嘀漀氀⸀㘀 簀 一⸀ ㄀㈀ 簀 䨀甀氀⼀䐀攀稀 搀攀 ㈀ ㈀ 簀 䤀匀匀一 ㈀㌀㔀㤀ⴀ㐀㐀㠀㤀 䄀爀琀攀 攀 瀀漀氀琀椀挀愀㨀 䔀猀琀愀搀漀 攀 渀愀挀椀漀渀愀氀椀猀洀漀 Eu prefiro andar sozinho: As disputas de Belchior com a Tropicália e a indústria musical brasileira Leandro Martan Bezerra Santos1

Resumo: O presente artigo, a partir da análise das composições do cantor Belchior, pretende refletir sobre as disputas por poder, narrativa, espaço e proeminência no campo musical brasileiro. Terão ênfase neste trabalho os pontos de convergência e divergência entre Belchior e os grupos de artistas conhecidos como Tropicália e Pessoal do Ceará, além de sua relação com a própria indústria musical, destacando, ainda, as estratégias empregadas pelo compositor cearense para lograr êxito em sua incursão musical como integrante da Música Popular Brasileira. Palavras-chave: Antonio Carlos Belchior, História da Cultura Brasileira, Música Popular Brasileira

I prefer to walk alone: Belchior's disputes with Tropicália and the Brazilian music indu stry

Abstract: From the analysis of the compositions of the Brazilian singer Belchior, this paper aims to study the disputes for power, narrative, place and prominence in the Brazilian musical field. In this work, the points of convergence and divergence between Belchior and the groups of artists known as “Tropicália” and “Pessoal do Ceará” will be highlighted, in addition to his relationship established with the music industry itself, besides the strategies used by him to achieve success in his incursion as a member of “Brazilian Popular Music” movement. Keywords: Antonio Carlos Belchior, Brazilian Popular Music, History of Brazilian Culture

1 Mestrando em Arqueologia na Universidade de São Paulo (MAE/USP), onde atua com bolsa CAPES. Pesquisador do Laboratório Interfaces entre Museologias. Bacharel em Ciências Sociais pela Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV). E-mail: [email protected]

231 “O que transforma o velho no novo, bendito fruto do povo será”. É dessa forma que o cearense Antonio Carlos Belchior - natural da cidade de Sobral, onde nasceu no final do ano de 1946 - profetiza a mudança que projetava encampar na música popular brasileira. Para explicitar seu desejo de rompimento com o status quo social do país, seja político ou cultural, Belchior brada na sequência da declaração acima, ao finalizar a canção-manifesto “Como o diabo gosta”, de Alucinação, que “a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter / É nunca fazer nada que o mestre mandar / Sempre desobedecer, nunca reverenciar”2. As letras das canções compostas por Belchior são o objeto de estudo fundamental desta pesquisa, analisando seus posicionamentos sobre os temas de interesse para este trabalho, quais sejam, os pontos de atrito ou de alinhamento com outros artistas brasileiros e sua relação com a indústria musical brasileira. A partir da análise documental baseada no conteúdo dessas composições, além de pesquisa bibliográfica nas áreas de sociologia e história cultural brasileira, torna-se possível identificar os mais relevantes temas tratados por Belchior em suas composições, buscando posicionamentos e diálogos estabelecidos por ele com os mais diversos assuntos e interlocutores. Serão tratadas a seguir as disputas por poder, espaço e proeminência no campo musical, especialmente as ocorridas com o movimento tropicalista – aqui exemplificado com maior destaque na figura do músico baiano Caetano Veloso - ou com os próprios representantes da nova geração de músicos do Ceará, empregando uma perspectiva crítica quanto à disputa de memórias e narrativas entre esses personagens. A esse respeito, nos ensina Michael Pollak:

A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória.3

Ao longo de sua extensa carreira, Belchior registrou composições em parceria com músicos como Gilberto Gil, Toquinho, Moraes Moreira, João Bosco, Jorge Mautner e os cearenses Jorge Mello, Fausto Nilo, Fagner e Ednardo, da chamada turma do “Pessoal do Ceará”. Além disso, regravou temas do supracitado Caetano Veloso, de Zé Ramalho, Adriana

2 BELCHIOR, Antonio Carlos. Alucinação. Polygram/Philips, 1976. 3 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, jul. 1992, p. 204. Disponível em: .

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232 Calcanhotto, Roberto Carlos, Djavan, Arnaldo Antunes, Raul Seixas, , Guilherme Arantes, Luiz Gonzaga, Marina Lima e Erasmo Carlos. Foi regravado por artistas do calibre de Oswaldo Montenegro, Vanusa, Elba Ramalho, Raimundo Fagner, , por músicos de gerações mais recentes, como a banda Los Hermanos e a cantora Ana Carolina, além de jovens talentos que o homenagearam em faixas e até em álbuns de tributo ao artista, especialmente após a sua morte, ocorrida em abril de 2017. Serão abordadas neste artigo, ainda, as estratégias empregadas por Belchior para lograr êxito em sua incursão musical como integrante da MPB, elaboradas com o constante intuito de obter diferenciação dentre as subcategorias integrantes do que se definia à época como Música Popular Brasileira, apesar da existência das inúmeras colaborações citadas acima com outros artistas do gênero. Na condição de uma espécie de líder informal do Pessoal do Ceará, Belchior despontou e conquistou o principal eixo comercial do cenário musical do Brasil, a região Sudeste. Uma de suas plataformas de inserção nesse mercado foi a autorrepresentação como um ícone de ruptura e inflexão dos gêneros e estilos predominantes no período, designando para si a tarefa de construir e efetivar uma renovação musical no país, como será abordado no tópico a seguir.

