei no mestrado em letras dis- propósito militar (a começar pelo próprio transporte posto a pesquisar as canções do Clube da Esquina, en- ferroviário). contrei nas letras de Brant toda a profundidade que eu precisava. Como o mestrado da UFSJ se pautava Em Maria Maria, ele nos mostra a doída beleza da pelo campo teórico conhecido como Estudos Culturais mulher humilde, da face feminina de um Brasil traba- – que tratam de temas relacionados a memória, iden- lhador, maternal, forjado na simplicidade. tidade, colonialismo, multiculturalismo, gêneros, etc. 18 – , pude assim encontrar um viés bem adequado com a Um sentinela no interior do Clube metodologia que iria aplicar. Se fizermos um recorte das letras escritas por Fer- É importante aqui pensar no que significa as letras nando Brant, diversas delas apresentam um aspecto de Fernando Brant dentro do Clube da Esquina. Se pe- de narrativa, e, mesmo quando tratam de utopia, garmos o movimento como um todo, é possível notar sempre partem do real (passado ou presente). Essa um enfoque mais introspectivo da lírica geral. Há sem- veia de “documentarista-poético” dos contextos vivi- pre um eu-lírico em primeira pessoa, que observa não dos ou ouvidos guarda uma relação com o papel de um só os fenômenos a seu redor, mas também narra seus diretor de cinema, como nos relata o próprio Brant: próprios devaneios e utopias. As letras de Márcio Bor- “Lembro-me que toda vez que saía de casa para ir a ges, Ronaldo Bastos, Murilo Antunes e outros se bene- Biblioteca Pública, na praça da Liberdade, eu descia a ficiam bastante desse tipo de perspectiva. São fluidas, Aimorés e subia a Brasil fazendo filmes, enquadrando subjetivas, misteriosas. tudo o que via. Meus olhos eram uma câmera. Na ver- O estilo de Brant guarda algumas diferenças com dade, eu não tinha olhos, carregava o tempo todo uma seus parceiros. É essa diversidade de panoramas câmera no rosto (BRANT, Fernando. In: VILARA, Paulo. (apesar de um ângulo lírico comum) que sedimentou Op.cit. pág.37). a assinatura e a glória do Clube da Esquina. Porém, Guardião da memória enquanto os outros letristas caminhavam de olho em nuvens ciganas, nascentes, ou mesmo girassóis da cor O caminho estético que marcou Fernando Brant de cabelos, Brant mantinha o foco no chão. no Clube da Esquina teve similares na literatura. De Arriscando aqui um exercício metafórico, se eu fos- acordo com Wander Melo Miranda, diversos escritores de Minas Gerais – como Carlos Drummond de Andra- se compor a paisagem lírica do Clube da Esquina, pen- de, Murilo Mendes ou Pedro Nava – produziram textos saria em Ronaldo Bastos como o vento, Márcio Borges memorialistas no período da ditadura militar. Sua in- como a água, e Fernando Brant como a pedra (não tenção era a de evidenciar alguns traços valiosos da a toa, seu nome completo é Fernando Rocha Brant). cultura que ameaçavam ser extintos através do proje- É este último o mais atento na dimensão palpável e to modernizador dos militares. concreta do seu entorno.

