Violência à flor da pele – vertentes e vontades: uma abordagem poética

por Jorge Lopes dos Santos Departamento de Ciência da Literatura

Tese de Doutorado em Poética apresentada ao Conselho dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do . Orientador: Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho.

UFRJ 1º Semestre de 2006

Que este ofício de escrever, sem tirar nem pôr, é o mesmo que o ofício de viver; quero dizer o de amar.

Thiago de Mello

O teatro é um dos mais expressivos e úteis instrumentos para sua edificação de um país e é barômetro que assinala a sua ascensão ou queda (...) Um povo que não fomenta o seu teatro, se não está morto, está moribundo, da mesma forma, o teatro que não recolhe o pulsar social, o pulsar histórico, o drama das suas gentes e a cor genuína de sua mensagem e do seu espírito, pelo riso ou pelas lágrimas, não merece que se chame teatro, mas sim sala de jogo ou local para fazer essa coisa horrível que se chama matar o tempo.

Federico Garcia Lorca Oh, mãe, minha mãe Tanto me sinto só (...) Eterna e terna O encanto de toda paz Me traz você

Oh, mãe, doce mãe Cadê a sua voz (...) Procuro a tua mão Cadê, cadê (...) Adeus minha mãe A vida deve tanto A sua vida (...)

Toninho Horta/ . Estrela do meu céu.

À memória de Walda Lopes pelas lições de amor e dignidade.

À minha primeira Cartilha , ponto de partida para que pudesse ter chance de ler as marcas do mundo e entender a vida.

À Wilma Lopes , exemplo de luta e força nas desditas e dores que a vida nos presenteia. - com carinho.

A Charleston , meu sobrinho-afilhado, certo de que (...) Vai ter que amar a liberdade Só vai cantar em tom maior Vai ter a felicidade De ver um Brasil melhor!

Martinho da Vila – Tom maior

A verdade é que, quando a gente canta somente aquilo que a gente sente profundamente não há lugar nenhum para canção doente porque a alegria se derrama quente pois quando a gente canta (...) ... força da canção explode (...)

Luiz Gonzaga Júnior

Num grito de gratidão a tantas pessoas que, no percurso da minha existência, constituíram-se elos essenciais de incentivo, levando-me acreditar que a vida está mais que nunca em nossas mãos . Lembrá-las, aqui, é uma forma de sincero reconhecimento. Ao Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho , meu orientador, pela lição de serenidade, firmeza, compreensão e generosidade aceitando-me como seu orientando – exemplo de fé e força. Aos meus Professores do Mestrado e Doutorado da UFRJ e a todos os demais que passaram na minha vida estudantil e, em especial, a Leda Rodrigues , Adne Malamace , Nilza Prado de Castro – pelas diversas lições. Aos Professores Jorge Spirrot , Tácito Maciel Sampaio e José Maria de Souza Dantas – onde estiverem – minha gratidão, pelos ensinamentos para a vida e a paixão pela literatura. Às Bancas Examinadoras (Qualificação/ Defesa), pela atenção para com o meu trabalho, no esclarecimento, direcionamento e na ajuda à reflexão. À Faculdade de Letras da UFRJ, pela oportunidade de aprimoramento profissional. Nela, em meio às dificuldades, agradeço aos funcionários. Destaco Ezenira Marinho , Maria Helena Ferreira de Santana e Wilma de Oliveira Garrido Soares que, com determinação e estímulo, procuraram entender minhas inibições e inseguranças. Aos funcionários da Biblioteca de Letras da UFRJ e da Biblioteca Edmundo Muniz (FUNARTE) – pela presteza e solicitude. À professora Patrícia, pelas importantes aulas de Língua Italiana para o exame de seleção do curso de Doutorado.

Coisa mais maior de grande – pessoa Eu aprendi que o pouco que sou depende tanto e sempre de tanta/muita gente Eu entendi que sou uma pessoa e carrego a forte marca das lições de outras pessoas (...)

Luiz Gonzaga Júnior

Portanto, meu preito de agradecimento pelos gestos, palavras e acalanto que acolheram muitas vezes meu canto chorado num companheirismo sem igual. A Wilma Lopes dos Santos e Charleston Lopes dos Santos – irmã e sobrinho (afilhado) tão guardados no lado esquerdo do peito – uma lição de vida. Aos amigos tão caros: Adriana dos Anjos , Célia Martha Vasconcellos , Jositânia Souza dos Santos , Vera Kauss e Weber Alves Júnior – irmãos adotados pelo eco do coração, pela amizade que honra, eleva e consola . Às amigas Lair Bastos , Cléia Lírio , Marisa Porto , Regina Célia Duarte , Marlene Carneiro , Zaíra Gama , Maria da Conceição da Mota , Isa Ramos e Alexina Glória pelo convívio amigo na graduação. A Vera Lúcia Fernandes , Helena Paes , Sabah Manso e Joelma Martins , pela amizade eternizada a cada instante, exemplos de dignidade profissional. A José Carlos de Oliveira , afilhado e amigo sempre. A Elvira Torselli , verdadeira configuração de força e credibilidade. A Altair Conceição , André Duarte , Luciana Pinheiro , Marcelo Ribeiro , Michell Harrigan , Roberto Luiz dos Santos e Valmir Moraes Paiva – meus afilhados – gritos solidários que me encorajam. A Adriana dos Anjos e Nadja Vasconcellos , pela paciência, gentileza e presteza na digitação dos trabalhos. À Doutora Thereza Christina Cypreste de Miranda , pela competência, segurança e préstimos profissionais. À Professora Conceição Portugal , por tamanha amizade. À Professora Doutora Célia Martha Vasconcellos, pela gentileza do abstract . A Lygia Peregrino Morales, Iara Martins, Iara Kronhand, Maria Bandeira, Maria Augusta Pinheiro, Maria Socorro Mendes, Ester Jacqueline Azoubel e Shirley Siqueira – vozes que ecoam carinho. A José Carlos da Silva Oliveira, Waldir Magalhães Gadelha, Marcelo de Campos Barbosa, Gabriel Barbosa, Tânia Mara, Irênio Albuquerque Neto, Hilton Gonçalves, Antônio Carlos, Cassiane Rodrigues, Allan Batista Tinoco, Luiz Fernando Fonseca de Souza, Ricardo Fonseca de Souza, Fernando Fernandes, Reginaldo Vieira de Souza, Maria Tereza de Paula Araújo, Hermínio Conceição, Vinícius Costa Bastos, Márcio Quitanilha, Alfredo Gregório, Márcio Rocha da Silva, Cesar de Souza Marques, Mara Lúcia Oliveira Rodrigues, Itamar Lira, Sandra Jordão, Wagner Espírito Santo Barreto, Leandro Andrade Freitas, Júlio César Martins Duarte, Leandro Timótheo, Patrícia Muniz, Pitter Bruno, Jorge Antônio dos Santos Lima, Richard Fonseca, Marcelo Paiva, Marcos Pereira, Márcia Rosa Amorim, Luciano Carvalho, Rafael Santos, Rafael Carvalho, Armando da Rocha Sampaio, Gisele Alves, Cristiano Gomes, Wagner Oliveira e Valéria Tuhler que são como: Certas canções que ouço Cabem tão dentro de mim.

A Leir Machado Borges, revelação de compreensão e amiga a quem muito devo. Às colegas Vera Regina, Norma Raulino, Marlene Farias, Maria José, Sheila, Mariângela, Sandra Estrela, Figueroa , Ana Lúcia e Soraya Spitz – pelo apoio. Às irmãs Cristina e Ismênia, páginas importantes na minha formação profissional, eterno reconhecimento. A Maria Carminda e Marilza Conceição – por tudo que me reservam de amizade. A Gilçara, pela generosidade e carinho sempre. À minha solidão, meu grito mudo, pela vida... e a todos que me ajudaram de uma forma ou de outra... na impossibilidade de citá-los, considerem-se homenageados.

Agradecimento ao livro

Enfileirados e silenciosos nas prateleiras, quietos, juntos uns dos outros, talvez até empoeirados, ali estão os livros e quando um é escolhido, aberto e folheado é um mundo maravilhoso que se abre aos nossos olhos, nossas mãos firmes ou trêmulas, velhas ou jovens os agarram com ternura e eles continuarão silenciosos em nossas mãos, deslumbrantes pássaros cativos, que não esvoaçam para fugir-nos,e então ao lê-los o mundo resplandece, e onde quer que estejamos, em nossa casa, no hospital, na prisão, na casa dos livros, bibliotecas, eles serão os nossos melhores amigos.

Como podemos agradecer a essas criaturas vivas, feitas de papel e letras, que são os livros? Manoel Mattos de Pinho

SINOPSE

Há na leitura dos textos dramáticos, aqui, escolhidos uma tentativa de compreender acontecimentos tão violentos ocorridos após a implantação de um regime governamental que, certamente, transformou o panorama cultural brasileiro, levando as artes, no nosso caso o teatro a denunciar variados tipos de violência que ficou à disposição dos cidadãos brasileiros. SUMÁRIO

Introdução 01

1 – Violência à flor da pele 09 1.1 – O homem à luz da violência 10 1.2 – A violência: expressões e manifestações 13 1.3 – Sob a celebração da violência: o sonho de um Brasil livre 37

2 – Tortura como espetáculo do suplício 54 2.1 – Considerações sobre a tortura 55 2.2 – Breve história da tortura: do Iluminismo à atualidade 60 2.3 – O espetáculo do suplício no Brasil 67

3 – Reflexão comedida acerca de Teatro 77 3.1 – A situação do teatro nos estudos literários 78 3.2 – Surgimento do teatro brasileiro 96 3.3 – Panorama do teatro brasileiro: na cadência da República Velha 126

4 – Vertentes e vontades: cena e violência – um espetáculo social 144 4.1 – Teatro como discussão social 144 4.2 – Cena e violência – a dor como espetáculo 158 4.2.1 – As vertentes da dor nos textos teatrais escolhidos 161 4.2.1.1 - À flor da pele 161 4.2 .1.2 - O amor do não 165 4.2.1.3 - Milagre na cela 171 4.2.1.4 - Fábrica de Chocolate 176

5 – Conclusão 180

6 – Bibliografia 186

7 – Resumo 197

8 – Abstract 198

Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram, mas pela astúcia que têm certas coisas passadas. Guimarães Rosa

Mas ainda é tempo de viver e contar. Certas histórias não se perderam. Carlos Drummond de Andrade

Introdução

Golpes e contragolpes, freqüentemente, ameaçam o regime liberal-democrático brasileiro instituído em 1946. No início dos anos 60, após a frustrada tentativa de Jânio Quadros de voltar ao governo com plenos poderes, tem-se a implantação do parlamentarismo como uma solução de compromisso diante do ensaio golpista dos ministros militares, com o pleno respaldo de setores civis conservadores. Eis, então, no início dos anos 60, a sociedade defrontando-se com o desafio com o qual ainda nos deparamos hoje – de tentar diminuir as profundas desigualdades sociais e econômicas no marco das instituições democráticas. Naquele momento, um conjunto de reformas ocupou o centro da agenda política e as instituições democráticas não resistiram à pressão de forças politizadas e radicalizadas a favor e contra a mudança social. A questão central escolhida como tema, aqui proposta para tese de doutoramento, terá como escopo investigar, dentro dos textos À flor da pele (Consuelo de Castro), O amor do não (Fauzi Arap), Milagre na cela (Jorge Andrade) e Fábrica de Chocolate (Mário Prata), a violência denunciada nestes textos que, sem dúvida, marcam uma produção cultural de um período dos anos 60 e 80, quando uma série de modificações de ordem econômica, política e social vem refletir-se no plano da cultura, dentro do qual enfocamos a violência evidenciada nos textos teatrais como objeto de nossa análise. O surgimento de vários atos, decretos, portarias, regulamentações e medidas administrativas criadas e desenvolvidas pelas agências governamentais – em nível federal, estadual e municipal – ocorreram como conseqüência mais ampla de uma conjuntura de Poder e uma conformação muito clara de Estado. Uma série de instrumentos jurídico-institucionais rege esta variável de forças num país onde se vivia sob a égide da Lei de Segurança Nacional e do modelo econômico implantado, conhecido como milagre ou modelo brasileiro . Dois grandes espectros posicionam-se na base destes procedimentos: a segurança nacional e o desenvolvimento acelerado. O processo acelerado de industrialização, que tinha como centro a Região Sudeste, resultou numa intensificação do movimento migratório do campo para as cidades, principalmente do Nordeste. O crescimento urbano resultou também num grande aumento da construção civil, estimulada pelo financiamento da casa própria, sobretudo para a classe média via recursos das cadernetas de poupança e do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, criado na época. A classe média melhorou seu nível de vida, com a expansão de empregos urbanos gerados pelo próprio desenvolvimento industrial. Multiplicavam-se os grandes supermercados e Shopping Centers . O hábito de consumismo, nessa camada social, foi incentivado pela publicidade extensiva na tevê. Graças aos avanços da tecnologia, a televisão se difundiu por todo o Brasil, modificando drasticamente os costumes, principalmente nas pequenas cidades do interior. Criou-se no Brasil a ilusão de que o país havia se transformado numa grande potência, difundindo-se a imagem do Brasil Grande, que era estimulada por intensa propaganda do governo e alguns slogans, como Ninguém segura mais este país , Brasil, ame-o ou deixe-o. Até mesmo o futebol foi utilizado como propaganda do governo: em 1970, a vitória da Seleção Brasileira na Copa do Mundo foi atribuída ao milagre econômico . O golpe militar de 64 fez o Brasil entrar numa fase bastante sombria da sua história. Os militares passaram a controlar o poder. Sua preocupação básica era a segurança e o desenvolvimento. Para garantir a segurança, violentaram os direitos políticos e civis, amordaçaram a oposição e instalaram a paz dos cemitérios. O Brasil, verdadeiramente, foi o primeiro país sul-americano em que, com a derrubada de um governo constitucional, o Exército se transformou em senhor absoluto com capacidade de comando para intervir, juntamente com a Marinha e a Aeronáutica, nos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Naquele abril de 1964, após derrubarem João Goulart da Presidência do Brasil, as Forças Armadas, tendo à frente o Exército, iniciavam a implantação de uma nova ordem política – o Regime Militar – baseada na Doutrina de Segurança Nacional e seu duplo ideal: Segurança Nacional e desenvolvimento econômico. Determinados em acabar com a corrupção e a subversão, os novos donos do poder divergiam, porém, quanto à permanência militar no comando político do país, essa divergência dividiu os militares em duas correntes: a linha dura e a moderada. Os moderados como Castello Branco, Geisel e outros, defendiam a idéia de que o poder deveria ser devolvido aos civis, assim que fossem extintas a corrupção e a subversão. Os duros , como Costa e Silva, Médici e outros, pregavam a permanência definitiva dos militares no poder. Assumindo a Presidência da República em 15 de abril de 1964, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco – líder militar do movimento que derrubou João Goulart – já era senhor de um poder excepcional legitimado pelo Ato Institucional nº 1 (AI-I), outorgado seis dias antes pelo Supremo Comando Militar, composto por membros das três Forças Armadas. Constatamos que, embora fosse presidido por um moderado, o governo Castello Branco – a fim de frustrar o plano comunista de conquista do poder e defender as instituições militares – iniciou a chamada operação limpeza . Ela se caracterizou por inquéritos policiais – militares, intervenções em sindicatos e federações operárias, prisões, cassações de mandatos de vários deputados e suspensão dos direitos políticos de João Goulart, Leonel Brizola, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e outros. Foram presos líderes sindicais, operários, religiosos, estudantes, professores, camponeses e militares acusados de subversão. Extinguiram-se as ligas camponesas bem como todas as organizações que defendiam as Reformas de Base no Governo Goulart. Nos primeiros meses de governo, Castello Branco mostrou-se preocupado com a legalidade democrática. Porém, em julho de 1964, pressionado pelos duros, aceitou a Emenda Constitucional que prorrogava seu mandato até março de 1967. Isso contrariava a idéia inicial dos moderados de devolver, a curto prazo, o poder aos civis. Em 1965, houve eleições para governadores em onze estados. Nos demais, as eleições seriam em 1966. A vitória dos candidatos de oposição no Estado de Minas Gerais (Israel Pinheiro) e no Estado da Guanabara (Negrão de Lima) agitou os meios militares, pois esses candidatos eram acusados de estar contra o regime militar, além de serem aliados de Juscelino, o ex-presidente cassado. Os duros consideravam essa vitória eleitoral uma ameaça ao regime e exigiram que o presidente Castello Branco impedisse a posse dos eleitos. Castello Branco garantiu a posse, porém, em obediência a compromissos entre moderados e duros , decretou o Ato Institucional nº 2 (AI-2) em outubro de 1965. Tal Ato determinava que as eleições para presidente, a partir de então, seriam indiretas, extinguia todos os partidos políticos e dava ao presidentes da República o direito de decretar o fechamento do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas Estaduais e das Câmaras Municipais. Em novembro, através de um Ato Complementar, foram criadas condições para a organização de dois novos partidos: Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Podemos observar que eram apenas arremedos de partidos criados para justificar a existência formal do Poder Legislativo. Nenhum deles representava as verdadeiras aspirações populares. Houve muitas reações contra o AI-2. Carlos Lacerda se indispôs com o governo porque pretendia lançar-se candidato à Presidência nas eleições diretas que deveriam ocorrer em 1965. Em fevereiro de 1966, o Governo Federal, para evitar novas e desagradáveis surpresas eleitorais, decretou o AI-3, que estabelecia eleições indiretas para governadores e para os prefeitos das capitais e das cidades, consideradas áreas de Segurança Nacional. Em janeiro de 1967, foi reaberto o Congresso Nacional – fechado desde outubro de 1966 -, apenas para aprovar a nova Constituição, o que foi feito de acordo com o recém-decretado AI-4. De maneira geral, a Constituição de 1967 era a afirmação dos Atos Institucionais e Complementares até então decretados. A chegada dos duros ao poder concretizou-se com a eleição indireta do general Costa e Silva em 1967. A partir daí os duros foram senhores absolutos da política nacional até 1974, período que corresponde aos Governos Costa e Silva (1967-1969) e do General Garrastazu Médici (1969-1974). Costa e Silva tomou posse num momento em que a soberania do Poder Executivo garantida pela Lei de Segurança Nacional e pela Lei de Imprensa governava com uma férrea censura aos meios de comunicação. O Poder Legislativo perdera para o Executivo grande parte de suas funções de legislador, e o presidente da República executava toda a política nacional assessorado pelo Alto Comando e Estado-Maior das Forças Aéreas e pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), que garantia ao governo as informações necessárias para a fiscalização oficial da vida nacional. Em março de 1968, ao reprimir um movimento estudantil no Rio de Janeiro, policiais da tropa de choque mataram o estudante secundarista Edson Luis de Lima Soreto. Esse fato aumentou a contestação estudantil e o ressentimento geral ao regime. Gigantescas marchas de protesto foram organizadas por todo o país. Em algumas, universidades as aulas foram suspensas. Na Universidade de Brasília, muitos alunos e professores foram presos. Estimulados pelo movimento estudantil, os líderes sindicais organizaram greves, como a de Contagem, em Minas Gerais, e a de Osasco, em São Paulo, reprimidas com o rigor que o regime achava necessário. Costa e Silva fechou o Congresso e decretou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. O Brasil iria conhecer um dos períodos mais tristes de sua história política. O AI-5 suspendia as garantias constitucionais e o direito de habeas-corpus , dando ao presidente o poder de intervir nos estados e municípios; decretar estado de sítio por tempo ilimitado sem aprovação do Congresso Nacional; fechar o Congresso também por tempo ilimitado; novamente cassar mandatos e suspender por dez anos os direitos políticos do cidadão e demitir ou reformar oficiais das Forças Armadas e das polícias militares. A imprensa ficava proibida de publicar qualquer notícia sobre movimentos operários, estudantis e de divulgar qualquer crítica ao regime. No lugar das frases ou artigos cortados, apareciam receitas culinárias, tímido protesto contra a violência do governo. Algumas organizações pregavam a necessidade de se formarem focos guerrilheiros, a partir dos quais se ampliaria a luta contra o regime. No campo, organizaram-se dois movimentos guerrilheiros, entre 1970 e 1974: um no Vale do Ribeira e outro na região do rio Araguaia. Nas cidades, as organizações revolucionárias tinham como principal objetivo conseguir dinheiro para comprar armas e treinar os soldados guerrilheiros. Por isso, uma das formas de ação que adotaram foi o assalto a bancos. A partir de 1969, essas organizações foram desbaratadas pelas forças de repressão. Seus integrantes sofreram uma perseguição sem tréguas, foram presos ou mortos, e muitos desapareceram. Aqueles que conseguiram escapar se exilaram no exterior, onde permaneceram por muitos anos. Assim, até meados da década de 70, os movimentos de resistência armada à ditadura foram liquidados. A luta armada não foi a única forma de resistência à ditadura. Houve, por exemplo, o surgimento de inúmeros jornais, chamados nanicos , que usavam os recursos de humor e da sátira para fazer críticas ao governo. As artes também manifestaram a crítica ao regime. Nas letras das músicas, por meio de trocadilhos e entrelinhas, denunciava-se o clima repressivo no país. Também o teatro participou desse movimento de crítica, sobretudo o grupo do Teatro de Arena, com a participação de e . O teatro, no curso da década de 60, constitui-se num dos mais importantes focos da atuação cultural da intelectualidade, fazendo florescer toda uma geração sintonizada e mobilizada por uma expressão artística que até a década anterior era considerada coisa menor ou diletantismo burguês . Devido à atuação de vários conjuntos profissionais de qualidade, de expressivas experiências de teatro popular e de cunho propagandístico, de grupos universitários e amadores, a década de 60 assistiu a um crescimento e ampliação rápida da importância e abrangência da atividade. Contragosto ao golpe de 64 o teatro pode demonstrar, pelo grau de sua mobilização, um front aguerrido de indivíduos dispostos à luta e funcionar como local de concentração de vários movimentos de protesto e de resistência democrática. Mesmo a despeito da forte Censura implantada foi um dos poucos setores da produção cultural que pode realizar atos de desobediência civil e de luta organizada pela livre expressão de vários segmentos sociais. De forma que em 69, parecia ser ele o segmento cultural mais organizado e defendido, o que mais requeria corrigendas e admoestações, que funcionassem como exemplaridade frente aos demais setores da produção cultural. A perseguição política movida contra algumas figuras destacadas da cena brasileira e a vigilância cercada contra alguns grupos e companhias teatrais, neste período, exemplificariam o caráter da repressão instalada contra o setor. A liquidação dos últimos movimentos populares ainda resistentes bem como da guerrilha, nos anos vindouros, configuram o período como uma época de violência institucional, ação repressiva sangrenta, tempos negros e de pânico. O país entrava assim na nova década sob o clima de estado de sítio. É o período em que, nos vários setores da produção cultural, surgem formas expressivas desligadas deste passado recente, articulando temas e significações distantes daquelas cogitações anteriores, inventado formas e práticas poéticas inovadoras e renovadas. Conhecidas como underground , desbundados , marginália , etc., estes novos produtores retomam certos procedimentos das vanguardas internacionais e criam um novo espaço e uma nova problemática para ser debatida, aberta ao clima dos novos tempos e incorporando em sua crítica aspectos abrangentes da crise brasileira...1

O rápido e irreversível crescimento da indústria cultural que foi se estabelecendo desde meados da década de 60 contra agora, após a adubação fornecida pelo milagre , condições ótimas de pleno desenvolvimento e expansão, tornando-se o setor privilegiado e hegemônico em toda a década de 70. A cultura popular, abafada pelo descaso governamental e considerada alienada pela arte revolucionária efetivada pelo iluminismo do CPC e outros movimentos sintonizados com o protesto dos anos 60, passará a partir de agora a sofrer uma mais espessa vigilância, um mais rígido controle que contribuirá para sua dispersão, aniquilamento e domínio ideológico.

1 MOSTAÇO, Edélcio. O espetáculo autoritário. São Paulo : Proposta Editorial, 1983, p. 15. Por outro lado, uma parte da Igreja, denominada Nova Igreja, passou a assumir uma atitude crítica perante a situação nacional, denunciando a desigualdade, a pobreza, a miséria. A própria Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) defendeu os direitos humanos, denunciando as torturas praticadas nas prisões e os assassinatos. Também assumiu a defesa de setores da população que se tornaram vítimas do crescimento econômico, como os índios e os trabalhadores rurais. Nosso trabalho está dividido em quatro capítulos, a saber: o primeiro, Violência à flor da pele , apresenta uma reflexão acerca da relação existente entre o homem e a violência; no segundo, denominado Tortura como espetáculo do suplício , discorremos sobre o histórico da tortura como um ato de extrema violência, enfatizando tal ocorrência no Brasil. O terceiro capítulo faz uma Reflexão comedida acerca de teatro. Nele, comentamos a situação do teatro nos estudos literários, além de mostrarmos o surgimento e um panorama do teatro no Brasil. O último capítulo sob o título Vertentes e vontades: cena e violência – um espetáculo social revela um estudo do teatro brasileiro como possibilidade de discussão e revelação de problemas abrangentes da sociedade. Para tal, usamos os textos já mencionados que se tornaram elementos exemplificadores da questão escolhida como objeto da tese: a violência à flor da pele.

1 – Violência à flor da pele (...) Ando tão à flor da pele que a minha pele tem o fogo do juízo final

um barco sem porto sem rumo sem vela cavalo sem sela um bicho solto um cão sem dono um menino um bandido (...)

Zeca Baleiro. Flor da pele

(...) A vida me fez assim Doce ou atroz, manso ou feroz Eu, caçador de mim (...)

Sérgio Maranhão / Luiz Carlos Sá. Caçador de mim

Vivos, os “bons” são tangidos daqui para ali, corridos, vexados, se têm grandes ideais, mortos, os seus ossos esperam que os grandes rios de Bruzunganda os levem para fecundar a terra dos outros, lá embaixo, muito longe...

Lima Barreto. Os Bruzundangas

1.1 – O homem à luz da violência

Hoje as relações entre o Estado e a violência são especialmente íntimas. Max Weber

E do amor gritou-se o escândalo Do medo criou-se o trágico No rosto pintou-se o pálido E não rolou uma lágrima Nem uma lástima pra socorrer E na gente de o hábito De caminhar pelas trevas (...) De ver o tempo correr

Chico Buarque. Rosa dos ventos

O homem, ao lançar um olhar sobre o espaço circundante, revela-se perplexo e assustado diante de tanto a percorrer, explorar, conhecer, compreender, enfim, conquistar! Questionando-se a respeito do mundo, ele é conduzido pela dinâmica da evolução a indagar-se sobre si mesmo, sobre este âmago e estranho mistério que caracteriza seu próprio ser: Quem sou? – O que é o homem? Segundo Dadoun, eis o questionamento que marca e define a ascensão da humanidade à consciência de si própria, o eixo em torno do qual, desde então, não cessará de girar o pensamento, 2 caracterizando a questão filosófica acima de tudo, indefinidamente retomada, infindavelmente fugaz. O conceito evolucionista apresenta-nos um argumento sugerindo colocar o homem numa graduação hierárquica das espécies humanas emergidas ao longo do tempo: o homem é o ser do saber, da consciência, da razão, do pensamento – homo sapiens . O homem é aquele que se destaca no reino animal e na sucessão dos hominídeos pela aptidão suprema denominada Inteligência. Dadoun nos faz ver que já bastante explorada – esta denominação homo sapiens, até redobrada em homo sapiens sapiens ,

2 DADOUN, Roger. A violência: ensaio acerca do “homo violens” . Trad. Pilar Ferreira de Carvalho, Carmen de Carvalho Ferreira. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998, p. 5. realça excessivamente e de modo narcisista as aptidões intelectuais - às custas de outras dimensões determinantes da estrutura humana.3 Reconhecemos que a respeito do molde latinizante de homo sapiens vários autores discorrem, cada qual de acordo com sua corrente, acerca de formulações originais desta estrutura. Bérgson insiste impetuosamente na capacidade de fabricação do homem, procedente diretamente de seus antepassados, homo habilis . É ele quem diz: se pudéssemos nos despojar de todo orgulho, se, para definir nossa espécie, nos mantivéssemos estritamente ao que a história e a pré-história nos apresentam como característica constante do homem e da inteligência, talvez não disséssemos homo sapiens, mas homo faber. 4

Arendt condena a orientação deliberada e unilateralmente operária do homo faber , colocando em evidência o conceito, formado por Marx, da criação do homem pelo trabalho – conceito que assinala a vontade de Marx em substituir a tradicional definição do homem, animal rationale , pela definição animal laborans .5 Dadoun, em seu ensaio já citado, sugere que se deixe animal e que se retome homo , no intuito de melhor realçar, a partir, porém bastante distantes das considerações de Hannah Arendt, a figura de um homo laborans , um ser que se completa pelo e para o trabalho .6 O ensaísta afirma que logo seríamos contestados, pois não há somente o trabalho, há o jogo, o homem joga , fundamentalmente do modo como o mostra Johan Huizinga na obra Homo ludens , na qual explica que o jogo desempenha uma função tão essencial quanto a de fabricar – levando-nos à idéia totalizadora: Tudo é jogo! 7 A expressão aristotélica definindo o homem como zoon politikon , “animal político”, sintagma que se traduziria por homo politicus , aponta que o homem é feito para a vida em sociedade, que a atividade política , no sentido cabal do termo, lhe é consubstancial. Assim, Dadoun conclui que: características paralelas, que testemunham diversas modalidades da atividade humana, nos são então impostas: homo religious, homo occonomicus, homo aestheticus, valorizando os vínculos do homem com o sagrado, com as trocas e a produção, com a beleza; e se formos mais além, encontraremos um homo hierarchicus, preso a uma organização hierárquica da sociedade, face a um homo aequalis , que seria o homem do povo fomentado por uma

3 Idem, p. 6. 4 Idem, ibidem. 5 ARENDT, Hannad.. Condição do homem moderno . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961, p. 98. 6 DADOUN, Roger. Opus cit, p. 7. 7 HUIZINGA, Johan. Homo ludens: essai sur la function sociale du jeu (Homo ludens, ensaio sobre a função social do jogo). Gallimard, 1988, p. 11. ideologia igualitária – e assim poderíamos prosseguir longamente esta declinação do gênero homo... 8

Uma outra característica do homem, que nos parece básica, fundamental, e até mesmo elemento constitutivo do seu ser é a violência . Atualmente, a violência parece bem arraigada em nosso cotidiano – o que nos faz entender que pensar e agir em função dela põe de lado a consideração de ser um ato circunstancial, para se transformar numa forma do modo de ver e de viver o mundo do homem .9 Odalia frisa: especialmente, do homem que vive nas grandes cidades – esses grandes aglomerados humanos que se tornam o caldo da cultura de todos os tipos de violência. 10 Normalmente, ao falarmos sobre violência, sua primeira representação, seu aspecto mais direto e visível, é a que se traduz em agressão. Agressão que alcança o corpo e os bens do homem, quanto aquilo que, certamente, mais estima: sua família e seus amigos. Tal violência – seja qual for sua intensidade – está à vista nas regiões mais requintadas e nas favelas, nos bairros da classe média e nas habitações em ruína, nos estádios esportivos ou em campos de várzea. Essa violência que se alarga do centro à periferia da cidade e seus longos braços a tudo e a todos envolvem , forma o que se poderia denominar, numa evidente ironia, de uma democracia na violência .11 É perceptível que as conseqüências dessa violência vão demarcar a paisagem urbana, influenciando até mesmo uma adaptação da arquitetura para condições de vida naquele espaço. É Nilo Odália quem nos afirma que ... anos atrás, o arquiteto buscava conquistar os espaços exteriores, os jardins se abriam acompanhando o movimento e o ritmo das rosas e margaridas que captam o espaço externo, mostrando-se. O espaço visual era ampliado, pois as residências eram projetadas para fora e funcionavam como observadoras de espaço. Hoje, a arquitetura perde seu sabor pela vida exterior, interioriza-se, e o que busca, desesperadamente, é a segurança e a defesa. (...) A arquitetura do espaço aberto cede seu lugar a uma arquitetura de defesa e proteção. 12

8 DADOUN, Roger. Opus cit, p. 7-8. 9 ODALIA, Nilo. O que é violência. São Paulo: Nova Cultura: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos) p. 9. 10 Idem, ibidem. 11 ODALIA, Nilo. Opus cit, p. 10. 12 Idem ibidem. Se uma classe privilegiada pode tornar seu espaço contido substituindo os jardins por fortes muros que nos trazem à memória as ameias e os castelos medievais , no outro pólo social, nas regiões em que sobram favelas e moradias em ruína, a violência não tem como ser impedida e evitada com muralhas e cercas. Não há dúvida de que ela é uma realidade cuja proximidade e intimidade contribuem para seu esquecimento. Odalia ainda nos faz perceber: Sobreviver aí é sofrer e produzir violência. Na favela, no cortiço, embaixo das pontes, como o isolamento é uma quimera, a única arma contra a violência é permitir que a promiscuidade e o hábito teçam uma rede de conformismo que, aqui ou ali rompida, não deixam de funcionar como uma falsa proteção. Não havendo uma solução para a violência da vida cotidiana, o remédio é integrá-la como um componente normal das relações entre os homens. 13

A violência está tão permanente em cada atitude do homem moderno que não se pode deixar de questionar a natureza desse fenômeno. Será típico de nossos tempos? Ou se caracteriza como uma feição indispensável a individualizar nossa época? Ou melhor, a violência, em nossos tempos, é um elemento estrutura que autorize distinguir nosso modo de viver, nossas situações de vida em sociedade, das sociedades que nos antecederam há anos e anos? A violência de nossa época é um estilo de ser do homem contemporâneo?

1.2 – A violência: expressões e manifestações

À flor da pele e ao fundo da alma – assim é a violência no cotidiano, uma violência que corre e ricocheteia sobre todas as superfícies de nossa existência e que uma palavra, um gesto, uma imagem, um grito, uma sombra que seja, capta, sustenta e relança indefinidamente, e que, no entanto, desta espuma dos dias, abre à alma vertiginosos abismos em mergulhos de angústia que nos fazem dizer: Sou eu mesmo toda essa violência? (...) Roger Dadoun. A violência

13 Idem, p. 12.

As selvas te deram nas noites Teus ritmos bárbaros E os negros trouxeram de longe Reservas de pranto Os brancos falaram de amor Em suas canções E dessa mistura de vozes Nasceu o teu canto Brasil (...)

David Nasser / Alcir Pires Vermelho. Canta Brasil

A violência transformou-se em fato comum nas sociedades contemporâneas, de modo a tornar-se um grande desafio para a percepção moral de nossa época. Como afirma Bingemer, sua generalização apresenta-se como um paradoxo no momento em que nossa compreensão dos fenômenos naturais e sociais; em que o avanço do saber científico e das conquistas da razão; em que a consciência do valor e do respeito à vida pareciam afirmar- se de modo indiscutível. 14

Percebe-se que é no século XX e neste que iniciamos que a violência ganha notoriedade em suas formas mais pérfidas, mais cínicas, numa intensidade de requinte que certamente excede bastante as épocas mais tiranas da história da humanidade. Podemos constatar que genocídios e torturas organizados: perseguições de todas as gradações; depurações raciais e limpezas étnicas 15 ; êxodo compelido de grupos populacionais inteiros e grupos sociais desarmados; terrorismo; segregação e/ou exclusão econômica, racial e religiosa; todos constituem procedimentos individuais e coletivos que revelam o insensível desejo de destruir o outro. Bingemer nos alerta que como se isso não bastasse, o desenvolvimento técnico-científico deu origem a novas formas de coação moral e física que possibilitam a manipulação e a violação das consciências, verdadeira indústria da alienação e do cerceamento à liberdade. Estas formas são muito provavelmente as mais danosas, pois, manipulando habilmente as motivações,

14 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Vidência e religião: Cristianismo, Islamismo, Judaísmo – três religiões em confronto e diálogo . Maria Clara Lucchetti Bingemer (org.); Edson Damasceno [et al.]. Rio de Janeiro: Editora PUC; São Paulo: Loyola, 2001, p. 11. 15 Termo usado por Maria Clara Lucchetti Bingemer. Opus cit, p. 11. tendem a encerrar o indivíduo numa rede invisível, fazendo com que ele se torne mais prisioneiro na medida em que se sente mais livre. 16 Tais formas de coerção moral, ordenadas técnico-cientificamente, são impassíveis, porque salteiam a consciência no momento em que ela se acha inerme, apossando-se da vontade dos indivíduos. Desta forma é possível que formem o modo mais ameaçante de violência e a maior das provocações para o futuro. Porquanto, contra a brutalidade explícita pode-se supor uma reação que se imponha por si mesma, ao passo que as técnicas de adestramento e condicionamento tendem a conquistar a conivência, quando não a cumplicidade daqueles que são enredados em suas malhas. 17 Entendemos que, possivelmente, o mais intrincado triunfo da violência esteja em não permitir que ninguém fique fora do seu envolvimento tentacular. É mister que se compreenda que todos estamos comprometidos. Segundo Bingemer, somos todos vítimas de uma história patológica. 18 Cremos que a saída para que aconteça uma cura coletiva é a conscientização de um processo solidário de cura e aceitar que a sociedade padece deste mal. 19 Identificar a carga de agressividade e violência que se acha em todos e individualmente é a única vereda possível para encaminhá-la em outra direção, seguir outro rumo para assinalar, também, que não se refere unicamente a uma situação pessoal, mas também e igualmente estrutural. Bingemer, apoiada nos estudos de Häring da obra anteriormente citada, adverte-nos que estruturas que significam condições de comércio totalmente errada e injustas, desejo de hegemonia por parte de grandes potências, dissipação de riqueza na corrida armamentista e na exploração das nações pobres são um desafio à consciência da humanidade e uma chamada à responsabilidade de todos e de cada um. 20

Observa-se que, por outro lado, a doutrina da modernidade consagrando o sucesso, a eficiência, a força, coopera para que a violência encontre cada vez mais explicações de cidadania no mundo no qual estamos inseridos. A própria manutenção do status quo – como nos diz Bingemer – é renovadora da violência, instituindo uma razão armada

16 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Opus cit, p. 11. 17 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Opus cit, p. 12. 18 Idem, ibidem. 19 HÄRING, B. O evangelho que nos cura. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 21. 20 BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Opus cit, p. 12. que se torna arma e justificativa da cultura que defende o poder e estimula seu uso indiscriminado. 21 Percebe-se, então, uma ausência de sentido para a vida, que se distingue pela impetuosa busca do ter , em lugar do ser , além do evidente esbanjamento dos próprios bens que são devorados de tal forma e vão, em pouco tempo, colocar-se fora de uso. Deduz-se desta situação o surgimento sempre de novos ídolos intimidadores, os quais apresentam a violência como meio justificado para perseguir um fim que na verdade não é mais do que um meio. 22 Há evidências também de que as relações humanas a nível mais pessoal atravessam esta valorização do ter, criadora da violência. A própria história da humanidade nos faz conhecer que a raiva, o ódio e a violência sempre subsistiram, da mesma forma que o amor, a solidariedade e a cooperação também. Em nós, há possibilidade da amorosidade e da agressividade. Acreditamos na importância da propagação da primeira no intuito de sustentar a capacidade de amar e de solidariedade. A agressividade, aqui, entendida como energia, força, é indispensável para lutar pelos próprios direitos, indignar-se com as iniqüidades e ter perseverança para buscar êxito na vida. Entretanto, o incitamento agressivo, se não bem trabalhado, certamente, transformar-se-á em ódio e violência, resultando-se, assim, em sentimento aniquilador. A nascente da violência é o eu , o ego , que se manifesta por numerosas e várias maneiras, segundo Krishnamurti: dividindo, lutando para tornar-se ou ser importante, etc.; que se divide em “eu” e “não eu”, em consciente e inconsciente; que se identifica, ou não, com a família, a comunidade, etc. Ele é como uma pedra lançada num lago tranqüilo, a qual forma ondas que se vão estendendo mais e mais – no centro fica o “eu”. Enquanto subsistir o “eu”, em qualquer forma que seja, sutil ou grosseira, haverá inevitavelmente violência. 23

Construímos uma sociedade violenta e, como seres humanos, somos violentos: meio ambiente, a cultura na qual vivemos são resultado de nosso empenhos, de nossas lutas e sofrimentos, de nossas terríveis brutalidades. Eis que surge a massa de excluídos; o valor da vida decresce e a enorme desigualdade existente na distribuição de renda amplia severamente o precipício entre miseráveis, pobres e ricos. A intransigência