O cantar exato e novo, de jeito fácil e claro O sentimento e o discurso de renovação reverberaram ao longo de toda a obra de Belchior, mas encontraram espaço primordial em seu primeiro álbum - de 1974, denominado por alguns de Mote e Glosa, e por outros apenas de Belchior -, com várias canções que escancaravam as pretensões do autor em realizar um processo de transição musical. A primeira música do disco, composta em parceria com Raimundo Fagner, também denominada de “Mote e Glosa”, explicita esse procedimento com o impressionante número de repetições da palavra “novo”, sendo as mais de quarenta utilizações do termo suficientes para sanar quaisquer dúvidas a respeito das intenções de se apresentar como a tal novidade musical. Em um dos trechos dessa música, Belchior instiga o ouvinte: “você que é muito vivo, me diga qual é o novo”4. A marca da distinção no modo de cantar é anunciada no título da música “A palo seco”, ainda em Alucinação, que tem no poema Quaderna5, originalmente

4 BELCHIOR, Antonio Carlos. Mote e glosa. Chantecler, 1974. 5 MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

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233 publicado por João Cabral de Melo Neto no ano de 1960, sua explicação: trata-se de um cantar intenso e sozinho, sem guitarras e acompanhamentos, paciente e rompante. A repetição de termos consagrados, inclusive de partes de suas próprias composições, também se torna uma marca das composições de Belchior. Mais do que homenagens ou diálogos, o autor as utiliza como ferramentas de significação de suas letras e de determinação de seu campo de disputa retórica. O próprio estilo de canto adotado por ele é também uma dessas ferramentas de significação, ambicionando o choque e o rompimento com o que já era estabelecido e consolidado dentro da música brasileira, fazendo uso de sua voz de “rara taquara rachada”, como admite e ironiza o compositor em “Onde jazz meu coração”, de Cenas do próximo capítulo6. De fato, as características do canto e da performance de Belchior não escapavam de uma relação de causa e efeito com as mudanças proclamadas pelo cantor, como vemos no seguinte comentário de Jotabê Medeiros, na biografia lançada logo após a morte de Belchior, intitulada “Apenas um rapaz latino-americano”, quando versa sobre a voz e o estilo apresentado por Belchior nos palcos:

A voz e a postura de palco de Belchior não se pareciam em nada com aquilo que havia de estabelecido no mercado musical. Poucos artistas no mundo saíam dessa esfera de potência ou da precisão, - mesmo João Gilberto surgiu com a promessa do sussurro perfeito. Tudo era a busca da perfeição. Bob Dylan foi quem rompeu definitivamente o cerco.7

A transição musical desejada por Belchior também esteve presente em “Todo sujo de batom”, de Mote e Glosa, em cujos versos diz “Quero uma balada nova / Falando de brotos, de coisas assim / De money, de banho de lua, de ti e de mim”8, e na sua indicação em “Voz da América”, lançada no mesmo álbum, ao alegar que vai “tentar o canto exato e novo”9. Já em “Caso comum de trânsito” – lançada em Coração Selvagem, de 1977 -, Belchior sugere uma quebra de paradigma, aludindo à sua característica de escrever sobre temas complexos de maneira simples, direta e acessível e, ao mesmo tempo, carregada de significados implícitos, alimentados por seu vasto capital cultural e capacidade de dialogar com inúmeras referências do mundo das artes. Dessa forma, sua música seria capaz de atingir e de ser consumida por integrantes de diversos estratos sociais, como se vê no trecho a seguir:

6 BELCHIOR, Antonio Carlos. Cenas do próximo capítulo. Paraíso/Odeon, 1984. 7 MEDEIROS, Jotabê. Belchior - Apenas um rapaz latino-americano. São Paulo: Todavia, 2017, p. 50. 8 BELCHIOR, Antonio Carlos. Mote e glosa. Chantecler, 1974. 9 Ibid.

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Faz tempo que ninguém canta uma canção falando fácil Claro, fácil, claramente Das coisas que acontecem todo dia, em nosso tempo e lugar Você fica perdendo o sono Pretendendo ser o dono das palavras, ser a voz do que é novo E a vida, sempre nova, acontecendo de surpresa Caindo como pedra sobre o povo10

Em “Velha roupa colorida” - gravada em Alucinação, de 1976, temos mais um exemplo do que Belchior trata como uma iminente descontinuação do panorama musical nacional e de seus grupos tidos como ultrapassados, prevendo o interesse das novas gerações por outros círculos que naturalmente seriam destaques, como se nota a seguir:

Você não sente nem vê Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo Que uma nova mudança em breve vai acontecer E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo E precisamos todos rejuvenescer (...) Nunca mais você saiu à rua, em grupo reunido O dedo em V, cabelo ao vento, amor e flor, quê de um cartaz No presente, a mente, o corpo, é diferente E o passado é uma roupa que não nos serve mais11

Para o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu livro “As regras da arte”, as disputas que norteiam o campo musical necessariamente passam por discussões sobre posição e identidades próprias de seus componentes, assim que:

A iniciativa da mudança cabe quase por definição aos recém-chegados, ou seja, aos mais jovens, que são também os mais desprovidos de capital especifico, e que, em um universo onde existir e diferir, isto é, ocupar uma posição distinta e distintiva, existem apenas na medida em que, sem ter necessidade de o querer, chegam a afirmar sua identidade, ou seja, sua diferença, a fazê-la conhecida e reconhecida ("fazer um nome"), impondo modos de pensamento e de expressão novos, em ruptura com as modos de pensamento em vigor.12

Desse modo, as disputas fazem parte da sucessão natural existente nos mais distintos segmentos sociais, com a existência de fricções que possibilitariam como resultados efetivos reformulações na divisão cultural em questão, ainda que os membros anteriormente estabelecidos continuassem a ocupar algum tipo de espaço nas novas dinâmicas produzidas.