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Pedra mineira No alto de tudo que aquele homem representa para a cultura brasileira, fiquei muito honrado e admira- Remetendo a Drummond, a letra de “Itamarandiba” do de perceber que ele se encontrava aberto para (do disco de Milton Nascimento Sentinela (1980), diz: comungar seu saber com um jovem pesquisador que “No meio do meu caminho / sempre haverá uma pedra lançava seu primeiro livro. A coerência entre a vida / Plantarei a minha casa / numa cidade de pedra”. e a obra de Brant é um valioso ensinamento que levo Ao buscar guardar a memória de Minas Gerais atra- comigo. vés das letras, Brant empreendeu um mergulho radi- cal na própria essência desse alicerce cultural. Nesse O menino movimento, creio que ele acabou se deparando com o universo da infância, com os valores primordiais da Em 2004, falecia o escritor mineiro Fernando Sabi- criança, sempre abertas para a amizade e o amor. no, que deixara instruções para o epitáfio escrito em sua lápide: “Aqui jaz , que nasceu ho- O próprio ethos do Clube da Esquina, já a partir do mem e morreu menino”. Dentre as coincidências que nome do movimento, trata exatamente desse encon- ligam os Fernandos Sabino e Brant (ambos mineiros, tro descompromissado da juventude, dessa amizade artistas, e morreram de câncer de fígado), há também que não pede nada em troca, que apenas celebra a o olhar especial para a infância em suas obras. vida de maneira pura e jovial. Porém, diferente de Sabino, que alega ter rejuvene- Se Fernando Brant era um alquimista da pedra fi- cido ao longo de toda a vida (para então constatar sua losofal da mineiridade, ele encontraria nos vestígios “meninice” apenas nos anos derradeiros), acho que moleculares dessa rocha algumas verdades fundamen- Fernando Brant nunca deixou de preservar seu feitio tais. Ali, ele pôde ler que um amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves. Ou que o medo de de criança, no melhor sentido do termo. amar é o medo de ser livre. Desde a primeira vez em que bati o olho numa foto do compositor do Clube da Esquina, pensei comigo O Brant que conheci que ele tinha cara de menino. Diversas letras suas tra- tam do universo infantil: Bola de Meia, Bola de Gude Pude perceber, no breve contato pessoal que tive é, talvez, a mais famosa delas. 19 com Fernando Brant, que seu compromisso com a ami- zade era não só um pressuposto de estilo de escrita, Em entrevista ao jornalista Paulo Vilara, Brant dis- mas também uma ética de vida. sertou sobre a importância de se observar com os olhos da criança que foi. Para ele, o adulto deveria Entrei em contato com ele em meados de 2010, depois de saber que ele se interessou em ler minha honrar a criança que foi um dia. dissertação de mestrado. Ao enviar meu trabalho, Nesse momento de tristeza, quando nos deparamos perguntei se ele teria disponibilidade e interesse em com a “travessia” final desse ser humano cuja obra redigir um prefácio para um futuro livro que eu cogi- é tão importante para tanta gente, acredito que seu tava publicar. objetivo se cumpriu de maneira exemplar. Os que fi- Ele não só escreveu um texto fantástico para o livro, cam são capazes de enxergar na figura de Fernando como compareceu pessoalmente ao lançamento, que Brant a criança, e também o sentinela. Diante desse aconteceria em 2013. Foi uma surpresa vê-lo entrar nosso irmão que que já se vai, revemos nessa hora na Livraria Quixote, em BH, com seu jeito discreto e tudo que ocorreu, com a certeza de que a memória simples. não morrerá.

Referências —— BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. —— VILARA, Paulo. Palavras Musicais – Letras, processo de criação, visão de mundo de 4 com- positores brasileiros: Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes, Chico Amaral. : S.ed., 2006.

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ENTREVISTA DA SEMANA Neofeminismo e arte popular na América Latina A pesquisadora mexicana Eli Bartra analisa o feminismo e a arte popular do México a partir de nosso momento atual

Por Ricardo Machado

s ecos de 1968 ainda ecoam Ao pensar as questões relacionadas em nossas sociedades. Tanto à arte, Eli destaca que a arte popular Oas feministas norte-america- não deve ser compreendida como algo nas da California quanto as represen- imutável. “A arte popular sempre se tantes latino-americanas da Cidade do transforma. Não é estática, ainda que México beberam desta inspiração de- siga sendo tradicional. Ela muda o tem- sobediente e potente em transforma- po todo. Ocorre que atualmente vão se ções. “Nós, as feministas do México, criando numerosos artesanatos e obje- fomos influenciadas pelo movimento tos de arte popular sob as exigências estudantil de 1968, pelo movimento do mercado”, contextualiza. “No en- dos direitos civis e o movimento negro tanto isso não é novo e tampouco