21 Idem, ibidem. 22 HÄRING, B. Opus cit, p. 81. 23 KRISHNAMURTI, J. Fora da violência . Tradução Hugo Veloso. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 67. diante da diferença de religiões e etnia estimula conflitos, confluindo em atos de hostilidade e em guerras civis. Entender os meios de mutações dos sentimentos e reprimir a impulsividade estão sujeitos, verdadeiramente, a um trabalho constante que precisamos realizar dentro de nós sempre. O empenho de compreender nossos próprios sentimentos e dos outros é também uma atividade de uma vida inteira, especialmente, ao apreendermos como se transformam os sentimentos. Inexiste sociedade sem conflito, pois ele é parte natural da vida. No entanto, não se pode enlear conflito com violência, isto é, o desejo intencional de prejudicar os outros para atender às próprias necessidades. É inevitável o surgimento de obstáculos e conflitos na convivência humana, porquanto irrompem das próprias diferenças de temperamento, desejos, necessidades e valores que há entre as pessoas. Em A arte de viver em paz , o psicólogo Pierre Weil reafirma um aspecto que vários estudiosos, de diferentes campos e tendências, consideram fundamental para que a construção da paz/da compreensão do mundo se estabeleça. Diz-nos o referido psicólogo: Mais do que a ausência de conflito, a paz é um estado de consciência. Ela não deve ser procurada no mundo externo, mas principalmente no interior de cada homem, comunidade ou nação (...). Se não tratarmos o interior dos homens, bastará que alguém forneça a munição, e o conflito explodirá tão ou mais forte do que antes (...). Se olharmos a paz apenas como ausência de guerra, abriremos mão de cultivá-la na consciência dos homens, Ficaremos satisfeitos retirando armas. 24

Weil assinala que a educação pela paz objetiva transmitir formas não-violentas de solucionar conflitos e converter a energia do conflito em seus diversos níveis – cultural, social, político e econômico – de maneira construtiva. Para isso, a ótica holística da arte de viver em paz carece ser estendida em três planos: a) do ser humano – integrando corpo, mente e emoções; b) da sociedade – promovendo a transformação social, reexaminando conceitos e ações na economia, na política e na cultura; c) no ambiente – estabelecendo uma relação de paz com a natureza, respeitando todas as formas de vida. 25 Maldonado, numa incursão aos estudos de Weil, faz-nos observar que:

24 WEIL, Pierre. A arte de viver em paz. São Paulo: Gente, 1990. p. 47. 25 Idem, p. 51-6. a abordagem holística enfatiza a simplicidade voluntária, que é um estilo de vida que se constrói a partir da revisão dos hábitos de consumo, procurando libertar-se da necessidade de ganhar mais dinheiro para consumir mais. Significa (...) fazer um trabalho significativo, procurar reciclar materiais (...), aprender novos hábitos de economia de energia e de água. Nessa “ecologização da consciência”, procura-se formar consumidores civilizados, capazes da vida na Terra. O dinheiro é tratado como um meio a serviço de valores humanos fundamentais, e não como um fim em si mesmo, já que o excessivo apego aos bens materiais gera emoções destrutivas, tais como o pavor da perda, a desconfiança, o ciúme, a agressão. 26

Cremos que o grande desafio deste século é investigar as bases estruturais da violência no mundo em que vivemos e buscar possíveis transformações dessas estruturas para que se torne viável a cultura da paz . Como nos afirma Maldonado, a economia da cultura da paz significa viver respeitando a capacidade do planeta de renovar seus recursos (ecodesenvolvimento ou sustentabilidade). O movimento do ecodesenvolvimento implica o reconhecimento da interdependência da espécie humana com todos os seres vivos, uma nova visão do planeta. É preciso reconhecer a extensão dos estragos causados pelo aumento da população, pela industrialização, pela urbanização. Devido ao desmatamento, à contaminação do solo e das águas, à monocultura com excesso de fertilizantes (...), o solo e a água estão sendo degradados. O megassistema de produção, distribuição e consumo vigente na economia atual está mais ligado ao estado de guerra e do capitalismo predatório do que ao da paz. 27

A violência se manifesta de diversas formas, na sociedade e nos relacionamentos. Sem dúvida, ela transformou-se em um melancólico itinerário habitual no cotidiano brasileiro e cremos também ser tão presente no mundo. Alguns tipos de violência permitem-nos distinção: a estrutural e sistêmica e a doméstica ou intrafamiliar . A violência estrutural é considerada pelo geógrafo Santos 28 : como ponto referencial para das demais manifestações de violência e revela-se pelo desejo veemente de dinheiro, a competitividade descomedida e a busca do poder em estado puro, enquanto Cecília Munayo vê a violência estrutural caracterizada pela notoriedade na atuação das classes, grupos ou nações econômica ou politicamente dominante, que se utilizam de leis e instituições para manter sua situação privilegiada como se isso fosse um direito natural. 29 Elise Boulding, socióloga, vê a violência estrutural englobar as

26 MALDONADO, Maria Tereza. Os construtores da paz: caminhos da prevenção da violência . 2ª ed. Reformada. São Paulo: Moderna, 2004. (Coleção Polêmica) p. 100-1. 27 Idem, p. 11-2. 28 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização . Rio de Janeiro: Record, 2001. 29 Conforme MALDONADO, Maria Tereza. Opus cit, p. 11. conseqüências das grandes empresas transnacionais e das organizações monetárias internacionais sobre o desenvolvimento local de países do Terceiro Mundo. 30 Podemos dizer que a violência estrutural alude às condições contrárias e iníquas da sociedade para com os desestimados de sua população. Unimo-nos a Maldonado para atestar que: Ela [a violência estrutural] se expressa pelo quadro de miséria, má distribuição de renda (salário mínimo que não cobre as necessidades básicas), exploração dos trabalhadores, crianças nas ruas (mendigando, roubando, trabalhando indevidamente, prostituindo-se), falta de condições mínimas para a vida digna (moradia, alimentos, saneamento básico, etc), falta de assistência em educação e saúde. 31

Assim sendo, a violência estrutural traz à baila às condições intensamente desfavoráveis de vida, que engendra uma ilimitada população vivendo na miséria, esfaimada, em habitação precária, educação insatisfatória e dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. É a revelação, então, de uma população de risco, afligida no quotidiano pelos efeitos da violação dos direitos humanos e, que, sem dúvida nega a proposição do Estatuto da criança e do adolescente , vigente desde a Constituição de 1988, quando, no artigo sétimo, diz que a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. 32 Cremos ser possível conter a violência através da própria assistência ao indivíduo – principalmente na infância e na adolescência, tragicamente abandonadas, muitas vezes – e por intermédio da reformulação dos propósitos fundamentais da Sociedade – quer dizer, pela educação e pela maior e plena justiça social. A violência sistêmica surge do desempenho do autoritarismo, intensamente arraigada, ainda que as garantias democráticas estejam bem evidentes manifestadas na Constituição de 1988. Suas origens, no Brasil, deparam-se no período colonial, na escravidão dos índios e dos africanos. O contato entre indígenas e europeus, no início, parece ter sido pacífico. Ansiosos por obter instrumentos que lhes eram essenciais, os nativos se antecipavam à chegada

30 BOULDING, Elise. Cultures of peace, the hidden side of History. Nova York: Syracuse University Press, 2000. 31 MALDONADO, Maria Tereza. Opus cit, p. 12. 32 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 . Niterói: Imprensa Oficial, 1988. dos brasileiros (comerciantes do pau-brasil), extinguindo centenas de árvores. Aventureiros franceses e espanhóis também fizeram escambo de pau-brasil com os índios. A presença dos franceses tornou-se intensa, chegando a ameaçar o domínio de Portugal sobre alguns pontos da costa brasileira. A esquadra de Pedro Álvares Cabral não foi a primeira que chegou ao Brasil. Sabe-se que, em 26 de janeiro de 1500, a esquadra do espanhol Vicente Pinzón chegou a algum ponto da costa brasileira – entre Pernambuco e Ceará – onde entrou em choque com os potiguares. Seguindo viagem, os espanhóis subiram o rio Amazonas, que chamaram Mare Dulce . Os portugueses já conheciam o pau-brasil: havia uma espécie semelhante numa região denominada Sumatra, ilha do sudeste asiático de onde a madeira era exportada em forma de pó para a Europa desde o século XI. Na América, as florestas da Venezuela e da região do Caribe também tinham pau-brasil. Em relação à aproximação dos portugueses com os índios, José Manuel Garcia assegura que os primeiro contatos entre portugueses e tupiniquins decorreram de forma bastante harmoniosa, enquanto os homens da armada procediam ao recolhimento de água e lenha e, simultaneamente, ao reconhecimento da região. A nudez da população autóctone, bem como sua forma de vida, causou enorme estranheza dos europeus. Desde o primeiro momento, porém, eles expressaram sua confiança nas enormes potencialidades daquela “Terra Nova”, que determinaram com bastante rigor estar situada a 17º de latitude Sul (na realidade, 16º 18’). A primeira marca portuguesa na costa, em conformidade com o nome posto de Terra de Vera Cruz, foi a colocação de uma grande cruz de madeira, junto da qual foi rezada uma missa a 1º de maio, na véspera da partida. 33

Em outubro de 1492, Colombo aportou em terras latino-americanas – Novo Mundo para os europeus. Acreditava ter chegado às Índias, daí haver chamado os nativos de índios. A partir de então, os colonizadores passaram a chamar de índios todos os habitantes que aqui viviam, independente de suas diversidades étnicas e culturais. Tanto passaram a ser índios os avançados incas e astecas como os nativos que viviam no território que veio a formar o Brasil. A vida dos nativos passou a confrontar-se com as atividades dos lusos descobridores. Tal confronto assumiu, ao passar dos tempos, proporções dramáticas

33 GARCIA, José Manuel. Cabral, o viajante do rei: as origens do Brasil = The king’s voyager: the origins of /[curadoria/curador José M. Garcia; tradução / English translation of H. Sabrina Gledhill]. – São Paulo: Fundação Odebrecht, 2000, p. 72. para o contingente indígena do Brasil, quanto à preservação de sua cultura e quanto à própria sobrevivência. Florestan Fernandes 34 afirma que os índios brasileiros tentaram resistir de três maneiras diferentes às investidas do homem branco: em primeiro lugar, a reação violenta tentando, através da união entre as diversas nações, vencer o invasor português; a segunda, tentando se aliar aos conquistadores. O que realmente tinha o mesmo efeito de lento extermínio, pois os nativos iam perdendo, dia a dia, sua identidade cultural; a terceira forma de reação foi o refúgio para regiões ainda não exploradas pelos portugueses. Como, por exemplo, os Tupinambás, após terem sido derrotados pelos portugueses em 1567, realizaram o maior deslocamento humano já ocorrido na América do Sul. Chegaram inclusive a atingir os Andes. A Confederação dos Tamoios foi uma frente ampla formada pela união de diversas tribos no intuito de combater o inimigo comum: o português agressor. O surgimento da Confederação se deu pela reunião de tribos outrora até inimigas, num trabalho do guerreiro Aimbirê, além de outros chefes como: Cunhambebe e seu filho Pindobuçu , Ernesto Guaraciaba , Araraí , Coaquira , etc. Os portugueses sofreram diversas derrotas. E para evitar o que podia ser pior, os jesuítas José de Anchieta e Manoel da Nóbrega foram ao encontro dos índios e propuseram um encontro de paz. Segundo Mocellin, exigiam a libertação de todos os escravos nativos em poder dos portugueses e a entrega de todos os traidores. Nóbrega e Anchieta concordaram, porém não tinham poder para decidir. Enquanto Aimbirê e Nóbrega foram até São Vicente, Anchieta ficou como refém em Iperoig. Finalmente, a paz voltou a imperar. Os índios cumpriram à risca o tratado que firmaram. 35

Os indígenas valorizaram a palavra compromissada, os que deixaram de cumprir foram os civilizados portugueses, pois tão logo receberam reforços e armamento de Portugal, transgrediram a trégua e atacaram os Tamoios. Estes, surpreendidos, sofreram – como atesta Mocellim – uma série de derrotas. Uruçumirim, a capital da resistência,

34 FERNANDES, Florestan. A investigação etnológica no Brasil e outros ensaios . Petrópolis: Vozes, 1975. (Sociologia Brasileira,2) 35 MOCELLIN, Renato. A história crítica da nação brasileira. São Paulo: Editora do Brasil, 1987, p. 26. ficou reduzida a cinzas .36 Sabe-se que todos os chefes morreram, suas cabeças foram decapitadas e penduradas em estacas para servir de modelo, reprimenda. Podemos dizer que, além das derrotas militares, da aculturação, as bactérias e os vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam consigo a varíola, o tétano, doenças pulmonares, intestinais e venéreas... a lepra, febre amarela, as cáries apodreciam as bocas... Os indígenas morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas contra doença novas. E os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. 37

Ao que parece, estava inaugurada a violência no Brasil; uma vez que ao longo da História, a política indigenista desenvolvida pelo governo brasileiro tem sido ineficaz. É notório que freqüentes invasões de reservas indígenas, por fazendeiros e seus capangas, algumas vezes com a negligência e até apoio de certas autoridades, têm ocorrido de modo acentuado. Vemos que, desta forma, a política de desrespeito aos padrões culturais nativos, a ambição econômica, a inocência de alguns que tentam à força tirar o índio de seu estado primitivo, está transformando os, outrora, donos da terra em seres desajustados, que contraem todos os vícios e mazelas do mundo moderno, sendo, enfim, indigentes de sua própria casa. 38 No Brasil, a exploração do trabalho indígena acabou desencorajada, cedendo lugar à escravidão negra. Essa escravidão era permitida e legitimada pela Igreja Católica que, através de Bulas Papais, outorgava indulgências aos que participassem de expedições à África. A historiografia cultivou os mitos de que o índio era rebelde e desidioso enquanto o negro era trabalhador e submisso. É conhecido que tanto o índio como o negro produziam pouco, porque a baixa produtividade é inerente à escravidão. A História está aí para certificar o desempenho importante que os índios tiveram nas missões jesuítas. Quanto à afabilidade do negro, é fundamental não esquecer as suas fugas e os quilombos. Aproveitamos a obra A civilização do açúcar – séculos XVI a XVII de Ferline para, com ela, refletirmos: Por que então a escravidão negra? Em primeiro lugar, o tráfico negreiro era fonte de vultuosos lucros para Portugal. A compra de escravos, por sua vez, representava o

36 Idem, ibidem. 37 Eduardo Galeano citado por MOCELLIN, Renato. Opus cit, p. 26-7. 38 MOCELLIN, Renato. Opus cit, p. 27. adiantamento à Metrópole, de parte considerável da renda a ser gerada na Colônia, e que, em outras condições (por exemplo trabalho livre), ficaria retida na Colônia. Finalmente, o alto custo dos negros dificultava a aquisição de escravaria suficiente para o trato do açúcar, restringindo a obtenção de lotes de terras a poucos indivíduos. 39

Para resolver o impasse da mão-de-obra, a Coroa Portuguesa recorreu à escravidão negra. O negro era tido como bom trabalhador, mas mau escravo. Fugas, protestos e revoltas foram comuns enquanto durou a escravidão. O trabalho escravo era utilizado para as mais variadas finalidades como no canavial, no engenho, na cozinha, nas minas, moças trabalhando como prostitutas nas cidades, enfim não houve atividade em que o negro não fosse usado. As punições eram violentas e variadas. Mocellin 40 cita o fazendeiro João Fernandes Vieira, um dos heróis da guerra contra os holandeses, que estabeleceu este ritual de tortura: depois de bem açoitado, o mandará picar ou navalha ou faca que corta bem, e dar-lhe-á com sal, sumo de limão e urina, e o meterá alguns dias na corrente . Os negros eram jogados vivos nas caldeiras de açúcar. Outros eram untados com mel e depois expostos à picadura de insetos – eis algumas formas de sofrimento pelas quais os escravos passavam. A escravidão tão comum entre as tribos africanas facultava a comercialização do negro. No Brasil, os colonos optaram por eles, pois o extermínio de muitos povos indígenas da costa brasileira era evidente e a fuga dos sobreviventes para o interior tornou-se inevitável. Logo, os colonos perceberam vantagens no emprego da mão-de- obra africana, porque os negros tinham menos possibilidades de fugir, pois desconheciam o idioma e o lugar para onde eram levados. As peças – nome que se dava aos escravos – embarcavam em navios conhecidos por negreiros ou tumbeiros. Vinham da África, região vista como o lugar do pecado, das trevas e da infidelidade. Flávio Campos nos fala que: as origens bíblicas destes [negros] estariam ligadas a duas maldições, ambas posteriores ao pecado original. Eles seriam descendentes de Caim, aquele que por inveja matou seu irmão Abel, e traziam na pele a cor negra, marca do sinal imposto por Deus, ou, então,

39 FERLINE, Vera Lúcia. A civilização do açúcar – séculos XVI a XVII. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 18- 19. 40 MOCELLIN, Renato. Opus cit, p. 48. membros da geração de Cam, filho de Noé, que desonrou seu pai e por isso foi condenado, juntamente com seus filhos, à escravidão. 41

Aproximadamente entre 10 e 15 milhões de africanos desembarcaram nas Américas a partir do século XVII, superando como mão-de-obra o número de indígenas. Desta estimativa, avalia-se que entre 3 e 5 milhões fixaram-se no Brasil. Limitando-se às feitorias ou aos fortes construídos no litoral, de onde mantinham negociações com intermediários africanos, os traficantes europeus jamais se arriscavam a entrar no interior da África. Ao contrário do que se pensava dos ameríndios, não havia qualquer vinculação dos negros da Guiné, como eram conhecidos, com o Paraíso terrestre. A retirada dos africanos de seu habitat era, para as justificativas que se elaboravam, sobretudo, no século XVII, um milagre da Providência Divina. Pela travessia atlântica e pelo batismo, o escravo era trazido à fé e, assim, o que poderia ser compreendido como injustiça, era visto como uma graça. A América seria o lugar da purgação dos pecados bíblicos atribuídos aos africanos. Pelo trabalho e sofrimentos, mais uma vez, os impuros ficariam limpos e poderiam, depois de mortos, entrar no Reino de Deus. Para o padre Antônio Vieira, em suas vidas na Colônia, os negros escravos tinham o seu Purgatório. E Flávio Campos nos revela ainda que: Apesar de defenderem a escravidão dos africanos, tanto o clero católico como também o protestante procuraram orientar e regulamentar o comportamento a ser seguido pelos senhores e por seus escravos. Salientavam a igualdade espiritual de todos os fiéis cristãos, mesmo que esta repousasse sobre uma profunda desigualdade social. Diante de Deus, diante dos padres nas missas, tanto os escravos quanto seus senhores deviam obediência, pois eram irmãos em Cristo. Além disso, os religiosos tentavam impedir os pecados carnais e as violências abusivas contra os cativos. Revestiam a escravidão com uma roupagem paternalista, como se o senhor fosse um tipo de pai severo que pune seus filhos, mas garante-lhes uma boa formação cristã. 42

O deslocamento dos africanos para as colônias era feito em navio enorme, em média, com quatrocentos africanos amontoados nos porões, ligados uns aos outros pelo pescoço, com argolas de ferro, mal-alimentados, fome, sede, falta de condições higiênicas e açoitados por violentas chicotadas. Durante a viagem para o Brasil, que durava entre quarenta e sessenta dias, chegavam a morrer 20% deles, acometidos por

41 CAMPOS, Flávio. Oficina de História: história integrada. Flávio Campos, Renan Garcia Miranda. 1ª edição. São Paulo: Moderna, 2000, p. 108. 42 Idem, ibidem. disenteria, escorbuto, ou mesmo por causa do banzo. Muitos escravos africanos eram arremessados em alto-mar dos navios negreiros ou tumbeiros. Castro Alves, poeta da geração romântica, documentou sua indignação contra o tráfico de escravos, a grande tragédia no mar num poema épico denominado Navio negreiro (Tragédia no mar) , que, ao fazer a exaltação do povo africano e narrar um episódio da história desse povo, assinala um tom condoreiro, segundo o modelo de Victor Hugo. Poema eloqüente marcado por imagens grandiosas, o texto, aqui citado, constitui-se numa descrição dramática que o poeta faz da situação dos negros. Podemos dizer que, inicialmente, a cena nos sugere um texto teatral montado: uma orquestra irônica e estridente dá o ritmo para um trágico balé dançado pelos escravos, para o grande prazer de Satanás; o tombadilho do navio transforma-se em infernal palco; o ritmo nos é dado pro alguns vocábulos de grande sonoridade: tinir , estalar . Em seguida, observa-se o emprego feito pelo poeta da linguagem trabalhando os adjetivos para descrever e explorando os verbos para reforçar o dinamismo do balé; neste aspecto, os versos: Um de raiva delira, outro enlouquece/ Outro, que martírios embrutece,/ Cantando, geme e ri! – são representativos: em apenas três versos, temos seis verbos de ação. Ilustramos o que dissemos com um fragmento do poema: Era um sonho dantesco... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar do açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar. Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!...”

E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... 43

Ainda que enfrentassem todos os tipos de condições desfavoráveis e os discursos legitimadores da escravidão, os negros não deixaram de apresentar formas de resistência à sua situação: reagiam com vinganças contra feitores; suicidavam-se e geravam revoltas nas plantations e povoações; sabotagens na produção do açúcar; porém havia os que conseguiam formar quilombos . Incontestavelmente, a mais notável resistência à escravidão da História de nossa gente foi o Quilombo dos Palmares , que conseguiu reunir cerca de 50 mil quilombolas entre 1630 e 1695. Estabelecido na Serra da Barriga, no atual Estado de Alagoas, a região fazia parte, na época, da Capitania de Pernambuco. A razão de seu nome deve-se ao grande número de palmeiras existentes na área. A tal respeito, Edison Carneiro pronuncia-se: Palmares, tido como o maior quilombo estabelecido na América portuguesa, era na realidade uma confederação de quilombos que reuniu milhares de habitantes (alguns autores falam em 20 mil), governados por um rei guerreiro e por um conselho formado pelos chefes de cada um dos quilombos confederados. Localizado numa extensa área serrana, que abrangia parte de Alagoas e Pernambuco, seus primeiros acampamentos devem ter sido criados em 1629. Seu contingente foi ampliado com as lutas de luso- brasileiros e holandeses, que propiciaram uma constante fuga de escravos. O primeiro rei foi Ganga-Zumba, assassinado em 1678 devido à sua disposição de negociar com as autoridades coloniais. A partir de então foi dirigido por Zumbi, chefe guerreiro morto em 1695. Após diversas tentativas de destruição de Palmares, em 1694 iniciou-se a campanha que levaria ao fim do reduto rebelde. Mesmo assim, nos anos seguintes, a região manteve-se como abrigo de pequenos grupos de escravos fugitivos que promoviam incursões e ataques a povoados e viajantes. 44

43 ALVES, Castro. Obra completa. 2ª edição. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p. 247-8. 44 CARNEIRO, Edison. O quilombo dos Palmares. São Paulo: Brasiliense. 1947, p.6. O quilombo surgiu nos tempos da dominação holandesa. Em 1644, os holandeses tentaram destruí-lo, mas fracassaram. Diferente do que diziam as autoridades, Palmares não era uma mera trincheira de bandidos e salteadores. Não ignoramos que, às vezes, os negros faziam sortidas nas fazendas vizinhas, de onde retiravam mantimentos e instrumentos para guerra. Em geral, mantinham boas relações com aqueles que os respeitavam. Outro modo de resistência dos negros foi a preservação das crenças e ritos africanos, mesmo sendo evidente a condenação e vigilância do clero colonial. Os negros que vieram para o Brasil eram seguidores das mais diferentes religiões. Existiam escravos – diz-nos Mocellin – alfabetizados em árabe e que liam fluentemente o Alcorão .45 Grande parte, no entanto, professava as religiões animistas africanas. Em comum, havia o culto aos antepassados responsáveis pela proteção tribal. Várias tribos voltavam-se para divindades ligadas às forças mágicas da natureza. Tais divindades, denominadas orixás, a partir de um processo de composição da herança africana com as concepções religiosas de brancos e índios instalados na Colônia, eram cultuadas em rituais e festas, ao som de atabaques e outros instrumentos de percussão. Na realidade, ainda que batizados como católicos, os negros nunca abandonaram sua religião primitiva, como nos faz saber o sociólogo Gilberto Freyre: Nas macumbas atuais, as divindades e espíritos africanos são encontrados, embora sem as características primitivas e, muitas vezes, até identificadas com santos e santas da Igreja Católica. Assim, Santa Ana e Nanã e São João, Xangô. Nossa Senhora sofre um fenômeno de sincretismo religioso e é apresentada como Iemanjá. O diabo identifica-se com Exu, o espírito do Mal. 46

Fonseca Júnior, em relação a Exu, revela que Exu não é Diabo... Assim como sexo é pecado para essa moral repressiva, Exu, como Divindade da Procriação e Fertilidade, só poderia estar personificando o próprio Capeta. Em sua origem cosmogenética, Exu é o responsável pela existência da vida na Terra. 47

Recorrendo-se a L. M. Souza, constata-se que, na esfera divina, não existe Deus sem o Diabo; no mundo da natureza, não existe Paraíso Terrestre sem Inferno; entre os homens alternam-se virtude e pecado. 48

45 MOCELLIN, Renato. Opus cit, p. 50. 46 Gilberto Freyre citado por MOCELLIN, Renato. Opus cit, p. 50. 47 FONSECA JÚNIOR, E. Dicionário antológico da cultura afro-brasileira . Florianópolis: Maltese, 1995, p. 110. Enfim, a história de nosso País tem revelado uma série de oposições de grandes violências. A Igreja aceitou a escravidão sem relutância e justificou-se com a teoria do mal que vem para o bem, como afirma D. José Maria Pires, Arcebispo de João Pessoa – Paraíba, na 1ª Grande Celebração da Missa dos Quilombos, em 22 de dezembro de 1981, no Recife: Se os negros perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganhavam a da alma e se incorporavam à civilização cristã abandonando o paganismo. Bela Teologia! Hoje não falta quem condene a Teologia da Libertação – também chamada do Cativeiro – que justifica e incentiva, à luz da Palavra de Deus, os esforços dos oprimidos para se livrarem da marginalização a que foram reduzidos. 49

Seguiram-se as bandeiras, expedições de caráter particular, partindo quase sempre de São Paulo, tiveram nos séculos XVI e XVII o objetivo de prear índios utilizados como mão-de-obra para a lavoura, desde que não tinham condições econômicas para comprar escravos negros, devido à pobreza de São Paulo até o século XVI. As bandeiras foram responsáveis pela penetração no interior do Brasil. Este movimento praticamente destruiu o Tratado de Tordesilhas, dando já no século XVIII quase a configuração do Brasil atual. A organização de uma bandeira era bastante simples: compunha-na índios, mamelucos e brancos, que obedeciam irrestritamente a seu chefe, que tinha amplos poderes. A colonização do Brasil foi uma ação conjunta da Igreja e do Estado absolutista. Diversas ordens religiosas 50 vieram para o Brasil, porém as que mais se destacaram foram os jesuítas. Os jesuítas procuravam catequizar a comunidade indígena, o que, verdadeiramente, significava evangelizá-la. O índio ficava obrigado a trabalhar para o branco e, assim, tornando-se subordinado, enquanto as mulheres indígenas conheciam os brancos e contraiam sífilis. Nas capelas dos engenhos, os padres tornavam-se submissos aos proprietários. Entretanto, várias ordens religiosas travavam lutas contra os latifundiários que usavam os índios como escravos.

48 SOUZA, L. M. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria, religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Letras, 1994, p. 30 49 Retirado do encarte LP Missa dos quilombos , gravado ao vivo na Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens, Caraça – MG, em março de 1982. Autores: , Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra. Ariola Discos Fonográficos/Nascimento. 50 Entre outras citamos: franciscanos, beneditinos, dominicanos, carmelitas. Na Amazônia e no , a Igreja administrativa os índios em aldeamentos denominados missões . Nas terras amazônicas, as missões destinavam-se à coleta das drogas no sertão e nos rincões gaúchos, à pecuária. As missões também não respeitavam de modo pleno a cultura indígena, padronizando todos eles. O Padre Antônio Vieira, grande orador sacro de Portugal, um dos grandes pregadores evangélicos do mundo, apontado como o realizador ideal da doutrina aliada à prática, e que teve grande influência na Corte, achava que, para os índios, os direitos à terra, à moradia e à liberdade não eram importantes: o que contava era o direto à salvação da alma . Atendendo aos apelos da Igreja, a Metrópole proíbe a escravização dos índios. Mas em 1570 admitiu que ela poderia existir nas guerras justas (de “defesa” contra a “hostilidade dos índios”). A hipocrisia era tudo. O que se vê é que, em várias ocasiões, houve padres que participaram das caçadas aos indígenas. O padre Hoornaert nos diz, também, que os franciscanos, por exemplo, muitas vezes estimularam as tais guerras justas contra os índios. Na Amazônia, os carmelitas cediam os índios das missões para trabalhar para os fazendeiros durante algum tempo. Enquanto os índios se arrebentavam de fome e trabalho, os conventos carmelitas cobriam-se de ouro. Em São Paulo, os jesuítas eram contra a escravidão dos índios e tiveram um mosteiro construído com dinheiro do célebre caçador de seres humanos Fernão Dias Paes Leme. 51

Foram os bandeirantes que concretizaram as primeiras grandes descobertas de ouro. Os paulistas, há muito tempo, penetravam pelo interior para capturar índios que eram usados como escravos. A bandeira de Fernão Dias, apesar de não haver encontrado as lendárias esmeraldas, abre caminho para novas explorações. Parece-nos que foi o paulista Antônio Rodrigues Arzão quem primeiro encontrou ouro nas Gerais. Outros bandeirantes o seguiram. Contudo só a partir de 1698, quando Antônio Dias de Oliveira encontrou as minas de Ouro Preto, é que a “corrida do outro” contagia a região. Antonil, em Cultura em opulência no Brasil por suas drogas , diz que: A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiam nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendendo e comprando o que se há de mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar.

51 SHMIDT, Mário Furley. Nova história crítica do Brasil: 500 anos de história malcontada. São Paulo: Nova Geração, 1997, p. 95-6. Cada ano,vêm nas frotas quantidade de portugueses e de estrangeiros, para passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil, vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de diversos institutos, muitos dos quais não têm no Brasil convento nem casa. 52

André João Antonil, jesuíta, revelou, com eficácia, no início do século XVIII, o que representou o descobrimento de ouro e pedras preciosas no interior do Brasil para a América portuguesa. A população colonial viu-se contaminada pelo ouro. Milhares de pessoas dos mais diferentes pontos do Brasil, até mesmo de Portugal, dirigiam-se para as Minas Gerais. Como conseqüência desse fluxo desenfreado de mineradores, tivemos o desabastecimento e a fome e, com eles, os conflitos sociais (assassinatos, roubos, tumultos). Enquanto as Minas Gerais recebiam aventureiros em grandes contingentes, a capitania de Pernambuco começava a sua decadência. O preço do açúcar estava em baixa e os senhores de engenho se endividavam para comprar escravos, equipamentos e mantimentos. Seus credores eram comerciantes portugueses situados em Recife, que, por um acordo com a Coroa portuguesa, também realizavam a cobrança de impostos. Tal fato atraía o desprezo de toda a população, que os chamava de mascates . Estes excitam ódios aguçados e penetrantes pela clara proteção que recebiam do governador e soldados das capitanias, portugueses como eles. A Corte de Portugal, sob a jurisdição do governador Sebastião de Castro Caldas, em 19 de novembro de 1709, elevou à categoria de vila o crescente Recife, tornando-o independente de Olinda.Essa revolução inflamaram os ânimos dos olindinenses. Cenas de violência foram vistas tanto por parte dos olindinenses como pelo governador. Houve prisões, mas, no final, apaziguaram-se os dois grupos. Fora dado perdão das dívidas e Recife foi mantida como vila. A maior parte do ouro achado estava no leito dos rios misturados à areia e cascalho – ouro de aluvião. Para sua extração, mineradores com poucos recursos balançavam as bateias – bacias feitas de madeira ou metal – em movimentos circulares, e punha-se fora a água e a areia; depois, usavam as mãos para a retirada do cascalho e, então, o ouro que, certamente, estivesse depositado no fundo cônico da bateia. Esses

52 ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil por suas drogas e minas. 2ª edição. São Paulo: Melhoramentos, s/d, p. 167. garimpeiros eram chamados de faiscadores , que perambulavam pelas regiões à procura de sobrevivência. Os poderosos possuíam ampla mão-de-obra escrava, máquinas hidráulicas para a lavagem do cascalho e obras de represamento de rios. A título de ilustração, apresentamos um fragmento da obra Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles: Mil bateias vão rodando sobre córregos escuros; a terra vai sendo aberta por intermináveis sulcos; infinitas galerias penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo, o ouro vem, dócil e ingênuo; torna-se pó, folha, barra, prestígio, poder, engenho... É tão claro! – e turva tudo: honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traça palácios e pontes, eleva os homens audazes, e acendem paixões que alastram sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definham negros, a rodar bateias. Morre-se de febre e fome sobre a riqueza da terra; uns querem metais luzentes, outros, as redradas pedras.

(...) Por ódio, cobiça, inveja, vai sendo o inferno traçado. Os reis querem seus tributos, - mas não se encontram vassalos. Mil bateias vão rolando, mil bateias sem cansaço.

(...)

Descem fantasma dos morros, vêm almas dos cemitérios: todos pedem ouro e prata, e estendem punhos severos, mas vão sendo fabricadas muitas algemas de ferro. 53

53 MEIRELES, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993, p. 487.

Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso passam a atrair milhares de pessoas, o que contribui para o povoamento do interior e para o crescimento demográfico do Brasil. Fundam-se muitas vilas e cidades. A região Centro-Leste tornou-se, assim, a mais importante da Colônia. Eis a razão por que, em 1763, a capital foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. A Coroa agiu com os mineradores do mesmo modo que fez com os senhores de engenho e donatários, isto é, oferecendo-lhes terras em trocas obrigatórias à sujeição aos monopólios e o pagamento dos impostos. Gastos e riscos, de um modo geral, ficavam subordinados aos colonos. O governo português não investiu e apenas interferia na repressão ao contrabando e no recolhimento dos impostos. A emigração de portugueses para o Brasil começou a ser controlada e proibiam-se o ofício de ourives, a exploração de ouro perto do mar, a chegada de navios estrangeiros em portos brasileiros, o transporte pelo sertão entre Bahia, Pernambuco e Minas Gerais, etc. Foram criados dois impostos: o quinto , ou seja, a quinta parte do ouro fundido e a capitação , quer dizer, tributo sobre a quantidade de escravos empregada – que significava uma taxa de aproximadamente 17 g de ouro, cobrada pela propriedade de cada escravo de ambos os sexos e com mais de 12 anos de idade. Acrescentam-se os pedágios cobrados aos que se dirigiam às minas, os direitos de entrada sobre mercadorias transportadas por animais, as taxas sobre importação de escravos, o dízimo da Igreja. Sabe-se que a quantidade de ouro extraído no Brasil chegou a representar metade da produção mundial da época, sem levar em consideração o ouro contrabandeado que a rigorosa fiscalização não conseguia interromper. Ao iniciar o século XVIII, Portugal, para melhor extorquir as riquezas do Brasil, estabeleceu na região das Minas Gerais, uma política fiscal opressiva: as Casas de Fundição em Minas Gerais. A rigorosa fiscalização da Metrópole sobre a mineração provocou descontentamentos e revoltistas que recrudesciam ainda mais devido à ação violenta de forças de cavalaria encarregadas de manter a ordem na região. D. Pedro de Almeida e Portugal, conde de Assumar – governador das Minas Gerais -, esperava os subordinados que se aglomeraram no largo da Câmara, no Carmo, onde os líderes da revolta entregaram um documento exigindo: redução de diversos impostos; suspensão da medida que determinada a obrigatoriedade da fundição de ouro; extinção dos monopólios da carne, aguardente, fumo e sal -, cercado por seus homens do regimento de dragões. Temeroso, diante da massa aos gritos de Viva o povo! Viva o povo! , o conde de Assumar promete atender às reivindicações dos rebeldes, em 29 de junho de 1720, conseguindo com isso acalmar a população. Tão logo o Governador percebeu os ânimos serenados da população, iniciou a repressão. À frente de 1.500 homens, ocupou Vila Rica, onde os seus dragões, negros d’armas e assalariados entraram ostentosos, fazendo os corcéis solapar a terra com arrogância de tropas conquistadoras, e batendo a coronha dos mosquetes ou o canto das lanças nasa lajes das soleiras em desafio aos habitantes .54 As flamas crepitavam a fúria governamental consolidando sua vingança diante daqueles rebeldes que assistiam às labaredas ígneas destruíssem suas moradas e lavouras. Paredes, madeiras e lavouras de fumo centelhavam com grande inferno sob o olhar do exército de demônios aturdidos de furor impetuoso lançado de seus arcabuzes chispas mortais. Foram presos os líderes do movimento: o minerador Sebastião da Veiga Cabral, o Dr. Manoel Mosqueiro e o tropeiro Filipe dos Santos, após verem suas casas incendiadas. Filipe dos Santos, enforcado sem julgamento prévio, no dia 15 de julho de 1720. Subiu os degraus do cadafalso; antes, porém, da execução disse de modo sereno e orgulhoso, com voz firme aos assistentes de mais uma violência vivida na nossa História: jurei morrer pela liberdade, cumpro a minha palavra! 55 E o cadáver daquele minerador pobre e brilhante orador, líder popular de grande expressão foi esquartejado pelos carniceiros, arrastado em partes pelas veredas de diferentes povoações, dilacerado

54 DUQUE, Gonzaga. Revoluções brasileiras: resumos históricos . Gonzaga Duque, organização Francisco Foot Hardman e Vera Lins. São Paulo: Fundação Ed. UNESP: Giordano, 1998, p. 21. 55 Idem, p. 24. e escoriado pelas urzes silvestres, regando com seu sangue de proto-mártir da Liberdade a gleba das Minas Gerais, onde muitos ideais dormem no cerne das rochas e sonham com o raiar da Liberdade. O modo violento como a rebelião foi reprimida contribuiu para acelerar o processo de tomada de consciência do povo contra a dominação portuguesa. Em 1729, fora descoberto diamante na região conhecida como Arraial do Tijuco ou Serro Frio, atual Diamantina. O controle da Coroa portuguesa sobre os diamantes foi ainda mais rigoroso do que sobre o ouro. Em 1731, o rei decretou o monopólio da extração de diamantes no Arraial do Tijuco, de onde fez expulsar todos os mineradores. Essa região, onde se encontravam as jazidas de diamantes mais ricas, foi demarcada e isolada completamente, em 1733, com o nome de Distrito Diamantino, onde, pagando-se o quinto à Corte, tinha-se o consentimento para extrair o diamante. Em 1739, estabeleceu-se um sistema contratual que se estendeu até 1771, quando o Marquês de Pombal criou a Junta de Administração Geral dos Diamantes. O direito de extração dos diamantes foi arrendado a contratadores particulares. O contratador mais notável de que se tem conhecimento é João Fernandes de Oliveira. Famosos não só pela quantidade de diamantes que encontrou, mas também por seu romance com a negra Chica da Silva, a quem alforriou e deu treze filhos. Fala-se que João Fernandes subornava as autoridades para poder utilizar nas lavras um número de escravos superior ao estipulado no contrato. Foi célebre esta mulher [Chica da Silva], única pessoa ante quem se curvava o orgulhoso contratador; sua vontade era cegamente obedecida, seus mais leves ou frívolos caprichos prontamente satisfeitos. Dominadora no Tijuco, com a influência e poder da amante, fazia alarde de um luxo e grandeza, que deslumbravam as famílias mais ricas e importantes; quando por exemplo ia às igrejas, - e então era aí que se alardeavam grandezas – coberta de brilhantes e com uma magnificência real, acompanhavam-na doze mulatas esplendidamente trajadas: o lugar mais distinto do templo era-lhe reservado. Quem pretendia um favor do contratador a ela primeiramente devia dirigir-se na certeza de ser atendido, se conseguia granjear-lhe a proteção. Os grandes, os pobres, que vinham a Tijuco, os enfatuados de sua fidalguia, não se dedicavam de render-lhe homenagem, curvavam-se a beijar a mão à amante de um vassalo do Rei. Tal é o poder do dinheiro! Esse vassalo era um milionário, e, em todos os tempos o ouro foi sempre o escolho em que se quebrou o orgulho da fidalguia. 56

56 SANTOS, Joaquim Felício dos. Memória do Distrito Diamantino . Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1956, p. 160. A célebre relação entre João Fernandes e Chica da Silva encontra registro também na poesia de Cecília Benevides de Carvalho Meireles – poeta da chamada corrente espiritualista , sob influência dos poetas que formariam o grupo Festa, de inspiração neo-simbolista.A rigor, a autora nuca se vinculou a qualquer movimento literário. Em raros momentos em que sua poesia foge à sua direção intimista para ir ao encontro de problemas sociais, Cecília Meireles compõe Romanceiro da Inconfidência retomando uma forma poética de tradição ibérica, denominada romance – composição de caráter popular escrita em redondilhas - para, numa obra lírico-épica, reconstruir literariamente o episódio da Inconfidência Mineira compondo um rico painel social, econômico, político e cultural do Brasil-Colônia à época do ciclo da mineração. A seguir, exemplificamos: Romance XVII ou Dos Velhos do Tejuco

Ainda vai chegar o dia de nos virem perguntar: - Quem foi a Chica da Silva, que viveu neste lugar?