10 Id., Coração Selvagem. Warner, 1977. 11 Id., Alucinação. Polygram/Philips, 1976. 12 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 270 – 271.

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Belchior, a Tropicália e as disputas de versões sobre a realidade brasileira Um dos grupos de músicos mais criticados por Belchior foi a Tropicália, embora o cantor reconhecesse o valor e o peso desses artistas como basilares de um movimento de contestação à geração anterior, contribuindo com a formação de novos arranjos nos movimentos artísticos musicais do país. Com enorme audiência e aceitação junto ao grande público, o tropicalismo acabou por contribuir com a disseminação da música nordestina por todo o Brasil, já que vários de seus integrantes mais conhecidos eram provenientes dessa região, especialmente do estado da Bahia, tais como Caetano Veloso, , Tom Zé e Gilberto Gil. Alguns dos músicos tropicalistas que compunham o cenário em outros estados foram Torquato Neto, Nara Leão e Rogério Duprat. A respeito da origem do nome deste movimento, Caetano Veloso nos explica em sua autobiografia oficial, “Verdade Tropical”, que:

A ideia de que se tratava de um movimento ganhou corpo, e a imprensa, naturalmente, necessitava de um rótulo. O poder de pregnância da palavra tropicália colocou-a nas manchetes e nas conversas. O inevitável ismo se lhe ajuntou quase imediatamente. Nelson Motta (...) escreveu um texto em que batizava o movimento com esse nome de “tropicalismo”, (...) extraindo da própria palavra um repertório de atitudes e um guarda-roupa folclórico.13

A receptividade ao tropicalismo foi, no entendimento de Patrícia Barros, hostil em diversos espectros ideológicos, como a autora indica no seguinte excerto:

O Tropicalismo foi apreendido pelas alas conservadoras como um verdadeiro perigo para a sociedade em razão de suas ideias libertárias e desagregadoras da família e do sistema, uma moda exótica de viés burguês e uma afronta à cultura nacional, em face do ataque imperialista norte-americano expresso, por exemplo, com a inserção das guitarras elétricas na música popular brasileira e da caracterização visual hippie. Tanto a direita militar quanto a esquerda ortodoxa consideravam o “desbunde” como um movimento “imaturo”, subjetivo e individualista. Seus participantes foram rotulados de “meninos de Marcuse”, “alienados” e, por fim, “malucos” pela valorização dos processos intuitivos, sensórios e imaginativos.14

Ainda sobre a Tropicália, Heloisa Sterling e Lilia Schwarcz, no livro “Brasil – Uma Biografia”, sintetizam esse movimento cultural tropicalista como uma união da música tradicional brasileira com elementos internacionais do gênero pop, considerando que “com

13 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. Ed. comemorativa. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 208. 14 DE BARROS, P. M. Tropicália: contracultura, moda e comportamento em fins da década de 60. dObra[s] – revista da Associação Brasileira de Estudos de Pesquisas em Moda, v. 9, n. 20, 2016, p. 163.

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236 experimentações de vanguarda, evocava as imagens estereotipadas do Brasil como paraíso tropical, e realizava a crítica aguda do país com referências incisivas à repressão política, à desigualdade e à miséria social”.15 Com a ruptura e o simbolismo que a ascensão de Belchior e do restante do Pessoal do Ceará representava, formaram-se as condições propícias para a disputa de espaço entre campos musicais populares naquele período, conforme conclui Marcelo Ridenti, em capítulo escrito para o livro “Modernização, ditadura e democracia”, componente da coleção “História do Brasil Nação: 1808 – 2010”:

Caetano e Gilberto Gil eram, de início, outsiders. (...) Pouco tempo depois, eles já não se conformariam mais com sua posição subalterna no campo da música popular: lançaram a contestação tropicalista. Cerca de dez anos depois – quando já estavam bem inseridos no sistema e tinham influência na mídia, (...) passaram a ser alvo de novos outsiders, vindos da periferia cultural do país. Foi o caso do cantor e compositor cearense Belchior.16

A visão trazida acima é endossada por Jotabê Medeiros, biógrafo de Belchior, que considera que “sua leitura dessa legião de deserdados era única, porque ele estava entre os outsiders, ele tinha sido espezinhado e cuspido pela máquina fonográfica, pelo sistema do show business, e sempre soube de que lado deveria estar”17. Ainda a esse respeito, Josely Teixeira Carlos, em sua dissertação de mestrado, reflete sobre o papel contestador que Belchior tomava para si no processo de composição musical: Na década de setenta, a música, de forma geral, foi usada como instrumento de transformação por meio do debate, da reflexão e da mudança. Dessa forma, o ethos da canção de Belchior se aproxima ao da Canção de Protesto, pois o enunciador coloca-se como porta-voz de toda uma geração brasileira, uma geração de jovens, de imigrantes, de excluídos, de nordestinos, desejosos por mudanças. (...) Belchior atentava aos jovens para a análise dos problemas de sua geração.18