ne- norte-americano”, frisa a professora e gativo, mas, ao contrário, positivo. O pesquisadora Eli Bartra, em entrevista fato que alguém de fora da comunida- 20 por e-mail à IHU On-Line. de ou mesmo de fora do país peça que uma artesã faça um ou outro trabalho, “Na Cidade do México, esse mo- como por exemplo os quadros de Frida vimento começou com a tomada de Kahlo, não pode ser interpretado como consciência de pequenos grupos que se algo negativo, pois isso só contribui e centravam para além da questão políti- enriquece o campo”, complementa. ca pessoal, defendendo a descriminali- zação do aborto, a defesa das mulheres Eli Bartra é professora na Divisão agredidas e contra a violação; estas fo- de Ciências Sociais e Humanidades da ram as bandeiras de luta que atraves- Universidad Autónoma Metropolitana – saram todo o feminismo mexicano até Xochimilco, no México. Dedicada aos os dias atuais”, recupera Eli. Segundo estudos sobre feminismo é reconheci- da internacionalmente e autora do li- a entrevistada, à época do surgimento vro Creatividad invisible: Mujeres en do movimento, estas lutas tratavam-se el arte popular (México: Pueg-Nnam, de movimentos de rebeldia classifica- 2004). dos como “escandalosos” por grande parte da sociedade. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o movi- da década de 1970 influenciado americano. Na Cidade do México, mento feminista depois da déca- diretamente pela feminismo da esse movimento começou com a da 1970, chamado “Nova onda”, California. Tanto as feministas da tomada de consciência de peque- emergiu no México? Quais são California quanto nós, as feminis- nos grupos que se centravam para suas particularidades? tas do México, fomos influencia- além da questão política pessoal, Eli Bartra – De forma resumida, das pelo movimento estudantil de defendendo a descriminalização o neofeminismo ou a Nova Onda, 1968, pelo movimento dos direitos do aborto, a defesa das mulheres começa no México no princípio civis e o movimento negro norte- agredidas e contra a violação; es-

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tas foram as bandeiras de luta que do Museo de Artes e Industria Po- época pensei que esta arte ia desa- atravessaram todo o feminismo me- pulares, o qual foi diretor por mais parecer rapidamente, que era algo xicano até os dias atuais. Tratava-se de uma década. Nos anos 1970 foi eminentemente efêmero, porém de um movimento de rebeldia, es- criado o Fundo Nacional para o Fo- estas pulseiras são feitas até hoje, pontâneo e um tanto “escandalo- mento dos Artesanatos (Fonarte, simplesmente porque seguem so”, no princípio, contra todas as na sigla em espanhol), quando se vendendo. formas de opressão sexista. passa a não distinguir Artesanato de Arte Popular, o que, ainda que IHU On-Line – Que relação há IHU On-Line – Que conquistas de maneira moderada, representa entre este tipo de arte popular e políticas foram sendo construídas um apoio às artesãs e aos artesãos. o feminismo? ao longo das últimas décadas do Entretanto, ainda há muito traba- Eli Bartra – Tais relações são qua- século XX que resultaram na par- lho a ser feito para reconhecer as se nulas. Pouco foi escrito e pes- ticipação efetiva do público femi- mulheres como as principais cria- quisado sobre as relações entre nino nas questões sociais? doras da arte popular. arte popular e o feminismo. Ainda Eli Bartra – Ao longo dos anos que o feminismo tenha se interes- IHU On-Line – Como o neozapa- tivemos conquistas importantes. sado muito por outras artes, des- tismo reconfigurou a arte popular As mulheres se incorporaram pou- de os anos 1960, a arte popular no México? co a pouco na política formal em foi praticamente ignorada. Entre- diversos cargos políticos eletivos, Eli Bartra – O neozapatismo2 tanto, este pensamento chegou às mas ainda são uma franca minoria. configurou de uma maneira muito artesãs que vêm tomando cada vez O aborto deixou de ser crime na interessante um certo tipo de arte mais consciência sobre os próprios Cidade do México, embora no res- popular. Escrevi um pouco sobre fazeres como criações artísticas. tante do país continue sendo crimi- isso no livro Creatividad invisible: nalizado. Sem dúvida há avanços, Mujeres en el arte popular (Méxi- IHU On-Line – De que forma a mas não tantos como se esperaria co: Pueg-Nnam, 2004). Acontece cultura e a arte das etnias da re- que ocorressem depois de séculos que as mulheres da localidade de gião de Chiapas impactou politi- de luta e 45 anos de neofeminis- Chiapas faziam, e fazem, pulseiras camente no contexto mexicano? mo. As mulheres foram inseridas no de retalhos com a tecidos típicos 21 mundo do trabalho, principalmen- da região. Em 1994, com a insur- Eli Bartra – O que trouxe impacto te no trabalho informal, porém o gência neozapatista, as mulheres foram os “marquitos” e as “ramo- trabalho doméstico continua sendo