(Que tudo passa... O prazer é um intervalo da desgraça...)

Já vereis outro navio, levado por homens grandes igual a um negro fugido, o Contador Fernandes (Que tudo acaba! Quem diz que a montanha de ouro não desaba?)

Se o vento dá no Tijuco leva coluna e varanda, leva a pompa, leva o luxo e mais a Chica – que – manda

(Que tudo engana, Gente, só a morte, mesmo é soberana!) 57

Diferente do que se imaginava, a Capitania de Minas Gerais, mesmo na época grandiosa da mineração, era pobre. Tal fato se explica devido às diversas formas com que se esvaíam as riquezas. A atuação implacável do fisco, a tributação sobre a

57 MEIRELES, Cecília. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Agir, 1974, p. 43-4. escravaria, as importações em regime exclusivo de comércio e a compra e manutenção de escravos foram alguns fatores que contribuíram para o baixo nível de renda nas Gerais. Existiram mineradores ricos, mas foram poucos. Conforme estudos recentes, a maior parte das grandes fortunas derivava do comércio e não da mineração. Eram, então, os atravessadores de gêneros alimentícios, manufaturas e gado que formam os maiores fundos econômicos. Vergueiro ressalta que os atuais estudos mostram que o ouro foi abundante nas Minas até a década de 30, conhecendo ligeiro declínio nos anos 40 e decaindo francamente a partir de 1763, quando o quinto, pela primeira vez, não atingiu a cota estipulada de 100 arrobas anuais. (...) Para os colonos mineiros, sempre esteve difusa a percepção da pobreza e da dependência ante a Metrópole; com a situação de penúria extrema, que caracterizou os últimos anos do século XVIII, essa população adquiriu a forma de uma verdadeira tomada de consciência, que os inconfidentes exprimiram de modo acabado. (...) ... não é de se estranhar que as Minas presenciassem a primeira manifestação de independência ante a Metrópole. Com a Inconfidência Mineira, a condição colonial foi colocada em sua verdadeira dimensão, e as relações entre a Metrópole e a Colônia apareceram desnudadas em toda a sua transparência. Sintetizando a situação colonial de modo exemplar, Tiradentes se referia às Minas como um lugar desgraçado, porque, tirando-se dele tanto ouro e diamantes, nada lhe ficava, e tudo saía para fora, e os pobres filhos da América, sempre famintos, e sem nada de seu . Era assim que as Minas Gerais, síntese da Colônia no século XVIII, preparavam a negação do estatuto colonial. 58

Ainda que a ação da Coroa fosse rigorosa, o contrabando acontecia de modo bem acentuado. Vários eram os métodos de burlar o fisco. Iam desde o suborno das autoridades até o esconderijo de metais nas partes íntimas do corpo. Alguns governadores, ao receberem presentes , faziam vistas grossas, o que aconteceu com o Conde de Valadares em relação ao contratador João Fernandes. Pode-se verificar que a efervescência que conheceram nas Minas as artes e as letras também teve característica peculiar. Buscava-se, na Colônia pela primeira vez, solvência peculiar para a manifestação artística. A arquitetura barroca colonial se apresentou sem a suntuosidade que a caracterizou na Europa. Em Minas, o gênero barroco foi mais recatado, despojado, quase pobre, exceto em alguns interiores que exibiam certa grandiloqüência. Vergueiro esclarece que a falta das pedras liós, que, vindas do Reino, quebravam-se pelos caminhos acidentados da capitania, determinou o recurso ao itacolomito local, a pedra-sabão

58 VERGUEIRO, Laura. Opulência e miséria das Minas Gerais . São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 75-79. Coleção Tudo é História) maleável e azulada em que os santeiros e escultores modelara peças sui generis, onde a tradição da Europa medieval s misturou com chinesices e com um espírito colonial já nítido. 59

A arte musical, bem atuante já nos primeiros instantes do século XVIII, ganha, nas Minas Gerais, uma escola cujo valor e alcance superam os limites coloniais, tornando-se a expressão mais rica e original que as Américas tiveram consciência na gleba musical durante o século XVIII. Eis que, finalmente, a poética árcade representar a ruptura com os modelos europeus e revelará satisfatoriamente a realidade das plagas mineiras, a sua rude paisagem, a pedra presente em toda a parte. Em vários níveis, surge a percepção do viver em colônias , a apreensão da natureza mineira tão diferente da metropolitana. 60 Ainda que a música barroca e a poética árcade se manifestassem na alma de toda aquela gente das Minas, o país sufocado pelo contrabando de ouro e diamantes refletia a insatisfação dos colonos mineiros que demonstravam difusa percepção da pobreza e da dependência ante a Metrópole. Tal situação bem acentuada nos últimos anos do século XVIII possibilita a essa população uma real consciência, que os inconfidentes exprimem, como ponto de partida de uma nova época da História. Carvalho atesta que ... a pujança artística de mineiro, cuja arte, além de eminentemente criativa, preconiza em si anseios de liberdade, estampada em inúmeras obras. Em Minas Gerais surgiam templos majestosos, nos quais brilhavam o ouro, nos quais se estampavam obras- primas em nossa pedra sabão, nos quais se entoava música que estava entre o melhor da época, merecendo destaque as composições de um Lobo de Mesquita entre outros muitos. Ora, tudo isto plasmava uma consciência crítica. A arte barroca refletia anelo de liberdade, pois o mineiro buscou soluções nacionais que avivariam por seu turno o amor à pátria e aguçariam o senso de independência. 61

1.3 – Sob a celebração da violência: o sonho de um Brasil livre

Libertas Quae Sera Tamen

(Tema da Bandeira dos Conjurados Mineiros inspirado em versos de Virgílio)

59 Idem. 60 Idem. 61 CARVALHO, José Geraldo Vidigal de. Ideologia e raízes sociais do clero da conjuração – século XVIII – Minas Gerais . Viçosa: UFV, Imprensa Universitária, 1992, p. 21. Os sonhos mais lindos, sonhei De quimeras mil um castelo ergui E no teu olhar, tonto de emoção Com sofreguidão mil venturas previ.

F.D. Marchetti/ M. De Ferandyl. Versão de Armando Louzada. Fascinação ( Fascination )

É preciso ter garra É preciso de sonho, sempre Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania De ter fé na vida.

Milton Nascimento/Fernando Brant. Maria Maria

Ao término do século XVIII, o sistema colonial entrou em crise e se tornou, sem dúvida, inexeqüível. Surgiram os conflitos entre Metrópole e Colônia – o que resultou ideais de independência nacional, pois a colonização só resguardava as classes dominantes em Portugal como no Brasil. Sob o ângulo social, a velha aristocracia, agora, entrava em decadência. A burguesia, como classe dominante, e o proletariado, como classe oprimida e explorada, avivavam o novo quadro social. Saía de cena uma sociedade aristocrática e feudal, tomando consistência uma sociedade burguesa e capitalista. Esse avanço científico deu origem à idéia de progresso. Instalava-se a monarquia constitucional parlamentar na Inglaterra fazendo ver que também a política e a sociedade podem transformar-se, e que as instituições não são eternas nem estáticas. Nasciam as idéias de pensadores europeus que exaltavam a razão e o espírito como luzes competentes a clarear a mente das pessoas e de eliminar da ignorância e da miséria humana. Esta filosofia iluminista representou o suporte ideológico da burguesia na luta contra o absolutismo e o mercantilismo. Para os iluministas, as pessoas não nasciam violentas, mesquinhas, egoístas. A sociedade é que as transforma. Acreditavam que a Igreja Católica tinha sua parcela de culpa, pois educava as pessoas dentro de uma visão ignorante, de fanatismo e submissão. Voltaire, em seu Tratado sobre a tolerância , assinala: Não é aos homens que me dirijo, é a ti, Deus de todos os seres, de todos os homens e de todos os tempos (...). Que as pequenas diferenças entre as vestimentas que cobrem nossos fracos corpos, entre nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as opiniões insensatas (...) que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam motivos de perseguições. 62

Já Montesquieu, em O espírito das leis , nos assegura que, Quando na mesma pessoa, ou no mesmo órgão de governo, o poder Legislativo está unido ao poder Executivo, não existe liberdade (...) E também não existe liberdade se o poder Judiciário (poder de julgar) não estiver separado do poder Legislativo (poder de fazer as leis) e do poder Executivo (poder de executar, de pôr em prática as leis). 63

Rousseau esclarece: Já que nenhum homem tem uma autoridade natural sobre o seu semelhante e já que a força não produz nenhum direito, restam, pois, os contratos (pactos) para a base de toda a autoridade legítima entre os homens. (...) o poder Legislativo pertence ao povo e só a ele pode pertencer.(...) O soberano pode, em primeiro lugar, entregar o governo a todo o povo ou à maior parte do povo. Dá-se a essa forma de governo o nome de Democracia. Ou, então, pode entregar o governo nas mãos de um pequeno número, e essa forma tem o nome de Aristocracia. 64

O Iluminismo pode ser visto como um movimento cultural e intelectual que pretende dominar pela razão a problemática total do homem. 65 O filósofo alemão Kant conceituou o movimento como luz projetada nas trevas da mente. Luminosidade a afastar a suscetibilidade humana, eliminando a ignorância do homem e assim permitindo a este raciocinar de forma livre, sem apelar à autoridade de escolas, igrejas ou universidades. Para os iluministas, era antiquado e reacionário o conhecimento conservador identificado como cristianismo. Alguns filósofos, como Kant, defendiam a idéia do deísmo , isto é, a fé na existência de Deus sem a necessidade das igrejas e seus dogmas. Conseqüentemente, queriam crer num deus que não interferisse na ciência e no cotidiano. Essa postura resultará em ataques ferozes aos filósofos por parte do clero.

62 VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância, 1763 . Histoire, 3ª Collection J. Monnier . Paris: F. Natham, 1966. 63 MONTESQUIEU. O espírito das leis, 1748. FREITAS, G. de. 900 textos e depoimentos de História. Lisboa: Plátano, 1978. Volume III, p. 24. 64 ROUSSEAU. Do contrato social, 1792. FREITAS, G. de. Opus cit, p. 28. 65 BRUGGER, Walter. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Ed. Herder, 1969, p. 223. Os iluministas refutaram a sociedade estamental. Entendiam a desigualdade como algo provocado pelos próprios homens, e nunca por desejo de Deus, como afirmava a Igreja. Do mesmo modo que havia leis para regular os fenômenos da natureza, existiam também leis para estabelecer ordem nas relações entre os homens. As leis a que nos referimos seriam igualdade , liberdade de expressão , tolerância religiosa e defesa da propriedade . O Iluminismo propagou-se por toda a região européia. Contudo, o pensamento democrático dos iluministas não foi bem aceito pela nobreza, e vários pensadores residentes na França foram perseguidos e tiveram que fugir. Obras proibidas ou lançadas à fogueira resumiam a violência praticada aos pensadores dessa época. Os burgueses viram com bastante entusiasmo o pensamento iluminista, por equivalerem aos seus interesses econômicos. Esse grupo social não integrava o poder político muito menos dos privilégios da nobreza. Seus propósitos viviam subjugados às normas comerciais imputadas pelo governo. Não usufruíam de qualquer direito social e político e pagavam impostos. Vários iluministas sonhavam com uma monarquia esclarecida onde houvesse reformas racionais, eliminação dos controles mercantilistas sobre o comércio, permitindo o intercâmbio de idéias e pusessem fim à censura de livros. Realmente, alguns reis e imperadores do século XVIII aboliram alguns privilégios da nobreza e do clero; puseram fim às torturas; estabeleceram tolerância religiosa; diminuíram o poder do clero e da nobreza feudal; instituíram reformas específicas na educação e no comércio; aperfeiçoaram o sistema de impostos, tornando-o menos opressivo para o povo. Esses reis e imperadores restauraram as instituições políticas, sociais, econômicas e religiosas de seus países sem enfraquecer o poder real. Levaram por diante sua posição absolutista, porém iluminados pelas novas idéias. Daí serem chamados déspotas esclarecidos – que designavam elementos de uma estratégia de governo que permitia a Estados atrasados se desenvolverem e a seus representantes fazerem a divulgação de seus feitos. A respeito do que dissemos, buscamos comprovação nas palavras de Campos, quando nos afirma que A idéia desses governantes era glorificar o Estado e ampliar seus poderes. Se, por um lado, suas reformas administrativas, fiscais e militares, com base em rígidas regulamentações, garantiam o enriquecimento do país, através da construção de estradas e canais, da criação de indústrias, por outro, não alteravam a estrutura arcaica da sociedade. Os camponeses permaneciam na servidão ou próximos dela, a burguesia continuava excluída do poder, a urbanização pouco se desenvolvia, enquanto a nobreza ampliava seus privilégios. A adesão à filosofia iluminista não passava de uma aparência. 66

Em Portugal, no ano de 1750, morria D. João V considerado um esbanjador. D. José I o sucedeu e delegou amplos poderes a seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal – homem que empreendeu grandes reformas, combinando os princípios mercantilistas com fortes princípios de caráter iluministas. O Marquês de Pombal procurou dar nova vida ao Estado Absoluto Português. A indústria foi estimulada, procurando assim se livrar cada vez mais da crescente dependência inglesa. Pombal foi o grande representante do despotismo em Portugal. Campos ainda nos fala que No Brasil, os mineradores da capitania de Minas tinham de pagar uma quota mínima de 100 arrobas de ouro anualmente. Se a quinta parte da produção não atingisse tal volume, os demais moradores deveriam arcar com a derrama , ou seja, uma outra taxação que deveria completar as 100 arrobas fixadas pelo poder metropolitano e seria cobrada de acordo com as posses de cada habitante. Pombal procurou estimular e fortalecer as atividades econômicas de setores da burguesia manufatureiras e mercantil portuguesa e limitar ao máximo o volume de importações da Inglaterra. Novas companhias de comércio foram criadas na América: Grão-Pará e Maranhão, em 1755, e Pernambuco e Paraíba, em 1759. No Norte, a cultura do algodão foi estimulada para atender as manufaturas têxteis inglesas que começavam a desenvolver-se. 67

Objetivando um controle mais eficiente da colônia, o Marques de Pombal, além de ter extinguido o sistema de capitanias hereditárias, propicia que, em 1762, o Estado do Brasil seja elevado à categoria de vice-reinado, administrado por um vice-rei, subordinado ao Conselho Ultramarino, bem como transfere, em 1763, a capital do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro. Com a chegada do então primeiro vice-rei ao Rio de Janeiro, em 1763, tem início nova fase administrativa da colônia. A Coroa portuguesa reconhece assim a crescente importância das capitanias do Sul, que o sistema de mineração contribuiu para desenvolver paralelamente ao enfraquecimento da economia nordestina. A transferência da capital refletiu precisamente a mudança do eixo econômico e político da colônia do Nordeste para o Sul, resultando numa explosão populacional.

66 CAMPOS, Flávio. Opus cit, p. 138. 67 Idem, ibidem. Eduardo Galeano registra, em As veias abertas da América Latina , que Nada ficou, no solo brasileiro, do impulso dinâmico do ouro, salvo os templos e as obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não se tivessem esgotado os diamantes, o país estava prostrado. (...) Só a explosão de talento ficou como recordação da vertigem do ouro, para não mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal não pôde, tampouco, resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O Convento de Mafra, orgulho de Dom João V, levantou Portugal da decadência artística: em seus carrilhões de 37 sinos, seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, cintila ainda em o ouro de Minas Gerais. (...), mas ficarão para sempre, alçadas sobre as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os restábulos, as tribunas, as figuras humanas, que desenhou, talhou e esculpiu Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho filho genial de uma negra escrava e um artesão famoso. Já agonizava o século XVIII quando Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjunto de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chama Os profetas , mas já não havia nenhuma glória por profetizar. Toda a pompa e alegria tinham- se desvanecido e não sobrava espaço para nenhuma esperança. 68

Com a morte de D. José I em 1777, a rainha Dona Maria I, mais tarde conhecida como Maria, a Louca, anulou a política do Marquês de Pombal, atitude que lhe valeu o apelido de Viradeira – movimento político promovido por setores conservadores que destituiu o primeiro-ministro e, deste modo, alterou várias decisões político- econômicas. O Brasil vivia em intensas lutas para sua afirmação. Entre algumas, podemos destacar, no período de 1713 a 1801, a questão da propriedade das terras, o protesto dos Sete Povos das Missões – que enfrentaram as tropas da Espanha e Portugal. Índios de armas nas mãos bloqueavam a possibilidade de que a primeira partida demarcadora entrasse em terras de São Miguel. À frente dessas lutas, imortalizou-se Sepé Tiaraju – cacique guarani – como chefe natural daqueles guerreiros indígenas. A lembrança de sua valentia, de seu jeito destemido existe até hoje, notabilizada em lendas, histórias, canções e mitos, conforme Érico Veríssimo registra em O tempo e o vento : Não estava Sepé entre os índios que revelavam vocação para a música, para a escultura, para a pintura ou para a dança, mas possuía evidentemente outros talentos. Sabia ler e escrever com fluência, tinha habilidade para a mecânica e conhecia a doutrina cristã melhor que muitos brancos letrados que se jactavam de serem bons católicos. Ninguém melhor que ele domava um potro ou manejava o laço; poucos podiam ombrear com ele no conhecimento e trato de terra; e aquela guerra mostrara que ninguém o suplantava como chefe militar e guerrilheiro. 69

68 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina . 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 69 VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento – O continente – volume 1. 34ª edição. São Paulo: Globo, 1997.

Sabe-se que a Inglaterra era vanguarda das mudanças industriais e ditava as novas normas em nome da liberdade de comércio. Paralelamente, os Estados ibéricos sofriam com suas manufaturas medíocres, incapazes de concorrer com a produção britânica. Com guerras, acordos diplomáticos, comércio clandestino, a Inglaterra ampliava seu comércio com outras metrópoles e respectivas colônias, subjugando-as a uma dependência estrutural – o que significa dizer que a elas era reservado o papel de fornecedoras do gênero agrícolas e matérias-primas, e de consumidoras de produtos industriais. Então, as estruturas agrárias dos demais Estados e respectivas colônias articulavam-se às estruturas industriais da potência inglesa, numa clara relação de dependência econômica. A Revolução Industrial faz com que o Antigo Sistema Colonial, baseado na exclusividade de trocas mercantis entre colônia e metrópole, surgisse como empecilho para a expansão do capitalismo. Portugal subordinava-se à parceria inglesa para defender seu abalado império e tornou-se uma das principais áreas de influência britânica. Dessa maneira, as bases do sistema colonial português foram gradualmente disfarçadas até se dilacerarem por completo no início do século XIX. Rumores, notícias e escritos sobre acontecimentos nos Estados Unidos e na França, testemunhos de viajantes assinalavam, neste instante, prédica dos princípios liberais, que os poderosos como incendiárias idéias satânicas, mas que representavam para muitos a morte das tiranias praticadas em nome de Deus e o ponto de partida para uma nova época da História. Em Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, o desagravo dos colonos resultou na oposição ao poder metropolitano. Ao contrário de outros movimentos e rebeliões acontecidos, em sua maioria nos séculos passados, a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração do Rio de Janeiro (1794) e a Revolta dos Alfaiates (1798) colocavam em causa a dependência da Colônia à autoridade da Coroa portuguesa, estendendo o horizonte político das revoltas coloniais. Afirma-se que a luta de Joaquim José da Silva Xavier – Tiradentes – e seus companheiros foi o primeiro brado do árduo, heróico e longo itinerário destinado à efetiva formação da nação brasileira. Fato político algum surgido anteriormente apresentou tão claras intenções de consolidar uma nação no Brasil. Rebeliões assinalavam um teor local ou social. As dos escravos, embora servissem para firmar uma consciência nacional, não se tornaram eficazes para evidenciar a busca de uma identidade nacional. Deste modo, a Inconfidência Mineira, ainda que tendo Minas Gerais como espaço de realização, pretendia a busca da Independência para o conjunto da então colônia brasileira. O movimento dos inconfidentes trouxe à tona o conflito latente que esboçava forma desde antes e que culminou em crise econômica, social e política nos últimos anos do século XVIII. Em Revolução brasileira – de Tiradentes a Tancredo , observa-se que Concentrava-se na relação Brasil-Portugal, colônia-metrópole, o início da ruína do antigo sistema colonial, surgido à época da transição do feudalismo para o capitalismo, à época do surgimento e apogeu do capital mercantil. A ruína desse sistema levou ao agravamento da decadência em que já vivia Portugal, conduzindo este a aumentar a espoliação da colônia, precisamente quando nesta entrava em decadência a base principal de sua economia de então – a mineração. O que era verdade ocorria é que o Brasil já não cabia na camisa-de-força do regime colonial e necessitava romper com essas amarras para se desenvolver. 70

Vários estudos dão conta que a Inconfidência Mineira significou uma das grandes ameaças de subversão da ordem colonial. Contudo, o malogro do movimento e a preocupação dos inconfidentes em não deixar documentação sobre a conspiração fazem os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira a comprovação provavelmente única a respeito dos fatos. A repreensão violenta aplicada aos inconfidentes, de forma bem sigilosa, representa a ameaça que o movimento significou e o exemplo pretendido pelo governo português como lembrança capaz a silenciar o povo. Sabe-se que, desde 1786, havia idéias revolucionárias em ebulição. A discussão a respeito da independência era inevitável, nas universidades européias, pelos estudantes filhos da aristocracia mineira que, para lá, foram enviados e, retornando, trazem informações sobre a recém-criada república norte-americana. O descontentamento era generalizado. Precisava-se, no entanto, da organização do movimento para que se concretizassem os objetivos. Para tanto, poetas, escritores outros, mineradores, coronéis, padres e demais populares uniram-se para o protesto

70 SOUZA, Nilson Araújo de. Revolução brasileira – de Tiradentes a Tancredo . São Paulo: Global Editora, 1989, p. 18. contra o domínio português representado pela figura do novo Governador Geral nomeado para a capitania de Minas Gerais: Luiz Antônio Furtado de Mendonça, Visconde de Barbacena – que chegava com a missão de lançar a derrama. Era o desastre total, parecia a ruína de todos. O medo fazia com que todos se calassem e se trancassem em suas casas. Todos, menos Tiradentes que bradava ser importante que os brasileiros precisavam reagir. Viajava pela região, na tentativa de conseguir mais adeptos para a causa na qual acreditava. Possuía o dom da oratória. Falava a todos com entusiasmo do projeto e da conspiração. Tiradentes tinha a exata noção de que uma revolução se faz com armas, naturalmente, mas com palavras também. Eis que dois nomes bem queridos em Vila Rica são incluídos nesse grupo: o romântico desembargador Tomás Antônio Gonzaga e o respeitado advogado Cláudio Manuel da Costa – ambos poetas da geração árcade brasileira, juntos ao também poeta Alvarenga Peixoto. Vila Rica, centro urbano desenvolvido, abrigava uma elite econômica, política, foi criado por interesse de Portugal na época pombalina, vai também sediar, no Brasil, a experiência neoclássica na literatura sob modelos do Arcadismo italiano. Procurando imitar a lenda grega, os italianos haviam criado em 1690 uma academia literária, denominada Arcádia , que reunia os escritores com o intuito de combater o Barroco e difundir os ideais neoclássicos. Deste modo, procuravam evidenciar simplicidade e igualdade imitando cultos literatos árcades com os poetas usando pseudônimos de pastores gregos. Servimo-nos, mais uma vez, de um fragmento de O romanceiro da Inconfidência : Romance XX ou do país da Arcádia

O país da Arcádia jaz dentro de um leque: existe ou se acaba conforme o decrete a Dona que o entreabra, a Sorte que o feche.

É sonho que guarda em pálpebra leve, diáfana e parada, a emoção campestre de suspiro d’água em flor que fenece. - Desejo que afaga. - Dom que se oferece. (Ó rápida aljava, não seja tão breve, que o amor chega, passa e logo se esquece!)

O país da Arcádia jaz dentro de um leque: sob mil grinaldas, verde-azul floresce. (...)

Nomes aparecem nas fitas que esvoaçam: Marília, Glauceste, Dirceu, Nise, Anarda... (...)

O país da Arcádia súbido, escurece, em nuvem de lágrimas. 71

Sob o espírito neoclássico, na compreensão do universo, o homem deveria empregar sua capacidade de estabelecer relações lógicas, de raciocinar, de pensar, deixando em segundo plano a imaginação e a fantasia. A arte deveria imitar a perfeição da natureza, e entendendo a palavra natureza não apenas à paisagem – montanhas, lagos, bosques, rios – mas também à natureza humana, isto é, o sentimento e a alma do ser humano. O homem não poderia ser valorizado apenas pelo seu lado espiritual, mas também como ser terreno, físico. É Afrânio Coutinho quem nos afirma que a Arcádia é uma região ideal e fictícia, de extrema beleza, de onde foram expulsas as paixões perturbadoras, refúgio maravilhoso e feliz das idéias e do deleite espiritual. Essa região ideal situava-se no campo, em plena natureza pura, por isso o tema da Arcádia sempre esteve ligado à literatura pastoril e bucólica... 72

Em geral, os críticos consideram Cláudio Manuel da Costa – advogado e minerador – o fundador do Arcadismo brasileiro e provável ideólogo da Inconfidência Mineira, apesar de sua formação conservadora. O poeta foi encarcerado, por ocasião do fracasso do movimento, tão logo se instaurou a devassa pela Coroa portuguesa.

71 MEIRELES, Cecília. Opus cit. 72 COOUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil . 3ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, v. 2, p. 205. Sem dúvida, Cláudio Manuel da Costa foi um dos mais importantes escritores árcades. Soube dar continuidade, apesar das limitações da colônia, à tradição de poetas clássicos como Luiz Vaz de Camões. O poeta mineiro cultivou a poesia lírica e a épica. Na lírica, revela-se o tema da desilusão, o infortúnio amoroso. Na épica, Cláudio Manuel da Costa escreveu o poema Vila Rica , inspirado nas epopéias clássicas, que trata da penetração bandeirante, da descoberta das minas, da fundação de Vila Rica e de revoltas locais. A consciência crítica de Cláudio Manuel da Costa é estimulada pela circunstância de haver o século XVIII inaugurado a era social no Brasil. Para tanto contribuiu o surgimento das academias literárias, responsáveis pelo sentimento do coletivo e do profissional, não obstante o formalismo que as prendia às convenções do então chamado estilo acadêmico . Caio de Melo Franco faz-nos atentar para o intenso cunho de conspiração política que sobressaía nelas, enfaticamente na denominada Colônia Ultramarina . Esta, que teria sido fundada em 1768, abrigou Cláudio Manuel da Costa, assim como a Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Santa Rita Durão, Basílio da Gama, Domingos Caldas Barbosa, Manoel Arruda Câmara, José Ferreira Cardoso, Antônio Cordovil, João Pereira da Silva, Mariano José Pereira da Fonseca e Inácio de Andrade Souto Maior, entre outros. Anteriormente à Colônia Ultramarina, haviam nascido as Academias dos Felizes (em 1736), dos Seletos (1752), dos Esquecidos, dos Renascidos (da qual Cláudio Manuel da Costa foi sócio correspondente) e a Sociedade Literária de 1786. Minas, a grande capitania que sofria, obediente e laboriosa, a ostentação religiosa de D. João V; Minas via suas agrestes serras transformadas em povoados, despenhadeiros expostos e suas penhas esburacadas por aventureiros, suas vilas enlouquecidas no alarde do outro e na prática dos vícios surgidos pela invasão dos gananciosos, entretanto entregue totalmente ao clamor de vozes trabalhadoras, faz-se misteriosa e suspeita, sob os projetos de insurreição e tramas. Vila Rica sentia, em suas ruas em declínio, o murmúrio da rebeldia que se acentuava até a porta da casa do ouvidor Tomás Antônio Gonzaga. Este, alheio aos rumores dos planos, sob olhares enviesados da cumplicidade, traçando as rimas das suas liras bucólicas dedicadas a Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, uma jovem de 16 anos pseudonimada de Marília – sua bem amada – declarava sua paixão sob o pseudônimo de Dirceu . Foi, sem dúvida alguma, o mais popular dos poetas árcades mineiros dentro da hipotética Arcádia Brasileira. Considerado o mais árcade dos poetas brasileiros do fim do século XVIII, Gonzaga realizou plenamente o ideal da áurea mediocritas (áurea mediocridade). Louvou a vida campestre e a simplicidade; alça a mulher à categoria de musa inspiradora incessante – como ocorria no neoclassicismo europeu; e defendeu a utópica superioridade do homem natural, embora numa Minas conturbada. Mas, o ardor revolucionário não impede que Marília e Dirceu continuem vivendo sua condição humana: amam, sofrem, criam, trabalham. A poesia de Tomás Antônio Gonzaga, se comparada à dos demais árcades brasileiros, apresenta algumas inovações que indicam para uma transição entre Arcadismo e Romantismo. Reunindo bastante de sua experiência pessoal à poesia, escrita antes e durante a prisão, Tomás Antônio Gonzaga conseguiu quebrar em grande parte a austeridade dos princípios árcades. Em contraposição à contenção dos sentimentos, sua poesia é mais expressiva (emotiva) e mais espontânea. Em vez de uma mulher irreal, como Nise de Cláudio Manuel da Costa, a Marília de Gonzaga apresenta-se mais humana, próxima e real. Tu não verás, Marília, cem cativos Tirarem o cascalho, e a rica terra, Ou do cerco dos rios caudalosos, Ou da minha serra. (...)

Verás em cima da espaçosa mesa Altos volumes de enredados feitos; Ver-me-ás folhear os grandes livros, E decidir os pleitos. (...)

Se encontrares louvada uma beleza, Marília, não lhes invejes a ventura, Que tens quem leve à mais remota idade A tua formosura. 73

Engajado no processo de luta ideológica e política que levaria a burguesia ao poder na França, em 1789, o Arcadismo pode ser visto, sob o ponto de vista ideológico,

73 GONZAGA, Tomás Antônio. Lira III, Parte III. Marília de Dirceu . Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. (Coleção Biblioteca Folha, 12). como a arte revolucionária. Entretanto, sob o ponto de vista estético, é uma arte conservadora, uma vez que ainda se liga aos modelos clássicos, há tempo cultivados pelas cortes aristocráticas. Antônio Cândido vê o Arcadismo como o momento decisivo em que as manifestações literárias vão adquirir, no Brasil, características orgânicas de um sistema (...) em correlação íntima com a elaboração de uma consciência nacional. 74 Estava pronta a linha de frente da Inconfidência Mineira num Brasil pleno de ouro, diamante e poesia. Tiradentes, no comando de pequenos grupos de homens com armas escondidas debaixo dos casacos, estava encarregado de fazer crescer a agitação em Vila Rica assim que a cobrança dos impostos fosse anunciada. Além de planejar detalhadamente a maneira como seria tomado o poder, os conspiradores também discutiam e planejavam a forma de governo que pretendiam implantar: REPÚBLICA – apesar da aparente confusão nas idéias e dos escassos documentos deixados. São João del Rei seria a capital com a bandeira republicana composta por um triângulo, representando a Santíssima Trindade, onde se leria, conforme sugestão de Alvarenga Peixoto, um verso do poeta latino Virgílio: Libestas quae sera tamen. Tiradentes, o mais importante propagandista da independência, não pertencia à elite colonial. Ocorreram várias prisões e interrogatórios. Foi um espetáculo de palavrões, arrependimentos, cabeçada na parede. Tudo uma farsa, porque perdões estavam assinados para alguns, pois estes negaram seu envolvimento e aproveitaram para delatar seus companheiros. Estava evidenciada a fragilidade e debilidade do comprometimento dos conspiradores mais importantes. A Joaquim Silvério dos Reis seguiram-se outros delatores, como Basílio de Brito Macheiro do Lago e Ignácio Correa de Pamplona que procuraram o Visconde de Barbacena para contar o que sabiam, esperançosos em se livrarem de suas responsabilidades. Tiradentes resolveu assumir a iniciativa da rebelião, entregando-se como único líder.

74 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos . 5ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: EDUSP, 1975. D. Maria I concedeu clemência dostoievskiana para todos os presos, com uma única exceção: Tiradentes. Para este o rigor da lei sem brandamentos. O governo preparava um grande espetáculo público com julgamento-exibição seguido da execução de Tiradentes. Para a Metrópole, interessava caracterizar o movimento como significante, chefiado por um simples alferes rude. Tiradentes, para a aristocracia mineira, era um bode expiatório perfeito, que retirava dos poderosos a responsabilidade da conspiração. Em 18 de abril de 1792, foi feita a leitura oficial da sentença de condenação de Tiradentes, na sala do Tribunal do Rio de Janeiro, durante dezoito horas. Condenado à morte por enforcamento, esquartejamento e exposição para servir como intimidação. A execução foi marcada para o dia 21 de abril. Era sábado. A manhã estava linda, o céu mais azul do que nunca de sol intenso. Armaram uma extraordinária festa barroca. A banda tocava alegremente. O Vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa ordenara que tosos enfeitassem suas janelas e suas portas com colchas coloridas, bandeiras e flores. No quartel, a tropa vestia fardamento novo. Os cavalos pareciam mais imponentes, o povo enchia as ruas. Havia acordado cedo e se dirigiu ao antigo campo de São Domingos, onde um enorme patíbulo fora construído, em busca do melhor lugar para assistir ao espetáculo de terror preparado pela Corte portuguesa. Nas ruas da Cadeia, do Piolho e no vasto campo da Lampadosa, que ocupava a área hoje compreendida entre a Praça Tiradentes e a da República, as janelas dos prédios estavam repletas. De repente fez-se um silêncio total. Logo em seguida, os sinos dos Carmelitas tocaram plangentes, badalando agonias. Novo silêncio fez-se, de modo angustioso. Era Tiradentes que vinha chegando... caminhando lentamente escoltado por baionetas e acompanhado por ouvidores em suas togas, pelo clero com o pálio aberto, diversas irmandades com seus distintivos e guiões... À frente vinha o estandarte do Senado da Câmara, populares acompanhavam a passo lento o fúnebre desfile préstito. Na extensão do percurso, as matracas batiam e, de quando por quando, a marcha parava, um meirinho lia a idéia básica sentencial... tambores rufavam e a procissão continuava lenta num sussurro gemido a entoar o Bendito ... Tiradentes, alçando o olhar para a Capela da Lampadosa, de baraço e alva, por vezes olhos postos no crucifixo que trazia nas mãos algemadas, balbuciava orações no fervor de seu ideal. Segundo Motta, Tiradentes, olhar fixo, declarava: Confesso, deponho, relato de suave desejo meu intento de levantar os povos da Capitania de Minas Gerais, o restante do Brasil, da dominação lusa, eu Alferes Joaquim José da Silva Xavier, do Sexto Regimento de Cavalaria Paga, aquartelado em Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto. Igualmente atendo pela alcunha de Tiradentes, entre demais apelidos, por via de prática em variadas profissões, sonhos, ideais políticos: natural do Sítio do Pombal, termo de São João del Rei, Comarca do Rio das Mortes. Com reconhecida honraria, Tiradentes adveio no favor da habilidade em tirar, pôr dentes. Padeço morte na forca, em patíbulo construído na Praça da Lampadosa, aqui nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, antes de bater meio-dia deste vinte e um de abril, ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil setecentos e noventa e dois, por haver intentado libertar o povo brasileiro da escravidão, igual subseqüente descrevo razão, modo, resultado. Relato para o futuro essa tira rasgada da malha de meu destino, de ansiar pela vida afora materialização de cada sonhar; invisível, essa malha vem tecendo, sendo rompida, recomposta, um emaranhado impossível de descoser por inteiro. Ocupo a cabeça com este testamento, qual sem arenga dissipa mal-entendidos; profiro desabalos, acuso, perdôo, nesta derradeira oportunidade de manifestar como humana pessoa. Ademais careço desta aberta declaração; vence o amor a morte, o esquecimento; recordação indo no rumo do projetado, com mais este recurso manter acesa uma chama, viçosa uma flor. Prosápia, vaidade, isto nunca falta dentro deste entendimento; coragem ambiciosa, certo. Atravessei a existência pondo a fora da boca o arquitetado na cabeça, descontrolada cachoeira de bastantes maquinações; sei. 75

Tiradentes vinha sereno. Anos de prisão não o tinham abatido. Seus cabelos e barba já haviam sido raspados como praxe desse tipo de tortura. Cabeça erguida, olhos firmes voltados para o céu, sobe os vinte e quatro degraus que o conduziam ao patíbulo.A forca era a maior que já tinha sido construída no Brasil. O escravo Capitânia, escolhido para ser o carrasco de Tiradentes, figura muito popular, já o esperava lá em cima. O silêncio era geral. A forca levantada no meio do verde sem fronteira, nas circunvizinhanças da chácara de Diogo Dias Paes Leme, dentro do vasto campo da Lampadosa, coberto da verdura vicejante do seu abandono, encharcado de pântanos donde surgiam aves multicores, em guinchos de sobressalto e flores sem nome embelezadas de tropical colorido, aguardavam o tranqüilo Tiradentes. Pede ao carrasco que lhe punha a corda no pescoço: - Deixe minhas mãos livres! A altivez com que Tiradentes enfrentou a morte conferiu certa dignidade à conspiração. Sua expressão fixa para o alto aparentava exprimir: Medo qualquer entra neste coração. Por pura felicidade, por um providencial, divino destino, este corpo, esquartejado, falará, não como escarmento projetado pelas autoridades. Por divina Providência, determina a sentença permanecer espetada esta

75 MOTTA, Pascoal. Eu, Tiradentes: romance . Belo Horizonte: Editora Lê, 1990, p. 9-10. cabeça em alto, visível poste em praça pública de Vila Rica, indo sendo expostos quartos deste corpo pelos caminhos. Acendo, mudo, fé na restauração do povo brasileiro. (...) Valeu; vale vida, mesmo em sendo no desacerto inesperado. Vale não quietar existência no seu só bem-bom; vale sair, gritar à inteira força da voz, quando da rua bate no ouvido murmúrio de opressão; quando, da parede duma meia-água do vizinho, a gente divide choro renitente duma criança pequena na fome; aflita mãe, desiludido pai; valeu batalha; vale ansiar soltura quando entra janela adentro, da praça, berro dum escravo debaixo de bacalhau de couro cru. Urge convergir para Vera amizade, amor; dela, dele não encontro escapatória, ninguém, um dia. (...) Este o destino: não acaba a vida com a morte, nem fogo queima uma idéia; nenhum ferro segura a liberdade. 76

Em meio ao triste silêncio, o padre José de Jesus Maria do Desterro chegou perto de Tiradentes e fez um longo discurso condenando a rebeldia. Olhar fixo e atento às palavras que ouvia, Tiradentes transmitia a certeza de que cada qual compõe o que é preciso haver composto, com nada sucedido por acaso: o resultado resolve, instrui, dirige caminhos, prevalece decidida existência neste caldeirão brasileiro fervente, de cambulhada, judas, cristos, apóstolos, fiéis, infiéis. Para oferecer sentido: a vida órfã, atribulada proporcionou incremento em cada uma decisão; me preparo para o patíbulo com idêntica determinação, com mesmíssima certeza de que bom, ruim, péssimo, gozo, dor, saúde, doença, amor, ódio, claro, escuro, frio, quente, opressor, oprimido, tudo, todos, ponham fé, acabam no inseparável do sangue da existência, dessa dentada roda da máquina da vida, havendo em cada qual vidente coração amorável. Converge a vida para um rio de amor; e não há escapatória dele. Precisa o amor de seu contrário, até de ódio, para amostrar declarada a violência de sua paz, de sua tranqüilidade. Me toma decidido assim, calmo. (...) minha confiança não acaba na derrota de meu corpo; ela vige na idealidade dum por vir em alegria. Não precisa terminar no corpo o ânimo duma pessoa humana... 77

Os sinos repicavam. O discurso em louvor a D. Maria I caminhava para o fim. Tambores e sinos se misturavam numa apoteose a execrar a figura de Tiradentes da História brasileira. A instantes, a execução aconteceria. O padre José Maria do Desterro, bem mais próximo de Tiradentes, dirigi-lhe palavras litúrgicas, diante daquela multidão: - Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. - Amém. - Orai, irmãos e irmãs, para que esta nossa família, reunida em nome de Cristo, possa oferecer-lhe um sacrifício que seja aceito por Deus Pai todo-poderoso. - Receba o Senhor por tuas mãos este sacrifício, para glória do seu nome, para nosso bem e de toda a santa Igreja. 78

Sob o céu azul aberto, ruídos de tambores e intenso repicar dos sinos faziam fundo ao convite do padre a Tiradentes para que rezasse o Credo: Creio em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra. E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria; padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado... Creio no Espírito Santo... 79

76 Idem, p. 181-182. 77 Idem, p. 11-12. 78 Oração do Semanário Litúrgico . Ano XXVIII, nº 61 de 25/12/98.

Num gosto ágil e rápido, o carrasco passou o laço ao poste. O inconfidente Joaquim José da Silva Xavier era estrangulado. E, num instante, a multidão viu os estrebuchos sacudirem seu corpo oscilando no ar. Assim morria. De pé como sempre viveu. O sangue derramado do esquartejamento do então mártir da Inconfidência fomentou a terra brasileira, já adubada com o sangue de outros mártires resultante da violência que a História ao longo dos tempos promovia. Era o alento à raízes da Liberdade que começara a estender seus ramos de sol para abrir a fronde protetora e verdejante. 80

79 Profissão de Fé. Retirado do Semanário Litúrgico. Ano XXVIII, nº 61 de 25/12/98. 80 AFFONSO RUI. A primeira revolução social brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1978, p. 98-99. 2 – Tortura como espetáculo do suplício

(...) é essencial a proteção dos direitos humanos através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; (...)