Tais conflitos entre Belchior e os tropicalistas – especialmente com a figura de Caetano Veloso – ficam extremamente expostos quando se procede com a análise da letra de “Apenas um rapaz latino-americano”, lançada em Alucinação e um de seus maiores êxitos comerciais, como é possível verificar no seguinte trecho:

15 SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 466. 16 RIDENTI, Marcelo. Cultura. In: REIS, Daniel Aarão (coord.). Modernização, ditadura e democracia: 1964 – 2010, volume 5 – Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 266. 17 MEDEIROS, op. cit., p. 85. 18 CARLOS, Josely Teixeira. Muito além de "apenas um rapaz latino-americano vindo do interior": investimentos interdiscursivos das canções de Belchior, 2007, p. 205. Disponível em: < http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8767/1/2007_dis_jtcarlos.pdf>.

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Trago de cabeça uma canção do rádio Em que um antigo compositor baiano me dizia: “Tudo é divino Tudo é maravilhoso” (...) Mas sei que tudo é proibido Aliás, eu queria dizer que tudo é permitido quando ninguém nos vê Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve Correta, branca, suave Muito limpa, muito leve Sons, palavras, são navalhas E eu não posso cantar como convém Sem querer ferir ninguém (...) Mas sei que nada é divino Nada, nada é maravilhoso19

Soam implícitos nas letras de Belchior certos tons de deboche, indignação e até mesmo uma percepção de alienação dos músicos que estiveram em voga no cenário musical quando de sua ascensão, especialmente os representantes de grupos como a Jovem Guarda e a Tropicália, seus alvos favoritos. Em recado direto para os colegas de profissão, no excerto acima Belchior assinala de maneira contundente sobre a sua impossibilidade de agradar a todos e de “cantar como convém / sem querer ferir ninguém”. Novamente com considerações feitas por Josely Teixeira Carlos, agora em tese de doutorado, tem-se maior clareza da complexidade da relação entre Belchior e o Tropicalismo, que não se limitava ao simples silêncio e à negação, mas que também se inseria em dinâmica de incorporação e influência, ainda que de maneira indireta:

Apesar da declaração explícita de Belchior de confronto às ideias tropicalistas no início de sua carreira, é preciso que se diga que o movimento musical brasileiro da década de 70, do qual Belchior tenha sido talvez o primeiro nome, foi interpretado por alguns críticos não como a negação da Tropicália, mas como a tradução local Brasil afora desse movimento. (...) a leitura da produção da obra de Belchior e de seu posicionamento passa portanto o artista de oponente ao papel de continuador ou discípulo do Tropicalismo.20

Belchior não se eximia de provocar, por vezes de maneira gratuita, outros músicos brasileiros, fosse com ironia ou indignação. Ao tratar suas palavras como “navalhas”, buscava ferir os que afastavam de suas obras a função contestadora que a música, em sua concepção, deveria cumprir. Embora temas mais banais e de caráter politicamente brandos compusessem as letras do compositor cearense - como relacionamentos amorosos, a dita busca pela

19 BELCHIOR, Antonio Carlos. Alucinação. Polygram/Philips, 1976. 20 CARLOS, Josely Teixeira. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior, 2014, p. 251. Disponível em: < https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-07102014-121114/pt-br.php>.

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238 felicidade, aspectos da natureza etc. –, para ele boa parte dos demais artistas conduziam ou passaram a conduzir suas carreiras de maneira condescendente com o sistema, como exposto no trecho da música “Conheço o meu lugar”, de Era uma vez um homem e seu tempo:

O que é que eu posso fazer com a minha juventude Quando a máxima saúde hoje é pretender usar a voz? O que é que eu posso fazer, um simples cantador das coisas do porão? Deus fez os cães da rua pra morder vocês Que sob a luz da lua os tratam como gente - é claro - aos pontapés (...) Não há motivo para festa; ora esta, eu não sei rir à toa! Fique você com a mente positiva Eu quero é a voz ativa, ela é que é uma boa (...) Não, você não me impediu de ser feliz Nunca jamais bateu a porta em meu nariz21

Belchior segue com descontentamento e pessimismo sobre a produção musical brasileira em “Clamor no deserto”, de Coração Selvagem, onde aponta a necessidade de mudanças e novamente critica a falta de engajamento cívico de uma parcela dos artistas, sugerindo que estes se pautariam apenas pela alienação de “falar do luar do sertão”:

Ei, meus amigos, um novo momento precisa chegar Eu sei que é difícil começar tudo de novo, mas eu quero tentar Quem me conhece me pede que eu seja mais alegre Mas é que nada acontece que alegre o meu coração Dá no jornal, todo dia, o que seria o meu canto E o negócio é falar do luar do sertão.22

Em “Os estabelecidos e os outsiders”, Norbert Elias e John Scotson tecem comentários acerca da dinâmica de equilíbrio de poderes e da relação de forças que envolvem a definição da posição de cada indivíduo perante seus iguais em determinado grupo, assim como a posição desse grupo com relação aos demais daquela sociedade. Assim, o estigma atribuído a cada pessoa se mostra de fundamental importância para o entendimento das atitudes e do modelo comportamental segundo o qual esse indivíduo atua, de acordo com a avaliação dos supracitados autores ao considerarem que “Não é fácil entender a mecânica da estigmatização sem um exame mais rigoroso do papel desempenhado