começaram a fazer estas mesmas nas” que se espalharam por todos quase uma exclusividade feminina. pulseiras com fuzis e também com os rincões do país com uma carga Percebemos mudanças nesse âmbi- “marquitos”3 e “ramonas”4. Na político-simbólica muito específi- to, mas ainda poucos. ca. No entanto, pouco da cultura e da arte de Chiapas teve impacto 2 Neozapatismo: é uma corrente políti- expressivo fora do Estado. O que, IHU On-Line – Que relações há ca e ideológica que representa a concepção contemporânea de seu antecessor mais co- sim, gerou um movimento político entre a arte popular mexicana e a nhecido, os zapatistas, e é transmitida pelos foi o neozapatismo e o papel das participação social feminina? membros do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e seus seguidores. O EZLN mulheres, com a Lei Revolucioná- Eli Bartra – A arte popular mexi- adotou o termo ea ideologia dos zapatistas ria das Mulheres Zapatistas,5 que originais e os magonistas da Revolução Mexi- cana passou a ser melhor conhe- cana como demandas atuais na vida política foi decisiva para o próprio apoio do cida no período pós-revolução de e social do México. (Nota da IHU On-Line) neozapatismo, bem como para as 1910, nos anos 1920 e 1930. Nesta 3 Subcomandante Marcos (1957): é o demais mulheres indígenas do país. porta-voz do movimento zapatista no sudes- época muitos intelectuais e artistas te mexicano. O ‘Subcomandante Marcos’, é se voltaram à arte popular consi- o principal porta-voz do comando militar do IHU On-Line – Como a arte po- derando-a “a autêntica expressão grupo indígena mexicano chamado Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), pular mexicana foi impactada por do povo mexicano”. Outro grande que fez a sua aparição pública em 1º de Ja- uma certa “globalização” das fi- momento de impulsão da arte po- neiro em 1994, quando os militares lançaram uma ofensiva na qual conquistou seis muni- guras de Marcos e Ramona? Quais pular foi Daniel Rubín de la Bor- cípios, no sulino estado mexicano de Chia- foram os resultados práticos des- bolla1 nos anos 1940 com a criação pas, exigindo democracia, liberdade, terra, ta “globalização” e até “europei- pão e justiça para os índios. (Nota da IHU On-Line) zação” dos lideres latinos? 1 Fernando Daniel Rubin de la Borbolla 4 Comandante Ramona (1959-2006): era (1903-1990): foi um antropólogo mexicano e uma mulher Tzotzil indígena e comandante 5 Lei Revolucionária das Mulheres: pre- humanista. Ele era conhecido por suas ações, do Exército Zapatista de Libertação Nacional vê acesso a cargos políticos e militares, a te- iniciativas e trabalho pioneiro no desenvolvi- em Chiapas, no México. Morreu no dia 6 de rem um salário digno, educação, saúde, a não mento e cuidado dos povos indígenas do Mé- janeiro de 2006 de câncer reumático. (Nota serem maltratadas e escolherem seus parcei- xico. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) ros. (Nota da IHU On-Line)

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Eli Bartra – O impacto principal Eli Bartra – A arte popular sem- interpretado como algo negativo, é, justamente, a comercialização pre se transforma. Não é estática, pois isso só contribui e enriquece destas figuras. Também se -pro ainda que siga sendo tradicional. o campo. Erroneamente se pensa duziu imagens de barro do sub- Ela muda o tempo todo. Ocorre que isso adultera ou empobrece a -comandante Marcos em algumas que atualmente vão se criando nu- arte popular, mas as coisas não são comunidades indígenas como em merosos artesanatos e objetos de assim. Oumicho, Michoacán. Não creio arte popular sob as exigências do que esta “globalização” tenha sido mercado. No entanto isso não é IHU On-Line – Deseja ascrescen- muito significativa, exceto pelo novo e tampouco negativo, mas, tar algo? ao contrário, positivo. O fato que fato de que estas figuras seguem Eli Bastra – A arte popular é alguém de fora da comunidade ou sendo vendidas. cheia de mitos e devemos fazer mesmo de fora do país peça que um trabalho constante de desmis- uma artesã faça um ou outro tra- IHU On-Line – De que forma tificação. A arte popular não é uma balho, como por exemplo os qua- ocorre uma certa “adaptação de criação do povo em abstrato, mas dros de Frida Kahlo,6 não pode ser mercado” das mulheres artesãs de pessoas concretas, de uma ge- e, em última instância, da pró- 6 Frida Kahlo (1907-1954): pintora ografia particular em um contexto mexicana. A ela a IHU On-Line dedicou o pria arte popular? Apesar dessas número 227, intitulado Frida Kahlo. 1907- sócio-histórico e cultural específi- mudanças ainda podemos clas- 2007. Um olhar de teólogas e teólogos, co, com gêneros, sexualidades e disponível para download no site do IHU sificar esse trabalho como arte (www.unisinos.br/ihu). (Nota da IHU idades distintas, de diferentes et- popular? On-Line) nias e racionalidades.