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10/12/1948.

AME-O OU DEIXE-O

É proibido colar cartazes no meu coração. Meu país não cabe numa bandeira. Meu amor é maior do que uma opção.

Carlos Queiroz Telles. Comunicação á praça - 1972

Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos Humanos 2.1 – Considerações sobre a tortura

As nossas mortes não são nossas. São de vocês. Elas terão o sentido que vocês lhes derem.

Do filme Lamentamos informar , de Bárbara Sonneborn

Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Alguém na terra está à nossa espera. Neste caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente.

Walter Benjamin. Sobre o conceito de História.

O vocábulo tortura origina-se do latim antigo, língua que motiva o surgimento da língua portuguesa. Em toda parte da Terra, tortura indica tormento , suplício , grande mágoa ou depressão psicológica , dor física ou moral , conseqüência da violência, da brutalidade ou do terror. Em todas as épocas houve governos e soberanos que desrespeitaram a dignidade humana, levando-os ao uso da prática da tortura com a finalidade de se manterem no poder e, assim, defenderem seus propósitos. A tortura sempre foi usada desde a mais remota Antigüidade, no período das trevas (1200 a 1800 d. C.), assim a tortura utilizada não tinha por natureza idéia de pena, mas um meio processual para a apuração da verdade. A Lei do Talião impregnou todas as leis antigas, repercutindo até nas leis contemporâneas. A sua impregnação encontra-se no Código de Hamurai, no Livro do Êxodo, Levítico e até no Código Penal Espanhol de 1870. A tortura, para todos os povos da Antigüidade, era vista como uma possibilidade de alcançar a confissão dos imputados. Registramos a exclusão, dentre os povos antigos, dos hebreus, porque não admitiam o derrame de sangue de inocentes. Desse modo, caso o acusado, verdadeiramente, fosse inocente e torturado, tal tortura impingida tornar-se- ia desnecessária, trazendo para o acusado um sofrimento inútil; o inocente não deveria ser castigado, mas, apenas, os culpados; sendo o inocente torturado, para depois se concluir quanto à sua inocência, evidente que não se poderia retirar o sofrimento da tortura, que, certamente, sinalizaria suas máculas naquele que não merecia ser torturado, além de reincidir a ira divina sobre o torturador de inocentes. Julgamos oportuno exemplificar o tormento de um inocente descrito por Pietro Verri, em Observações sobre a tortura : O pobre pai de família Gian Giacomo Mora, homem corpulento e gordo, segundo descreve o processo, antes de prestar o juramento se ajoelhou diante do crucifixo e rezou, e depois de beijar o chão se levantou e prestou juramento. Quando começaram os tormentos, exclamou: Jesus, Maria, não me abandonem. Ah, Jesus Cristo, Jesus Cristo, não me abandone, estou morrendo. A tortura aumentava e ele gritava, protestava por sua inocência e dizia: Veja o que querem que eu diga e eu direi. Fere a humanidade acompanhar esta cena, que parece encenada não por homens, mas por aqueles espíritos maléficos que, segundo nos dizem, se divertem em atormentar os homens. Para ser poupado, o infeliz Mora prometeu que diria a verdade se parassem as torturas; elas foram interrompidas. 81

Em Crime e tortura , Paulo Juricic diz que os persas e cartagineses, no entanto, não tinham o propósito de torturar a fim de obter a confissão, mas aumentar o sofrimento dos condenados à morte, que, além do tormento da execução, eram supliciados, consistindo essa tortura em uma pena a mais para o acusado. 82

Juricic, promotor de Justiça Criminal, aponta, na obra anteriormente citada, que, segundo os gregos havia a participação direta dos cidadãos na prática da acusação, com a inércia do Estado na administração da Justiça. Somente aos escravos, diz Juracic, era aplicada a tortura, porque se considerava que a dor substituía neles o juramento que prestavam aos senhores para dar credibilidade a suas declarações. 83 Os homens livres não podiam ser torturados, exceto os estrangeiros e metecos. 84 Os cidadãos gregos colaboravam com o Estado, quando a este faltava organização, na administração da Justiça. Como nos revela Juricic, a tortura realizava-se em público, não alcançando a crueldade de outros povos. O debate anterior à sentença era oral e, também, público. 85

81 VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Tradução de Frederico Carotti. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 33. 82 JURICIC, Paulo. Crime de tortura. 2ªedição. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2003. 83 Idem, p. 7. 84 Metecos – designação que se dava ao estrangeiro domiciliado em Atenas. 85 JURICIC, Paulo. Opus cit, p. 7. Por ser o direito romano, afeiçoado a algumas influências gregas, constitui o maior corpo de jurisprudência erudita conhecida pela tradição ocidental, sua doutrina acerca da tortura influenciou de maneira ple na seus dois reavivamentos no mundo ocidental – o do século XIII e o do século XX. 86 De acordo com as mais antigas leis romanas, e conforme o direito grego já mencionado, apenas os escravos podiam ser torturados e apenas ao serem acusados de algum crime. Tempos mais tarde, os escravos passaram a ser torturados como testemunhas, ainda que as limitações fossem severas. Peters conta-nos que, inicialmente, só uma acusação criminal contra um escravo podia suscitar testemunho escravo, mas por volta do século II os escravos também podiam ser torturados em casos pecuniários. Homens livres, originalmente imunes à tortura (e às formas de punição capital reservadas aos escravos),vieram a estar sob a sua sombra, durante o Império, em casos de traição e, depois, num espectro cada vez mais amplo de casos determinados por ordem imperial. A divisão da sociedade romana em honestiores e humiliores , após o século II d.C., tornou-se a classe dos humiliores passível dos meios de interrogatório e punições, antes adequados apenas a escravos. E mesmo os honestiores podiam ser torturados em casos de traição e outros crimes específicos, como réus e como testemunhas. 87

O procedimento de tortura usado em Roma era parecido ao da Grécia, aplicando- se a tortura apenas aos escravos e não aos homens livres. O sistema apresentava as mesmas características e explicações. A idéia de torturar escravos era justificada por não ser possível apelar para o sentido moral deles, vistos como amorais, a única maneira de arrancar-lhes confissão , ressalta Juricic, era a tortura, com o nome de questio .88 Os modelos de acusação e a tortura, com os romanos, preponderaram durante a Monarquia e a República. Ao lermos vários estudiosos do assunto tortura – de alguns juristas romanos do século II e III aos historiadores e advogados dos tempos atuais – chegamos à conclusão de que todos aqueles que se dedicaram à questão da tortura têm conceitos bastante semelhante. Reproduzimos o pensamento do jurista Ulpiano no século III: Por quaestio [tortura] devemos entender o tormento e o sofrimento do corpo com a finalidade de obter a verdade. Portanto, nem o interrogatório em si nem as ameaças leves

86 PETERS, Edward. Tortura . Tradução Lilá Spinelli. São Paulo: Ática, 1989, p. 26. 87 Idem, p. 27. 88 JURICIC, Paulo. Opus cit, p. 8. dizem respeito a este édito. Assim, a quaestio deve ser entendida como força e tormento, pois são estas coisas que determinam seu significado. 89

Azo, advogado romano, no século XIII, diz que tortura é a busca da verdade através do tormento 90 , enquanto, no século XVII, o advogado civil Bocer afirmava que: a tortura constitui o interrogatório a respeito de um crime sabidamente ocorrido, durante o qual se faz uso do tormento do corpo, autorizado legitimamente por um juiz, com o propósito de obter a verdade sobre o crime em questão. 91 O historiador jurídico John Langbein, no século XX, alertava que, quando falamos em tortura judicial, referimo-nos ao uso da coerção física por oficiais do Estado a fim de reunir evidências para as medidas judiciais... Em questões de Estado, a tortura também foi usada para obter informação em circunstâncias não diretamente relacionadas às medidas judiciais. 92

No artigo 1º da Declaração Contra a Tortura, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 9 de dezembro de 1975, consta que para o Propósito desta Declaração, tortura significa qualquer ato através do qual se inflige a uma pessoa dor aguda ou sofrimento, tanto físico quanto mental, intencionalmente ou por instigação de um encarregado público, com a finalidade de obter dela ou de uma terceira pessoa alguma informação ou confissão; de puni-la por um ato que tenha cometido; de intimidá-la ou a outras pessoas. Não estão incluídos neste caso a dor ou o sofrimento decorrentes – inerentes ou incidentais – das sanções legais, contato que se atenham ao Padrão Mínimo exigido para o Tratamento de Prisioneiros. 93

Recorremos ao outro historiador do século XX – John Heath – que nos diz: por tortura entendo a aplicação de sofrimento ou a ameaça de aplicá-lo imediatamente, com o propósito de se obterem, ou como decorrência de medidas adotadas para se obterem, informações secretas ou provas forenses de interesse militar, civil ou eclesiástico. 94

Concluímos com Edward Peters que os três primeiros conceitos aplicavam-se à tortura como circunstância legal, inicialmente nos sistemas legais civis romanos e posteriormente nos europeus, até o século XIX. O seguinte é a conceituação de um estudioso jurídico moderno da tortura durante esse extenso tempo. O quinto conceito trata-se de um enunciado diplomático mais recente. O sexto enunciado conceitual apresentado aspira aplicar-se, como nos dar a conhecer Peters, a circunstâncias

89 Ulpiano, citado por PETERS, Edward. Opus cit, p. 7 – 8. 90 Idem, p. 7-8. 91 Idem, ibidem. 92 Idem, ibid. 93 Idem. 94 Idem. históricas, mas com a atenção voltada para o recente reaparecimento da tortura e para a preocupação que ela tem gerado desde o final da Segunda Grande Guerra, criando assim uma definição aplicável tanto ao presente quanto ao passado. 95 É possível, porém, que as pessoas, utilizando-se do termo na segunda metade do século XX, venham a considerar tais conceitos bastante limitados. Peters questiona se a tortura não seria então, puramente, o sofrimento físico ou mental infligido de maneira deliberada sobre um ser humano por outro. Entendemos que, em muitos aspectos, o sentido do vocábulo, assim como por hábito é empregado nas línguas ocidentais, poderia muito bem ser usado. A partir do século XVII o conceito simplesmente legal de tortura foi paulatinamente trocado por uma concepção moral; do século XIX em diante essa conceituação moral foi em boa parte derrubada por uma idéia sentimental, até que o vocábulo passou a ser usado com o valor de qualquer coisa que aspire a que ele signifique. Assim, tornou-se um termo moral-sentimental que designa o ato de causar sofrimento de qualquer tipo em qualquer pessoa, para qualquer propósito – ou mesmo sem propósito. 96 Apesar do desprezo moral e sentimental que o vocábulo tortura promove em fins do século XIX, seu conceito mais amplo e mais seguro é o legal ou, pelo menos, o público. Os estudiosos jurídicos e historiadores citados, aqui, apontam um elemento comum na tortura: ela revela um tormento infligido por uma autoridade pública com fins evidentemente públicos. Sabe-se que o percurso histórico-semântico do vocábulo tortura contém invariavelmente uma extensão pública, do mesmo modo que o possuem os vocábulos execução e assassinato . Assim, podemos deduzir que a tortura está para as ofensas privadas (violação dos direitos de propriedade, agressão física, tentativa de agressão) como a pena de morte está para o assassinato. Segundo Peters, a tortura é, portanto, algo que uma autoridade pública pratica ou tolera. Dos tempos de Ulpiano aos dias de Heath, a dimensão pública distingue a tortura de outros tipos de coerção e brutalidade. 97 Pinheiro, no artigo Tortura: a omissão das elites , revela seu inconformismo de modo incisivo:

95 PETERS, Edward. Opus cit, p. 8. 96 Idem, p. 9. 97 Idem, ibidem. Paus-de-arara e eletrochoques continuam a ser usados, como sempre. Quando desembargadores, juízes e promotores vão romper com o faz-de-conta de que a tortura acabou com o fim da ditadura e responsabilizar, processando na forma da lei, os torturadores que continuam a atuar nas delegacias policiais, prisões e instituições fechadas do Estado? , pois o sistema de Justiça, desde abril de 1997, quando foi promulgada a lei criminalizando a tortura, tem-se mostrado incapaz, como aponta o relatório do governo federal, de processar e condenar os funcionários do Estado torturadores. 98

Possivelmente, pode-se creditar a raridade dos processos à grande dificuldade de se conferir com real eficácia a tortura, tendo em vista as particularidades que envolvem sua prática. Geralmente, a sessão de suplícios é realizada em ambientes fechados, sem que haja testemunhas, de modo que a única pessoa capaz de descrever os tormentos é a própria vítima. Muitas vezes, essa vítima é cidadão simples – que desconhece ou não reivindica seus direitos -, presa ou condutor de maus antecedentes, casos em que não atribui muita credibilidade a seu depoimento. A tal dificuldade podemos juntar o fato de que comumente a tortura não deixa vestígios, que, quando existentes, parecem insignificantes à ótica leiga.

2.2 – Breve história da tortura: do Iluminismo à atualidade no meio da noite no meio do medo dos olhos insones os fantasmas passeiam no canto do galo no uivo do cão (...) no meio da solidão

o escuro esconde zumbis, lobisomens, os bichos do mato o medo do mulato e a morte passa num calafrio que corre dos pés a cabeça tapada

João Ricardo/Paulinho Mendonça. Medo mulato

98 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Tortura: a omissão das elites. Folha de São Paulo. São Paulo, 30 de outubro de 2000.

A revolução intelectual dos séculos XVII e XVIII mostrou uma resistência ao sistema absolutista que dominou na Inglaterra, Espanha, França, Rússia e Europa Central. Vários cientistas, filósofos e historiadores direcionaram questionamentos aos conceitos tradicionais, sugerindo assim uma nova visão do mundo – racional, mecanicista e em grande parte impessoal, mas ao mesmo tempo humanitária, tolerante e, por conseguinte, voltada para a compreensão tanto das fraquezas quanto das aspirações da humanidade. 99

As novas idéias possibilitaram questionamentos das antigas fórmulas da Justiça Penal, fundamentada na brutalidade e religiosidade. Propunha-se, em contraposição ao modelo inquisitivo e ao sistema das provas legais, conforme afirma Valéria Goulart, um modelo processual garantista, baseado na oralidade e publicidade .100 Porém, a revolução intelectual não bastou para fazer, de modo rápido, vergar as crendices, fundamentalmente, o acossamento às bruxas, via de regra, torturadas e, posteriormente, queimadas, que ampliou consideravelmente após a Revolução Protestante na Alemanha e na França. De acordo com a concepção teológica, atribuída a Burns, Lerner e Meacham, a bruxaria consistia na venda da própria alma ao diabo em troca da aquisição de poderes sobrenaturais. Acreditava-se que a mulher que houvesse realizado tal transação ficava capacitada a lançar sobre os vizinhos toda espécie de sortes maléficas – fazia com que lhes adoecesse e morresse o gado, com que lhes falhassem as colheitas e com que seus filhos pequenos caíssem no fogo. Entretanto, os dons mais preciosos que Satanás conferia era o poder de tornar os maridos cegos a respeito da desonestidade de suas esposas e o de fazer com que as mulheres dessem à luz filhos idiotas ou deformados. 101

Salientam, ainda, os citados estudiosos que um número grande de mulheres torturadas, queimadas e mortas não haviam chegado à adolescência ou 30 anos de idade e apontava que, desde a Revolução Protestante, as perseguições espalharam-se como peste. Mulheres, moças e até crianças eram torturadas com agulhas enfiadas sob as unhas assando-se-lhes os pés ao fogo e esmagando-se-lhes as pernas sob grandes pesos até que a medula espirrasse os ossos, a fim de obrigá-las a confessar orgias repelentes com os demônios. É impossível dizer até que ponto as perseguições se deviam ao simples sadismo ou à cobiça dos magistrados, que às vezes, tinham permissão de confiscar os bens dos condenados... Na década de 1620 foram queimadas cerca de mil feiticeiras por ano nas cidades alemãs de Würzburg e

99 BURNS, Edward McNall; LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental . Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Globo, 1997. v. 2, p. 18. 100 GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no processo penal . São Paulo: Atlas, 2002 (Coleção Temas Jurídicos), p. 30. 101 BURNS, LERNER e MEACHAM. Opus cit, p. 458-459. Bamberg e, por volta da mesma época, dizia-se que a praça central da cidade de Wolfenbüttel dava a aparência de uma pequena floresta, tantas eram as estacas. 102

A caça às bruxas começou a entrar em declínio, de modo gradativo, após 1650. Surgiu, no século XVIII, Beccaria – reformador – que escreveu palavras essencialmente candentes sobre a tortura, e que mais influência exerceu, na obra denominada Dos delitos e das penas . Beccaria consagrou o Capítulo XII exatamente à tortura, destacando: ou o crime é certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais precisão das confissões do réu. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não está provado. (...) todos os atos de nossa vontade estão na proporção da força das impressões sensíveis que os provocam, e a sensibilidade de todo homem tem limite. Ora, se a impressão da dor se faz muito forte para assenhorear-se de todo o poder da alma, ela não deixa a quem a sofre qualquer outra atividade que exercer a não ser tomar, momentaneamente, a via mais curta para obstar os tormentos atuais [...]. O inocente gritará, então, que é culpado, para que cessem as torturas que já não agüenta; e idêntico meio usado para diferenciar o inocente do criminoso fará com que desapareça qualquer diferença entre ambos. 103

Beccaria, na referida obra, ainda comparava aos antigos juízos divino, posicionando-se: a única diferença que existe entre a tortura e a prova do fogo é que a tortura apenas prova o delito quando o acusado quer confessar, enquanto que as provas que queimam deixam uma marca exterior, tida como a prova do crime .104 Sem dúvida, a obra repercutiu nas plagas da Europa. E Enrico Ferri atesta nas seguintes linhas: Catarina da Rússia, nas suas Instruções (1767) à Comissão para reforma das leis penais, transcreve de Beccaria; Leopoldo da Toscana promulga a reforma de 1786, que dele acolhe as propostas mais radicais, a principiar pela pena capital; nas Duas Sicílias, a pragmática de Fernando IV (ministro Tanucci) que impõe a motivação das sentenças, conservava a tortura; mas esta depressa foi abolida pela ordenança militar de 1789;

102 BUIRNS, LERNER e MEACHAM. Opus cit, p. 459. 103 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas . 11ª edição, São Paulo: Hemus, 1995, p. 31-33. 104 Idem, p. 32. Giuseppe II de Áustria (1787) abole a pena de morte (exceto para os crimes militares); Frederico o Grande com a Allgemeines Landrecht extingue a tortura (1974). 105

As novas idéias surgidas com os pensadores iluministas Francis Bacon, René Descartes, John Locke e Isaac Newton e, no Direito, por Cesare Beccaria tornaram-se ponto fundamental para a transformação das leis então em vigor e em várias regiões do mundo a tortura foi extinta quer como meio probatório quer como punição corpórea. Desse modo, desde o século XVIII, a tortura foi retirada da maioria dos sistemas legais , como nos revela Valéria Goulart. E a autora vai ainda complementar que os réus passaram a ser considerados indivíduos, principalmente mão-de-obra útil, desvendando-se a grande inutilidade de torturas atrozes e mortes cruéis. 106 As atrocidades vivenciadas no período das grandes guerras, associadas à publicação de trabalhos e assembléias internacionais, foram de relevante papel para que grande parte dos países admitissem a proibição de tortura na própria Constituição. Sabe- se que, em muitos países, a interdição de tortura é uma reprodução do artigo V da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, segundo o qual ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Ainda que, em outros países, a proibição esteja redigida de outro modo, contudo se veda, também a utilização de tormentos, sofrimentos e penas cruéis. A tortura está expressamente proibida, como afirma Valéria Goulart, nas Constituições de Cabo Verde (artigo 31º, 3), Costa Rica (artigo 40), Equador (Título II, Seção I, artigo 19, nº 1), Espanha (Seção 1, artigo 15), Filipinas (artigo III, Seção 12, 1 e 2), Irã (Capítulo Terceiro, artigo 38), Japão (artigo 36), México (artigo 22-4), Nicarágua (Título IV, Capítulo I, artigo 36), Paraguai (Capítulo V, artigo 65), Portugal (artigo 25, item 2), Suécia (Capítulo II, artigo 5) e Suriname (Capítulo V, artigo 9). 107

Sabe-se que, na Itália, a Constituição não impede textualmente a prática da tortura no ato de investigar, contudo garante o direito à liberdade e a punição de toda violência física ou moral contra as pessoas, inclusas encontram-se as pessoas submetidas a restrições de liberdade (artigo 13). Segundo Valéria Goulart, pressupunha-se, ainda, que

105 FERRI, Enrico. Princípios do direito criminal : o criminoso e o crime. Tradução de Paolo Capitolino. 2ª edição. Campinas: Bookseller, 1999, p. 50. 106 GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Opus cit, p. 32. 107 Idem, p. 33. as penas não poderiam admitir tratamentos contrários ao senso de humanidade de humanidade, devendo visar a reeducação do condenado (artigo 27) . Para mais adiante afirmar que os funcionários do setor público são diretamente responsáveis, segundo as leis penais, civis e administrativas, pelos atos de violação de direitos (artigo 28). No que tange à ilicitude da prova obtida mediante violação das garantias pessoais, a jurisprudência vem orientando-se pela exclusão da prova inconstitucional. 108

Valendo-se dos estudos de Minvielle a respeito das sentenças de 1968, de 1970 e de 1973, Valéria Goulart conclui que a Corte Constitucional fixou entendimento pela invalidade da prova sendo que a última decisão foi de grande relevância, pois se estabeleceu que a ilicitude não deriva da presença da proibição expressa, mas do reconhecimento de direitos constitucionais que perderiam seu significado se os resultados de uma prova ilícita pudessem convencer o juiz. 109

A Constituição da Argentina, no artigo 18, em argumento intitulado Seguridad y garantias individuales , prevê que nenhum cidadão tem a obrigação de declarar contra si mesmo; ficando abolidos definitivamente a pena de morte por causas políticas e todo tipo de tormentos. O sistema argentino propõe um Juiz de Instrução que desempenha a função de apurador dos delitos, de tal forma que não cabe à polícia buscar/obter declarações do preso. O Código Processual Penal tem como preceito, feita a prisão pela polícia, presentar al detenido immediatamente en un plazo que no exceda de seis horas ante la autoridad judicial competente. Registrando-se que a polícia no podrán recibir declaración al imputado. Sólo podrán dirigirle preguntas para constatar su identidad. 110 Ainda que não prevista legalmente, acontecem interrogatórios feitos pela polícia, havendo várias decisões dos Tribunais que reconhecem a validade do depoimento como indiciador ao da confissão judicial. Carrio, em sua obra já citada, manifesta-se, sobre a decisão do caso Quezada , Si bien puede admitirse, sobre todo en los territorios nacionales por la situación especial que crean las distancias y el aislamiento, que los funcionarios policiales

108 Idem, p. 34. 109 Segundo MINVIELLE, Bernadette. La prueba ilícita em el derecho procesal penal. Córdoba, Marcos Lerner, 1987; citada por GOULART, Valéria. Opus cit, p. 34. 110 CARRIO, Alejandro D. Garantías constitucionales em el proceso penal. 3ª edição. Buenos Aires: Hummurabi, 1994, p. 283-4. puedan interrogar a los procesados a los fines de la investigación, las manifestaciones que hagan los procesados no tienen el valor de prueba de confesión, pues el Código sólo admite la confesión judicial y esta sólo puede ser prestada ante el juez competente y com los requisitos que aquél indica. Estas manifestaciones sólo pueden tener el valor de um indicio em cuanto concuerden com otros elementos de prueba. 111

Em relação a um outro caso – Montenegro -, o citado autor anterior registra a decisão pela invalidade da confissão feita aos órgãos policiais, a despeito de sua utilidade à clareza da verdade. Ressalta que deve ser desconsiderada a prova, porquanto el acatamiento por parte de los jueces de ese mandato constitucional no puede recucirse a disponer el procesamiento y castigo de los eventuales responsables de los apremios, porque otorgar valor al resultado de su delito y apoyar sobre él uma sentencia judicial, no sólo es contradictorio com el reproche formulado, sino que compromete la buena administación de justicia al pretender constituirla em beneficiaria del hecho ilícito. 112

A Emenda IV, nos Estados Unidos, pressupõe a integralidade dos cidadãos, casas e haveres contra buscas arbitrárias, enquanto a Emenda V estabelece que nenhum cidadão pode ser forçado, em qualquer situação criminal, a prestar testemunho contra si mesmo, nem ser desapossado da vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal. Concluindo, a Emenda VI determina que, em todos os processo criminais, o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial, garantidos os direitos de ser acareado com as testemunhas de acusação e ser defendido por um advogado. 113

Finalmente, a Emenda XIII veda a escravidão e trabalhos compelidos, exceto se atuarem como punição de algum crime. Como nos diz Minvielle, tais emendas formam o alicerce do acolhimento dado à tortura e indícios ilícitos nos Estados Unidos. É a autora que alerta: en los EEUU el problema de la prueba ilícita há asumido dimensiones constitucionales, en la medida que se extrae de los principios contenidos em las Enmiendas IV, V y VI la gênesis de diversas reglas de exclusión probatoria, y sin que ninguna de las normas constitucionales citadas, confiera elementos textuales de justificación para el retiro de la eficácia. 114

As normas de exclusão, tiradas da interpretação das citadas emendas, são determinadas por decisões da Suprema Corte. E Valéria assegura que, Desde 1914, a Suprema Corte orientou-se pela inadmissibilidade das provas ilícitas obtidas mediante ato de agente federal, ou de agente estadual, quando o julgamento se dava perante um Tribunal Federal. Dúvida maior existia quando a violação era praticada por agente estadual e o julgamento também era perante um Tribunal Estadual,

111 CARRIO, Alejandro. Opus cit, p. 286. 112 Idem, p, 292. 113 GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Opus cit, p. 37. 114 MINVIELLE, Bernadette. Opus cit, p. 55-6. questionando-se a aplicabilidade das emendas. Contudo, no caso Mapp versus Ohio, datado de 1961, a Suprema Corte decidiu que a aplicação da regra de exclusão nos processos perante Tribunais Estaduais, por ato de agente estadual, decorria da cláusula do devido processo expressa na Emenda XIV. A citada emenda estabelecia que nenhum Estado poderia privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. 115

O desenvolvimento da jurisprudência ainda não autoriza que a norma da inadmissibilidade se alargue aos editos de particulares. Minvielle evidencia que los Tribunales de EEUU son firmes em cuanto a la no aplicación de la regla de exclusión probatoria en hipótesis em las cuales la violación de los derechos constitucionales provenga de sujetos particulares. 116 Em vários países da América Latina, depois do retorno ao regime constitucional democrático, os relacionamentos entre os governos e as sociedades, especificamente a maioria de pobres e miseráveis, têm sido assinalados por ilegalidade e poder arbitrário. A transição da ditadura para a democracia na maior parte da América Latina melhorou, sem dúvida, em muitas maneiras, a qualidade de vida e o exercício das liberdades para grande parte dos latino-americanos. O que tal transição não conseguiu, porém, foi abrandar a violência que abala a região. Percebe-se uma generalizada e destruidora epidemia de violência cuja extensão afeta a qualidade da democracia em que vivemos. Não somente as áreas urbanas estão testemunhando uma sensação progressiva de insegurança por causa do aumento da criminalidade; o conflito rural também está sempre sujeito a desfecho violento. Ainda que as fontes da violência sejam inúmeras e seus responsáveis, variados, os agentes do Estado continuam a contribuir bastante para a ilegalidade e a brutalidade. Quando as sociedades latino-americanas passaram por transições de ditaduras para governos civis, as práticas autoritárias de seus governos não foram afetadas por transformações políticas. Sob a democracia predomina um sistema autoritário, inserido especialmente nos aparelhos de Estado de controle da violência e do crime.

115 GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Opus cit, p. 37. 116 GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal . 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tirbunais, 1982, p. 126.

2.3 – O espetáculo do suplício no Brasil

caía a tarde feito um viaduto

(...)

e as nuvens lá no mataborrão do céu chupavam manchas torturadas que sufoco (...) chora a nossa pátria-mãe gentil choram Marias e Clarisses no solo do Brasil (...)

João Bosco/ Aldir Blanc. O bêbado e a equilibrista

No Brasil Colônia, vigoraram as Ordenações Afonsinas (1446), Manoelinas (1521) e Filipinas (1603), entre as quais as últimas foram as que verdadeiramente exerceram influências, mesmo após a Independência. Nesses séculos, os tormentos receberam trato legal, sempre com disposições lacônicas, que concediam ampla liberdade ao magistrado . 117 Entende-se que os tormentos significavam questionamentos feitos a acusados, no intuito de se conhecer a verdade pretendida, por intermédio do sofrimento físico. Para João Mendes de Almeida, o juiz habituado a fundar a toda instrucção nas continuas perguntas ao réo, buscava todos os meios de extorquir esta confissão, ostentando uma habilidade sem escrúpulo, quer para a sugestão, quer para as ciladas, quer para o cansaço do interrogado; e, si ainda assim nada conseguisse, recorria às ameaças e depois aos tormentos. 118

O primeiro Código de Processo Criminal revogou, em 1832, completamente a tortura como elemento de prova e investigação, banindo o sistema inquisitorial e

117 Idem, p. 38. 118 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brazileiro. 3ª edição. Rio de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, 1920, p. 149. (Registramos a grafia original) adotando o sistema acusatório .119 Vários estudiosos registram que, depois da abolição legal da tortura, um hiato considerável do Império a Primeira República apontou uma época sem que tivesse ocorrido ou notícia de tortura em grande escala. A partir de 1930, iniciou-se a Segunda República e, com o golpe militar de 31 de março de 1964, ocorreu significativa transformação nas leis até então em vigor. Surgem a Lei de Segurança Nacional e os Atos Institucionais. O Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, não permitia a avaliação do Poder Judiciário da prisão de cidadãos por razões de segurança nacional. Luciano M. Maia acusa que o Brasil vivenciou de março de 1964 a março de 1985 o regime militar, grande parte do qual caracterizado por ser um regime de exceção. Instalado pela força das armas, o regime militar derrubou um presidente civil e interveio na sociedade civil. Usou de instrumentos jurídicos intitulados atos institucionais, através dos quais procuraram legalizar e legitimar o novo regime. A sombra mais negra veio com a prática disseminada da tortura, utilizada como instrumento político para arrancar informações e confissões de estudantes, jornalistas, políticos, advogados, cidadãos, enfim, de todos que ousavam discordar do regime de força então vigente. A praga a ser vencida, na ótica dos militares, era o comunismo, e subversivos seriam todos os que ousassem discordar. Foi mais intensamente aplicada em 1968 a 1973, sem, contudo, deixar de estar presente em outros momentos. 120

A utilização da violência, durante à repressão política do país, teve variadas formas de representação como pau-de-arara, espancamentos, afogamentos, aplicação de choques, violências sexuais, ameaça de decepar órgãos, cadeira do dragão, enforcamento, utilização de animais para inibição, enfim, inúmeras formas de constrangimentos eram praticadas. Os presos políticos eram colocados em celas e pouco alimentados. Antonio Carlos Fon, jornalista e preso político, afirma que a alimentação era servida uma vez por dia e à noite, pois uma pessoa alimentada não pode ser pendurada no pau-de-arara ou submetida a choques elétricos, sob o risco de morrer de congestão. Então, nós éramos alimentados apenas à noite, para ficarmos disponíveis durante o dia para sermos torturados. 121

119 GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Opus cit. Refere-se a VALLADÃO, Haroldo. História do direito, especialmente do direito brasileiro . São Paulo: Freitas Bastos, 1973. Referência que a autora faz na página 40. 120 MAIA, Luciano Mariz. Os direitos humanos e a experiência brasileira no contexto latino-americano. Cadernos de Direito e Cidadania: dialogando sobre direitos humanos . São Paulo: Artchip, nov. 1999, p. 45. 121 FON, Antonio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. 6ªedição. São Paulo: Global, 1981, p. 32. Sabemos que há relatos de treinamento de autoridades brasileiras por setores especializados estrangeiros que, aqui, chegaram e viveram para ensinar técnicas de torturas. A respeito desse assunto, Orlando Soares 122 observa que: a idéia, lançada ainda durante o Governo Eisenhower, tomou corpo no Governo Kennedy, que criou uma comissão para treinamento policial no Hemisfério [...]. O primeiro norte- americano então designado para orientar os métodos de tortura no Brasil chamava-se Lauren Goin e chegou ao Rio de Janeiro em 1960, logo deslocando-se também para Belo Horizonte, e encomendando nos Estados Unidos equipamentos de trabalho no valor de 100 mil dólares. [...] No programa de modernização , treinamento e equipamento das nossas polícias, o mais importante de tudo era que os policiais treinados e equipados pelos professores americanos, compreendessem que seus inimigos eram o comunismo e o castrismo, que a chamada subversão interna era uma grave ameaça aos seus países – e tanto a teoria quanto a prática indicavam que a luta contra tais inimigos não podia ter obstáculos. A orientação seguida consistia especialmente em ensinar aos policiais latino- americanos como infligir num inimigo da segurança pública o máximo de dor física e moral num espaço de tempo violentamente curto, o que evidencia o papel dos EUA na militarização e brutalização da vida pública na América Latina . O Congresso norte- americano, em 1975, obrigou esse sinistro Escritório de Segurança Pública (OPS) a fechar as portas. Mas, só até, 1970, 100 mil brasileiros estavam treinados em artes vis. E 600 deles com especialização nos Estados Unidos. 123

No Brasil, a tortura propagou-se, mediante a utilização de vários métodos, em três centros: no Exército (DOI – CODI – Departamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna); na Aeronáutica (CISA – Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica) e na Marinha (CENIMAR – Centro de Informações da Marinha). No Rio de Janeiro, na época Estado da Guanabara, muitos torturados da PE (Polícia do Exército) simulavam aulas práticas, nas quais, em sala de aula, projetavam slides sobre diferentes tipos de tortura e alguns presos participavam como cobaias . E Juricic arremata que, dessa modalidade, mais de cem sargentos tomavam parte, tendo como professor um oficial da Polícia do Exército, Tenente Airton .124 No sistema de tortura no Brasil, surgiram inúmeros descomedimentos cometidos por interrogadores, que tiranizavam os presos para arrancar-lhes a verdade. O regime militar transforma a tortura em método científico , assim, tal prática se insere nos currículos de formação de militares. Tem-se conhecimento de que o processo de tortura

122 SOARES, Orlando. A prática da tortura através dos tempos. Rio de Janeiro: Científica, 1979, p. 52-3. 123 Ver a respeito o artigo Documento militar mostra início da tortura no país. Jornal Tortura nunca mais , agosto-setembro 1996. Luciano Mariz Maia relata que o golpe de 1964 teve a participação da Casa Branca e sua agência de Inteligência , tal qual ocorreu na Guatemala, em Cuba e no Chile ( Os direitos ... Opus cit,. P. 47) 124 JURICIC, Paulo. Opus cit, p. 47. não era meramente teórico; baseava-se muito mais na prática, valendo-se de pessoas realmente torturadas, que serviam de vítimas do suplício nessa forma de ensino- aprendizagem. 125 O introdutor desse procedimento no Brasil foi o policial norte-americano Dan Mitrone, depois deslocado para Montevidéu, onde é seqüestrado e assassinado. No início do regime militar, quando era instrutor em Belo Horizonte, ele se utilizava de mendigos recolhidos nas ruas para treinar a polícia local. Seviciados durante as aulas, aqueles pobres homens permitiam que os alunos aprendessem as várias modalidades – afirma Langguth – de criar, no preso, a suprema contradição entre o corpo e o espírito, atingindo-lhe os pontos vulneráveis. 126 Não há dúvida de que o autoritarismo no Brasil, no percurso de seu movimento histórico, teve nas mais variadas formas de tortura uma via de controlar a população. Foucault, estudando a história da violência nas prisões, salienta que, ao longo da sociedade moderna, o suplício assume nova identidade e reorganiza uma nova ética da morte . Essa recente expressão do suplício recupera o corpo como elemento intocável e, então, o espetáculo deixa de ser público. De acordo com Foucault, o desaparecimento dos suplícios é pois, o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue. 127 Não se tem mais a mesma ótica do corpo como na Idade Média, isto é, algo disponível, venal, que somente encarcera a alma. Vasconcelos constata que, de algum modo Plotino, discípulo de Platão, influenciaria bastante a chamada Santa Inquisição , quando defendia a idéia de que o encontro com o UNO só poderia ser concretizado pelo abandono do corpo. Daí a necessidade, nos tribunais do Santo Ofício, dos suplícios corporais para que a alma fosse liberta e se reencontrasse com a Idéia do Bem . O maniqueísmo corpo/alma é evidente. Neste caso, não havia por que libertar o corpo. Libertar o homem era salvar a alma. 128

125 Idem, ibidem. 126 Conforme A. J. Langguth. A face oculta do terror . Rio de Janeiro: 1979; citado em Brasil nunca mais . 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1985, p. 32. 127 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – uma história da violência das prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, p. 15. 128 VASCONCELOS, José Geraldo. Memórias da saudade: busca e espera no Brasil autoritário. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2000, p. 27. (Originalmente apresentada como Tese – UFCE, 1998) Parece-nos claro o questionamento realizado na obra Brasil nunca mais . Ao investigarem a gênese da tortura no Brasil, encontram uma relevante semelhança com a Inquisição da Idade Média, o que apenas ratificaria a marca pré-moderna do autoritarismo brasileiro. Na mais destacada obra sobre a utilização da tortura pela Igreja – O manual dos inquisidores – Nicolau Emérico, no capítulo 3, Sobre o interrogatório do acusado , registra que o inquisidor ordena: aplicar-se-lhe-á a tortura, a fim de lhe poder tirar da boca toda a verdade. No capítulo 5, sob o título Sobre a tortura , a frase introdutória é: Tortura-se o Acusado, com o fim de o fazer confessar os seus crimes. 129 E o livro Brasil nunca mais registra que No Brasil, de 1964 a 1979, os métodos de interrogatórios e o sistema processual baseados na Doutrina de Segurança Nacional parecem advir da Inquisição medieval. Essa também instigava a delação entre parentes ( em matéria de heresia, o irmão pode testemunhar contra o irmão, e o filho contra o pai ), reduzia o número de testemunhas ( bastam dois testemunhos para condenar definitivamente em matéria de heresia ), aceitava delações anônimas ( não deverão tornar-se públicos os nomes das testemunhas, nem dá-los a conhecer ao acusado ). 130

No Brasil, como já dissemos, as técnicas interrogatórias foram treinadas em aulas de tortura, o que, para o sistema, só viria aperfeiçoar os conhecimentos dos agentes da repressão. Ângelo Pezzuti, estudante preso em Belo Horizonte e torturado no Rio de Janeiro, diante do Conselho de Justiça Militar de Juiz de Fora, em 1970, expõe como funcionavam as salas de aula de tortura. O interrogatório foi instrumento de demonstração prática desse sistema, em aula onde participaram mais de cem sargentos e cujo professor era oficial da P.E., chamado Tnt. Ayrton, que, nessa sala, ao tempo que se projetavam slides sobre tortura, mostrava-se a prática para a qual serviram o interrogado. MAURÍCIO PAIVA, AFONSO CELSO, MAURILO PINTO, P. PAULO BRETA e outros presos que estavam na PE-GB, de cobaias. 131

A prática da tortura, durante as aulas, não surgem apenas nos quartéis. O professor José Antônio Duarte, preso em Belo Horizonte, relatou em seu depoimento, prestado em 1970, ter sido seviciado inclusive por um aluno do Colégio Militar: (...) que foi torturado e espancado pelo encarregado do inquérito, Marcelo Araújo, pelo cabo Dirceu e por um aluno do Colégio Militar, cujo nome o interrogado não sabe, e Pereira; o que causou estranheza ao interrogado foi um aluno do Colégio Militar, a título

129 EMÉRICO, Nicolau. O manual dos inquisidores. Lisboa: Edições Afrodite, 1972, p. 42-3. 130 Brasil nunca mais. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 286. 131 Idem, p. 31. de prestar estágio no IPM, participar de uma coisa infame como a inteligência de torturas a um ser humano. 132