21 Id., Era uma vez um homem e o seu tempo. Warner, 1979. 22 Id., Coração Selvagem. Warner, 1977.

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239 pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo entre outros e, por conseguinte, de seu próprio status como membro desse grupo”23. Dessa forma, parte do comportamento provocativo de Belchior com vários de seus pares pode ser explicado pela intensa competição por influência e poder dentro de seu espaço de atuação, assim como em seu campo de disputa, especialmente por sua condição de outsider. Mais do que provocar os colegas de profissão, porém, a música de Belchior desperta e convida os ouvintes para que realizem uma profunda reflexão sobre os problemas da sociedade em que vivem. Nesse sentido, Raul Moreira sintetiza alguns dos principais méritos do cantor cearense em seu disco Alucinação, ao afirmar que o álbum:

Promove uma equação que visa a questionar a realidade preestabelecida, relendo tanto o cânone literário brasileiro e a produção musical brasileira – considerando a citação dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil – quanto à releitura que faz do Rock N’ Roll, principalmente, da música de Língua Inglesa e do cânone literário ocidental. Essa realidade preestabelecida se refere ao projeto de identidade nacional, idealizado pelo regime militar, bem como à formação de uma hegemonia cultural que despreza movimentos que discutem a inserção dos discursos das minorias.24

Ainda sobre Alucinação, Cláudio Coração destaca o caminho do discurso promovido por Belchior nas composições do álbum e como este percurso se aproxima da contracultura: “Desenha-se, em Alucinação, um fluxo discursivo operado da seguinte forma: ceticismo do artista => esfacelando a experiência estética para salvar => pelo julgamento destruidor da criação. (...) Percebemos um elogio do ruído contracultural”25. Contextualizando a presença da contracultura na música brasileira, especialmente a partir do movimento tropicalista, Gustavo Alonso nos esclarece que:

Naquele início de década de 1970, o Rio de Janeiro gerava um novo filho também de influência baiana: a contracultura. Também chamado pela crítica de desbunde, muitos viram a contracultura como filhos diretos do tropicalismo, movimento musical iniciado por artistas baianos entre 1967 e 1968 que agitou o cenário cultural das classes médias preocupadas com a então nascente Música Popular Brasileira (MPB). (...) Seus participantes eram vistos como politicamente “alienados” e a cultura underground como mais uma moda efêmera de tantos verões. Não deixavam de ter razão, mas por diversos motivos essa “moda” gerou mais do que um sonho de

23 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 28. 24 MOREIRA, Raul. Um sem-lugar em Belchior: a escuta de Alucinação. Juiz de Fora, 2015, p. 40. Disponível em . 25 CORAÇÃO, C. R. A crítica e o novo: o semblante melancólico em Alucinação, de Belchior. RuMoRes, v. 13, n. 25, 2019, p. 47. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/155036.

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240 verão: era na verdade a síntese da incorporação do Tropicalismo à sociedade brasileira e, especialmente, à memória musical da resistência à ditadura militar.26

Por fim, esse mesmo álbum, marco máximo da carreira de Belchior, traz em si um elevado sentido de cidadania, destacando também o tema da contenda política sugerida por Belchior em várias de suas letras, com especial apreço pela estratégia de desobediência civil. Sobre a postura assertiva de Belchior, nos ensinam Paloma Farias e Olímpio Rocha que:

No álbum “Alucinação”, de 1976, o artista engajado fez uma verdadeira ode ao ativismo político e associativo, bem como à superação do status quo, criticando a chamada arte alegre de letristas conterrâneos antecessores. Quando fala, por exemplo, em “um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha” e eleva essas personagens a protagonistas da canção-título, o autor revela seu sentimento de empatia e inconformidade com o fato de elas serem alijadas do exercício pleno de sua cidadania.27

Assim, Belchior amplia a sua capacidade de diagnóstico e atuação crítica com relação a problemas sociais de seu cotidiano, mas que ainda hoje, décadas depois, encontram eco em nossa sociedade.

Relações com outros músicos e diálogos com Caetano Veloso

Lançando mão de sua característica e refinada ironia, Belchior considera o nível de suas composições como estando num patamar abaixo das feitas pelos tropicalistas e artistas afins, como diz satiricamente na canção “Em resposta à carta de fã”, de seu disco Melodrama, ao confessar ao interlocutor: “Sabe, quase que eu ia fazendo a canção tropical que você me pediu / Mas quem sou eu, mentalidade mediana, para imitar ?”28. A necessidade do compositor enfatizar a distância e a diferença entre o “eu” e o “eles” se reflete também na letra de “Como nossos pais”, mais uma componente de Alucinação, onde disserta sobre temas como o envelhecimento de uma geração de jovens – a sua geração - , a continuidade da hegemonia dos músicos já consagrados quando do lançamento de sua carreira, e repete o argumento de que representa a inevitável novidade, agora na forma de um

26 ALONSO, Gustavo. O píer da resistência: contracultura, tropicália e memória no Rio de Janeiro. Achegas.net, 2013, pp. 46 – 47. Disponível em: < http://www.achegas.net/numero/46/gustavo_alonso_46.pdf>. 27 FARIAS, Paloma; ROCHA, Olímpio. “Nunca reverenciar”: a desobediência civil na expressão poética e política de Belchior. Trabalho apresentado em Congresso. Jornada D&L. 2017, pp. 2 -3. Disponível em: . 28 Id., Melodrama. Polygram, 1987.