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Multilinguismo e diversidade cultural: as identidades em diálogo Para Joaquim Dolz, o multilinguismo transpõe as fronteiras políticas dos países, impondo aos cidadãos a necessidade de se comunicar em diversos idiomas para se inserir no mundo globalizado

Por Leslie Chaves | Tradução: Eulália Leurquin e Carla Messias

multilinguismo sempre foi identitários e políticos. “Existe um diá- uma realidade da sociedade. logo fértil entre as línguas. Esse diálo- OEm diversas localidades do go é frequentemente desigual e produz mundo as populações convivem em um embates e mal-entendidos na comu- mesmo espaço com diversas línguas. nicação. No nível econômico e acadê- Mesmo havendo um idioma oficial, tam- mico, nem todas as línguas recebem a bém compõem o atlas linguístico de um mesma consideração”, explica. O prin- determinado local as línguas tradicio- cipal problema dessas assimetrias para nais, faladas, por exemplo, por comu- o ensino de idiomas é que “o estatuto e nidades indígenas, no caso do Brasil e o valor social atribuídos às línguas têm 24 de outros países que contam com esses um papel fundamental para que elas povos na sua formação sociocultural, sejam aprendidas”, frisa. e as línguas estrangeiras, introduzidas nos territórios a partir das migrações. O pesquisador também destacou o Em entrevista concedida por e-mail à papel das Tecnologias de Comunica- IHU On-Line, Joaquim Dolz afirma que ção e Informação – TICs no ensino de existe um multilinguismo característi- línguas. Para Dolz, as TICs podem ser co de cada país. instrumentos importantes para facili- tar os processos de ensino-aprendiza- Para o pesquisador, a globalização gem em sala de aula, pois propiciam acentuou a necessidade da promoção novos meios de acesso aos conteúdos do ensino plurilíngue. O desafio é - or e diferentes formas de interação. No ganizar esse tipo de perspectiva de entanto, essas técnicas não devem ser ensino e preparar os professores para superestimadas, pois “o aluno continua lecionar de acordo com essa lógica. “A a ter necessidade do professor e das in- aprendizagem de uma língua estran- terações com os outros para aprender, geira permite uma relação com uma com ou sem novas tecnologias”, alerta. nova cultura. Convém, então, associar o ensino da língua e da cultura”, apon- Joaquim Dolz é professor e pesqui- ta Dolz, indicando esse como um dos sador em Didática do Francês como caminhos para a concretização desta Língua Materna da Faculdade de Psico- concepção didático-pedagógica. logia e Ciências da Educação – FAPSE, da Universidade de Genebra – UNIGE, Ao longo da entrevista, Dolz ainda Suíça, e membro do Grupo Romando de ressalta que o ensino plurilíngue ou Análise do Francês Ensinado – GRAFE. bilíngue também pode enfrentar obs- táculos e resistências ligadas a fatores Confira a entrevista.