Os agentes da repressão utilizavam várias técnicas de tortura a partir de diversos instrumentos, que evidenciavam a modernidade do autoritarismo brasileiro. Eis que surgia a aplicação do suplício minuciosamente ensaiada e passada aos filhos da ditadura. O pau-de-arara é um dos métodos mais comuns e estava presente em praticamente todas as sessões de tortura. Constituía-se num sistema, mediante o qual se atravessava uma barra de ferro entre os punhos amarrados e a dobra do joelho do torturado. Assim, o supliciado ficava dependurado, de cabeça para baixo, cerca de vinte ou trinta centímetros do solo. Normalmente, após ser colocado nessa posição, o elemento torturado era humilhado com espancamentos, empalação, choques elétricos e introdução de água na boca e narinas. Geralmente, o pau-de-arara de uma a três horas. Tal processo leva a intensas dores, motivadas pela tração e paralisação da corrente sangüínea. O supliciado tem diarréia, enjôos e dificuldade para respirar. Em maio de 1970, o líder sindical Olavo Hanssen foi morto, depois de preso, por policiais da DEOPS de São Paulo, durante os festejos de 1º de maio realizados pelos sindicatos de São Paulo. Era conhecido militante sindical, participante como delegado eleito em vários congressos de trabalhadores e estudantes. Foi procurador do periódico Frente operária do Partido Operário Revolucionário Trabalhista (trotskista). A 6 de maio, Hanssen é retirado de sua cela, no DEOPS e torturado pelo delegado de polícia Josecir Cuoco e sua equipe. Volta à cela com os rins paralisados (com retenção total de urina) como conseqüência dos golpes recebidos. Na Câmara dos Deputados, sua morte é denunciada pelo deputado Pedroso Horta: ... las lesiones observadas em el cadáver prueban que Olavo Hanssen, aún vivo, fue sometido al pau de arara , desvestido, atado de brazos y piernas a uma barra de madera. Esas lesiones, sin embargo, no fueron suficientes para provocarle la muerte. Se lê hizo la autopsia y los toxicólogos determinaron que la muerte fue producida por um veneno que tiene la denominación comercial de Paration ,133 um insecticida violento que, alcanzar la sangre, se localiza em los riñones y, como se ve em el propio laudo médico, provoca pielonefritis aguda... El veneno sólo le pudo haber sido inyectado... Aquí está, pues, el cuerpo del delito, que tantas veces nos ha sido reclamado... Por cuatro veces, la oposición

132 Idem, p. 33. 133 Observa-se que o nome comercial da inseticida Paration já traduz o poder de paralisar a ação. pidió que se reuniera el Consejo de Defensa de los Derechos Humanos, que hace muchos meses, desde febrero, no sesiona... 134

Transcrevemos um fragmento da carta escrita pelo sacerdote Jan H. Talpe, de nacionalidade belga, ao ser expulso do Brasil, em agosto de 1969. O padre Talpe foi torturado e mantido em regime incomunicável por seis meses. Esta carta fora escrita horas antes de sua expulsão, quando saiu da prisão e do Brasil. Ei-la num fragmento: Amigos: Em marzo de 1965 llegué al Brasil como sacerdote y como físico. Poco después, recebí um lugar en la Universidad de São Paulo me confió las funciones de profesor asistente. Tuve la oportunidad de vivir em contacto com la comunidad estudiantil y pude conocer algo – y amar mucho – de nuestro pueblo brasileño, sus anhelos, su calidad, su grandeza. Igualmente, sus sufrimientos, su humillación, su expoliación y su lucha por la emancipación y la liberación. El año pasado fui a vivir, com otro sacerdote, a um barrio obrero, donde conocimos directamente la vida y la lucha de nuestro pueblo. Compartimos em todo la vida de los obreros, aunque yo continuase em la parroquia universitaria y como profesor universitário... Mis ojos vieron las privaciones, la miseria, las humillaciones e injusticias que sufre nuestro pueblo brasileño... El 19 de febrero fui brutalmente secuestrado por militares y llevado a la prisión, donde ya se encontraba preso el sacerdote que vivía conmigo, detenido pocos días antes y cruelmente torturado. Me tocaba a mí probar la fúria de los verdugos. Así, conocí muy de cerca otro aspecto del sufrimiento de nuestro pueblo: la crueldad de la dictadura militar del gobierno. Cualquier sospecha, cualquier acusación anónima o uma simple actitud que no agrade a los militares es suficiente para que alguien sea secuestrado y torturado. A veces, cuando no encuentran a la persona buscada, se llevan a um pariente como rehén y lo torturan. (...) A mí me gustaría poder unirme a la lucha de este pueblo para alcanzar su verdadera seguridad en la libertad y em el control de su propio destino. Me complacería unirme a mis colegas científicos que investigan para el pueblo y no para los trusts internacionales. O quedarme con vosotros, estudiantes, en la lucha por uma enseñanza libre, abierta para todos y adaptada a las necesidades de nuestro pueblo. Me complacería quedarme con vosotros, compañeros de la parroquia universitaria, para profundizar el mensaje de amor del Evangelio frente a la violencia brutal de la dictadura que aplasta al pueblo... Vosotros, habitantes del barrio, no necesitáis ser torturados para juzgarme. Me gustaría luchar con vosotros, unidos a todo el explotado pueblo brasileño em esta lucha dura y larga com que se tendrá que enfrentar a la violencia de la dictadura militar gubernamental com métodos adecuados. Frente a la violencia cruel de la dictadura, es difícil defender sólo com palabras la vida, mas aún cuando ella es esta que se ve, Severina. Infelizmente, me obligan a salir del país. Otros tuvieron peor suerte y fueron asesinados. Pienso, ppor ejemplo, em mi amigo, el padre Antonio Henrique, de Recife. Mas mi mayor alegria es saber que la lucha continúa. Y que – al igual que para el pueblo vietnamita – para nuestro pueblo brasileño la Victoria está garantizada. São Paulo, agosto de 1969. 135

134 Retirado da obra Pau de arara: la violência militar en el Brasil . México, Siglo XXI Editores, 1972. Sem indicação de autoria, p. 168. 135 Idem, p. 200-1. A pimentinha , outro tipo de tortura, era uma máquina assim chamada por encontrar-se acondicionada numa caixa de madeira de cor vermelha; no seu interior tinha um ímã permanente, em torno do qual gira um rotor combinado de cujos terminais uma escova recolhe a corrente elétrica de grande voltagem, em torno de 100 volts e 10 ampères; quanto mais veloz, maior a corrente elétrica; essa velocidade desencadeava mediante o uso de uma manivela, como registra Brasil nuca mais : (...) extremamente perigosa porque a corrente elétrica aumentava em função da velocidade que se imprimia ao rotor através de uma manivela: que, em seguida, essa máquina era aplicada com uma velocidade muito rápida a uma parada repentina e com um giro no sentido contrário, criando assim uma força contra-eletromotriz que elevava a voltagem dos terminais em seu dobro da voltagem inicial da máquina. 136

Estudando a punição na modernidade, Foucault dá a entender que a nova ética da morte não se aplica ao momento de autoritarismo. A repressão trabalhou com bastante aplicação o abuso da técnica na ritualização do suplício. Marival Canto, em Autópsia da sombra , assim se manifesta: Matar subversivos era uma atividade altamente profissional. Nas casas de São Paulo havia uma equipe especializada na ocultação de cadáveres. Os agentes sabiam exatamente o que fazer. Primeiro, amputava-se as falangetas dos dedos, para evitar que os mortos fossem reconhecidos através de impressões digitais. Depois, amarravam as pernas para trás, de forma que o corpo ficasse reduzido à metade, e esfaqueavam a barriga. O esfaqueamento era para evitar que o corpo, se fosse jogado num rio, viesse à tona algum tempo depois. 137

Os corpos eram esquartejados antes de serem jogados nos rios, como assinala Canto: os cadáveres eram esquartejados, às vezes até catorze pedaços, como se faz com um boi num matadouro. Era um negócio terrível. Eles faziam isso para dificultar a descoberta e a identificação dos mortos. 138 Vasconcelos assevera que O corpo esfacelado não correspondia ao desenvolvimento da modernidade que buscava preservá-lo em sua integridade física, social e ética, consolidado como unidade e preservado dos suplícios. A supressão do espetáculo, também outra característica da modernidade, não pode ser totalmente aplicada no Brasil da segurança nacional. Em que pese o fato de as sessões de tortura serem feitas em locais clandestinos ou em instituições carcerárias, a cena é externada em duplo aspecto, através dos próprios membros da repressão, ou seja, partilhada entre alunos, aprendizes e graduados da arte de torturar. Poderia ser reproduzida publicamente de forma implícita ou explícita. No primeiro caso, a cena poderia ser reproduzida a partir do que a repressão chamava de teatrinhos .139

136 Brasil nunca mais . Opus cit, p. 35. 137 CANTO, Marival D. Chaves do. Autópsia da sombra. Veja , 18/11/1992, p. 23. 138 Idem, p. 28. 139 VASCONCELOS, José Gerardo. Opus cit, p. 33. Canto, na reportagem citada, nos garante que O preso era levado para um local público, onde equipes do DOI simulavam um tiroteio com mortes. Na hora de levar o corpo para o IML faziam-se as substituições. O agente que se fingia de morto era substituído pelo corpo do preso. No IML, o legista Harry Shibata e outros legalizavam a morte em combate. 140

Já, no segundo caso, reproduzia-se claramente com o mesmo significado de espetáculo da pré-modernidade. É o caso da guerrilha do Araguaia, citada por José Genoíno Neto na carta inclusa ao processo da 1ª auditoria da 2ª CJM: Depois de ser amarrado numa árvore durante dois dias e uma noite, passei a receber pancadas em todo o corpo choques elétricos, telefones nos ouvidos, pau-de-arara e afogamento. Isso se realizou dentro da mata e teve continuidade na cadeia de Xambioá, tanto comigo como com outros moradores que estavam presos (...). Em fins de maio, fui novamente levado para Xambioá, no nordeste de Goiás. De maio para início de junho, esta cidade estava transformada em zona militar cercada de arame farpado e dirigida pelos rangers , os boinas-verdes brasileiros. Iniciou-se então um novo processo de tortura, agora num lugar apropriado a barricadas oficiais . Onde estavam os pára-quedistas do Rio de Janeiro os presos ficavam dentro de buracos de 8m³, amarrados em árvores ou em cima dos caminhões do Exército: era comum nessa base ouvir os gritos de pessoas que ali eram torturadas (...). No dia 5 de junho, aquela base entrou em pânico: um grupo de pára- quedistas havia se encontrado com um grupo de moradores do interior da selva, travando- se entre ambos intenso tiroteio, do qual resultou gravemente ferido um tenente pára- quedista e morto um dos moradores. Este último era Bérgson Gurjão Farias, cidadão correto e grande amigo meu (...). No dia 6 de junho desceu de um helicóptero, preso e com uma venda nos olhos, Dower Morais Cavalcante, empurrado a chutes em direção ao final da pista do aeroporto. Passou um dia e uma noite sendo torturado na barraca dos oficiais, tanto que, no dia seguinte, estava com uma das costelas quebradas. 141

Podemos dizer que os exemplos referidos e outros tantos que se tem noção de sua existência nos permitem pensar que, sob o ponto de vista institucional, existe uma tortura tencionada, quando ela mostra relevos de uma ação emanada, consentida ou pelo menos continuamente por algum departamento decisório, e uma tortura espontânea, quando irrompe no curso de alguma ação violenta como os linchamentos populares executados com requintes de crueldade , como nos informa Luciano Oliveira. 142 E crueldade nas torturas e maus tratos são usados para intimidar e exercer controle sobre internos apinhados em instituições penais. No dia 24 de dezembro de 1997... nós fomos levados todos para o campo de futebol aqui do presídio e obrigados a ficar nus. Depois fomos obrigados a arrastar por uma lama de esgoto sanitário. Neste período de rastejo nós éramos espancados com cacetadas e chutes

140 CANTO, Marival. Opus cit, p. 30. 141 Conforme José Genoíno Neto apud VASCONCELOS, José Gerardo. Totalitarismo e anistia: o pecado e o perdão na esfera da política. Dissertação (Mestrado) Departamento de Ciências Sociais e Filosofia. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, 1993, p. 209-242/230-1. 142 OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura . São Paulo: Brasiliense, 1994. (Coleção Tudo é História; 149) nas costelas e no final obrigados a beber tal lama. Logo depois fomos obrigados a andar de joelho desde o final do campo até o Céu Azul , e neste período nós não podíamos parar pois quem parasse era brutalmente espancado. Quando finalmente nos chegamos a Céu Azul, os nossos joelhos já estavam em carne viva. Nós fomos jogados nas celas quase que desmaiados. Nós já estamos aqui há mais de 3 meses e durante vários dias o diretor nos deixou sem comer. Por quase um mês e meio nós fomos torturados pela equipe de choque da polícia que vinha um dia sim, um dia não. Eles nos tiravam nus das celas e nos colocavam de joelhos no lado de fora do Céu e nos obrigava a nos espancar um ao outro e depois enfiar o dedo um no ânus do outro. Teve uma certa vez que nossa família mandou comida pra nós, a choque nos tirou pra espancarmos. Quando nós voltamos para as celas nossas comidas estavam todas misturadas com fezes.

Carta de um interno da ala Céu Azul da penitenciária masculina de Manaus. 143

143 Retirada de um panfleto AMNESTY INTERNACIONAL. International Secretariat. London, 23/06/1999. 3 – Reflexão comedida acerca de Teatro

“Teatro é a possibilidade de pirar na frente de todo mundo e ainda ser aplaudido. O personagem é um companheiro de viagem maravilhoso (...) é um barato você brincar de ser outra pessoa. Você tem possibilidade maluca de ser n pessoas . O charme do negócio é que te dão licença para isso... Você exibe a sua loucura, todo mundo vê, as pessoas te acham, às vezes, maravilhoso. Porque se você se vestir de Fedra ou Dora e começar a fazer isso na rua, numa sala, as pessoas vão dizer que você está maluca (...). O conteúdo é desdobrável e dá a você o direito de desdobrar naquele mesmo corpo ciente de todos (...) é uma loucura catalisada (...) alguns podem assumir personalidades, entidades, emoções ou o que for (...) todos nós temos essa possibilidade, mas toda uma estrutura social segura esta pessoa.

Fernanda Montenegro. Representar é um ato de humanidade . Jornal do Brasil, RJ, 03 de janeiro/1999. Caderno B, p. 5.

3.1 – A situação do teatro nos estudos literários

A peça é o devir, a produção de uma nova consciência no espectador – inacabada, como toda consciência, mas movida por esse mesmo inacabamento, essa distância conquistada, essa obra inesgotável de crítica em ato; a peça é sobretudo a produção de um novo espectador, esse autor que começa quando termina o espetáculo, e que não começa senão para acabá-lo, mas na própria vida. Louis Althusser

Cremos que, dentre os meios de comunicação, o teatro é aquele que mais diretamente atua sobre o interlocutor e o que, certamente, mais se aproxima da tendência moderna de abordagem por possibilidades múltiplas e, assim, refletindo de maneira mais rápida as ansiedades e desejos de uma época. O teatro constituiu-se como o instrumento e meio de ação apropriado a agir sobre a realidade e os homens, uma vez que possibilita a máquina desejante na formação de novos mundos. A ação teatral, assim como o cotidiano, acontece a partir da relação entre circunstâncias e subjetividades. No teatro quanto na vida, tudo ocorre no tempo presente, sem direito a repetições. Admite-se, então, raciocinar o teatro como um preceito. Entenda-se tal preceito como um facilitador do processo e do agenciamento, à proporção em que se executa transformações, anima o que se encontra estático e assegura seu caráter permanente de construir novas possibilidades de existir, de habitar o mundo e de intervir na realidade. Conseqüentemente, o teatro pode nos auxiliar a refletir os embaraços da subjetividade contemporânea e ajudar no encontro de soluções para os mesmos. O dramaturgo expõe, por meio de cenas expressivas, o problema de todos os tempos e da contemporaneidade, o que nos evidencia os problemas que rodeiam e os que transcendem; faz surgir peças de valor oportuno, enquanto representação da contemporaneidade, e histórico, enquanto reflexão da natureza humana. Parece-nos ser o teatro o espaço em que tais escritores buscam vivenciar, de modo diversificado, os valores transitórios e eternos e que não possuem limites lingüísticos, geográficos e étnicos, todavia que são comuns a todos os homens, ao seu inconsciente coletivo, como seres vivos, racionais, divididos e que têm buscado, de modos diferentes e linguagens diversificadas, através dos séculos, uma decisão ou, pelo menos, uma explicação para seus problemas. Desta forma, o teatro tem assumido formas e atitudes que expressam sua época; seus heróis espelham momento vivido, sua temática a busca do eterno e do perene, e sua estrutura se utiliza da tecnologia do momento. A palavra teatro decorre etimologicamente do verbo grego theastai que significa ver, olhar, contemplar. De início, o termo remetia ao espaço onde ocorriam os espetáculos, quer dizer, lugar de onde se vê – arquibancada / miradouro. Isto mudará mais tarde e o teatro sofre transformações impostas pelas mutações históricas, e configura-se em efeito das transformações sociais, o que lhe assegura a particularidade de ser um processo constante de mudanças. O caráter mutável da realidade frente às forças sociais contribui para o surgimento de diversos estilos teatrais, fixando diferenças essenciais desde da concepção, objetivos até técnicas de encenação no decorrer das épocas históricas. O Teatro e a Filosofia se entrecruzam em suas origens nas plagas da Grécia Antiga. A Filosofia tem seu marco no século IV a.C. com Sócrates, Platão e Aristóteles, já o Teatro Ocidental é datado de um século anterior, no estabelecimento dos Festivais das Grandes Dionisíacas Urbanas. No entanto, se Teatro e Filosofia representam na maioria das vezes duas formas de conhecimento até mesmo antagônicas, os seus princípios direcionam, porém, uma mesma interpelação: aquela que se refere ao homem, com suas angústias e sofrimentos, e à sua procura incessante de saber. Sem dúvida, o teatro pode ser visto como algo que nasce com o próprio homem. É a partir do nascimento do teatro que se inicia a possibilidade de ser fazer arte, e ao mesmo tempo a ficção, pois as peças não são obrigam a terem liame com os fatos reais; esses textos podem abordar o cotidiano, os sentimentos o simplesmente sobre conteúdo da imaginação do autor, manifestando que o teatro, desde seu nascimento, é fruto do processo criativo ou do prazer humano. Se o fenômeno teatral ocidental se inscreve no século V a.C., as potencialidades para este acontecimento já estão manifestos desde o momento em que o homem, através de sua capacidade simbólica, constrói outras realidades e outras formas de existir, exaltando sua existência para além dos limites do real. O ponto de início e de chegada das informações transmitidas nos textos de teatro é a realidade social, o que lhe assevera a posição de interferir de modo tal como sofre influência desta mesma realidade. Sob esta perspectiva, os homens são considerados os agentes mais notáveis das modificações sociais e, através do teatro, possibilitam que as forças sociais desempenhem uma função importante nas transformações da sociedade. Podemos certificar que a expressão artística teatral contribui para a interrupção dos limites impostos socialmente, à proporção que sustenta a inquietude e a desconfiança dos homens ao que é dado como definitivo e imutável. O teatro é visto, então, como um instrumento de contestação da realidade, clamando por decisões frente aos acontecimentos sociais, e não como catarse de emoções a partir da identificação com os personagens da peça. É mister ressaltar, contudo, que nem todas as concepções teatrais consideram a transformação social, geram novas subjetividades ou reforçam a máquina desejante, isto é, tomam estas questões como metas da prática teatral.Certos estilos somente potencializam a subjetividade homogeneizada e serializada, à medida que só representam ou encenam valores dominantes de dada classe ou estrutura sócio- econômica, criando padrões de comportamento, de emoções e de vida para as demais camadas da sociedade. É sabido que, na concepção tradicional, a ação teatral torna-se um espetáculo visual passivo que abandona a função de transformação social. Realiza-se apenas como uma catarse, uma simples identificação dos espectadores com os personagens. Consiste unicamente em representar uma realidade, cooperando para o entorpecimento da potência criativa e, portanto, para sua docilidade diante das injustiças e normas da sociedade capitalista. A concepção moderna do teatro assinala uma ruptura com o processo de representação do teatro tradicional. Nessa concepção, há uma valorização na produção de subjetividades. O teatro, neste instante, é visto como instrumento terapêutico, como recurso de expressão de afeto. É, sem dúvida, uma experiência ativa e atuante que permite a produção inconsciente e desejante. A intenção primordial é agir sobre o real, dar nova forma ao mundo e gerar uma realidade inconfundível. Assim, o teatro expõe-se como o instrumento perspicaz das subjetividades, porquanto o palco passa a ser um fragmento real da própria vida, um espaço de criação livre cotidiana. Fernando Peixoto revela que o teatro pode ser a origem de um ato produtivo: para o espectador, um espetáculo pode ser o não simples reconhecimento de usa subjetividade, mas sim o conhecimento de sua existência como ser social. 144 Desta forma, o público pode, então, presenciar suas preocupações mais imediatas, focalizadas, vivenciadas e debatidas no seu tempo e no seu espaço e numa linguagem a seu alcance. Os heróis deixaram de ser criaturas em luta titânica com os deuses para assumirem uma luta do homem consigo mesmo. O público que, até então, buscava no teatro um espaço de lazer, que não queria refletir sobre os problemas morais, sociais ou políticos de sua época, espanta-se com as peças de Ibsen que decide colocar no palco, ainda dentro de uma estrutura e linguagem do século XIX, a discussão de temas controversos, a citar a sífilis e a emancipação da mulher. Mais um passo era dado e, após o primeiro choque, vários outros escritores seguiram a linha de Ibsen e o teatro acha de novo sua inclinação de lugar privilegiado para a reflexão sobre as questões do homem, não apenas de lugar de encontros sociais, porém de ponto de partida para o debate e a participação. Fobé aponta que: a discussão de temas importantes sai de recintos reservados, com seus modos comedidos e linguagem controlada, para a cozinha , onde problemas mais íntimos de relacionamento começam a ser expostos. O conflito se estreita; não mais entre heróis e deuses, ou entre homens e padrões aceitos, mas entre indivíduos. O cenário e as pessoas se desnudam e a linguagem passa a refletir esse despojamento e o social se apresenta sem falsas etiquetas moralizantes. 145

Londres surpreende-se, em 1955, com a encenação de Esperando Godot , de Beckett, trabalho que inova a forma de teatro, em se tratando de tema, linguagem e estrutura e assim se conhecia o Teatro do Absurdo . Estamos cônscios de que a tendência ao absurdo no teatro não tem início, entretanto, com Beckett, senão surge desde o primórdio do teatro, retratada nas

144 PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. São Paulo: Editora Brasiliense, 2003. (Coleção Primeiros Passos; 10) p. 22-23. 145 FOBÉ, Nair Leme. Teatro: espaço privilegiado para a expressão de emoções. Comunicarte. V. 1, n° 1, (1982 – Campinas, PUC – Centro de Linguagem e Comunicação), p. 238-9. máscaras teatrais gregas, nas mímicas, nas pantominas, nos palhaços shakespearianos ou dos circos. Fobé assinala que Teatro é sempre mais do que linguagem. A linguagem pode ser lida ou ouvida, mas o teatro se desdobra e pode ser apenas representação, daí seus múltiplos apelos, seu poder de interface. 146 Assim, vemos que a movimentação, a coreografia, as cores e os espaços de silêncio apresentam elementos valiosos de grande efeito abstrato e teatral de comunicação. O que é mostrado no palco não configura uma evasão dos problemas e nem representa lazer para o espectador, todavia vai inquietá-lo, fazê-lo questionar. O palco retoma o papel de ser dispositivo de aumento que manifesta a monotonia e a estupidez da vida humana, voltando a retomar o seu símbolo primeiro – a máscara. Como afirma Fobé: O palco torna-se surreal ao se conscientizar das coisas por trás das coisas. O efeito das máscaras do nosso tempo tecnológico fica por conta dos recursos de gravação, dos meios eletrônicos; dos efeitos especiais, diferentes dos recursos de linguagem e de apelo à imaginação do teatro elizabetano. 147

Pode-se dizer que o Teatro do Absurdo representa o objetivo do dramaturgo de vencer o automatismo e a complacência e de restaurar a percepção que o homem deve ter de sua condição humana – paradoxal, ambígua e, no entanto, procurada e querida. O Teatro do Absurdo não tem intuito de informar ou de apresentar um enredo, não objetiva mostrar uma seqüência de acontecimentos na vida de algumas pessoas, não se predispõe debater um tema, argumentar, investigar ou resolver problemas morais, contudo quer apresentar aos olhos do espectador uma situação básica de um indivíduo e, assim, emprega linguagem não argumentativa ou discursiva, porém que se baseia na apresentação de imagens concretas. Fobé nos alerta que, no meio da comunicação de massa, da crescente especialização das diferentes profissões, a linguagem tem reforçado níveis diferentes para que haja maior possibilidade de interação entre os membros da sociedade e o Teatro do Absurdo busca mostrar que, apesar disso ou talvez por causa disso, há uma ruptura da comunicação. Num mundo de várias formas de meios de comunicação, a linguagem se perdeu e deve voltar a sua função primária – a de expressão e não ocultar o verdadeiro significado da vida. 148

146 Idem, p. 239. 147 Idem, p. 239. 148 Idem, p. 239-240. É possível que o Teatro do Absurdo pareça grotesco, todavia representa uma retomada à função original do teatro, isto é, o confronto do homem com a realidade religiosa e mítica – que o diferencia do teatro grego que tratava realidades conhecidas e aceitas totalmente, determinando uma coerente comunhão entre o trinômio dramaturgo /ator /espectador, o Teatro do Absurdo expressa a ausência desse sistema cósmico de valores numa linguagem que se distancia da realidade .149 Acredita-se que a linguagem se perdeu na era de comunicação de massa. Estando o homem, então, designado a trazer à linguagem seu valor primitivo: o de comunicar. Fobé assegura que isso só acontecerá se substituir os clichês e frases feitas pelo verdadeiro pensamento e intencionalidade que incorporam. É ela que nos faz entender que o Teatro do Absurdo busca passar em seus diálogos, muitas vezes desconexos, mas carregados de significado, não para os ouvidos acostumados a enviar estruturas feitas para o cérebro, sem a devida crítica e avaliação, mas por aqueles mais sensíveis à linguagem poética. 150

Pelo espaço que temos e conscientes de não ser objeto de nossa proposta de pesquisa, deixamos de aprofundar o estudo a respeito do Teatro do Absurdo, uma vez que optamos estudar a questão da violência presente nos textos escritos para teatro, aqui, escolhidos. Sabe-se que a Literatura Dramática tem sido freqüentemente relegada a um segundo plano. A tradição brasileira de estudos literários não admite com facilidade a inclusão, nos currículos de literatura, das obras pertencentes ao gênero dramático, segundo Roberto Corrêa dos Santos. Em seu artigo, ressalta que essa tendência à quase- exclusão dos textos teatrais deve-se, possivelmente, ao fato de que a literatura dramática opera com elementos bastante específicos, para os quais processos de leitura, normalmente acostumados a outras formas de expressão escrita, acabam por ser insuficientes. 151 Em seu trabalho acadêmico, José Luis Jobim de Salles Fonseca já afirmava que a Literatura dramática tem sido freqüentemente relegada a um segundo plano. A visão discriminatória que geralmente se tem da Obra de Arte Teatral encontra eco até no

149 Idem, p. 240. 150 Idem, ibidem. 151 SANTOS, Roberto Corrêa dos. As desgraças de uma criança: tópicos para estudo. Caleidoscópio; estudos literários. V. 9, n°9, 1989. São Gonçalo, RJ, ASOEC, Faculdades Integradas de São Gonçalo. Departamento de Letras, p. 122. currículo mínimo de Letras, aprovado pelo Conselho Federal de Educação, no qual nenhuma cadeira se ocupa especificamente desta manifestação artística literária. 152

Existe um conflito que, sem dúvida, já assumiu ares clássicos: os literatos insurgindo-se contra o que entendem a degeneração do espetáculo e os homens de teatro que se batem até mesmo pela simples exclusão do texto literário. A insatisfação dos literatos centraliza-se fundamentalmente sobre a cabeça do diretor de teatro, tachado de elemento espúrio, inexistente no passado, usurpador das funções mais legítimas da arte cênica, como aponta Bornheim. 153 Sabe-se que a figura do diretor, ao menos enquanto representa uma função autônoma, uma forma de consciência profissional exclusiva, era praticamente incógnita no passado. Hoje o diretor de cena – afirma Bornheim – é um fato. Nem se admite a possibilidade de prescindir de sua presença dominadora. 154 Possivelmente, em alguns meios teatrais, se possa excluir a pessoa física do diretor de teatro, individual, a favor de um trabalho de equipe, mudando a responsabilidade do espetáculo para o grupo de atores e técnicos de cena. O crítico mencionado alerta-nos que isso não quer dizer, entretanto, que se possa abandonar a rica problemática que se tornou necessária precisamente com o surto do diretor; quer dizer apenas que a responsabilidade do teatro deixa de ser prerrogativa de um único indivíduo para ser endossada por todas as pessoas que participam de determinada montagem. Assim mesmo, é óbvio que há de impor- se sempre uma certa liderança. 155

O conflito dos literatos contra a figura do diretor se instaurava. Leonormand denomina-o de animador – sabotador ; Crommelynck vai compará-lo a urso entre amadores de jardinagem ; Armando Salacrou também sem perdão declara: Lê metteur scène devient plus lête et tyrannique que Sarah Bernhardt dans toute as glorie ; e até Jean Cocteau, depois de várias travessuras teatrais, desabafa: Je me sens etouffé de mise en scène. 156 Há estudiosos que defendem o teatro enquanto realidade especificamente literária, e o palco existindo somente para mostrar de modo claro um sentido exaustivamente

152 FONSECA, José Luis Jobim de Salles. Literatura e encenação . Dissertação de Mestrado em Teoria Literária sob orientação do Professor Doutor Manuel Antonio de Castro. RJ, URFJ, 1980, p. 39. 153 BORNHEIM, Gerd A. Teatro: a cena dividida. Porto Alegre: L@ PM, 1983, p. 74. 154 Idem, ibidem. 155 Idem, ibidem. 156 BORNHEIM, Gerd A. Estes depoimentos encontram-se em André Veinstein, La mise em Scène Théatral et as Condition Esthétique , Paris, Flammarion, 1955, p. 249 e ss. In: opus cit, p. 74. encontrado no texto. Os demais elementos componentes do espetáculo – iniciando pelos atores, simples instrumentos – só encontrariam a sua razão de ser na completa subordinação à palavra literária. O texto seria um valor em si, autônomo, porque é literatura; e o espetáculo ser-lhe-ia assim acrescentado, tão – somente para evidenciar ou fazer ver a verdade da criação do dramaturgo. 157

Para outros estudiosos, o texto não desfruta de nenhuma característica especial, ele se constituiria apenas num dos elementos que cooperam para montagem da unidade do jogo cênico; a verdade do espetáculo se originaria, então, de uma reunião de componentes entre os quais estaria a palavra. É ainda Bornheim quem nos diz que a palavra constituiria apenas um dos elementos do espetáculo já que, por exemplo, existem às vezes cenas inteiras em que os atores não dizem absolutamente nada, e no entanto, sem essas cenas a ação dramática perde seu sentido. 158 E o crítico, aqui, finalmente, reflete que Há os que adotam uma posição radicalmente contrária à mera presença da literatura no teatro; a literatura seria a responsável pelo estado de decadência em que se encontra o teatro – de onde vem a necessidade de reinventar a realidade cênica, através da revalorização ou da redescoberta daqueles ingredientes que integrariam originariamente o teatro. Dessa forma, a literatura seria um elemento impuro, não especificamente teatral, que se teria agregado tardiamente ao teatro, terminando por deturpá-lo. 159

É interessante notar que em todas estar controvérsias emerge a questão da origem do teatro. Para alguns, acompanhando os princípios aristotélicos, a origem do teatro estaria na literatura, enquanto para outros críticos o teatro encontraria sua gênese nos cultos das religiões primitivas. Julgamos que, se for limitada a uma perspectiva apenas cronológica, de descobrir o que apareceu primeiro, a alternativa nos parece improdutiva e não percebemos o que poderia solucionar. Bornheim assinala que não leva muito longe colocar a questão da origem em termos de antecedência histórica de um aspecto do teatro sobre os demais. 160 O crítico afirma assim que a origem histórica não se mistura puramente com o passado. Tal origem ocorre em ato, renova-se constantemente, acontece aqui e agora, sobre as tábuas de um palco . E Bornheim, citando Brecht, complementa: na origem do

157 Idem, p. 75. 158 Idem, p. 76. 159 Idem, ibidem. 160 Idem, ibidem. teatro está a religião, sim, mas apenas na origem – o que não quer dizer, convém acrescentar, que a literatura explique tudo. 161 Pode-se revelar que, no teatro praticado hoje, o texto pré-existe, porém, o corpo do ator também. É da relação de tudo aquilo que elabora um espetáculo que o teatro se origina; os vários elementos como que perdem a sua existência precedente e tomam para si uma nova realidade – eis que, nesse assumir da síntese, reside a gênese do teatro. Bornheim nos diz que isso tanto vale para a montagem de um escritor clássico quanto para a macumba: o corpo, a voz, a palavra se metamorfoseiam, e nasce o espetáculo, pois a origem da história não está na história da origem, e sim no ato que se renova constantemente. 162 Entretanto o fundamental é que esses questionamentos todos possam ser discutidos, que eles se tenham tornado um objeto de discussão – neste aspecto que se encontra o apoio da crise do teatro atual: de que modo os diversos elementos que integram a unidade do espetáculo devem relacionar-se? Qual a função que cabe a cada um desses elementos? Bornheim mostra-se satisfeito com a possibilidade de essas questões serem formuladas agora, uma vez que, no passado não se propunha sequer o tema, pois jamais ocorreu uma crise semelhante como a que se apresenta em nosso tempo. O crítico cita que mesmo Aristóteles, ao analisar em sua Poética as partes constitutivas da tragédia, tanto as do texto como as do espetáculo, limita-se a fazer o levantamento de um fato observado por ele, fato que se apresentava aos seus olhos destituído de qualquer resquício de aporia, não obstante já mostrar então a tragédia grega evidentes sintomas de degenerescência. No teatro contemporâneo, ao contrário, tudo é problema – tudo leva ao atrito, à discussão, às tentativas de teatro experimental, à lucidez do pensamento. Hoje, mesmo para o artista, o teatro se transformou num apaixonante problema teórico. 163

Constatamos que o teatro por todo o tempo foi arte total , sob dois sentidos.Um, porque envolve, em tom maior ou menor, uma experiência de incorporação as artes; de um ou outro modo, todas as artes estavam manifestadas na ocupação cênica. No outro, pois através do jogo cênico o teatro exprimia a verdade dos valores essenciais de certa comunidade; o teatro mostrava o caráter de celebração coletiva que punha à mostra

161 Idem, ibidem. 162 Idem, p. 77. 163 Idem, ibidem. aqueles valores que religavam entre si os membros da sociedade. 164 Dessa forma, trata-se de uma atividade necessariamente publica, social, política. É oportuno que se afirme que estes dois aspectos totalizantes demarcam a arte cênica em si mesma, são válidos para qualquer espetáculo em qualquer tempo: o teatro sempre exige a integração das artes e a expressão do mundo do homem. 165 Algo ocorreu que acabou transtornando o equilíbrio, a espontaneidade com que no passado se verificava aquele sentido totalizante. Constitui-se um certo rompimento, o qual impedia que a integração das artes e dos valores sociais se realizasse com o mesmo ímpeto de necessidade inquiridora no passado. Daí Bornheim declarar que, por essa razão, o processo totalizador se fez problemático, a ponto de se deve dizer que o teatro contemporâneo vive dessa problematicidade. 166 O crítico em questão salienta que a problemática da arte contemporânea deve ser mostrada a partir da idéia de fragmentação, de separação, ou mais simplesmente, do abstrato. Segundo ele, a idéia que se impõe é a de arte imaculada, quer dizer, aquela arte que se recusa comprometer-se com as outras artes, e também com a realidade de modo geral , fazendo com que cada arte fique reduzida a si própria, a seus meios expressivos específicos. 167 É deste modo que a pintura revela-se abstrata, limitada aos elementos restritamente plásticos: a cor e a linha. A comprovação da existência de críticos que requerem o teatro como fenômeno necessariamente literário e que desejam que o espetáculo com todos os seus componentes não seja visto além de uma expressão secundária, releva do processo de desintegração das artes e deve ser remetido ao contexto da arte abstrata. 168 O raciocínio provavelmente mais decisivo rogado por aqueles que defendem o teatro literário é que o texto se sustenta como valor autônomo, firme, sólido, eterno. Ao passo que o espetáculo , conforme nos fala Bornheim, perde-se no efêmero, no passageiro, sem deixar traços de sua precária existência .169 O espetáculo atenua-se no aqui e no agora, enquanto o texto é intemporal e incontaminável.