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241 breve ataque aos artistas – seus antigos ídolos e exemplos – enriquecidos às custas da música e que, em seguida, desprenderam-se das pautas e objetos de luta de outrora, como se atesta a seguir:

Já faz tempo, eu vi você na rua Cabelo ao vento, gente jovem reunida Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais Nossos ídolos ainda são os mesmos E as aparências, as aparências não enganam, não Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém Você pode até dizer que eu estou por fora, ou então que eu estou enganando Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem E hoje eu sei que quem me deu a ideia De uma nova consciência e juventude Está em casa guardado por Deus Contando os seus metais29

Belchior enxergava na figura de Caetano Veloso o seu principal interlocutor e adversário dentre os músicos brasileiros, com diversas menções diretas e indiretas ao trabalho desenvolvido pelo músico baiano. Essas provocações chegavam a alimentar a curiosidade do público e o interesse da mídia, mas pouco passavam de simples retórica, não chegando a caracterizar uma inimizade entre os músicos. Além das já referidas menções, o cantor cearense dedicou espaço ao debate com Caetano em “Fotografia 3x4”, de Alucinação, ao provocar com o verso “Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”30; em “Lamento do marginal bem sucedido”, de Baihuno, faz alusão à Caetano ao escrever “é proibido proibir”31, título de famosa música de Veloso; e nas canções “Coração selvagem”, lançada em álbum homônimo, ao ironizar o hábito do brilhante tropicalista de trocar termos em português por expressões no idioma inglês, como vemos em “Meu bem, meu bem, que outros cantores chamam baby”32, e “Sorry, baby”, de Mote e Glosa, na qual trava seu primeiro diálogo direto com Caetano: “Sorry, baby, desculpe o inglês que eu aprendi nos almanaques de música do mês”33. Caetano Veloso, por sua vez, pouco respondeu em sua obra às provocações do cearense, algo que ocorreu, num raro exemplo, através do diálogo presente em sua música

29 Id., Alucinação. Polygram/Philips, 1976. 30 Ibid. 31 Id., Baihuno. MoviePlay, 1993. 32 Id., Coração Selvagem. Warner, 1977. 33 Id., Mote e glosa. Chantecler, 1974.

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242 “Beleza Pura”, quando o músico baiano diz “não me amarro à dinheiro não, mas à cultura”34. Sua grande resposta ao cantor veio somente após o falecimento de Belchior, em artigo35 escrito para o jornal O Estado de São Paulo, onde comentava a morte ocorrida dias antes. Embora inicialmente tenha tecido grandes elogios e reconhecido a importância de Belchior para a música e a sociedade brasileira, parte do texto de Caetano representa uma resposta um tanto deselegante de sua parte, ao alegar que “Belchior aparecia nas festas (...) usando ternos finos, fumando charutos caros e falando na cultura da ‘Rive Gauche’”, uma vez que guardara suas críticas por várias décadas, tornando-as públicas quando já não poderia obter uma réplica. Fazendo-se um questionamento sobre os motivos que levaram Caetano a não optar por esse embate entre músicos, é possível considerar a hipótese do respeito que nutriam um pelo outro, mas também se pode pensar na existência de certo receio do músico baiano de promover um conflito público aberto e mais amplo entre ambos. Em “Arte final”, do álbum Bahiuno - lançado em 1993, quase duas décadas após o início de sua carreira como cantor - o Belchior que tece críticas sociais e políticas, talvez até mesmo já dando indícios de seu futuro sumiço repentino, aparece em tom bastante amargo e descontente com os rumos tomados pelos que eram jovens e contestadores quando atingiram a fama, como é possível constatar a seguir:

Desculpe qualquer coisa, passe outro dia Agora eu estou por fora, volto logo Não perturbe, pra vocês eu não estou (...) E então, my friends? Bastou vender a minha alma ao diabo E lá vem vocês seguindo o mau exemplo Entrando numas de vender a própria mãe E o último a sair apague a luz do aeroporto E ainda que mal me pergunte: A saída será mesmo o aeroporto? (...) Ah! Donde están los estudiantes? Os rapazes latino-americanos? Os aventureiros? Os anarquistas? Os artistas? Os sem-destino? Os rebeldes experimentadores? Os benditos? Malditos? Os renegados? Os sonhadores? Esperávamos os alquimistas, e lá vem chegando os bárbaros Os arrivistas, os consumistas, os mercadores36

34 VELOSO, Caetano. Cinema Transcendental. Verve, 1979. 35 Id. “Canções de Belchior não são das que morrem”, diz Caetano Veloso. Artigo disponível em https://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,cancoes-de-belchior-nao-sao-das-morrem-diz-caetano- veloso,70001759119. 36 BELCHIOR, Antonio Carlos. Baihuno. MoviePlay, 1993.