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cas, mas, sobretudo, para acolher a diversidade constitutiva da so- ciedade e para desenvolver uma abertura com o outro realmente. As tecnologias são ferramentas A aprendizagem de uma língua estrangeira permite uma relação que facilitam o trabalho em aula, com uma nova cultura. Convém, mas não podem resolver sozinhas então, associar o ensino da língua e da cultura. Quando eu comecei o desafio educativo do Brasil a aprender a língua portuguesa, necessitei conhecer as formas de vida do Brasil e de Portugal como, IHU On-Line – A perspectiva do europeias que mantiveram sua lín- por exemplo, os rituais de cortesia plurilinguismo pode ser conside- gua de origem. Pude perceber, em para estabelecer um melhor con- rada um caminho para a aborda- minhas viagens ao Brasil, grupos da tato com as pessoas. Aprendendo gem de discussões de ordem so- população que mantiveram, desde a língua portuguesa, compreendi ciocultural no ensino de línguas? o século XX, a língua alemã, italia- as letras das músicas de Caetano na, espanhola ou japonesa. Além Joaquim Dolz – A sua pergunta é Veloso e de Amália Rodrigues, mas disso, a língua espanhola, a inglesa complexa. Antes de falar a respeito também aprendi o valor da músi- e a francesa estão também presen- do plurilinguismo e do seu ensino, ca popular em cada país. Pude ler tes por diversas razões (vizinhan- gostaria de fazer algumas conside- e José Saramago dire- ça, aprendizagem na escola, etc.). rações sobre multilinguismo, que tamente em língua portuguesa. Da Em todas as sociedades, existe um caracteriza nossas sociedades. mesma forma, se você aprendesse multilinguismo endógeno apesar da a língua chinesa, seria convenien- Existe um multilinguismo próprio recusa de certas línguas presentes. te fazê-lo aprendendo simultanea- a cada país. No Brasil, por exem- É o caso, nos países europeus, com mente a história da China e as for- as línguas ditas regionais e com as plo, há uma grande diversidade de mas de vida desta imensa nação. línguas ameríndias que antecedem línguas da migração. Na Suíça, por 25 a chegada da língua portuguesa exemplo, a presença da língua por- Agora eu posso retornar à sua (como a língua tupi e a guarani, tuguesa dá-se pelo número impor- pergunta. Eu direi que a língua e a presentes no Sul e no Sudeste, tante de portugueses e brasileiros, cultura formam o espírito da pes- mas também há a língua tikuna, a mas ela não é ensinada na escola. soa e que a descentralização para a aprendizagem de uma língua e tukano, a macuxi, a yanomani, a Em um mundo globalizado, o de uma nova cultura nos ajuda a guajajara, a terena, a pankaruru, multilinguismo é um fato que ultra- melhor compreender o funciona- a kayapó, a kaingang, a xavante, passa fronteiras políticas dos paí- mento da nossa língua de origem, a xerente, a nambikwara, a mun- ses. Hoje, os cidadãos necessitam por comparação e por contraste. duruku, a mura, a sateré-mawé, falar muitas línguas. É evidente Nossa própria cultura se enriquece etc.). Estima-se que, na Améri- que a língua espanhola é particu- no diálogo com o que aprendemos ca do Sul, sobrevivam 375 línguas larmente importante para o Brasil, das outras culturas. Mas, atenção, ameríndias. Mas elas perdem espa- por causa de sua situação geográfi- pois tudo não é tão simples assim. ço diante da língua espanhola e da ca, e que a língua inglesa, a fran- O ensino bilíngue ou plurilíngue língua portuguesa. Uma parte des- cesa, a chinesa ou a alemã abrem nem sempre é fácil. Ele pode nos sas línguas encontra-se em perigo as portas para viajar e estabelecer proporcionar uma grande rique- de extinção por causa do domínio, relações no nível internacional. O za, mas também pode ser fonte desde o período colonial, da língua ensino plurilíngue tornou-se en- de obstáculos e de resistências. portuguesa, a única língua oficial tão uma necessidade para todos. Às vezes, no caso das populações do Brasil. Então, a Organização das O problema é como organizá-lo e migrantes, observamos também fe- Nações Unidas para a Educação, a como formar os professores. O ter- nômenos particulares, resistências Ciência e a Cultura – Unesco reco- mo plurilinguismo, como o termo para aprender a língua do país de menda a proteção desse patrimô- bilinguismo, o reservo-o para as acolhida, por medo de perder ou nio linguístico e o ensino das lín- pessoas. de trair a língua de origem. Ou, guas primeiras. A escola merece ser um espa- pelo contrário, crianças de famílias O multilinguismo no Brasil ma- ço aberto às diferentes línguas portuguesas ou brasileiras, em Ge- nifesta-se, igualmente, pela pre- e culturas, avançando no ensino nebra, que abandonam a língua de sença de populações migrantes não apenas por razões econômi- origem ou que a escondem. O esta-