164 Idem, ibidem. 165 Idem, p. 78. 166 Idem, ibidem. 167 Idem, p. 79-80. 168 Idem, p. 82. 169 Idem, ibidem. Para D’ Onofrio 170 , o texto teatral, tecnicamente também denominado script , é elemento propriamente literário que o autor compõe com o fim de ser representado perante um público. Considera como um conjunto de vários elementos estruturados que, por serem especificamente literários, podem ser submetidos ao mesmo tipo de abordagem que utilizamos para o estudo do gênero narrativo. Diante disso, comumente, o script de um texto dramático há: a) as ações que, ligadas entre si, formam o enredo, a trama (nível fabular); b) as personagens que vivem os fatos que acontecem no enredo (nível atorial); c) as indicações para o cenário em que as ações se desenvolvem mediante as descrições do espaço e do tempo (nível descritivo); d) as reflexões que as personagens fazem sobre os fatos que estão acontecendo (nível reflexivo). D,Onofrio segue afirmando que o texto literário da peça dramática é o elemento mais importante do teatro porque é somente ele que confere estabilidade à peça. 171 Assim, ele ratifica o que dizíamos, através das reflexões feitas por Bornheim. Portanto, D,Onofrio considera que os elementos estruturais do texto são sempre os mesmos, assegurando a permanência e a eternidade da arte dramática, enquanto os outros elementos teatrais são efêmeros: mudam o diretor, os atores, o cenário, o público, enquanto o enredo e as personagens permanecem inalteráveis. 172 Citado por Magaldi, Gaston Baty estabelece interessante comparação: O texto é a parte essencial do drama. Ele é para o drama o que o caroço é para o fruto, o centro sólido em torno do qual vêm ordenar-se os outros elementos. E do mesmo modo que, saboreando o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos semelhantes, o texto, quando desapareceram os prestígios da representação, espera numa biblioteca ressuscitá-los algum dia. 173

Louis Jouvet, em Testemunhos sobre o teatro , não nos diz outra coisa: é apenas o ensino do texto que guia, é apenas o texto que conduz uma representação. 174 Juntamo-nos a Roubine para concordar que dirigir é antes de tudo pôr-se à escuta do texto . A representação não é um fim em si. No fundo é uma arte de iluminação .175

170 D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto: teoria da lírica e do drama . V. 2. São Paulo: Ática, 1985, p. 128-129. 171 Idem, p. 129. 172 Idem, ibidem. 173 Cf. Gaston Baty. MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro . São Paulo: Ática, 1986, p. 15. 174 JOUVET, Louis. Témoignages sur lê thêathe. Paris: Flammarion, 1952. Sem indicação da página. Deve ser capaz de instigar todos os aspectos do texto sem lhe impor. Acreditamos também ser um condutor que institui entre o texto e o espectador uma necessária irrupção amorosa: para abordar uma obra-prima, para responder à sua solicitação, para ouvi-la, existe apenas uma atitude: a submissão. 176 Com o desaparecimento de Jouvet, Jean Vilar assume seu lugar e, em seus estudos, dá demonstração da mesma atenção ou apego ao texto. Aclama sua adesão à mesma hierarquia dos valores. No ponto mais alto, encontra-se a obra a ser dirigida, isto é, servida. Numa escala um pouco inferior se situa o ator, que empresta sua voz e seu corpo ao texto. Ao personagem, sugere vida. E enfim, por baixo de tudo, ficam os marujos da representação. Eles reinam sobre a materialidade dela, sobre seu bom funcionamento. 177 E Vilar particularmente quanto a isso declara, em seu texto Sobre a tradição teatral, que o ator digno do nome não se impõe ao texto. Ele o segue. E servilmente. Que o eletricista, o músico e o cenógrafo sejam então mais humildes ainda que esse intérprete correto. 178 Roubine indica que sob essa ótica, a direção não é uma arte de invenção. O texto recepta em estado virtual toda a direção, todas as direções possíveis. A única missão legítima do diretor – diz ele – é explicitar essas potencialidades, atualizá-las em uma realização cênica. 179 Ela não está além. Não vai além. Vilar afirma que: o criador, no teatro, é o autor. Na medida em que nos traz o essencial... O texto está ali, rico pelo menos de indicações cênicas , incluídas nas réplicas mesmo dos personagens (marcação, reflexos, atitudes, cenários, figurinos etc.). É preciso ter a sabedoria de se conformar a isso. Tudo o que é criado fora dessas indicações é direção e deve ser por isso desprezado e rejeitado. 180

Assim colocada, a representação opera-se a partir de uma tensão dialética na qual dois imaginários, o do autor e o do diretor, se colidem antes de se fundirem. Porém, Roubine faz ver que o diretor vem “depois”. Logo, não poderia ser colocado num pé de igualdade com aquele que vem “primeiro”, o inventor do texto, quer dizer, do essencial. 181

175 ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Trad. André Teles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 144. 176 JOUVET, Louis. Opus cit. 177 ROUBINE, Jean-Jacques. Opus cit, p. 144-5. 178 VILAR, Jean. De la tradition theater. Paris: L,Arche, 1955. Sem indicação de página. 179 ROUBINE, Jean-Jacques.Opus cit, p. 144-5. 180 VILAR, Jean-Jacques. Opus cit. 181 ROUBINE, Jean-Jacques. Opus cit, p. 145. O teórico Roubine dá a conhecer que, de Jacques Copeau a Jean Vilar, existe uma clara linhagem de pensamento. Constrói-se um molde teórico que vai esclarecer primeiramente um modo de relação entre os participantes do palco e o texto de teatro. Este molde posteriormente institui que o intuito da representação, por conseguinte da direção, está em servir de caixa de ressonância para esse texto. Em fazê-lo “ser ouvido” o melhor possível. E isso, em suas inflexões e vibrações mais secretas. 182 Há, no entanto, no bojo mesmo dessa operação teórica, segundo ainda Roubaine, uma ambigüidade que marcará fonte de mal-entendidos e controvérsias.Copeau, por exemplo, conclui sua concepção da direção de uma pressuposição basilar: haveria uma verdade não revelada/encoberta do texto, e a única missão autêntica do diretor seria trazer à luz tal verdade, dar-lhe forma e encarná-la por meio de recursos da representação. 183 Copeau, n’ A interpretação das obras dramáticas do passado , garante que para toda realização existe um caminho da verdade, um caminho pelo qual o autor passou e que é nossa missão reeencontrar para aí passarmos por nossa vez. 184 Sendo assim, quanto mais compacto e vivo for o texto, menos o diretor terá margem de astúcia.Incumbir-lhe-á somente sujeitar-se às injunções do texto, como aplicado e reservado serviçal . No artigo citado, Copeau assim se manifesta: Reconheceremos o valor de um texto dramático através do apelo que nos faça sentido da felicidade, do pouco de liberdade que nos conceda, das instruções que nos dê, da servidão que nos imponha. E é trabalhando nesses limites, nos debatendo entre esses elos , que encontraremos a confidência do mistério e o segredo da vida. 185

Esse conceito segundo o qual todo o texto abriga uma verdade única e oculta autentica, exatamente, o exercício do crítico, ou o do exegeta. Do mesmo modo, o público culto irá aderir a essa proposição durante muito tempo. O público irá ao teatro no intento de que a representação lhe dê a ver e ouvir esse segredo ao qual só podia atingir pelo esforço intelectual da leitura, da reflexão, às vezes da erudição. Nessas circunstâncias, o mais importante mérito de uma direção consistirá em ser uma arte do enquadramento discreto, inimigo do efeito espetacular, todavia atuando como um revelador. E Copeau arremata:

182 Idem, p. 146. 183 Idem, ibidem. 184 Segundo ROUBINE, trata-se de um artigo inédito, publicado em 1963 pelos Cahiers Renaud-Barrault , n° 25 bis. Cf. ROUBAINE, Jean-Jacques. 185 Idem, ibidem. É... muito fácil desenvolver uma direção. Muito fácil multiplicar os signos do espetáculo, mesmo com uma certa disciplina de recursos que dá a ilusão da harmonia. Muito fácil inventar mil coisas agradáveis ou sensacionais a propósito ou em torno de uma obra-prima literária. O que é difícil, o que é marca da arte e prova de talento, é inventar dentro, é encher a realidade, é saturar de poesia tudo o que se faz e diz sobre o palco, sem jamais exagerar a significação, sem jamais transbordar o que chamo de a pura configuração das obras- primas .186

No artigo Literatura e teatro: interfaces ,187 Luis Alberto Brandão Santos afirma que Literatura e Teatro são duas formas artísticas que utilizam recursos distintos par a realização de suas significações, todavia reconhece a existência de um campo de inter- relações que aproxima essas duas formas . O teatro, visto como encenação, normalmente, vale-se de um texto verbal, algumas vezes de fácil acesso a seu impresso. Os compêndios de teoria da literatura geralmente fazem alusão a uma marca determinada de gênero literário: o gênero dramático. Reconhecemos, no entanto, acentuadas discordâncias no que se refere à conceituação desse gênero, talvez exatamente pela dificuldade de se precisar a maneira como se efetua a interface literatura/teatro. 188 Brandão Santos propondo uma reflexão sobre algumas formas possíveis de abordagem das interfaces literatura/teatro no sentido de esboçar uma caracterização da literatura dramática atém-se a tratar o dramático a partir das interpelações do tipo: O que é dramático? De que modo considerá-lo um gênero literário? O articulista, inicialmente, delineia aspectos fundamentais que procuram fixar com diferença radical entre o texto literário e texto teatral. De acordo com essa abordagem, somente o texto teatral – encenado – pode ser denominado dramático . Deste modo, sem dúvida, drama é compreendido como encenação. Segundo o étimo grego, drama significa ação : os atores devem transformar atos, as idéias e os sentimentos das personagens. Drama é a mais destacada das categorias do teatro, posta em evidência, inclusive, na Poética de Aristóteles. Nessa abordagem se situa a visão de

186 Idem, p. 146-7. 187 SANTOS, Luis Alberto Brandão. Li teratura e teatro: interfaces . GRAGOATÁ, n°1/2° semestre 1996. Niterói: EdUFF, 1996, p. 220. 188 JAUSS, Hans Robert. Littérature mediévale et théorie des generes . GENETTE, Geard; TODOROV, Tzvetan (dir.). Théorie de genres . Paris: Éditions du Seuil, 1986. alguns críticos como Vitor Manuel que declara que “o chamado drama literário”, divorciado do palco e dirigido ao leitor forma um desvio da essência do drama .189 Tal postura evidencia não ser procedente se considerar um gênero literário dramático. Ao se entender dramático o equivalente à encenação, o drama deixará de ser visto como texto literário, uma vez que, enquanto literatura – texto impresso -, constitui-se em texto narrativo. É desta forma que Lucrecia Ferrara se posiciona em Literatura em cena : A distinção entre narrativa e drama, como gêneros literários distintos, é uma visão que não considera as especificidades do teatro na sua relação com o texto literário, mas admite subjacentemente que este ocupa em cena a posição central e os demais recursos são acessórios destinados a tornar o significado dramático agradável aos olhos e/ou de mais fácil apreensão. 190

Ao concluir essa citação, Lucrécia Ferrara declara abrir outra questão: que relação se estabelece entre o signo verbal e os demais signos que concorrem para a montagem dramática? 191 Para Honzl, une manifestation théâtrale est um ensemble de signes .192 Cremos, porém, que este conceito de conjunto poderá insinuar a concepção de adição de recursos verbais, sonoros, plásticos para transmitir uma mensagem. Pois bem, o teatro enquanto representação metalingüística de uma leitura produtiva deve levar a uma iconização diagramática num inter-relacionamento de signos de maneira que a palavra se livre de sua carga verbal com o efeito plástico do som, da cor, do movimento, do gesto, da luz dando origem a um complexo que aproximará o teatro ocidental da ideogramatização da cena oriental, 193 conforme antevisão de Artaud em O teatro e seu duplo . Parece-nos oportuno dar voz a Artaud: Não é possível continuar a prostituir a idéia de teatro, que só é válido se tiver uma ligação mágico, atroz, com a realidade e o perigo. Assim colocada, a questão do teatro deve despertar a atenção geral, ficando subentendido que o teatro, por seu lado físico, e por exigir a expressão no espaço de fato a única real, permite que os meios mágicos da arte e da palavra se exerçam organicamente e em sua totalidade como exorcismos renovados. (...) ... importa antes de tudo romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento.

189 AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 3ª ed. Coimbra: Liv. Almedina, 1973, p. 242. 190 FERRARA, Lucrecia. D’Alessio. Literatura em cena . GUINSBURG, J. et al. (org.) Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 204. 191 Idem, ibidem. 192 HONZL. La mobilité du signe théâtral . Travaile théâtral, Lausanne, La Cité, 1971. ( uma manifestação teatral é um conjunto de signos ) . 193 FERRARA, Lucrécia. Opus cit, p. 205. Essa linguagem só pode ser definida pelas possibilidades da expressão dinâmica e no espaço, em oposição às possibilidades da expressão pela palavra dialogada. E aquilo que o teatro ainda pode extrair da palavra são suas possibilidades de expansão fora das palavras, de desenvolvimento no espaço, de ação dissociadora e vibratória sobre a sensibilidade. 194

Temos conhecimento de que tratam do princípio do século XX as discussões em torno da questão do relacionamento entre teatro e literatura, e, ao que nos parece, ainda estamos distante de podermos dar a questão por resolvida. Diferentemente à visão que vínhamos expondo, existem muitos críticos favoráveis a idéia de que a literatura dramática é uma forma autônoma – quer dizer, que independe da encenação – mas que, concomitantemente, contém sinais específicos que os identificam enquanto gênero literário próprio. Para exemplificar a literatura dramática vista como forma autônoma, recorreremos às palavras de Veltruski em O texto dramático como componente do teatro , quando afirma que a discussão interminável acerca da natureza do drama, isto é, se é um gênero literário ou uma peça teatral, é inteiramente fútil. Uma coisa não exclui a outra. 195 Adiante o autor completa: o drama é uma obra de literatura por direito próprio; não requer mais do que a simples leitura para penetrar na consciência do público. Ao mesmo tempo, é um texto que pode, e na maioria das vezes pretende, ser usado como componente verbal da representação teatral. Mas algumas formas de teatro preferem ao drama textos líricos ou narrativos; o teatro entra em relação com a literatura como um todo e não apenas com o gênero dramático. 196

Aceitar o dramático como gênero literário acarreta apontar critérios classificatórios que o diferencie dos outros gêneros. O apontamento desses critérios leva-nos a subdivisão em dois grupos essenciais. O primeiro grupo é o que vão esboçar aspectos diferenciadores dentro do próprio texto. Tais aspectos são ora de natureza formal – a forma de estruturação do texto -, ora de natureza temática – presença/ausência de certos temas ou valores. Geralmente, o aspecto formal colocado mais em evidência é aquele que menciona, como elemento distintivo da literatura, o uso do diálogo. Amora 197 compreende deste modo o gênero dramático assinalando ser aquele que contém uma forma de composição

194 ARTAUD, Antonin. O teatro da crueldade (Primeiro manifesto). O teatro e seu duplo. Trad. Teixeira Coelho, 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos), p. 101-2. 195 VELTRUSKI, Jiri. O texto dramático como componente do teatro. GUINSBURG, J. et al. (org.). Opus cit, p. 164. 196 Idem, ibidem. 197 AMORA, Antonio Soares. Teoria da literatura . 4ª ed.. São Paulo: Clássico- Científica, 1962, p. 48. representativa , isto é, que representa um acontecimento . Conforme o crítico, como a representação de um acontecimento só se pode fazer pondo-se a falar os personagens que viverem esse acontecimento, a composição representativa caracteriza-se por constar tão só de diálogos. O paradigma temático vale-se, geralmente, das noções de conflito, tensão, paixão, surpresa – o que vai atribuir a dramático uma carga semântica específica, ou a produção de determinados efeitos em função da escolha e do tratamento dos temas abordados. Peacock 198 comprova tal situação, quando nos fala, que a palavra “dramático” tem um significado natural em relação a quaisquer acontecimentos repentinos, surpreendentes, perturbadores ou violentos, ou a situações e seqüências caracterizadas pela tensão . Não se pode deixar de citar também, como exemplificação, os estudos caracterizadores das disposições anímicas apresentadas por Staiger 199 em Conceitos fundamentais de poética. O outro grupo de critérios direciona, de modo vago, para a intenção de encenação. Assim, classificar-se-ia, como literatura dramática, todo o texto que explicita seu objetivo de ser encenado. É a visão apresentada por Anatol Rosenfeld 200 quando afirma que, afinal, toda a história da literatura dramática explica-se pela aspiração de dar um substrato ao teatro . Ainda em seu texto, Brandão Santos nos faz ver que a proposição que concebe que o sentido de dramático refere-se apenas à encenação, e que, conseqüentemente, repudia a possibilidade de existência do dramático enquanto gênero literário, tem o mérito de não subordinar o teatro ao domínio exclusivo do seu aspecto verbal. E, em seguida, ressalta que a encenação de uma peça é, na verdade, uma tradução intersemiótica – ou seja, para um outro sistema de signos – na qual o texto literário entra apenas como um dos textos da cena. Contudo, Brandão Santos questiona-se: Como negar que existem certos tipos de textos literários (textos impressos e não-encenados) que se dizem dramáticos e que, sobretudo, são reconhecidos como dramáticos ?201

198 PEACOCK, Ronald. Formação da literatura dramática. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1986, p. 135. 199 STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética . Trad. C.A. Gallãs. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 200 ROSENFELD, Anatol. Texto/contexto . 3ª ed.. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 24. 201 SANTOS, Luis Alberto Brandão. Opus cit, p. 222. Tal problema traz à tona um dos aspectos considerados por Jauss imprescindíveis para uma teoria dos gêneros literários: o aspecto descritivo. Eis a visualização de Jauss: Trata-se de compreender os gêneros literários não como genera (classes) em um sentido lógico, mas como grupos ou famílias históricas. Não se poderia, pois, proceder por derivação ou por definição, mas unicamente constatar e descrever empiricamente. 202

Essa verificação tratada por Jauss refere-se, em um certo contexto de recepção, à verdadeira aprovação, por parte do público, de uma obra como pertencente a um gênero. Brandão Santos justifica tal posição assim: Como a Estética da Recepção elege a recepção como fator inalienável para o delineamento da significação de um texto, tal reconhecimento, por conseqüência, pressupõe e confirma a existência desse gênero. Assim, se ao assumirmos uma postura descritiva percebemos que há – hoje, por exemplo – textos literários que são reconhecidos como dramáticos , é necessário admitirmos a existência de um gênero literário dramático. 203 ]

Recorreremos a Jauss para pensarmos essa existência: Exatamente como não existe comunicação pela linguagem que não possa ser remetida a uma norma ou a uma convenção geral, social ou condicionada por uma situação, não se poderia imaginar uma obra literária que se situasse numa espécie de vazio de informação e não dependesse de uma situação específica de compreensão. Nessa medida, toda obra literária pertence a um gênero, o que significa afirmar, pura e simplesmente, que toda obra supõe o horizonte de uma expectativa, ou seja, de um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensão do leitor (do público) e permitir-lhe uma recepção apreciativa. 204

Evidenciamos, em primeiro plano: a existência do gênero; em segundo: o condicionamento dessa existência ao fator recepção – o que significa poder definir o gênero como um agrupamento de regras preexistentes à obra; porém tais preceitos definem-se em função de uma valorização que se estabelece num contexto específico de recepção. Resulta daí a atenção ao conceito de horizonte de expectativa . Essa idéia passa a examinar um dado anterior que admite e configura a expectativa, e, ao mesmo tempo, marca tal expectativa em um horizonte determinado, quer dizer, em certo espaço de recepção. E assim, Brandão Santos conclui que: se existe hoje, portanto, um horizonte de expectativa que torna possível a identificação de certos textos literários como dramáticos , devemos concordar com aqueles que sugerem

202 JAUSS, Hans Robert. Littérature mediévale et théorie des genres. GENETTE, Gerard; TODOROV, Tzvetan (Dir.). Théorie de genres . Paris:Éditions du Sevil, 1986, p. 42-3. 203 SANTOS, Luis Alberto Brandão. Opus cit, p. 222. 204 JAUSS, Hans Robert. Opus cit, p. 222. que é necessário buscar no próprio texto literário (melhor dizendo: do modo como ele é lido hoje ) os aspectos que tornam possível essa identificação. 205

3.2 – Surgimento do Teatro Brasileiro A vida é a miniatura do teatro. Ele a aumenta, a embeleza, a sublima. A vida cria o conflito; o teatro o resolve; e, nessa solução, a vida tem aumentado seu patrimônio moral. Procópio Ferreira

Teço o meu tapete de palavras. A agulha sonha caminhos de lã. Nas mãos brancas da memória Nascem as cores de uma nova manhã. Carlos Queiroz Telles. Arraiolo .

Há mais inquirições e perplexidades e, certamente, nenhuma resposta plausível a respeito do Teatro Brasileiro. Se assim nos posicionarmos, deve-se ao fato de informações recebidas nos últimos tempos assinalarem uma quebra no percurso árduo, gradual e essencialmente complexo da formação daquilo a que poderíamos realmente chamar de um teatro brasileiro. Chega-se a tal reflexão pela via do olhar o passado e constatar o processo de desenvolvimento por que passou esse teatro até alcançarmos o nível qual estamos. Cremos entrar em lugar-comum quando afirmamos que o século XX consagrou-se por ser um século de rápidas transformações históricas, marcadas por um sentido de conquista e renovação tais que sua característica primordial – assim como a do século XVIII assinalou a razão e a do século XIX a ciência – foi a liberdade . Pensando-se no teatro, haveremos de enfrentar a realidade dos obstáculos da formação de uma cultura autêntica em qualquer país colonizado. É mister que se esclareça que a referência anterior não diz respeito apenas ao fato do colonizador trazer consigo uma cultura já elaborada. Referimo-nos também ao simples fato de qualquer tipo de cultura ser difícil, quando não impossível, sem tempo hábil para se desenvolver a expressão específica de um grupo humano dentro de sua própria comunidade. Sabe-se que o ciclo grego durou cerca de mil anos, levando cerca de quinhentos para atingir o

205 SANTOS, Luis Alberto Brandão. Opus cit, p. 223. seu ponto máximo; o ciclo romano também andou próximo a uns mil anos, chegando a quinhentos para atingir sua melhor expressão. Após as grandes migrações étnicas que aniquilaram o mundo romano foram necessários cerca de três séculos até chegar à Europa, o primeiro estágio literário, que é a literatura épica, narrativa, e só no século XII é que as línguas européias ficaram razoavelmente prontas para a subjetividade da poesia lírica de um Chrétien de Troyes mesmo que o latim ainda fosse o preferido das universidades, da mesma época. Mais um século para Dante, mais três para a espetacular explosão do século XVI. Bárbara Heliodora assegura que se era muito difícil militarmente qualquer resistência efetiva de índios no estágio de desenvolvimento (ou não desenvolvimento)dos que aqui estavam em 1500, contra os invasores portugueses, igualmente difícil – ou impossível – era a asseveração da cultura desses mesmos índios diante da carga da tradição européia. Uma linguagem apenas falada, reduzida à expressão de atividades as mais primitivas, não pode competir com outra, que já servira de expressão a uma imensa riqueza literária. 206

Assim, não nos surpreende que o nosso teatro, como outras artes, tenha tido origens profundamente imitativas. Não há dúvida de que a primeira experiência teatral brasileira tem, como seu intento principal, a destruição de tudo o que é local, e a introdução, no plano espiritual como no material, de valores importados. Passado pouco mais de meio século desde que, ao mundo deslumbrado, se haviam descoberto os esplendores da incrível terra do Pindorama, Portugal reunira todos os esforços para conservá-la sua, protegendo-a das investidas ambiciosas de aventureiros. E fazia-o já agora naqueles moldes que iriam permitir às linhagens vindouras o legado de uma pátria de cidadãos unidos pelos mesmos princípios de fé e de ideal, herdeiros dos benefícios de uma edificante miscigenação de raças, senhores de um território imenso, pródigo de tesouros incalculáveis. Aporta no Brasil, em 1553, Anchieta e, com ele, o teatro como instrumento mesmo da colonização cultural encontrando no imenso espaço físico recoberto de florestas virgens, habitado por algumas tribos de índios, dispersas, segundo atesta o

206 Citação de Bárbara Heliodora em conferência no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em dezembro/1972, durante o Curso de Extensão Universitária Semana de Cultura Brasileira do Departamento de Artes Visuais. naturalista Nunes Pereira 207 , em algumas delas já se fazia uma espécie de teatro. Sabe- se que não eram as festas rituais com que todas elas comemoravam seus feitos, cultuavam seus mortos e iniciavam os trabalhos de caça e pesca, e mesmo de agricultura. Não eram as danças guerreiras chefiadas pelos pajés, mas teatro mesmo, com a representação de fatos, nas quais os intérpretes eram ao mesmo tempo os autores, como já se fazia, na mesma época, na Commedia Del’Arte .208 A respeito da existência de representações teatrais pelos nossos índios, Nunes Pereira publicou uma plaqueta bem documentada. Cremos que isso não há de causar assombro, quando se sabe que entre as origens do teatro sobressai aqui a hipótese segundo a qual o nascimento da arte eminentemente popular produziu-se como uma derivação das danças mágicas, dos conjuros e representações míticas dos feiticeiros e magos das tribos primitivas, para afastar os maus espíritos, o que procuravam conseguir combatendo-s com suas próprias armas fantasmais, disfarçando-se e pintando as caras para assustar as deidades contrárias, e obter, assim, que deixassem os homens em paz, 209 como bem o demonstra Javier Farias na sua breve História do teatro . Ele mesmo assinala que esses conjuros (produto do medo) tomaram uma forma, e essa forma – a pantomina – sujeita a certos cânones impostos pelo costume, ou caráter ritual – adquiriu um ritmo. Forma e ritmo, unidos já de maneira indissolúvel, passaram a construir a dança. 210 Os índios brasileiros desconheciam a propriedade. A liberdade era a grande bruxa, disputando apenas espaços naturais. A natureza caracterizava-se pela bondade e nada exigia em troca nem os índios a ameaçavam em nada. Enfrentar as intempéries, as feras e o imprevisto, aliás, constituíam o perigo de viver. Eis que chega a civilização – uma fera diferente. 211 Não possuíam finanças, guardavam, às vezes, sobras de comida, na expectativa de maior lazer, preguiça, ou por prevenção à carência nos dias subseqüentes. Resumia-se em luta pela sobrevivência. Desconheciam agressor mais rígido. Mudavam-se de lugar, se a natureza lhes escasseava os produtos de que

207 Citado por Joracy Camargo em O teatro no Brasil. Dionysisos . Serviço Nacional de Teatro do Ministério da Educação e Cultura. Ano XII – maio de 1968 - nº 16, p. 83. 208 Idem 209 Idem. 210 JAVIER FARIAS. História do teatro. Buenos Aires: Ed. Atlântida, [1944], (Coleção Oro de Cultura General) 211 Expressão cunhada por CAFEZEIRO, Edwaldo. História do teatro brasileiro: um percurso de Anchieta a (Edwaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha. Rio de Janeiro: UFRJ:EDUERJ:FUNARTE, 1996, p. 26. necessitavam. Algumas tribos suportavam ali mesmo suas desventuras, substituindo os usos. Quando a realidade os ameaçava, buscavam solução no cauim, na dança e no pito. Aspiravam a melhores dias. Produziam o que necessitavam, tinham amor a suas mulheres, a seus filhos, a sua comunidade. Disputavam entre si e entre tribos, sem perceber o inimigo comum. Ao chegar o inimigo, a desconfiança também se dez surgir e até repudiaram-no, numa defesa comum ao cão que guarda seu sítio .212 Imitando, representando, reproduzindo, os índios ratificavam suas experiências e modificavam os seus projetos de vida com o surgimento de novas crenças: Esse instinto preestético de teatralidad estaria relacionado com formas primitivas de expresión, propias del ser humano, con linguage de gestos y ademanes, con formas pantonímicas, las quales, em época de mayor evolución intelectual, habrían reaparecido como símbolos, cargadas de magia y trascendencia com arreglo a modalidades de expressividad religiosa. 213

Deduzimos, então, que a mímica, os jogos cênicos, as danças e outras formas de representação instituídas em cerimônias – eróticas, religiosas, estéticas ou mesmo políticas, em sentido mais amplo – são vistos como elementos básicos de desenvolvimento da aprendizagem, na fixação de um saber. Por isso é que o teatro, saído desta necessidade de libertação do ser humano, tem uma função didática primitiva e natural. Como representação e saber estético, resulta de uma interiorização psíquica do contexto vivido e de uma projeção desse contexto. 214

Anchieta traz a luz. Logo percebeu como os índios gostavam de música, de dança, de canto e das festas de ritos e espetáculos. Assim, desenvolve, pelo teatro, uma tradição portuguesa em contato com os nossos silvícolas. Como afirma Cafezeiro, o teatro tornar-se-ia o nosso livro de leitura e recordaria saudades e tristezas aos portugueses naqueles primeiros cinqüenta anos da nossa existência, perdidos na imensidão deste fim-de-mundo, semi-adaptados aos costumes da terra. 215 Tais costumes nem sempre bem vistos, contudo, de certo modo, agradáveis a quem andava às voltas com as severas imposições da legislação real e a Inquisição. Ao índio, os portugueses iriam mostrar uma nova forma de ritmo, de rito, novas cores,

212 Idem. 213 CASTAGNINO, Raul. Teoria del teatro . Buenos Aires: Ed. Nova, 1959, p. 25. 214 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 26-7. 215 Idem, p. 19. variadas danças, aquelas expressões pelas quais conseguimos a liberação da atormentada rotina e das insatisfações e satisfações da vida .216 E não foi outra a razão que levou os jesuítas, na figura do padre Manuel da Nóbrega, para realizar a grande tarefa da catequese, a imitar o pajé, assumindo os processos do chefe supremo do fetichismo. O pajé era o solista, improvisando passos, marcas e figurações destinadas a impressionar a tribo. Viriato Corrêa documenta que Nóbrega e outros padres, quando se propunham a ensinar aos índios os princípios da religião católica, dançavam como os pajés. Ainda informa que também faziam gestos cabalísticos, ora pulando, ora de cócoras, ora com esgares e macaquices. 217 Não mediam esforços. De todos os sacrifícios eram capazes desde que fossem úteis à propagação da fé. Podemos perceber que esses abnegados discípulos da Companhia de Jesus se expuseram amplos e despendidos de qualquer preconceito, que se pode afirmar, sem ofender a memória do Superior, que o padre Manuel da Nóbrega foi o primeiro ator no Brasil, caso não se queira atribuir essa distinção aos pajés, que também o eram. Enfim, a semente estava lançada, como fecundos miasmas da arte teatral .218 Os índios já se interessavam pos espetáculos. Deste modo, aliciado por Nóbrega, o jovem Anchieta, como já o fizera Francisco de Assis com os seus laudi , na época em que o Renascimento preterira o teatro, começou a traduzir a doutrina cristã para a língua tupi – que aprendera rapidamente – aos 19 anos -, fazendo em forma de diálogos. Porém, observando a ineficácia desta forma rudimentar de teatro, habituados os índios à forma espetacular das danças, sobretudo as guerreiras, com o emprego de máscaras e instrumentos de percussão, Anchieta compreendeu que seria necessário apelar para todas as formas de expressão que constituem as artes cênicas. Era necessário fazer teatro mesmo, com todo o seu poder de comunicação. Na colina de Piratininga, no terreiro da cabana tosca, onde foi fundado o primeiro Colégio – Colégio de São Paulo – rodeado da floresta virgem, Anchieta ergueu o primeiro proscênio do Novo Mundo . Foram lançados, ali, os primeiros passos do teatro no Brasil, com o Auto da pregação universal , e outros, justamente no momento em que Gil Vicente criava os seus em Portugal, na época do Descobrimento.

216 Idem. 217 Viriato Corrêa. Citado por Joracy Camargo. Opus cit, p. 84. 218 Joracy Camargo. Opus cit, p. 84. O Auto da pregação universal , escrito por José de Anchieta nos idiomas português, tupi e espanhol, possui cinco atos e sugere uma alegoria da história do pecado: o moleiro representando Adão; sua mulher: Eva; o pelote: a graça divina; o ladrão: demônio (aliás, dois demônios: Guaixará e Aimbirê); e o neto que lhe vai restituir a graça: Jesus. O primeiro homem, tentado pelo demônio, peca e perde o seu pelote domingueiro 219 , isto é, a graça divina. Dois diabos, Guaixará e Aimberê, também tentam seduzir toda a aldeia para o pecado, mas surge um Anjo da Guarda e protege os humildes habitantes, indicando a Jesus e sua mãe Maria, como oportunos socorros nessa fase de aflição. Há um desfile de doze meninos brancos, como pecadores e prisioneiros dos demônios, porém, ante as suas confissões diante do presépio, arrependidos dos atos que praticaram são libertados e, assim, sugere-nos uma visão dos portugueses, moradores desta terra em que tudo se adquiria à força; em que a Lei só era obedecida quando interessasse, ou diante de um problema que afligia a qualquer ser humano no Século XVI: o inferno. 220 E Jesus Salvador restitui o pelote domingueiro a Adão. O autor catequista alegoriza toda a peça, dando ao pelote – espécie de casaco – o significado da graça, ao avô a presença de Adão, aos índios Guaixará e Aimberê o papel de demônios, ao menino do presépio a presença de Jesus Salvador, à tecedora da nova veste (pelote) a missão materna de Nossa Senhora na co-redenção da humanidade – personagens já citados. O epílogo é cantado por doze meninos índios, traduzindo a felicidade alcançada na retomada da veste perdida. O título da peça é, por si, manifestação da interioridade espiritual de Anchieta, numa abrangência universal de almas para Cristo. A dança, as cores – em especial o vermelho –, a desconhecida figura do diabo com chifres e rabo, o ritmo e o canto fascinavam os índios, que tinham nestas expressões o único meio de se libertar das aflições, do tormento que o dia-a-dia lhes levava. Concordamos com Cafezeiro que nos faz ver a alegoria do diabo funcionar, ao contrário, como motivação, incitação psicológica, magia e não como elemento de

219 Pelote domingueiro é uma velha canção portuguesa que Anchieta aproveita para sugerir uma alegoria da história do pecado. 220 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 45. repressão, o que acontecia com os portugueses, para quem a idéia de diabo era aterradora. 221 A alegoria é um componente fundamental na estética do drama jesuítico, como aponta Walter Benjamin: O conhecimento filosófico da alegoria, e especialmente a dialética da sua forma-limite, é o único pano de fundo contra o qual a imagem do drama barroco pode destacar-se com cores vivas e belas, se for lícito dizê-lo único não desfigurado pela cor cinzenta de nenhum retoque. No coro e no interlúdio do drama a estrutura alegórica emerge com tanta clareza que não pode ter passado de todo despercebida aos observadores. 222

Após Anchieta, percebe-se um longo silêncio teatral de séculos, período no qual se instaura, no entanto, um fato de grande eclosão cultural para o Brasil: o tráfico de escravos. No século XIX, o Brasil, já transformado em sede da Coroa portuguesa, via-se vestido com indumentária da cultura européia, e o Rio de Janeiro, por ser a capital do Reino, demonstrava com grande intensidade o empréstimo daqueles adereços e ornamentos: peles, plumas, sobrecasacas, colarinhos engomados, veludos, espartilhos não traduziam expressão autêntica do clima tropical carioca. Juntou-se à postura da Corte que desejava viver aqui como antes na Europa a população carioca que se achava perplexa com todo aquele deslumbramento. Nova fase de evolução do teatro brasileiro se afirma com a chegada de D. João VI ao Brasil. Surge o talento dramático de João Caetano, após dar baixa do serviço militar, onde servira no posto de cadete, chegando a tomar parte na Guerra Cisplatina. João Caetano abraça, contra a vontade da família, a arte dramática e começou a trabalhar como amador em sociedades particulares. Nessas sociedades, na falta de mulheres que tivessem coragem para enfrentar os preconceitos da época, os homens desempenham, como nos tempos de origem do teatro, papéis femininos, e João Caetano, sem dúvida, teve de render esse tributo, exteriorizando alguns tipos da galeria feminina do repertório da época. O eminente ator faz surgir, com destaque, dois autores teatrais: Domingos José Gonçalves de Magalhães e Luiz Carlos Martins Pena. Esses três nomes ligados à dramaturgia, em 1838, unem-se para marcar positivamente o teatro brasileiro. No ano

221 Idem, p. 47. 222 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco . SãoPaulo: Ed. Brasiliense, 1984, p. 213. seguinte, em 7 de setembro, João Caetano – ressentindo-se de odiosas perseguições políticas e despeitos – encena a tragédia Olgiato , de Gonçalves de Magalhães. Inegavelmente, o teatro brasileiro apresenta, nesse instante, algum desenvolvimento sob o ponto de vista da literatura e da arte. Nascia a tragédia nacional, com o texto Antonio José ou O Poeta e a Inquisição , também de Gonçalves de Magalhães, além de aparecer as primeiras manifestações da comédia de costumes, com ensaios de Araújo Porto Alegre, seguidos pelo extraordinário talento de Martins Pena. Desta forma, o nosso teatro rompia enfim com os dramalhões portugueses e com as péssimas traduções de obras francesas que predominavam nos palcos brasileiros, ainda que essa libertação não acusasse caráter permanente, como seria para desejar e conveniente à evolução da nossa literatura dramática, ainda incipiente. João Caetano encena O Juiz de Paz na Roça de Martins Pena – o que vai desmentir boato da época que dava conta de que o ator não estimava as produções do comediógrafo Martins Pena, autor notável na história da comédia nacional. Não há por que negar nele a existência de algo novo, de algum aspecto que, originalmente, poderia ter tido como base a cultura européia, mas que, influenciada por condições geográficas e sócio-econômicas, sairia bastante diferente do que por lá se fazia. Bárbara Heliodora afirma que Martins Pena é memorável por todos os títulos: não só por ser surpreendentemente brasileiro, como também por ser surpreendentemente teatral, em circunstâncias em que tudo conspirava para que não houvesse teatro: sendo o teatro uma arte comunitária, para que houvesse um teatro brasileiro seria preciso pressupor um grupo amplo – e de características brasileiras nele mesmo – que motivasse sua existência; a pouca concentração urbana e a ausência de uma classe média brasileira eram causa suficiente para a não existência desse teatro. O fenômeno Martins Pena, nessas circunstâncias, é verdadeiramente extraordinário. 223

Martins Pena, o Molière brasileiro, segundo qualificação de Artur Azevedo 224 , desenvolveu suas comédias a partir de uma característica do teatro da época. Para que os espectadores emocionados e envolvidos pelo drama apresentado, à noite, pudessem relaxar, levava-se à cena uma farsa, normalmente, portuguesa e de curta duração, com propósito de arrancar rápidas gargalhadas.

223 Idem, citação nº 1. 224 Conforme MARINHO, Henrique. O theatro brasileiro: alguns apontamentos para a sua história. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro.Editor, 1904, p. 39. A farsa, no Brasil, ganha modelo mais amplo, com personagens e situações da realidade carioca, via Martins Pena, que buscava dosar de hilaridade efeitos para aquele público determinado. É possível que os que viam na arte de Martins Pena um trabalho inconsciente e de superficialidade não tivessem atentos a seus tipos e histórias tênues e explicitamente delineados, o que caracteriza uma realidade diferente do leitor europeu, preso a tendências a um texto essencialmente diferente. Cremos haver justiça ao se afirmar que, através de seu trabalho, Martins Pena registra para gerações descendentes um real testemunho da vida de sua época, pelo qual é possível reconstruir, com eficiência bem maior do que pelo estudo dos documentos oficiais, o perfil de toda uma época, mais ou menos como quando se folheia um álbum de velhas e ingênuas fotografias. 225 A reação literária ocorrida em Portugal no princípio do século XIX recebeu, com ode resto em toda a Europa, o nome de Romantismo. O movimento se iniciara na Alemanha e caracterizava-se pela reação contra a escola clássica, pela introdução da literatura da arte, da poesia, da lenda medieval e das tradições pátrias, porquanto três séculos de classicismo haviam esgotado as manifestações populares. Foram proscritos todos os moldes e regras além das leis gerais da natureza. Proclamou-se a necessidade imprescindível de se refletir as primitivas fontes poéticas nacionais, libertando-se dessa forma as letras da influência despótica dos elementos estrangeiros que as mantinham na imitação servil, monótona e estéril. O Romantismo, enfim, desfraldava o rebelado estandarte do individualismo na arte, provocando a liberdade contra o regime absoluto, sugerindo que cada indivíduo buscasse conhecer o que sua própria terra natal lhe pudesse oferecer, antes de ver o que se encontrava em terras alheias. O Romantismo, segundo Edmund Wilson, foi uma revolta do indivíduo. O Classicismo, contra o qual ele representava uma reação, significava, no domínio da política e da moral, uma preocupação com a sociedade em conjunto, e, em arte, um ideal de objetividade .226

225 CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil (Quatro séculos de teatro no Brasil). São Paulo: T.A. Queiros: EDUSP, 1986, p. 48. 226 WILSON, Edmund. O castelo de Axel: estudo acerca da literatura imaginária de 1870-1930. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 10. Sem dúvida, o teatro era o gênero literário fadado a atrair o espírito romântico, especialmente pelos dramas e tragédias. 227 Foram eliminadas as clássicas unidades de tempo e lugar e, por instância circunstancial, surgiu a preferência aos dramas históricos de problemas políticos, sociais, morais, psicológicos e religiosos. Vemos assim todo um individualismo subjetivo, um fantástico mistério, um sonho tornarem-se atitudes privilegiadas de personagens que, por sua vez, mantinham características de fé (contra a razão dos clássicos), culto à natureza, escapismo, ilogismo, retorno ao passado, ao pitoresco e outras sendas mais atribuladas. 228

O desenvolvimento do Brasil a partir da chegada da Corte rivalizou-se com as questões políticas criadas pelas lutas de Independência. A presença do povo nas lutas políticas, especialmente nas lutas pelas liberdades fundamentais do homem; a consciência da sua participação no progresso e desenvolvimento tornam o indivíduo apto a protestar contra autoridades impostas e lideranças determinadas por liames e heranças opressoras – fazendo-nos concordar com Cafezeiro que assevera que esta quebra de vínculos ou heranças intelectuais cria uma confiança na produção nacional, na beleza da natureza e magnitude do futuro contra toda a mentalidade de importação dominante. 229 No teatro, todos estes aspectos passaram a cooperar para uma mudança nos cenários, nos temas, na maquinaria. Afrânio Coutinho interpreta a questão afirmando que: assim, o Romantismo, no Brasil, assumiu um feitio particular, com caracteres especiais e traços próprios, do lado dos elementos gerais, que filiam ao movimento europeu. De qualquer forma tem importância extraordinária, porquanto foi a ele que deveu o país a sua independência literária, conquistando uma liberdade de pensamento e de expressão sem precedentes, além de acelerar, de modo imprevisível, a evolução do processo literário. 230

A atmosfera daqueles tempos, carregada de vertentes e vontades de renovação, que preparou a abdicação de D. Pedro I, e assinalou os anos subseqüentes, era bastante propício a um teatro de argumentos nacionais. A rajada de liberdade – afirma Cacciaglia – alcançou também o pobre teatro São Pedro de Alcântara que culpado por lembrar o nome de D. Pedro I, foi rebatizado, por algum tempo, Constitucional

227 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 149. 228 Idem. 229 Idem, p. 150. 230 COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Sul Americana, 1956-1959, V. 1, T. 2, p. 57. Fluminense (de 7 de abril a 2 de junho de 1838) 231 . Tal entusiasmo pela Constituição e pela liberdade, juntamente com o nacionalismo, ajustava-se à moda da época, espelhava a grande corrente do romantismo que reexaminado e modificado, levava com algumas décadas de atraso, às margens do Império do Brasil. Cacciaglia continua afirmando que é um romantismo curioso, privado de sua pátria ideal histórica, isto é, a Idade Média, período do qual a história brasileira evidentemente está ausente 232 . Tentou-se suprir essa ausência com a idealização do selvagem e dos heróis da primitiva colonização, moldando-os às grandes figuras da literatura européia e atribuindo-lhes seus ideais. O processo se tornava complexo, porquanto, sendo reconstrução de uma reconstrução, levava diretamente ao kitsch . Enquanto os românticos europeus procurando trazer à lembrança figuras da Idade Média, fazendo-as atuar e falar extemporaneamente com a sensibilidade e os ideais da Europa moderna, os brasileiros, chegando atrasados, foram além, decalcando exteriormente desses modelos que podiam entender apenas superficialmente e como moda (não tendo, obviamente, podido viver as vicissitudes da época romântica, que foi um fenômeno indissoluvelmente ligado à Europa), as personagens de uma época colonial mitizada e reevocada com uma sensibilidade construída, portanto estranha à autêntica mentalidade nativa, chegando a resultados exatamente opostos aos desejados pela genuína poética romântica. 233

Acreditamos que ninguém negará a Domingos José Gonçalves de Magalhães duas importantes virtudes: historicamente, ter entendido antes de qualquer outro a necessidade de renovar a literatura nacional, fazendo uso para tanto, ao lado da poesia, do teatro; esteticamente, ter planejado distinguir o drama romântico da tragédia clássica em nível de acuidade conceitual até então inédito em âmbito brasileiro .234 Essa possível superioridade de Domingos José Gonçalves em relação aos coevos resultava de sua experiência européia, dos anos que viveu, entre 1833 e 1837, em países como a França e a Itália. Oportunidade tal que lhe possibilitou observar e avaliar o Brasil de longe, beneficiando-se da mudança de perspectiva, quanto de presenciar, no centro dos acontecimentos, a luta que travavam os últimos herdeiros do século XVIII e

231 CACCLIAGLIA, Mário. Opus cit, p. 45. 232 Idem. 233 Idem. 234 PRADO, Décio de Almeida. O drama romântico brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996. (Coleção Debates, 273), p. 11. os jovens e iconoclastas representantes do século XIX. 235 Debate teórico e prático que se desenvolvia em torno dos palcos de Paris, onde a tragédia estava sendo posta em discussão após dominar por cerca de duzentos anos. A importância dada repentinamente ao teatro, como protetor do classicismo de Racine e Boileau, atrai para ele a atenção de todos os escritores, não somente dos especialistas do gênero. Se Vigny, Musset, Balzac, na França, assistem o apelo de Victor Hugo e Alexandre Dumas, a ascensão do romantismo atrairia aos palcos nacionais poetas e romancistas como: Gonçalves Dias representando drama de amor; Álvares de Azevedo, drama fantástico e Agrário de Menezes, José de Alencar, Paulo Eiró, Castro Alves – representantes do drama histórico nacional. Em relação a Antonio de Castro Alves, o teórico Décio de Almeida Prado afirma que o poeta chegou cedo ao teatro e tarde ao romantismo: escreveu a sua única peça nos moldes de Victor Hugo (...) Gonzaga ou A Revolução de Minas, em 1867, nas vésperas de fazer vinte anos... 236 Foi logo encenada com sucesso no Teatro São João em Salvador e, em São Paulo, um ano depois. Sua publicação só se dá após a morte do poeta, em 1875. O drama de Castro Alves marca, na verdade, uma revisão política e social. A social se fixa na postura amorosa, nas relações entre Gonzaga e Maria, que o poeta transporta para sua época e as relaciona a sua vida amorosa com a atriz portuguesa Eugênia Câmara – quase um século depois; no drama entre filha e pai escravos, instigando toda uma sociedade escravocrata. No que concerne à revisão política, vemos assinalada uma permanente instigação a tudo o que se agrega ao poder: libertação dos escravos, domínio clerical, opressão portuguesa, idéias de ascensão do povo ao poder, ao modelo das rebeliões européias e americanas e, fundamentalmente no Gonzaga, as duras críticas a Portugal. A segunda metade do século XIX é indiciada em todo o Ocidente pelos movimentos e nascentes de massas. Em solo brasileiro por experimentos de participação

235 Idem, p. 12. 236 PRADO, Décio de Almeida. Opus cit., p. 171. do povo no poder; e O Povo ao Poder 237 titula um poema de Castro Alves, de 1866, que registramos alguns versos: Quando nas praças s’eleva Do povo a sublime voz... Um raio ilumina a treva, O Cristo assombra o algoz... Que o gigante da calçada Com o pé sobre a barricada Desgrenhado, enorme e nu, Em Roma é Catão 238 ou Mário, 239 É Jesus sobre o Calvário, É Garibaldi ou Kossuth. 240

A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor, É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor. Senhor!... pois quereis a praça? Desgraçada a populaça Só tem a rua de seu... Ninguém vos rouba os castelos, Tendes palácios tão belos... Deixai a terra ao Anteu. 241

Na tortura, na fogueira... Nas tochas da inquisição Chiava o ferro na carne Porém gritava a aflição. (...)