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243 A partir dos êxitos de âmbito nacional dos álbuns Alucinação e Coração Selvagem, Belchior se consolidou como um dos grandes nomes do que se convencionava intitular Música Popular Brasileira, ou MPB, da qual, conforme se mostrou ao longo deste texto, também tentava se distinguir. A conturbada relação com seus colegas de profissão aparecia nas letras de suas músicas ou em entrevistas concedidas à imprensa, embora seu súbito sucesso tenha sido acompanhado por alguns dos demais artistas conhecidos como integrantes do Pessoal do Ceará, tendo Raimundo Fagner e Ednardo no seu rol de expoentes. Acerca da referida corrente musical que se construía no país, Carlos Sandroni nos ensina que:

A força da noção de MPB nos anos 1960/70/80 estava ligada à confluência dos três fatores já discutidos: ela servia ao mesmo tempo como categoria analítica (distinguindo-se da música “erudita” e da “folclórica”), como opção ideológica e como perfil de consumo. Nesse período, quando à pergunta “de que tipo de música você gosta?”, respondia-se “de MPB”, (...) mostra que a sigla se pretendia unificadora e era mesmo capaz de unificar.37

Já com a canção “E que tudo mais vá para o céu” - de Paraíso e composta em parceria com Jorge Mautner -, em cujo título faz menção à música “Quero que vá tudo para o inferno”, dos jovem-guardistas Roberto e Erasmo Carlos, Belchior enseja outro tipo de diálogo, mais sentimental. Sobre a aproximação registrada nessa composição, Thamara Rodrigues esclarece que:

Trata-se também de uma provocação a Roberto. Na canção do ícone da Jovem Guarda, o eu lírico sofre a ausência da mulher que ama e sua “vida de playboy” não é capaz de preencher a solidão e a dor que essa ausência produz. Tudo o mais se tornava irrelevante. Tudo o mais podia ir para o inferno. A provocação de Belchior recai em elementos e disputas em torno da indústria fonográfica do Brasil (...). Na canção de Roberto e Erasmo o que importa é que o eu lírico tenha a amada, “o que de mais existe” não interessa. Já em Belchior, a amada é um espaço para a experimentação também de um algo mais. Aquilo que está a sua volta, a angústia que sente, importa, e ele quer, a despeito e junto à sua dor, que tudo o mais vá para o céu.38

37 SANDRONI, Carlos. Adeus à MPB. In: CAVALCANTE, Berenice; EISENBERG, José; STARLING, Heloísa (org.). Decantando a república, volume 1: inventário histórico e político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 31. 38 RODRIGUES, Thamara de Oliveira. Belchior na Divina Comédia de Dante. HH Magazine: humanidades em rede, 22 de nov. de 2018. Disponível em: .

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244 Entretanto, nem todas as referências feitas por Belchior a outros músicos tinham caráter provocativo, com várias dessas menções se destacando pela afetuosidade e deferência empregadas pelo músico. São exemplos desses vínculos as letras de “Na hora do almoço” – primeira música cantada ao vivo por Belchior e composta em colaboração com Fagner, que registra uma transcrição de “Águas de Março”, grande sucesso de Tom Jobim; o disco gravado junto ao Pessoal do Ceará, no ano de 2012; o próprio álbum Vício Elegante, no qual – de maneira inédita – regravou canções de outros compositores em doze de suas treze faixas, além da referência empregada na letra de “Baihuno”, quando apregoa “Fosse eu um Chico, um Gil, um Caetano”39.

Disputas e dilemas com a indústria musical

Os princípios por trás da arte de Belchior parecem ir ao encontro da concepção crítica da indústria cultural adotada por Max Horkheimer e Theodor Adorno40, sociólogos alemães e de alguma maneira responsáveis pela formulação do entendimento teórico de “indústria cultural”, conforme nos esclarece e ilustra Wesley Abreu:

O perfil tomado pelos meios de reprodutibilidade técnica, ou seja, seu cumprimento às leis do mercado, e dessa forma, sua entrada na lógica capitalista posicionada na ligação entre práxis e ideologia, fundam a crítica de Adorno à indústria cultural, pois ela transforma tudo em semelhança, por razão do retorno lucrativo dos negócios. A estrutura esquemática e repetitiva é de imediato reconhecimento pelas pessoas e insere a obra de arte na previsibilidade e, assim no fácil reconhecimento.41

É perceptível em várias passagens das letras de Belchior a existência de sentimentos de amargura e descontentamento com a transformação consciente de sua música, especialmente quando são levadas em conta todas as circunstâncias presentes na cadeia de desenvolvimento de uma obra musical, tais como o contexto por trás do processo de composição, as dinâmicas de promoção e veiculação de um álbum junto à mídia e ao público, os recursos físicos utilizados nas gravações e a abordagem empregada pelo próprio artista em termos identitários e, conforme o caso, comerciais.

39 BELCHIOR, Antonio Carlos. Baihuno. MoviePlay, 1993. 40 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 41 ABREU, Wesley. Benjamin e Adorno: um debate sobre a arte no século XX. In: Cadernos Walter Benjamin. n. 11, 2013, p. 119. Disponível em