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tuto e o valor social atribuídos às mereceria ser profundamente es- preparar os professores para en- línguas têm um papel fundamental tudado pelos interacionistas. frentar tais desafios? para que elas sejam aprendidas. Joaquim Dolz – Do meu ponto de Gostaria, igualmente, de acres- IHU On-Line – De que formas o vista, um professor de língua deve centar que o Interacionismo So- professor de línguas pode traba- certamente dominar a língua que ciodiscursivo considera as trocas lhar a perspectiva do plurilinguis- ele ensina. Mas, ele deve, sobre- discursivas como fundamentais no mo em sala de aula? tudo, ser capaz de ensiná-la. Isso desenvolvimento da pessoa. Essas Joaquim Dolz – Em primeiro lu- supõe saber escolher e adaptar os trocas não se produzem exclusi- gar, o professor deve dispor dos saberes linguageiros às necessida- vamente em uma língua natural. conhecimentos suficientes sobre a des dos aprendizes, saber avaliar Existe um diálogo fértil entre as língua ensinada. Mas, sobretudo, as capacidades dos alunos, saber línguas. Esse diálogo é frequente- ele deve ser capaz de adaptar o planificar as atividades de apren- mente desigual e produz embates uso da língua ao nível dos aprendi- dizagem, saber elaborar dispositi- e mal-entendidos na comunicação. zes. Em segundo lugar, o professor vos e sequências de ensino, saber No nível econômico e acadêmico, deve ser capaz de criar situações dialogar e regular as aprendizagens nem todas as línguas recebem a e projetos de comunicação motiva- dos alunos, o que Carla Messias 1 mesma consideração. O inglês, por dores e portadores para o ensino. (2013) , em sua tese, denomina de exemplo, tem um reconhecimento Em terceiro lugar, os professores agir didático. É evidente que exis- que nenhuma outra língua possui. têm necessidade de dispor de fer- tem outras competências transver- Mas isto não significa que a língua ramentas adequadas para este en- sais como saber gerir um grupo de portuguesa não produz discursos sino. Considero muito importante a alunos, colaborar com os outros científicos ou econômicos. Existe, presença de corpus de textos orais professores, etc. No meu caso, dou nesses discursos, um dialogismo e escritos adequados para este en- uma importância maior à gestão do e uma polifonia que está além de sino e as sequências didáticas que ato de ensinar a língua e a evolu- uma única língua. vão além do exercício com base ção das capacidades de compre- Tomemos esta entrevista como em atos de fala. Enfim, a aprendi- ensão e de produção oral e escrita 26 exemplo. Ela é uma forma de di- zagem de outras matérias não lin- dos aprendizes. álogo. Mas vocês me fazem as guísticas, ensinadas em diferentes Para a formação, parece-me fun- perguntas em língua portuguesa, línguas, permite uma imersão na damental organizar uma formação eu respondo em francês e minhas língua ensinada, que é, às vezes, em alternância com a sala de aula, colegas Eulália Leurquin e Carla ferramenta de ensino (comunica- com um acompanhamento realiza- Messias traduzem minhas respostas mo-nos nesta língua) e objeto de do de maneira coordenada por pro- para o português. O interesse não aprendizagem. fessores experientes e por forma- é unicamente estudar a passagem dores universitários. A verdadeira A perspectiva do plurilinguismo de uma língua a outra. O interesse profissionalização deve combinar o supõe, além disso, uma cooperação é também estudar como se desen- trabalho acadêmico com uma prá- entre os professores para a coorde- volvem as trocas em várias línguas tica acompanhada por formadores. nação entre os diferentes ensinos e e como nós a utilizamos para saber as diferentes línguas ensinadas. O as informações. Sinceramente, eu IHU On-Line – Qual a impor- penso que os interacionistas deve- ensino integrado de línguas consis- te em planificar juntos as diferen- tância da inclusão de questões riam levar mais a sério esses fenô- de identidade e de contexto so- menos. A Sociodidática das línguas tes línguas ensinadas. O ensino de cial do estudante no processo de estuda-os, levando em considera- uma matéria escolar em uma lín- ensino-aprendizagem em sala de ção os fatores contextuais do uso gua diferente da língua portuguesa aula? das línguas, o estatuto e as repre- supõe uma coordenação particular sentações sobre línguas estudadas, entre o professor de língua e o pro- Joaquim Dolz – A escola, como os contatos entre as línguas e as fessor desta matéria escolar. espaço de socialização, é um lu- situações de ensino e de apren- gar de construção da identidade. dizagem. Nós aprendemos novas IHU On-Line – Que habilidades 1 SILVA, Carla Messias Ribeiro da. O línguas, considerando aquelas que e competências profissionais são agir didático do professor de Língua Por- conhecemos e questionando-as, fundamentais na constituição de tuguesa e sua reconfiguração em textos de autoconfrontação. Tese (Doutorado em Lin- tanto na dimensão interna qu