A palavra! vós roubais-la Aos lábios da multidão, (...)

Da plebe doem-se os membros No chicote do poder, E o momento é malfadado Quando o povo ensangüentado Diz: já não posso sofrer.

237 ALVES, Antonio de Castro. O povo ao poder . ____. Antologia poética de Castro Alves. Org. Maria Chaves de Mello. Rio de Janeiro: Barister’s Editora, 1987, p. 153-155. 238 Catão: político romano pertencente à aristocracia senatorial que se distinguiu pela austeridade, a defesa da tradição e dos costumes romanos e lutou contra a influência grega que considerava prejudicial a Roma. Viveu entre 234 e 149 a. C.. 239 Mário: cônsul romano, tio de Júlio César que convenceu o sobrinho a passar para o lado político dos plebeus, motivo pelo qual César foi exilado para o Oriente, antes de tornar-se o grande ditador de Roma. Viveu entre 157-86 a. C.. 240 Lois Kossuth, estadista húngaro que participou da guerra do Império Austro-Húngaro (1802-1894). 241 Anteu: gigante da mitologia grega, filho de Geia (a Terra) e Posseidon (desu do mar), que era invencível desde que mantivesse os pés em contato com a terra, sua mãe. Matava os viandantes, e construiu um templo feito de crânios humanos em honra de seu pai. Foi morto por Hércules que descobriu o segredo de sua invencibilidade, suspendendo-o do solo e matando-o sufocado. (...)

Irmãos da terra da América, Filhos do solo da cruz, Erguei as frontes altivas, Bebei torrentes de luz... Aí! soberba populaça, Rebentos da velha raça Dos nossos velhos Catões, Lançai um protesto, ó povo, Protesto que o mundo novo Manda aos troncos e às nações.

Os estudos a respeito de Castro Alves comprovarão ser o poeta baiano uma convulsão da Natureza , segundo Agripino Grieco. 242 E cremos que sim, pois mal teve tempo de um relâmpago, para anunciar-se como poeta, ao estilo de uma deflagração esbanjadora em luminosidade e sons. De acordo J. Galdino, dir-se-ia um tiro de magnésio no escuro, porque um poeta que apaga aos vinte e quatro anos de existência, não teve sequer tempo de luzir. Explodiu. Esteve, relativamente na vida literária, o espaço de uma rosa de Malherbe , numa manhã de Verlaine. E fê-lo no entardecer do Romantismo, cujos começos, entendido como estilo de época e não como estado de alma romântico, despontaram na Alemanha e na Inglaterra. 243

Cafezeiro afirma que o romantismo na literatura brasileira cruza-se com o realismo e o naturalismo a partir da metade do século XIX. No teatro, o drama romântico e comédias dramáticas convivem com comédias realistas e de costumes nos autores anteriormente citados e em outros como Martins Pena, França Júnior, Artur Azevedo. Bem distante de nós um teatro realista, que só surgirá na segunda metade do século XX –a partir das experiências cênicas de Stanislavski e o aparecimento das dramaturgias de Tchekov e Ibsen, além de outros. 244 Ressaltamos que nosso romantismo se efetuou com fortes traços de racionalismo e de busca de análise de acontecimentos bem mais direcionados para aspectos sociais da vida do que para os aspectos do subjetivismo individualista, da mesma forma como se vê no teatro alemão e francês. Os ideais românticos são sufocados não só pelas ciências naturais – a Física, a Química, a Matemática – mas pela Teoria da Evolução, que reduz o homem a mera mofa de forças que o cercam. Chegando Edmundo Wilson assegurar que:

242 Citado por J. Galdino em ensaio crítico Achegas para uma louvação de Castro Alves. ALVES, Antonio de Castro. Opus cit, p. 15. 243 J. Galdino no ensaio anteriormente citado, na mesma obra e página. 244 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 150. a Humanidade era o produto acidental da hereditariedade e do meio ambiente, em cujos termos se tornava explicável. Esta doutrina chamou-se, em Literatura, Naturalismo, e foi posta em prática por romancistas como Zola, que acreditavam serem idênticas a composição de um romance e a realização de um experimento de laboratório: bastava apenas fornecer às personagens um meio ambiente e uma hereditariedade específicos e depois acompanhar-lhes as reações automáticas. E, por historiadores e críticos como Taine que asseverava serem a virtude e o vício produtos de processos automáticos, tanto quanto álcalis e ácidos, e que buscava explicar as obras primas com estudar as condições geográficas e climáticas dos países onde haviam sido produzidas. 245

João Roberto Faria, em Teatro Realista no Brasil: 1855-1865 , certifica-nos de que a criação do Teatro Ginásio Dramático, em março de 1855, pelo empresário Joaquim Heleodoro Gomes dos Santos, provoca de fato um processo de ruptura com o romantismo teatral. Nos primeiros instantes, a pequena empresa pôs em cena algumas comédias de Scribe, apresentadas com bastante humor e leveza. Forma encontrada para concorrer com o Teatro São Pedro de Alcântara, cujo repertório abrangia com predileção as tragédias neoclássicas, dramas românticos e melodramas portugueses e franceses. Scribe, contudo, não participava do realismo teatral francês, a última novidade que, na época, encetava a seduzir a jovem intelectualidade brasileira. Em Paris, Alexandre Dumas Filho, Émile Augier, Théodore Barnière, Octave Feuillet – entre outros – faziam sucesso com os seus dramas de casaca , quer dizer, com peças de tese ou de descrição de costumes em que discutiam algumas questões sociais de interesse da burguesia, classe com a qual se identificavam e para a qual dirigiam sua produção. 246 Questões referentes à família, ao casamento, ao trabalho, ao dinheiro, à prostituição eram então debatidas no palco, transformado em púlpito consagrado a revelar a superioridade dos valores éticos da burguesia. Não houve demora para que o Ginásio Dramático importasse esses novos textos teatrais. Em 26 de outubro de 1855, a representação de As mulheres de mármore , de Théodore Barrière e Lambert Thiboust, inaugurava um período de vida teatral intensa no Rio de Janeiro, marcada pelo prestígio da estética realista. Tal situação tornou possível o processo de recepção das peças francesas entre nós e a posterior formação de uma coleção nacional de comédias e dramas realistas, ou pelo menos com traços de realismo. Sabe-se que no São Pedro de Alcântara, comandado por João Caetano,

245 WILSON, Edmund. Opus cit, p. 12-13. 246 FARIA, João Roberto. O teatro realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: Perspectiva/ed. da USP, 1993. (Coleção Estudos; 136), p. XVI. continuaram a ser exibidos os textos teatrais do antigo Romantismo, enquanto a novidade acontecia no Ginásio Dramático, auxiliado depois de certo tempo pelo Teatro das Variedades e Ateneu Dramático. Foram encenadas, entre 1855 e 1862, as seguintes peças: As mulheres de mármore (já citada) e Os parisienses, de Théodore Barrière e Lambert Thiboust; Os hipócritas e A herança do sr. Plumet , de Barrière e Ernest Capendu; A dama das camélias e O mundo equívoco , de DumasFilho; O genro do sr. Pereira , Os descarados e As leoas pobres , de Émile Augier; A crise , Dalila , O romance de um moço pobre e A redenção , de Octave Feuillet. A apresentação desses textos teatrais provocou grandes discussões na imprensa fluminense. A jovem intelectualidade posicionou-se favoravelmente à nova estética teatral e, em seus folhetins, defendeu a criação de um repertório nacional apoiado nos modelos oferecidos pelos dramaturgos franceses. Constata-se dessas discussões um resultado avaliado em dois níveis: o teórico e o prático. Apreendemos daí um conjunto de conceitos realistas nos textos jornalísticos de Quintino Bocaiúva, José de Alencar, Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e de outros escritores da mesma geração. Vendo-se por outro lado, não foram poucos aqueles que escreveram para o teatro, procurando incorporar em suas peças os ensinamentos dos mestres franceses. Destacamos, nesse período que vai dos anos de 1857 a 1865, os seguintes textos e autores: O demônio familiar , O crédito , As asas de um anjo e O que é o casamento? , de José de Alencar; Onfália , Os mineiros da desgraça e A família , de Quintino Bocaiúva; Luxo e vaidade e Lusbela , de Joaquim Manuel de Macedo; A época , A resignação , O cativeiro moral e A vida íntima , de Aquiles Varejão; O cínico e A túnica de Nessus , de Sizenando Barreto Nabuco de Araújo; Sete de setembro e Amor e dinheiro , de Valentim José da Silveira Lopes; História de uma moça rica , de Pinheiro Guimarães; De ladrão a barão , de Francisco Manuel Álvares de Araújo; Os tipos da atualidade , de França Júnior; Um casamento da época , de Constantino do Amaral Tavares; Gabriela e Cancros sociais , de Maria Angélica Ribeiro. 247 Em pesquisas realizadas para uma dissertação de mestrado sobre a obra dramática de José de Alencar, João Roberto Faria 248 , diante do Jornal do Comércio mas também

247 Idem, p. XVII. 248 Idem, p. XV – XVII. de outros periódicos, como Diário do Rio de Janeiro , Correio Mercantil , Correio da Tarde , A Marmota , Revista Popular , A Semana Ilustrada e Entreato , constata críticas teatrais, ensaios e artigos que nos revelam um quadro bastante amplo da existência de um autêntico movimento teatral, havendo também menções a aspectos do espetáculo teatral, como o trabalho do ensaiador, a interpretação dos artistas e a disposição dos cenários. Cremos que essas informações sejam relevantes, porquanto o Realismo, em oposição ao Romantismo, foi uma original maneira não apenas de escrever peças como também de interpretá-las e encená-las durante os anos de 1855 a 1865. As pesquisas a que nos referimos, anteriormente, acusam que a partir de 1863 escasseam as peças realistas em cartaz. Surgem, nesse momento, a conquistar o grande público o teatro cômico e musicado. Depois de 1865, ano da representação de Orphée aux enfers , ópera-bufa em quatro atos de Offenbach, praticamente não teve concorrentes nos teatros do Rio de Janeiro. Justifica-se tal abordagem o pensamento de Machado de Assis a respeito do teatro nacional em fevereiro de 1866: Há uns bons trinta anos o Misantropo e o Tartufo faziam as delícias da sociedade fluminense; hoje seria difícil ressuscitar as duas imortais comédias. Quererá isto dizer que, abandonando os modelos clássicos, a estima do público favorece a reforma romântica ou a reforma realista? Também não; Molière, Victor Hugo, Dumas Filho, tudo passou da moda. Não há preferências nem simpatias. O que há é um resto de hábito que ainda reúne nas platéias alguns espectadores; nada mais. 249

Machado de Assis, no início de sua carreira literária, foi, além de poeta, crítico teatral, dramaturgo, censor do Conservatório Dramático e tradutor de várias peças francesas. Porém, a literatura o consagrou como romancista. O autor de Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba , entre outros, teve a dramaturgia como primeira ambição literária e dela fez o secreto anseio de êxito artístico e social. O interesse maior de Machado pela linguagem dramática – afirma Sábato Magaldi – enraíza-se nos anos da juventude, correspondendo sobretudo à década de sessenta, quando se registrou no Rio de Janeiro uma especial febre cênica. Se o germe do teatro nunca o abandonou de todo, dilui-se com o tempo a ação que exerceu sobre a sua personalidade. 250

A comparação entre os conceitos críticos e as realizações cênicas de Machado de Assis apresenta copiosos fascínios. É possível que, sob exame superficial, pareçam contraditórios. É Sábato Magaldi, recentemente citado, que julga que, se Machado de Assis tivesse vivificado no palco as opiniões dos comentários, suas peças seriam muito

249 MACHADO DE ASSIS. Crítica teatral . Rio de Janeiro: Ed. Jackson, 1950, V. 30, p. 205. 250 MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro . São Paulo: Global, 1997, p. 125. diferentes. 251 O autor de Dom Casmurro jogava com as idéias, tendo participação polêmica. O teatro de Dumas se impunha em Paris e o crítico Machado, pela inteligência e pelo raciocínio, defendia a corrente das peças de tese. Sábato justifica que a valorização dessa dramaturgia amoldava-se à nossa realidade, pois a campanha abolicionista, entre outros estímulos, inflamava os intelectuais, e não podia haver melhor arma para eles do que o palco. 252 Temos conhecimento de que as criações literárias vivem menos de conceitos racionais do que das sofridas razões íntimas, que emergem com a passagem à confidência. A sensibilidade prendia Machado de Assis a vocábulos menos gigantes, a paixões não espargidas. O criador de Esaú e Jacó aproximou-se, sentimentalmente, à forma da anterior geração francesa, resultando assim uma semelhança de suas peças com os provérbios de Musset, como assinalara Quintino Bocaiúva. 253 A ligação de Machado de Assis ao realismo teatral voltou-se mais explícita nas páginas do jornal O Espelho , onde militou como crítico teatral entre 11 de setembro e 1859 e 8 de janeiro de 1860. Seu primeiro texto, neste periódico, comentando o drama O asno morto , de Théodore Barrière, encenado pelo Ginásio Dramático, deixa evidente sua postura diante das duas estéticas teatrais que existiam na Corte: O asno morto pertence à escola romântica e foi ousado pisando a cena em que tem reinado a escola realista. Pertenço a esta última por mais sensata, mais natural, e de mais iniciativa moralizadora e civilizadora. 254 Estamos nas últimas décadas do século XIX, em plena fase naturalista de nossa história literária – e eis que o teatro brasileiro, pronto a alcançar espaços mais elevados, como representação cênica e como criação literária, sofre uma inclinação que o retarda de muitos anos, instalando um grande intervalo na sua evolução: o que, nesse momento, começa a imperar é o vaudeville , a revista, a mágica, a opereta de que nos diz Décio de Almeida Prado: Após trinta anos de dramalhão, e dez de peças de tese, o povo queria descansar, rir, ver mulheres bonitas, ouvir canções maliciosas e ditos picantes, tudo envolto num enredo cuja principal

251 Idem, p. 126. 252 Idem. 253 MACHADO DE ASSIS. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973, v. 1. 254 MACHDO DE ASSIS. Crítica teatral , p. 30. exigência era não dar trabalho ao cérebro. Quase toda a produção até o fim do século, traduzida ou original, coloca-se fora da literatura, sob o signo da música ligeira. 255

Valdemar de Oliveira registra no texto O teatro brasileiro, 256 que, afastada dos pavores de Sedan, a França restaura a sua primazia universal, no terreno do pensamento e da arte. A insensatez de viver dionisiacamente toma posse do seu povo. Auferir da existência tudo quanto ela nos podia dar de belo e de bom – assinala Brito Broca – era uma receita que, então só se aviava no boulevard. 257 O Brasil, naquele instante, acabara de ser descoberto pela ótica esperta de Montmartre. Surgem novas casas de espetáculos: Varieté , Alcazar , Bouffes-Parisiens , Vaudeville . Eis que o francesismo se fazia notar em toda a sua misteriosa pujança de sedução. Em meio ao declínio, Machado de Assis clamara: Hoje, que o gosto do público tocou o último grão de decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor severas obras de arte. Quem lhes receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena: o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?258

Esse momento funesto de incredulidade e de desatino desperta lamentações pungentes em todos os âmbitos da vida intelectual do Brasil. Afirmava-se a decadência do teatro universal; que Paris era a capital do mundo, irresistível exportadora de novidades e o nu o seu dernier cri . Em 1887, Xisto Bahia incita, em carta, a Tomás Espiuca, que não retorne ao teatro, onde ele, Xisto, viu-se forçado a agitar guizos de palhaço, afivelar o cinto de lantejoulas e dar o grande salto mortal da opereta. Roma teve cortesãs poderosíssimas para manter e dar brilho ao circo dos Césares. O Brasil, isto é, o Rio de Janeiro, tem meretrizes arruadas e pífias, que mantêm e animam o teatro opereta. 259

Via-se assim que, no Brasil, a série hierárquica cedia lugar de honra à opereta que abrangia um enredo, personagens e música erudita. No gênero, segundo Souza Bastos, incluia-se a ópera burlesca , garantindo também que a burleta é uma classificação italiana que se refere às farsas, especialmente às que têm música e que, no mesmo gênero, ainda se incluía a zarzuela como expressão espanhola da burleta, diferenciada pela presença de canções e músicas populares: marchas patrióticas, danças alegres,

255 Décio de Almeida Prado citado por OLIVEIRA, Valdemar de. O teatro brasileiro. Bahia, Publicações da Universidade da Bahia, 1958. Vol. 5, p. 36. 256 OLIVEIRA, Valdemar de. Opus cit, p. 37. 257 Brito Broca citado em OLIVEIRA, Waldemar de. Opus cit, p. 37. 258 Machado de Assis citado em OLIVEIRA, Waldemar de. Opus cit, p. 37. 259 Xisto Bahia. Idem, p. 38. seguidillas , malagueñas, boleros , pasacalles .260 A mágica , conforme assinala Décio de Almeida Prado, define-se como uma adaptação portuguesa da féerie francesa. 261 Completam-na, todavia, as intrincadas alterações de cenários, os truques cênicos e luxuosos, alçapões e nuvens capazes de movimentar a expressão que se desloca do natural ao sobrenatural, a exemplo das comedias medievais. 262 O terceiro gênero e, possivelmente, o mais usado no Brasil e em Portugal é a revista . Cafezeiro conclui que tudo isto nos leva a uma reflexão sobre uma sociedade onde, ao lado da utopia, conviviam uma crescente valorização do dinheiro – em parte considerado responsável por uma prostituição elegante e burguesa dos modelos e conceitos éticos – e a moral conservadora, um tanto já desgastada. À revista competia pôr a descoberto os vexames e as chagas. 263

Eram postas à pesquisa as causas que levaram o declínio do teatro. Artur Azevedo, a contragosto envolvido pelo tumulto do momento histórico, tudo atribui às reprises e ao jogo; Aderbal de Carvalho lança a extravagante idéia de que a decadência do nosso teatro se deve ao cruzamento das três raças que consolidaram a nossa nacionalidade; Clóvis Bevilacqua – eminente jurisconsulto – considera haver uma causa mais íntima ou seja defeito imanente no caráter do nosso povo, ou seja uma razão oriunda do atual momento histórico do país. Abraço declaradamente a segunda hipótese. 264 É possível que Bevilacqua tivesse razão, pois a política da época registrava as lutas em prol da instalação da República, intimidada pelas heranças das dívidas avocadas na Monarquia; problemas sociais e econômicos advindos da libertação dos escravos; e um encantamento por mudanças há muito desejadas. Justificando tais transformações traduzidas em lutas travadas entre idéias conservadoras e os princípios de libertação de que a República foi o sustentáculo, Cafezeiro cita lutas entre civis e militares registradas em textos: a chamada Revolta da Armada, apresentada na opereta Pum! , de Artur Azevedo e Eduardo Garrido; a também conhecida por Rebelião da Chibata, (...) um marco descrito mais tarde por (...) Gastão Tojeiro, em João Cândido ; a rebelião de Canudos, que teve suas ilusões espelhadas em Os sertões , de Euclides da Cunha; e em O jagunço , de Artur Azevedo. Utopias e deboches vislumbrados em manifestações definidas nos textos de

260 SOUSA BASTOS. Dicionário do theatro portuguez . Lisboa: Imprensa da Silva, 1908. 261 PRADO, Décio de Almeida.Do tribofe à Capital Federal. AZEVEDO, Artur. O tribofe . Rio de janeiro: Nova Fronteira/Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 258. 262 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 298. 263 Idem, p. 298-299. 264 Clóvis Bevilacqua citado em OLIVEIRA, Valdemar de. Opus cit, p. 38. Lima Barreto; em Canaã , de Graça Aranha; O ideólogo, de Fábio Luz; Regeneração, de Curvelo de Mendonça... 265

Sem dúvida alguma, os primeiros anos da República foram arrasadores. Até os anos 30, o Estado não promove nenhum tipo de política cultural, ao contrário do que ocorreu com a Monarquia. E Artur Azevedo, já em 1890, reivindicava da República um maior auxílio ao teatro: Se a República não fizer alguma coisa em benefício do nosso teatro, não sei a que extremos chegará a arte dramática no Rio de Janeiro! Há muito tempo o público letrado e inteligente não assiste a outra coisa no palco fluminense senão a um duelo entre os senhores Coliva e Carrancini. Estes dois cenógrafos apresentavam-se para deslumbrar as platéias por meio das mais extraordinárias apoteoses, e para isso largas ensanchas recebem dos empresários, cada qual mais disposto a consumir dinheiro. 266

Nos primeiros instantes da República, como já dissemos tão devastadores, anularam-se as ambições; destruíram-se hábitos citadinos; um tipo de euforia entorpecente apoderou-se da maioria da população; o Encilhamento fez o resto. Assim, para sobreviver à perturbação político-social, o teatro teve que prostituir-se. Prostituindo-se, ter-se-ia tornado totalmente estéril se, do tumulto das casquinadas, não tivessem emergido atores cômicos de amplos recursos – um Vasques, um Xisto Bahia (...) o mais representativo deles Artur Azevedo, escritor de incrível espontaneidade, que compactua com a futilidade do público, consentido em servir-lhe ao paladar pouco exigente, os pratos de sua suspeita predileção. 267

Não somente escritor de teatro, Artur Azevedo, líder teatral de seu tempo, produz abundantemente e por isso lhe atende Às necessidades econômicas. Traduz a paródia sem maior esforço. E o público, no grande vislumbre da época pelos monumentais truques da cenografia, aplaude-o incessantemente registrando de tal forma os raros fracassos como escritor teatral. O teatro, nessa época, assumia a função dos famosos romances de folhetins que no século XIX entusiasmavam os serões familiares e os cantos das ruas, como atestavam as charges.Como nos revela Cafezeiro, o folhetim e, depois, o teatro cobriam de certa forma a tarefa de complementar, infelizmente da maneira que podiam, a falha das escolas. O teatro desviou o local da reunião para a casa de espetáculos e, ao gosto de uma emoção sentimental, incluiu,

265 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 297. 266 Conforme Revista de teatro . SBAT (322) julho/agosto, 1961, p. 4. 267 OLIVEIRA, Valdemar de. Opus cit, p. 39-40. também, uma emoção visual, com certa recapitulação de fatos impressionantes, sem passar por uma reflexão crítica. 268

Podemos dizer que o que se representa é, até certo modo, um indício que, em sua índole de diversidades, manifesta uma espécie de vitrine da História: deliciosa repetição de pecados maliciosa e humoristicamente apreciados numa cumplicidade com os erros e ingênua compaixão pelos equívocos. 269 Artur Azevedo, além disso, de vez em quando, servia-se desta ilusória cenografia, desta cumplicidade com os equívocos, deste humor simples, ainda que constangido com o público a quem cognomina de público que topa tudo , mas, continua a escrever especialmente para esse público. Sua glória chega ao cume com o lançamento de A capital federal , aparentando uma mescla de vaudeville de Feydeau e comédia de costumes de Martins Pena. 270 Acreditamos que, com Artur Azevedo, fecha-se um período da história do teatro brasileiro. Elucidando este quadro, Décio de Almeida Prado declara que a onda de teatro musicado, ao se retirar, depois de tocada a última opereta vienense (não a vienense – cabe aqui a corrigenda, - mas, a francesa), deixou o nosso teatro dramático mais pobre e vazio do que nunca, sem público, sem autores, e até sem atores de drama e comédia. Cortadas as amarras com a vanguarda literária da Europa, estabelecidas mal e mal pelo Realismo, permanecemos à margem de toda revolução estética de fim do século XIX e princípios deste [século XX]. 271

No fim do século XIX, uma tendência literária, que, sempre ocorreu nas letras, começa a predominar. Eis que o pensamento europeu, essencialmente, o francês, propendeu para um clima negativista frente aos fatos acontecidos a partir da segunda metade do século XIX. Surgia uma atitude de exaltar a decadência, as ruínas das civilizações e que a inquietante atmosfera de decadência já se implantara em anteriores etapas da História da Humanidade. O acolhimento da idéia de decadência como estilo imediatamente relacionado com a obra de Baudelaire foi ativado pelo artigo de Bourget, publicado pela primeira vez na Nouvelle revue (1881). Nesse seu estudo denominado Théorie de la décadence , Bourget questiona o tema decadentista com base nos poemas baudelaireanos, ressaltando-o em

268 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 343. 269 Idem ,ibidem. 270 OLIVEIRA, Valdemar de. Opus cit, p. 40. 271 Décio de Almeida Prado citado por OLIVEIRA, Valdemar de. Opus cit, p. 40. termos de rejeição das hierarquias, unidades e restrições impostas pela tradição clássica. Depois de descobrir a emergência desse estilo, ao contrário dos críticos da época, Bouget considera válida a literatura decadente. Mesmo aceitando a noção de que a decadência constitui uma crise de ordem espiritual, uma “doença social”, ele vê na literatura sinais positivos dessa crise, segundo mostra seu livro Essais de psychologie contemporaine (1883-1885). 272

Sob o ponto de vista da psicologia social, Bourget aquilata o pessimismo europeu – incitado, segundo ele, em grande parte pela ciência – para concluir os diferentes aspectos em que esse pessimismo se manifestou. Bouget acredita que a reação pessimista resumiria na solidão e nas neuroses, uma resposta à tristeza na qual o artista revela sua vontade de escapar da realidade.273 Na mesma época de publicação da obra citada de Bourget, Verlaine escreveu para a revista Lê Chat Noir um soneto Langeur , que mais tarde se transformaria numa espécie de manifesto dos fundadores da revista Le Decadent , onde foi republicado em 1886. Em seu primeiro verso, Je suis l’Empire à la fin de la décadence 274 , Verlaine resumia todo o sentimento pessimista envolvido no juízo de decadência que estava sendo explorado literariamente. A decadência dos salões cariocas estampava-se em textos de João do Rio. Em Mascaramentos da cidade: poses da modernização , estudo de Edmundo Bouças, o autor assinala que, em meio ao repasse do Decadentismo, a literatura brasileira dos primeiros anos do século XX dramatiza as poses da modernização, encontrando, nos textos de João do Rio, acabamento altamente representativo .275 Fica evidente, no citado estudo, que, por meio da estética decadentista, o escritor absorveu narrações que, ao nortearem o ingresso de seus textos nos domínios teatrais postulados pelo dandismo – procuraram fazer que o cenário renovador da capital desdobrasse, na escrita, uma encenação paralela. Nessa dobra, João do Rio enfoca as transformações da cidade diante do script de consolidar o espetáculo por meio do qual a sociedade imaginava absorver as representações do moderno e do cosmopolita na percepção do espaço urbano decidido de forma cênica ou teatral. 276

Entendemos que tais posturas João do Rio legitimaria nas astúcias com que

272 LEVIN, Orna Messer. As figurações do Dândi: um estudo sobre a obra de João do Rio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. (Coleção Viagens da voz), p. 29. 273 Idem. 274 Eu sou o Império no fim da Decadência. 275 BOUÇAS, Edmundo. Mascaramentos da cidade: poses da modernização . O imaginário da cidade. Org.: Rogério Lima, Ronaldo Costa Fernandes. Brasília: Ed. UNB, 2.000, p. 159. 276 Idem, p. 138. textualizou as ribaltas do próprio teatro, na suposição de suas muitas máscaras, nas atuações camaleônicas com que expandiu para o interior do espaço ficcional a vertigem sofrida pelo Rio de Janeiro em face da cirurgia levada a termo por Pereira Passos, que pretendeu exibir nos trópicos um decalque da Paris reformada por Haussman. 277

Examinada sob a ótica do dandismo, a obra de João do Rio faz surgir novos dados para a compreensão da relação muitas vezes contraditória, entre renovação estética e projeto político. Aparecendo numa época de transição de uma sociedade latifundiária para uma sociedade urbana de industrialização nascente, preocupada com a organização da comunidade operária, a sua obra decadentista se coloca como um espelho da consciência dilacerada dos intelectuais diante dos antagonismos da sociedade em formação .278 Estudando os desvios escriturais assumidos por João do Rio no intuito de solidifica a leitura dos signos da cidade, segundo Edmundo Bouças em estudo, aqui, citado, Renato Cordeiro Gomes faz ver que o autor de A alma encantadora das ruas, Psicologia urbana, Dentro da noite, A bela madame Vargas , etc. reuniu, pelas ficções da transformação urbana, a avaliação da atuação dos próprios embustes. Renato Cordeiro Gomes evidencia que a cidade do Rio de Janeiro, também em metamorfose como um palco em que se monta uma máscara – figurino de uma mistificação do moderno, convoca o Artista para representar travestido de jornalista. Estilizando a experiência que se atrela ao trabalho, Paulo Barreto, aliás João do Rio, impõe-se a criação de ficções tratadas como se fossem verdadeiras, graças à utilidade prática dessas criações, máscaras como parte indispensável da vida. (...) – ele pode falar, em nome da cidade, na escrita que é também máscara. 279

Assim, João do Rio, traspassado pelo procedimento dessa cenografia, manifesta os enredos que demarcaram os espaços de uma capital partida entre a vitrine e o escombro , evidenciando, de um lado, o brilho intenso do triunfo republicano; de outro, a aglomeração periférica de uma cidadania excluída .280 Dessa forma, na crônica e no conto de João do Rio, fica evidenciado o confronto entre o arcaico e o moderno. Roberto Schwarz 281 aponta como esse aspecto dual adentra a poesia de Oswald de Andrade, que, sem malícia, confia na convivência regular entre

277 Idem, ibidem. 278 LEVIN, Orna Messer. Opus cit, p. 91. 279 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio. Vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume-Durá, 1996, p. 49. 280 BOUÇAS, Edmundo. Opus cit, p. 139. 281 SCHWARZ, Roberto. A carroça, o bonde e o poeta modernista . Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ambos os padrões. O conflito entre o bonde, a linha modernizante no Brasil, adquire uma forma de fachada. É o discurso empregado pela elite para traçar uma identidade civilizada para o Brasil. Ele introduz o traço positivista que regula o Estado Republicano de Floriano Peixoto ou está na política higienista de Barata Ribeiro que põe abaixo os cortiços; nas fachadas dos prédios, de estilos amalgamados, ou nas largas avenidas do Rio de Janeiro; nos jornais de circulação diária e de venda avulsa ou na moda das conferências; nos cinematógrafos; na eletricidade ou na máquina de escrever; no automóvel ou na máquina fotográfica... Somos cientes de que a lista exemplificativa expõe a modernização não somente como um discurso verbal, porém enraizada no Estado, no urbanismo, na introdução da indústria e do trabalho livre e nos bens de consumo – o que leva o intelectual brasileiro sentir-se moderno e cosmopolita. Com isso, pode, inclusive, mostrar a decadência do Ocidente pela penetração da massa. Cremos, aqui, ainda que longa, ser válida a citação de Antônio Sanseverino, do artigo Entre o arcaico e o moderno: a crônica de Machado de Assis e João do Rio , revelando-nos que João do Rio insiste na transformação do Rio de Janeiro em metrópole cosmopolita, Paris dos trópicos. A decadência está na massa, no bas fond parisiense, mundo do crime, da prostituição, das drogas a que os intelectuais decadistas organizavam excursões. No caso brasileiro, os intelectuais também confrontam-se com a massa local. O grupo de seletos da Academia Brasileira de Letras, como Bilac, vê a produção cultural de qualidade fora do trabalho cotidiano de jornal. Eles eram, na sua maioria, jornalistas, mas consideravam o jornalismo o ganha-pão para suprir as necessidades financeiras. Escreviam crônicas, com comentários sobre o cotidiano, mas não consideravam essa produção como literatura. Literatura era o artesanato da palavra. No isolamento, longe do barulho da rua, afastado da multidão, o poeta cultiva seu espírito e o expressa pela palavra. É o caráter puro e desinteressado da arte. Desse modo, a imprensa é vista como forma de decadência da produção cultural, separada da verdadeira arte. João do Rio destoa, pois, já na definição de seu texto, procura outro termo que não crônica, para mostrar sua diferença em relação a Machado de Assis e Bilac. Ele mistura ambas as esferas. Seu olhar cosmopolita vê o Rio de Janeiro a Paris decadente que possui seus marginais. Seduzido traz à tona os crimes e fatos estranhos do Rio. Ao fazer isso, ele expressa o fascínio decadentista que o mundo dos marginais desperta nele, mas traz também as contradições entre arcaico e moderno. Ele aplica a fórmula parisiense de Jean de Lorrain e acredita ver no Rio o mesmo bas fond . Ele mostra, no entanto, o Brasil colonial, que resiste e não cede à força das exposições universais. Ele mostra a face arcaica, brasileira e colonial, mas vê com óculos parisienses. 282

Sabemos que, em seu primeiro instante, o deslocamento do estilo decadentista para o Brasil esteve preso ao espírito geral de questionamento mantido pelas discussões

282 SANSEVERINO, Antonio. Entre o arcaico e o moderno: a crônica de Machado e João do Rio. CONEXÃO: comunicação e cultura/Universidade de Caxias do Sul. V. 1, nº 2(2002). Caxias do Sul: EDUSC, 2003, P. 46. abolicionistas e pelas polêmicas republicanas. A geração de jovens poetas, escritores da década de 1870, conscientes do declínio do método romântico, entusiasma-se por Baudelaire e assim rejeita o passado e se opor declaradamente aos valores morais enraizados na sociedade brasileira. Percebe-se nas primeiras manifestações de ruptura com a escola romântica a utilização dos motivos baudelairianos a uma certa busca da temática social, tentativa de compor uma poesia de caráter político-humanitário em concordância com o espírito da época. 283 Como afirma Orna Messer Levin, inicialmente, as paráfrases de Les fleurs du mal assinalam que a postura incitativa se exprimia de maneira mais realçada no trato sensual e pouco comum do amor. A autora, a partir da reflexão realizada acerca de Os primeiros baudelairianos 284 dar a conhecer que as leituras parciais da obra de Baudelaire, na sua maioria, tomaram imagens femininas de tal maneira que, acentuando a importância do corpo, derivam para um erotismo certamente inexistente nas composições francesas. O uso do sexo e do amor carnal a fim de chocar os leitores acostumados às idealizações românticas fez parte das amostrar de rebeldia em escritores como Carvalho Júnior, cujos poemas assinalam a presença hipertrofiada do componente erótico. 285

Utilizando-nos da exemplificação de Levin, transcrevemos uma quadra de Carvalho Júnior do poema Profissão de fé , que assinala o princípio contestador, sustentado fundamentalmente nas irreverências intelectuais de Baudelaire, ao mesmo tempo em que, ao exacerbar o tratamento do amor carnal, serve como uma espécie de manifesto anti-romântico nacional: 286 Odeio as virgens pálidas, cloróticas Beleza de missal que o romantismo Hidrófobo apregoa em peça góticas, Escritas nuns acessos histerismos. Registra-se, via Bradbury e McFarlane, o fato de Baudelaire ser o precursor das tendências modernas, na acepção autêntica da expressão, a anuir a postura desclassificada, desestabelecida do poeta, que já não é visto como o celebrador da sua

283 Antônio Cândido. Os primeiros baudelairianos . Educação pela noite e outros ensaios . São Paulo: Ática, 1988. 284 LEVIN, Orna Messer. Opus cit, p. 59. 285 LEVIN, Orna Messer. Opus cit. p. 59. 286 Idem, ibidem. cultura, a que diz respeito, acolhendo a miséria e a repugnância do cenário urbano. Os estudiosos aludidos assim se manifestam: Baudelaire provavelmente é o primeiro a retratar o artista moderno e decadente como um indivíduo com um sistema nervoso hipertrofiado. Mas para ele, os nervos são motores de energia criativa, de gigantismo, estrindência, multiplicação, além de registros ultra- sensíveis das sensações. 287

Recorrendo-se a História e a Crítica Literária, vamos constatar marcas de degeneração já surgidas, no espaço das Artes, em épocas anteriores ao Decadentismo. Vanda Rocha em sua dissertação Five o’clock, de Elysio de carvalho: uma leitura decadentista revela que foi assistindo a esse esfacelamento de sua época que a literatura barroca se impôs produzindo alegorias, metáforas mórbidas, denunciando ruínas e composições num mundo fragmentado . Tal desintegração existente no século XIX é atraída de modo espantoso. A citada autora prossegue dizendo que, enquanto o símbolo supõe a totalidade harmoniosa e uma concepção do sujeito individual em sua integridade, a visão alegórica não pretende qualquer totalidade, mas instaura-se a partir de fragmentos e ruínas. 288 Enfim, podemos garantir que os movimentos decadentistas, ao tom fin de siècle , atingiram o nosso teatro: sendo sua maior vítima o poeta Goulart de Andrade, cuja sensibilidade doentia se espraiou em alexandrinos de má literatura , como nos diz Sábato Magaldi. É ainda o crítico Magaldi que, logo depois, vai complementar: Deveria ser uma natureza delicada e afeita a estranhas sonoridades. Ele se sente bem nas regiões dúbias, lidando com ciúmes mórbidos e estóicas renúncias. Sempre o verso, algo rebuscado, pouco útil ao diálogo e sem se prestar à ação dramática. Faltou-lhe a vocação específica do palco, e a sua poesia não tem valor. Por que não omiti-lo, se das obras que escreveu nenhuma resiste à crítica? Apenas porque Gouçart de Andrade é sintomático de uma tendência teatral, o dramaturgo que exprimiu, num extremo de irremediabilidade cênica, o gosto deliqüescente dos sentimentos serôdios. 289

A duvidosa inspiração literária reprova a existência cênica do teatro de Goulart de Andrade, como afirmara Magaldi. 290 Na obra já citada, Cafezeiro revela que Goulart de Andrade seja, provavelmente, o mais decadente dos decadentistas do teatro

287 BRADBURY, Malcolm & McFarlane, James. Modernismo: guia geral . São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 173. 288 ROCHA, Vanda Maria Sousa. Five o’clock de Alysio de Carvalho: uma leitura decadentista. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. 289 MAGALDI, Sábato. Opus cit, p. 179. 290 Idem, p. 181. brasileiro. Os seus alexandrinos estão sempre a serviço de um ciúme violento ou de um velado complexo de Édipo, como acontece em Renúncia. 291 Em relação a João do Rio, Magaldi afirma que o dramaturgo, aliás arguto cronista, viveu na atmosfera crepuscular e o que o distingue é a sátira aos espaços decadentistas, a afirmação de uma autenticidade profunda, nascida em meio ao brilho fútil e ao jogo de palavras .292 Para mais adiante firmar que o uso renitente do paradoxo, arma desferida contra os erros sociais, aproxima-o inevitavelmente de Oscar Wilde. 293 João do Rio, pseudônimo de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Barreto, ou Paulo Barreto, assumindo a postura do flâneur , é para o Rio de Janeiro a imagem que Baudelaire foi para Paris. Seguindo Baudelaire, João do Rio traduz a dimensão contraditória da modernidade. Uma modernidade que apresenta em si um firme processo de tensão e contradição. A respeito deste autor, podemos afirmar que, em sua obra, transparece o objetivo em buscar pelas ruas da cidade as multidões anônimas, que alta sociedade acha melhor denominar de desordeiros. Esses anônimos que sempre foram ponto de preocupação governamental, não no que se refere à política social. Eram vistos como ameaça à ordem, uma vez que retratavam a barbárie , o atraso por exibirem um padrão de costumes e cultura longe do parisiense, que estava para se tornar oficial. João do Rio mostra-nos um Rio de Janeiro sui generis . Basta atentarmos ao texto de Michel de Certau Andando na cidade 294 que perceberemos como a prática da flanerie é fundamental na vida da cidade moderna, opondo-se ao voyerismo . O voyer ao olhar a cidade do alto instala-se à distância desta, de seus habitantes e de sua vida, olhando-a de cima para baixo, como um elemento acima e, então, fora da cidade. O flâneur , contrariamente, é o que olha a cidade de baixo de suas ruas caminhando por estas. Tal caminhar é a forma básica de conhecer a cidade. Segundo um flâneur João do Rio vai nos apresentar as duas faces do Rio de Janeiro: a da cidade belle époque ironizada por ele devido suas aspirações européias e a da cidade noturna que lhe causava horror por sua miséria extrema.