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245 O andamento de sua carreira musical foi registrado em várias composições, sem a presença de qualquer tipo de ressalva ou característica de exaltação: Belchior assumia a responsabilidade, e até mesmo algum lamento, por escolhas pessoais equivocadas ou por imposições que a indústria musical lhe trouxe. Apesar dos entraves próprios do negócio musical de um artista de sucesso, o músico encontrava espaço para lançamentos fora do paradigma de venda das gravadoras, mesmo sob pressão para o enquadramento de suas canções em linhas mais rentáveis. Em “Tocando por música”, de Melodrama, Belchior comenta em tom crítico sobre a incorporação de sua produção musical às demandas das indústrias fonográfica e do entretenimento, com aparente conformismo ao escrever “Aluguei minha canção pra pagar meu aluguel / (...) Hoje eu não toco por música, hoje eu toco por dinheiro”42. Na letra de “Lira dos vinte anos”, de Elogio da Loucura, Belchior prossegue com sua autocrítica quanto às mudanças permitidas a si mesmo em virtude do apelo e de uma possível necessidade comercial e financeira, não sem antes deixar de emitir opinião crítica sobre toda a geração que acompanhava o seu contexto temporal, ainda que em diferentes vertentes da música, como nos demonstra o recorte exibido a seguir:

Os filhos de Bob Dylan, Clientes da Coca-cola Os que fugimos da escola Voltamos todos pra casa. Um queria mandar brasa; Outro ser pedra que rola... Daí o money entra em cena e arrasa E adeus, caras bons de bola! (...) E andarmos apressados Deu em chegar atrasados Ao fim dos anos cinquenta43

Na primeira frase da mencionada música, Belchior parece brincar com a célebre frase do diretor francês Jean-Luc Godard em seu filme “Masculino, feminino”, onde o cineasta classifica os jovens participantes dos movimentos de protesto de 1968 na França como “filhos de Karl Marx e da Coca Cola”. Na sequência, lamenta a interferência do dinheiro nas escolhas e no prosseguimento de sua carreira e nas de seus colegas, ressaltando o retrocesso experimentado por todos eles ao fim desse processo.

42 BELCHIOR, Antonio Carlos. Melodrama. Polygram, 1987. 43 Id., Elogio da loucura. Polygram, 1988.

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246 Numa de suas composições mais assertivas em oposição à ditadura civil-militar que vigorava à época no país, “Não leve flores”, de Alucinação, Belchior também deixa espaço para a dualidade crítica em “Tudo poderia ter mudado, sim / Pelo trabalho que fizemos - tu e eu / Mas o dinheiro é cruel”44. Em “Ypê” - de Objeto Direto, disco de 1980, vemos um compositor resignado, que aceita a suposta derrota por mudanças na música e declara:

Completamente sem metas, sentado Não tenho sido, eu sou. Não serei, nem fui A mente quer ser. Mas querendo, erra Pois só sem desejos é que se vive o agora Vede o pé de ypê: “apenasmente” flora Revolucionariamente apenso ao pé da serra45

Entretanto, em “Corpos terrestres”, do álbum Todos os Sentidos, Belchior ousa e desafia o aparente conformismo que vinha experimentando em sua atividade ao produzir uma faixa de rock quase que inteiramente escrita em latim - idioma no qual tinha fluência, ainda como consequência de seu tempo de estudos em monastérios -, experiência que viria a repetir no álbum Objeto Direto, no qual inseriu alguns trechos em latim na música “Aguapé”, composta juntamente com Raimundo Fagner. A exceção à língua latina na letra de “Corpos terrestres” era composta por alguns trechos escritos em inglês, estes reproduzindo títulos de músicas de consagrados artistas que fizeram parte de sua formação musical, como Bob Dylan, Frank Sinatra e The Beatles:

Quia decoloravit me sol - It's alright, ma! (I'm only bleeding) Here comes the sun. Indica mihi quem, dirigit anima mea, Ube pascas, ube cubes in meridie. (Come with me and be my love) Ego dilecto meo, et dilectos meus mihi (I've got you under my skin... oh! really?46

Classifica-se aqui essa escolha como fruto de uma ousadia do compositor, por se tratar de um gênero completamente distinto de sua produção anterior, em música escrita e cantada numa língua sem qualquer apelo comercial e lançada no álbum que deu sequência aos seus dois discos de maior repercussão junto ao público. Ao mesmo tempo, a escolha reflete os

44 Id., Alucinação. Polygram/Philips, 1976. 45 Id., Objeto Direto. Warner, 1980. 46 Id., Todos os Sentidos. Warner, 1978.

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247 diversos conflitos verificados entre, de um lado, o entendimento artístico e os desejos próprios de produção de Belchior com, de outro, as demandas das gravadoras e dos meios de reprodução midiáticos. Além disso, tal escolha também ilustra o momento de consagração atingido, o que lhe garantiu certo grau de independência em seus trabalhos em virtude do status que alcançara na ainda curta carreira, mas já de enorme sucesso. Em suma, depreende-se de suas músicas um considerável poder exercido pela indústria fonográfica sobre os artistas, algo que perceptivelmente não ficou restrito em Belchior apenas à retórica, convertendo-se num sentimento de frustração que ditou vários dos passos dados em sua vida pessoal após o ápice do sucesso - obtido nas décadas de 1970 e 1980. Por fim, além das já citadas distinções de seu talento musical, que serviram para motivar a personalidade do homem que largou sua rotina em Fortaleza para descobrir uma nova vida e o sucesso musical numa região tão distante, a figura de Belchior atraiu grande atenção do público e da mídia após seu repentino e misterioso refúgio dos holofotes, dos palcos e das câmeras. Embora controversa e polêmica, a atitude tomada pelo artista objeto deste escrito se apresenta como mais uma estrofe de suas letras de rebeldia, isolamento e desprendimento material.

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Recebido em: 25/09/2020 Aprovado em: 12/10/2020

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