291 CAFEZEIRO, Edwaldo. Opus cit, p. 363. 292 MAGALDI, Sábato. Opus cit, p. 181. 293 Idem, ibidem. 294 CERTAU, Michel. Andando na cidade. HOLANDA, Heloísa Buarque de. (org.). Cidade. Rio de Janeiro: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico , nº 23, 1994, p. 21-23. Assim o trabalho de João do Rio é uma expressão pela qual se pode concluir que, ainda que planejasse, o projeto de reforma urbana de Pereira Passos não elimina do centro do Rio de Janeiro os obstáculos inerentes à cidade. Perambulando pelas ruas do Rio de Janeiro, no centro ou no subúrbio, João do Rio torna-se o cronista da vida carioca , assistindo às transformações da cidade. Gilberto Amado nos fala sobre João do Rio ser o criador de um estilo; é o anotador incomparável dos acontecimentos diários; é o fixador atilado do esquisito; do raro, das emoções inquietas da alma contemporânea... 295 enquanto Brito Broca encontra influência de Oscar Wilde no cronista João do Rio no tipo requintado, aristocrático, displicente, meio cínico, que ele compôs procurando, até certo ponto, irritar, chocar, escandalizar o meio carioca do 1900 , assim como o autor de Dorian Gray o fizera na Londres Vitoriana. 296 Broca aponta João do Rio como historiador de uma época , revelando uma cidade que não queria se ver nem ser vista por meio de reportagens que motivam grande agitação. João do Rio inova a imprensa literária transformando a crônica em reportagem. Pode-se constatar algumas reportagens líricas e com traços poéticos, somando-se a estas a prática do repórter que freqüentando salões, varejava também as baiúcas e as tavernas, os antros do crime e do vício (...) a crônica deixava de ser fazer entre as quatro paredes de um gabinete tranqüilo, para buscar diretamente na rua, na vida agitada da cidade, o seu interesse literário, jornalístico e humano. 297

Portanto, o flâneur-cronista saía às ruas captando a alma carioca para lançá-la em suas crônicas. Desta maneira este flâneur rompe com a tradição da leitura de gabinete subindo morros a buscar aspectos da vida carioca sob visão irônica e crítica. É notório que a crítica mais contundente de João do Rio incide no mundo moderno que privilegia a imitação à criação, revelando um homem artificial e, por conseguinte, fazendo-o perder sua consciência crítica e individual. Agindo de tal modo, João do Rio denuncia as precárias condições de vida desse mundo e, ao mesmo tempo, o ar artificial dominante nas classes de maior poder. O cronista evidencia as imagens da modernidade adentrando no mundo da suntuosidade, e além disso num mundo de trabalho e penúria,

295 Gilberto Amado. MAGALHÃES Jr., Raimundo. A vida vertiginosa de João do Rio . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p. 55. 296 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900 . Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 111. 297 Idem, p. 247. procurando por todo o tempo exibir os aspectos contraditórios da modernidade do Rio de Janeiro. É João do Rio que diz (...) a rua, é um fator de vida das cidades, a rua tem alma! 298 Ele entende a cidade como um texto. Para ele, a cidade é um espaço representacional, porque gera símbolos e significados ativos na formação de uma identidade moderna. É ainda João do Rio quem nos fala: para compreender a psicologia da rua não basta gozar o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes a arte de flanar (...). 299

3.3 – Panorama do teatro brasileiro: na cadência da República Velha Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar

Oswald de Andrade. Canto de regresso à pátria.

Entre 1889 e 1930, basicamente podemos asseverar que a sociedade brasileira se encontrava assentada sobre a economia de exportação do café. É a produção e a exportação do café que, sem dúvida, se constitui na atividade fundamental do país. A partir da economia do café se organizam as classes sociais e o sistema político brasileiro do período. A indústria encontra-se presente de uma forma totalmente dependente da atividade agrícola exportadora: O país existe dentro do sistema econômico mundial na medida em que é o produtor de um bem que é demandado ocasionalmente, e, através da venda desse produto no exterior, gera os recursos com os quais pode adquirir uma série de outros bens no exterior e que serve ao consumo da população. 300

Tal consumo da população é complementado por alguns artigos produzíveis dentro do Brasil, contudo sem grande relevância. A parte principal da atividade econômica centrava-se na produção de produção de produtos exportáveis e, essencialmente, produtos agrícolas. Vê-se que, dessa forma, uma sociedade que se constitui nesses suportes resultaria numa sociedade bastante tolhida, muito comedida, sem nenhuma probabilidade de

298 RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987, p. 4. 299 Idem, p. 5. 300 ESTEVAM, Carlos. Brasil 1889-1975 – Desenvolvimento histórico . Revista Dionysos. representar qualquer função de importância na ordem internacional – o que torna essa sociedade subordinada às decisões adotadas pelo sistema internacional. Cremos que todas as formas de ocupação que tentassem, de algum modo, romper esses obstáculos encontravam uma reação bem intensa na existência desse setor agro- exportador que sem aptidão de produzir esses recursos no exterior possibilitava que toda a economia ficasse voltada para o atendimento dos seus interesses. Estevam nos alerta que as iniciativas de outras modalidades econômicas ficavam amordaçadas, paralisadas ou inibidas porque nenhum outro tipo de atividade tinha condições de substituir o café. Essa situação determinava o modo pelo qual se estruturava o sistema político. Dada a importância vital do café para a subsistência do país era vital também que o poder estivesse ocupado pelos representantes políticos desses fazendeiros do café. O café não apenas dominava a vida econômica, como também a vida política do país. Como essa classe proprietária de fazendas de café e de casas exportadoras de café constituía na realidade um grupo social de proporções bastante reduzidas, o sistema político que permitia a dominação desses setores não era, nem precisava ser, e nem podia ser um sistema político de tipo democrático. 301

Realmente, o que existia era um tipo de clube trancado do qual tomavam parte número escasso de sócios que se revezavam em verdadeiro rodízio na prática do poder, negando chance de participação aos demais setores da sociedade, fundamentalmente a classe média que, em várias oportunidades, especialmente durante a década de 20, vai fazer esforço no sentido de abrir o setor político para poder participar um pouco mais do processo. 302 As revoluções tenentistas ocorridas na década de 20 têm uma significação de estímulo das classes médias das cidades no propósito de recusar aquele sistema excludente, oligárquico e cerrado, de tal modo que os desejos e aspirações de outros segmentos sociais pudessem ser, de alguma maneira, apreciados pela vida política do país. Oscilações vertiginosas 303 - expressão que parece mais adequada para situar a trajetória do teatro brasileiro no século 20 é uma afirmação forte supondo um movimento constante ao redor de um eixo duplo, como nos diz Tânia Brandão. Este movimento poderia ser utilizado para assinalar – em uma imagem veloz e direta – a essência de nosso

301 Idem, p. 12. 302 Ide, ibidem. 303 Expressão cunhada por Tânia Brandão. Teatro brasileiro do século 20: as oscilações vertiginosas. Artigo na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p. 301. teatro nesse século, sem dúvida o século em que efetivamente aparece o que se poderia chamar, sem hesitação, como teatro brasileiro. É sabido e fato bastante divulgado, até mesmo fora do Brasil, a omissão dos modernistas quanto ao teatro, que não mereceu nem mesmo atenção entre as manifestações artísticas da Semana de Arte Moderna. Em obra sobre o teatro brasileiro, afirma o crítico italiano Mario Cacciala: la ventata modernista, Che sconvolse il campo della letteratura e delle arti brasiliane a partire della celebérrima Semana de Arte Moderna del 1922, transcuro il teatro e su di esso ebbe repercussione assolutamente insignificante. 304 Sábato Magaldi faz afirmação análoga: não houve uma manifestação artística que deixasse de respirar o ar de liberdade trazido pelo movimento modernista. Infelizmente só o teatro desconheceu o fluxo renovador e foi a única arte ausente das comemorações da Semana. 305 Em 1928, alguns anos após a Semana de Arte Moderna, Walter Benevides – um colaborador da revista Festa – fazendo alusão aos eventos de 1922, pela primeira vez cita o descaso que o gênero dramático vinha sofrendo em comparação a outros aspectos da criação literária modernista: um Sílvio Romero de daqui 30 anos poderá fixar o verdadeiro início do Modernismo no Brasil em 1922. Foi a época da brigaria e das descomposturas. 1922 – no entanto, em seis anos nada se fez pelo teatro. 306 Nota-se que a arte dramática não teve, por conseguinte, representação entre os eventos da Semana e nem recebeu alvitres de renovação no primeiro periódico do grupo modernista, a revista Klaxon , que, entretanto, sem mencioná-lo diretamente, usa dois nomes de atrizes da época – uma de teatro, Sarah Bernhardt; e outra de cinema, Pearl White, como indicadores do passado e do presente. Em tal contraposição, salienta o cinema como arte representativa do século XX, entre outros fatos citados como sinais de modernidade. A revista Klaxon assim se posiciona: Klaxon sabe que o cinematógrafo existe. Pérola White é preferível a Sarah Bernhardt. Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnica. Pérola é raciocínio, instrução, esporte,

304 CACCIAGLIA, Mario. Quatro secoli di teatro in Brasile . Roma: Bulzoni Ed., 1980, p. 114. 305 MAGALDI, Sábato. Panorama do teatro brasileiro . São Paulo: SNT/FUNARTE. 2ª edição, s/d. (reimpressão da 1ª edição de 1962), p. 181-2. 306 Teatro brasileiro . Festa . Rio de Janeiro, 1º de fevereiro de 1928, p. 16. rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século XIX. Pérola White = século XX. A cinematografia é a criação artística da nossa época. É preciso observar-lhe a lição. 307

No manifesto à poesia Pau-Brasil, em 1924, Oswald de Andrade delineia, em frase substanciada, uma direção para o teatro de vanguarda: Ágil o teatro, filho de saltimbanco. Ágil e ilógico. 308 Do aprofundamento das concepções desse manifesto e da radicalização de algumas posições resultou o movimento Antropófago, que mais tarde liderou. Revolucionário na poesia e na prosa, Oswald de Andrade o foi também no teatro. Seus primeiros passos nessa área surgiram em parceria com Guilherme de Almeida: em 1916, lançaram, em francês, Mon coeur balance e Leur Ame – peças que, segundo o próprio Oswald, foram justamente colocadas de lado pela crítica. EM 1934, lançou O homem e o cavalo e, em 1937, A morta e O rei da vela, peça em que inovou temática e tecnicamente. O rei da vela passa a fazer parte da história do teatro brasileiro trinta anos depois de sua publicação, em São Paulo, com a montagem do Grupo Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. Um tom sarcástico marca todo o texto, que traça um quadro das relações sociais de exploração no Brasil. Baseando sua análise nas idéias marxistas, Oswald de Andrade criou uma peça extremamente contundente, capaz de expor com ímpeto corrosivo e criatividade a decadência moral das classes dirigentes brasileiras. Com a palavra, José Celso Martinez Corrêa, diretor da primeira montagem dessa peça, em 1967: Naquele tempo, a burguesia nacional ainda não era dona de indústrias pesadas, contentando-se em desenvolver uma indústria de velas , metáfora macabra de um incipiente capitalismo. Oswald de Andrade mergulhou de cabeça, tentando fazer uma síntese afetiva e conceitual do seu tempo. Daí a ridicularização dos agiotas burgueses, dos intelectuais bajuladores e dependentes de um sistema econômico apoiado no capital estrangeiro. 309

Oswald de Andrade tornou-se singular pela radicalização de suas postulações estéticas no decorrer dos anos 20. Mas, seu teatro só aparece mais tarde, no vigor das lutas sociais e políticas que agitam o Brasil na década de 30.

307 Klaxon, nº 1 de 15/5/1922. Segundo LARA, Cecília de. De Pirandello a Piolim: Alcântara Machado e o teatro no modernismo. Rio de Janeiro: INACEN, 1987, p. 16, embora assinatura, sabe-se que o manifesto foi redigido por Mário de Andrade. 308 Manifesto à poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, foi publicado no Correio da Manhã , Rio de Janeiro, 18/3/1924, Ano XV. Vol. XXIV, p. 289-90. Revista de livro , INC, nº 16, dezembro de 1959, p. 187. 309 CORRÊA, José Celso Martinez. Manifesto-programa de O rei da vela . São Paulo, setembro de 1967. Existe na crítica brasileira uma propensão a dividir a obra de Oswald de Andrade em duas fases: a dos anos 20 e a dos anos 30, quer dizer, antes e depois do marxismo. Eduardo Duarte nos aponta que isto se deve ao próprio Oswald, que renegou bombasticamente parte de sua produção anterior no conhecido prefácio a Serafim Ponte Grande , publicado em 1933. Ao longo do tempo, a crítica e a historiografia se encarregaram de ir lentamente deslocando do centro da obra oswaldiana não só o teatro, mas igualmente os dois volumes de Marco zero . Os escritos vindo a público entre 1930 e 1945, por evidenciarem as marcas da guinada à esquerda, foram empurrados para uma espécie de vala comum dos textos rotulados como “menores” ou formalmente conservadores em função de estarem a serviço de um determinado projeto político, como se os escritos dos anos 20 também não possuíssem sua faceta política. 310

Eduardo Duarte, ainda nesse artigo, deixa evidente que, atualmente, pensa-se na possibilidade de uma outra reflexão, menos dicotômica e mais contrária, possivelmente, ao reducionismo. Diz ele que: opor vanguarda a engajamento implica não levar em conta a demolição dos valores patriarcais e burgueses presente nos escritos dos anos 20, que antecipam a ruptura mais radical operada na década seguinte. Implica, por outro lado, desconsiderar, por exemplo, todo o aparato formal que sustenta o rei da vela , texto construído a partir de inovações simplesmente revolucionárias para o teatro brasileiro daquela época. 311

Oswald de Andrade foi a voz mais radical do primeiro momento modernista – isto é, período abrangente de 1922 a 1930. Cremos que seus artigos, romances, manifestos, poemas, ensaios – e o seu teatro – foram grandes demonstrações daquilo que formou o primeiro postulado do modernismo: ver com os olhos livres , como pretendia Marinett , autor do Movimento Futurista. Na Antologia da literatura brasileira , A. Medina Rodrigues declara que saudavelmente anarquista, Oswald de Andrade faz da sua vida e de sua obra um permanente exercício de demolição e, mais adiante, afirma que satirizado, debochado das instituições e de seus monstros sagrados investiu contra todos aqueles que fazem da vida um campeonato de tédio edificante. 312 Ao escrever O rei da vela , Oswald de Andrade deixa a dramaturgia brasileira em igualdade de condições com o experimentalismo mais adiantado em termos internacionais. Apesar dos instantes em que cai num discurso panfletário característico

310 DUARTE, Eduardo de Assis. A antropofagia encontra o marxismo: notas a propósito de O rei da vela, de Oswald de Andrade . Aletria. Revista de estudos de literatura. 7 – Teatro e crítica teatral. Belo Horizonte, CEL – FALE/UFMG, 2000, p. 50. 311 Idem, p. 50-1. 312 RODRIGUES, A. Medina. Antologia da literatura brasileira . São Paulo: Marco Editorial, 1979, p. 113. da prática comunista da época (inserido enunciados ideológicos inteiramente desnecessários e que podem mesmo ser separados do texto sem dano de sua unidade), devemos admitir a modernidade de seu esquema construtivo, que guarda inúmeras semelhanças com o teatro europeu de vanguarda do início do século e com trabalhos de Piscator, Brecht e Meyerhold. 313 Percebe-se que, ao aproximar a concepção teatral vanguardista a um enfoque dialético do processo histórico brasileiro, num de seus instantes mais fundamentais, Oswald de Andrade constrói um texto comprometido com a ruptura, tanto na expressão quanto no pensamento. Sábato Magaldi nos esclarece que são numerosas as razões para se atribuir a o rei da vela o papel de fundador de uma nova dramaturgia no Brasil: escrito de 1933 e publicado em 1937, o texto significou exemplo inaugural de um teatro nascido segundo os fundamentos do modernismo; ao invés de uma análise rósea da realidade nacional, ele propõe uma visão desmistificadora do país; a paródia substitui a ficção construtiva, (...) em lugar do culto reverente ao passado privilegia-se o gosto demolidor de todos os valores... 314 Assim, renega-se como diz Magaldi, conscientemente o tradicionalismo cênico, para admitir a importância estética da descompostura. 315 Grande observador do seu tempo, Oswald de Andrade vê como as classes privilegiadas buscam a preservação de seus interesses. A crise internacional de 1929 derrubou a antiga aristocracia paulista do café, agravando sua questão a derrota da Revolução Constitucionalista de 1932. O ímpeto de espinafração do texto O rei da vela faz-nos sentir a carnavalização do Brasil colonizado apresentado aí por Oswald. Percebe-se que, sem contemplação, ele condenava o simulacro de História que era a realidade brasileira. 316 O Rei da vela é, segundo David George, a primeira aplicação da metáfora antropofágica à linguagem teatral. 317 Essa metáfora serve de arma contra as classes que se favorecem com a dependência e, assim, vai constituir-se como elemento fundamental de conscientização. A peça trata de uma época e de um espaço específico: São Paulo e

313 DUARTE, Eduardo de Assis. Opus cit, p. 56. 314 MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira . São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 3 (Coleção Estudos). 315 Idem, ibidem. 316 Idem, p. 8. 317 GEORGE, David. Teatro e antropofagia . Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Global, 1985, p. 33. Rio de Janeiro da década de 30. Todos os setores sociais estão retratados de modo direto ou indiretamente como: resíduos da República Velha (a oligarquia cafeeira decadente), a burguesia, o clero, os intelectuais, os militares, os imigrantes (especialmente italianos), o proletariado urbano e rural, os pobres e marginalizados, o arquétipo do capitalista americano. Os acontecimentos históricos também têm seu papel: a Crise de 29, o declínio da economia baseada na monocultura do café, a revolução de 30, a passagem da hegemonia econômica dos ingleses para os americanos. A polarização política da época também se manifesta, da consciência social revolucionária ao integralismo. Há premonições de acontecimentos futuros: o advento do Estado Corporativista (o Estado Novo de Vargas) e o estabelecimento das companhias multinacionais. A apresentação da totalidade do conjunto sócio-econômico, político e histórico é estruturada em torno de uma concepção antiimperialista radical do racionalismo econômico. 318

No espaço compreendido entre a revolução antropológica e filosófica demonstrada nas proposições de 1928/29 e a militância mais expressamente política dos anos 30, o pensamento oswaldiano adentra numa perspectiva de radicalização , centrada na supremacia do fator econômico. Nessa curta duração de tempo, acontece a crise mundial decorrente do crack da Bolsa de New York e a comoção financeira do escritor que, até então um rico herdeiro de fazendas de café, se tornará o primeiro aristocrata brasileiro a aderir ao comunismo. Juntamente com a escritora Patrícia Galvão – Pagu-, em 1931, Oswald edita o jornal panfletário O homem do povo , que resistiu a poucos números em função da crítica áspera ao sistema econômico e político em vigor no Brasil. Em 1933, surge o romance experimental Serafim Ponte Grande , em cujo prefácio renega a vida e a literatura burguesa e declara sua decisão de ser o casaca de ferro da revolução proletária . 319 Eis aí o contexto de O rei da vela. O teatro, sem participar das discussões e controvérsias nos primeiros momentos do movimento de renovação, não deixa de estar manifesto de modo indireto, aparecendo nas práticas em prosa de marca dramática, como o texto de Sérgio Buarque de Holanda, Antinous, episódio quase dramático , em Klaxon 320 e o episódio de Mário de Andrade, Moral cotidiana. Tragédia (juro que é tragédia) , publicado na revista Estética. 321 Sabe- se ainda que Antônio de Alcântara Machado fez duas intervenções no campo: uma de

318 Idem, p. 34. 319 ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Global, 1984. 320 Sérgio Buarque de Holanda publicou Antinous, episódio quase dramático , em Klaxon nº 4. 321 Mário de Andrade publicou Moral cotidiana. Tragédia (juro que é tragédia) , em Estética nº 2, p. 1, jan/mar 1925, Ano 1, v. 1. caráter satírica, sobre D. João VI, publicada no Jornal do Commercio 322 e outra, a sério, inédita, tornada pública postumamente, em ato único O nortista . Do mesmo modo como aconteceu com Mário de Andrade, a intimidade de Antônio de Alcântara Machado com a forma teatral está latente em muitos contos, entretanto não se cristalizou em produção significativa. A visão teórica que possua bem podia ter levado esse ficcionista, que empregou muitos de seus princípios aos contos, a entradas práticas também no campo da criação de obras dramáticas. São Paulo, nos anos 20, ainda que fosse uma cidade provinciana e controlada por elites dominantes vindas da aristocracia do café, foi a sede da Semana da Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal, em 1922. Sem dúvida, uma pequena parte da burguesia rural paulista, representante de pensamentos novos e em maior contato com a Europa – devido a viagens de lazer e de estudo -, foi a patrocinadora da Semana. 323 As elites intelectuais, que permaneceram no poder até 1930, juntaram na cidade que mais imigrantes recebeu na América Latina vários elementos de vanguarda, sedentos por derrubar uma arte considerada retrógrada e acadêmica. Embora a Semana de Arte Moderna tenha ocorrido em pleno Teatro Municipal de São Paulo, o teatro esteve – como já dissemos-, curiosamente ausente dela. Reagindo contra o atraso do teatro brasileiro e o descaso para o mesmo, surge a figura de Renato Viana – ator, dramaturgo, diretor, professor – que batalhou por escolas de teatro para a formação de atores. Era grande admirador de Ibsen e Jacques Copeau. Segundo Gustavo Dória, Renato Viana exemplificava o: entusiasta do teatro de idéias, estudioso de problemas sociais, tinha prazer em oferecer tais problemas ao exame das platéias através de seus originais que, entretanto , não atingiram o nível que seria esperado em que possuía tão boa formação (...). Mas não era um ator. Era um excelente mestre, orientador (...) e sabia, como somente ele no seu tempo, preparar um espetáculo, debruçar-se sobre um texto, analisá-lo para levar à cena, determinar uma montagem, iluminar um palco. 324

Renato Viana junta-se a dois participantes da Semana de Arte Moderna, o escritor Ronald de Carvalho e o compositor Heitor Villa-Lobos, e os três fundam um movimento denominado Batalha da Quimera , que encenou, ainda em 1922, o espetáculo A última encarnação de Fausto , em que, consoante eles, pela primeira vê,z

322 A ceia dos não convidados. Jornal do commercio. São Paulo: 22 de janeiro de 1927. 323 CARONE, Edgar. Brasil – anos de crise. São Paulo: Ática, 1990. 324 Citado por DELACY, Monah. Introdução ao teatro . Petrópolis: Vozes, 2003, p. 146. no Brasil, tentava-se o teatro de síntese e da aplicação cênica do som e da luz, como valores da ação dramática, a valorização dos planos e da direção do espetáculo. 325 Apesar de ter sido frustrante essa tarefa, Renato Viana não desanimou, fundando anos mais tarde, no Rio de Janeiro, A caverna mágica onde participou, como galã, Paschoal Carlos Magno. Cria, em 1932, o Teatro de Arte e apresenta, no Teatro João Caetano, O homem silencioso dos olhos de vidro , que tinha no elenco Dulcina de Moraes. Dois anos depois, no Teatro Cassino, apresenta ao público seu projeto mais sequioso: o Teatro escola , com verba do Ministério da Educação e Saúde e da Prefeitura do Distrito Federal, cuja meta era a realização de uma temporada anula de seis meses, com um repertório de 12 peças; manutenção de curso de cultura popular; realização de apresentações populares gratuitas; preços ínfimos; lugares reservados para escolas e instituições mantidas pelo Estado; aproveitamento dos alunos formados pela Escola Dramática Municipal e excursão anual pelo Brasil. Registra-se também a importância de Álvaro Moreira, que inaugura o grupo Teatro de Brinquedo a 10 de novembro de 1927, estreando no Cassino Beira-Mar a peça Adão, Eva e outros membros da família . Foi, sem dúvida, um grande sucesso. O público interrompia a toda hora com aplausos calorosos; a crítica demonstrava deslumbramento com a inteligência e a sutil ironia; e o “a vontade” dos atores, entrando e saindo pela platéia, ou simplesmente sentando nos degraus de acesso ao palco, dialogando com quem estava em cena, evidenciava a proposta pretensiosa, audaciosa mesmo de Álvaro Moreira. Entendemos que ele aspira a um teatro de vanguarda. Contava com apoio de um Lúcio Costa e Luiz Peixoto para fazer o “decor”, além de Di Cavalcanti. Buscava inspiração no teatro francês, mas também no Ateliê de Paris, o Teatro degli Indipendenti de Milão, o Teatro Vila Ferrari de Roma, dos teatros de Brescia, Rigel, Moscou etc. A experiência de Álvaro Moreira, bem contíguo ao modernismo, pretendeu ser a de um teatro social sem ranço, no propósito de que o autor desejava fazer um teatro de discussão leve. Porém o interessante é que o próprio Álvaro Moreira se estarrece: Que espécie de público é esse que insiste em não ir embora não encontrando chanchada? E

325 PRADO, Décio de Almeida. Apresentação de Teatro brasileiro moderno . São Paulo: Martins, 1956. ele continua: Dessa vez a elite passará para o lado da maioria. Aí está uma crise encantadora. 326 Elementos expressivos da dramaturgia brasileira pertenceram ao Teatro de Brinquedo, entre os quais Joracy Camargo e Bibi Ferreira. Conseguiu ainda reunir a seu lado também Felipe de Oliveira, Olegário Mariano, Antônio de Alcântara Machado, Osvaldo Goeldi, Alvarus Cotrim, Gilberto Trompowski, Heckel Tavares, Flávio de Andrade, René de Castro, Sérgio da Rocha Miranda, Rodrigo Otávio Filho, Atílio Milano entre outros, que notabilizaram essa iniciativa pioneira e triunfante. O Brasil, na década de 30, passou por revoltas e revoluções que cercaram todo o país, culminando com a subida ao poder de Getúlio Vargas. Podemos enumerar a Revolução de 30, a Revolução Constitucionalista de 1930, a crise do tenentismo, a Intentona Comunista de 1935, a banição do Integralismo. A sucessão presidencial no Brasil assumiu aspecto de autêntica crise. O sustentáculo São Paulo - Minas Gerais, que coordenava a alternância de seus representantes na presidência do país, apontava-se para fazer mais um presidente da política do café-com-leite . Júlio Prestes – candidato de São Paulo – era apoiado oficialmente pelo presidente Washington Luís. Contra isso, as forças políticas de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba – unidas á chamada Aliança Liberal – lançaram a candidatura de Getúlio Vargas. Foi eleito Júlio Prestes. A Aliança Liberal se revolta e depõe Washington Luís para não permitir a posse de Júlio Prestes. Getúlio Vargas assumiu a presidência, alterando o regime para uma ditadura que durou de 1930 a 1945. Dentro desse espetáculo de violência – prisões arbitrárias de contrários ao novo regime e de intelectuais, exílios, censura – mais o prenúncio de uma nova Guerra Mundial, viria à luz a Revolução Espanhola, com a causa Republicana levando à Espanha pessoas simpatizantes de todo o mundo; o teatro no Rio de Janeiro conhecia uma fase brilhante de alguma crítica à ordem burguesa, como por exemplo, a estréia de Deus lhe pague , de Joracy Camargo, que satiriza a questão da filantropia, denuncia a má distribuição de renda, a exploração do trabalho servil, a prepotência dos patrões, montada pela companhia do ator Procópio Ferreira.

326 Citado por DELACY, Monah. Opus cit, p. 148. O Brasil, sob a ditadura do Estado Novo (1937-1945), assiste a seu teatro transformar-se na década de 40. A disciplina de montagem, a iluminação correta, a concepção moderna do cenário e, principalmente, a presença do diretor foram conquistas que ganharam brilho após a Segunda Guerra Mundial. Como sabemos, antes disso, os autores dramáticos limitavam-se a escrever comédias rápidas ou comédias de costumes. As peças estrangeiras, exibidas por companhias que se apresentavam em São Paulo ou no Rio de Janeiro, sustentavam a idéia de um teatro sem complicações, para platéias reduzidas. Acerca do público de teatro que assistia às encenações estrangeiras e brasileiras até os anos 40, Maria Helena Pires Martins explica: excetuando-se a classe dominante dos proprietários das grandes fazendas de café, o restante do povo brasileiro, nas primeiras quatro décadas do século XX, não se constituía numa platéia adequada a grandes realizações. 327 Neste mesmo estudo, a autora acrescenta que as próprias cidades brasileiras, mesmo o Rio e São Paulo, ainda eram bastante provincianas e não forneciam temas para o desenvolvimento da dramaturgia. 328 Maria Helena Pires Martins revela, a propósito da subsistência, por aproximadamente quarenta anos, de um teatro que privilegiou a comédia e a chanchada, que: a chanchada é composta dos seguintes ingredientes: o humor grosseiro, sem sutileza, criando situações maliciosas que beiram a pornografia; a graça provinda do deboche; o empenho em conseguir o riso a qualquer custo. Essa fórmula sustentou muitas gerações de artistas, mas tornou-se uma espécie de vício que passou a influir na expressão artística mais séria. Outro aspecto da chanchada é conter sempre uma espécie de complexo de inferioridade latente, pois ao satirizar seja política, seja social, cria sempre uma arma de ridículo ao redor da realidade nacional. 329

O desencadeamento da Segunda Guerra Mundial, em 1939, indo até 1945, marca a oportunidade de desenvolvimento que surgiu para o teatro brasileiro. Vários homens de teatro chegavam ao Brasil, munidos de técnicas de montagem inéditas entre nós. Destacam-se Zbigniew Ziembinski, em fuga do nazismo, Alberto D’Aversa, Gianni Ratto, Adolfo Celi, Maurice Vaneau.

327 MARTINS, Maria Helena Pires. Nelson Rodrigues . São Paulo: Abril Educação, 1981, p. 98. 328 Idem, ibidem. 329 Idem, p. 99 O aparecimento de grupos de teatro foi decisivo para a “reforma” da dramaturgia brasileira. Para exemplificar a configuração de novo espetáculo nasce o Teatro do Estudante do Brasil, em 1938, criado por Paschoal Carlos Magno, que, nessa ocasião ganhou um prêmio da Academia Brasileira de Letras com a peça Pierrot montada por Jaime Costa. Em 1940, a Associação de Artistas Brasileiros, que prestigiava o artista nacional realizando exposições, palestras e reuniões em sua sede no Rio de Janeiro, cria um concurso de teatro amador, de onde surge um grupo que se prontificava criar um repertório, cursos e fortuitamente uma escola. Falamos a respeito do grupo Os Comediantes, que estreou a 15 de janeiro de 1940, no Teatro Ginástico, com a peça Assim é, se lhe parece , do autor italiano Luigi Pirandello. O grupo primava pelos grandes espetáculos, que, devido ao êxito da primeira montagem, levou à encenação outro texto estrangeiro: Uma mulher e três palhaços , de Marcel Achard. Os principais objetivos de Os Comediantes eram o trabalho de equipe e a descentralização da figura do ator-ídolo, razões que permitem o comentário crítico de Sábato Magaldi: Modificando o panorama brasileiro, em que o intérprete principal assegurava o prestígio popular da apresentação, independentemente do texto, do resto do elenco e dos acessórios, Os Comediantes transferiram para o encenador o papel de vedeta. Nessa reforma, o nosso teatro procurava, mais uma vez com algum atraso, acertar o passo pelo que se praticava na Europa. Mesmo Jouvet, que residiu no Rio de Janeiro, escapando à ocupação alemã na França, na Segunda Grande Guerra, não atuou no meio, de modo a produzir frutos. Foram necessários alguns anos para que se consumasse a atualização estética. Sem escolas, nem modelos, sem conhecimento efetivo do problema, não poderíamos, por nossa conta, realizar a mudança. Ela nos veio com a presença de outro estrangeiro, trânsfuga da guerra, que aportou no Brasil meio ao acaso e que está hoje definitivamente incorporado ao teatro nacional: o polonês Ziembinski. 330

Ziembinski, judeu, polonês, ao fim da dramática viagem de mais de seis meses fugindo da invasão nazista, depois de uma verdadeira maratona que inclui passagens por Bucareste, Milão, Paris, Marselha, Casablanca, Dacar e Cádiz, aporta no Rio de Janeiro às cinco horas da tarde do dia 6 de julho de 1941. Suas primeiras impressões da cidade são por ele lembradas: Eu fiquei em primeiro lugar espantado não somente com a beleza da cidade, mas com a liberdade de que eu dispunha. Com o ar macio, encantado, com a riqueza – eu não devia usar esta palavra, riqueza – com a opulência daquilo que estava na minha frente,

330 MAGALDI, Sábato. com essa exuberância, de cores, daquilo que se podia ter, daquilo que se podia obter, com a falta de qualquer empecilho na frente da gente, com a natureza que se oferecia para ser desfrutada, e homens, mulheres, crianças, todo o povo que se abria diante da gente, e nos acolhia com aquela característica brasileira, e especialmente carioca, que nós conhecemos muito bem, mas que era muito estranha para mim, naquele tempo. 331

Perambulando pela cidade, Ziembinski chega à Cinelândia trazendo na manga do colete nomes e endereços de alguns patrícios seus, pois no primeiro registro de sua presença entre nós ele estava no concerto do Witold Malcuzynski, polonês a serviço da Cruz Vermelha. 332 O nome de Ziembinski está profundamente ligado ao teatro brasileiro e ao grupo Os Comediantes como a sua mais valiosa figura. De formação expressionista e expert em iluminação e encenação, Ziembinski transmitiu ao teatro brasileiro o seu talento e conhecimento. É Ziembinski quem nos fala: Meu primeiro contato com o teatro brasileiro foi por mera casualidade. (...) um amigo meu, o pianista polonês Malcuzynski, ia dar um concerto no Teatro Municipal. E antes haveria um coquetel para a imprensa no antigo Hotel Central. No coquetel estavam presentes várias pessoas representantes do meio intelectual do Brasil. Entre elas, um rapaz muito simpático: Agostinho Olavo. Naquele tempo eu não falava português. Comunicava- me com os brasileiros em francês. Agostinho sentou-se ao meu lado (...). Contou-me que fazia parte de um movimento teatral muito interessante: Os Comediantes. Eram amadores, pessoas de diferentes profissões – médicos, oficiais da aeronáutica, enfim, de toda e qualquer profissão, para dar um novo impulso ao panorama do teatro brasileiro, naquela época bastante apagado. 333

Sob a sua direção, coordenaram-se os vários elementos de uma montagem teatral. Ziembinski faz sobressair o trabalho de equipe, descentralizando verdadeiramente a figura do ator de grande fama. Aperfeiçoou os cenários e os figurinos, adequando-os às trilhas da revolução modernista, encarregou pintores de renome – como por exemplo Thomas Santa Rosa que se transformou num cenógrafo genial – a confecção da parte plástica da montagem. Entre os trabalhos que Os Comediantes levaram à cena, muitas delas estrangeiras, nenhuma provocou choque maior que Vestido de noiva , em 1943, do então jovem jornalista Nelson Rodrigues, cuja única peça anteriormente encenada, Mulher sem pecado , não havia despertado especial repercussão.

331 Depoimento de Ziembinski ao Serviço Nacional de Teatro em 16/4/1975; versão integral não publicada, segundo Yan Michalski. Ziembinski e o teatro brasileiro . São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. HUCITEC/Ministério da Cultura/FUNARTE, 1995, p. 39 332 DELACY, Monah. Opus cit, p. 152-3. 333 MICHALSKI, Yan. Ziembinski e o teatro brasileiro . São Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE, 1995, p. 40. Vestido de noiva faz uma abordagem da família burguesa brasileira. É apontada, normalmente, como elemento divisor da moderna dramaturgia, quer pela forte qualidade do texto rodriguesiano, que faz emergir temas nunca antes apresentados pela dramaturgia nacional, quer pela dinâmica e primazia da montagem de Ziembinski, um artista que dominou todos os segredos da arte teatral. Gustavo Dória confirma o fascínio imediato que Ziembinski sentiu pelo texto de Nelson Rodrigues: Vestido de noiva era o presente que o céu enviava à sua formação expressionista, proporcionando-lhe oportunidade de mostrar, em toda a plenitude, a sua capacidade como diretor. 334 Segundo Décio de Almeida Prado, o teatro de Nelson Rodrigues era a saga de um amor voluptuoso pelo mal, pelo remorso, pelo que faz sofrer aos outros e a nós mesmos, que foi uma das descobertas da poesia de um Baudelaire, antes de o ser da ciência de um Freud. 335 Percebe-se que Vestido de noiva empolgou bastante Ziembinski, uma vez que lhe proporcionou grande oportunidade de mostrar sua habilidade como diretor. Ziembinski supria as lacunas de um conhecimento do grupo com autênticas aulas durante os ensaios, oportunidades nas quais dissecava os textos, buscando seus significados mais complexos. Yan Michalski nos alerta que a temporada de 1943 dos Comediantes, e dentro dela, especialmente, a estréia de Vestido de noiva, têm hoje a força de um mito. A sua entronização com o ponto de partida do moderno teatro brasileiro é, obviamente, o resultado de uma atitude simplificadora. Se é evidente que nenhum movimento renovador tem suas origens limitadas a um único espetáculo, ou mesmo a um ciclo de espetáculos, e que o destaque dado a Vestido de noiva na memória do teatro nacional contribuiu para diluir injustamente funções pioneiras exercidas por outras realizações, antes ou depois de 1943, não deixa de ser verdade que este tipo de divisores de águas tem sua utilidade para tornar clara a evolução do pensamento e da prática teatral do país. E que o generoso esforço dos Comediantes, fundamentalmente fertilizado pela injeção, por intermédio de Ziembinski, de conhecimentos até então ignorados no Brasil, marcou profundamente toda a trajetória subseqüente do nosso teatro, transformando-se num inevitável referencial. 336

Parece-nos compreensível que a crítica teatral da época não estivesse apta a entender a real importância do acontecimento. Cremos ser importante registrar algumas vozes que, décadas após, refletiram sobre a questão. Julgamos interessante iniciar pelo próprio Ziembinski, no seu depoimento ao Serviço Nacional de Teatro (SNT) em 1975:

334 DÓRIA, Gustavo A. Moderno teatro brasileiro . Rio de Janeiro: SNT/MEC, 1975. 335 Citado por DELACY, Monah. Opus cit, p. 158. 336 MICHALSKI, Yan. Opus cit, p. 75. Vestido de noiva, em primeiro lugar, foi um texto brasileiro, e texto brasileiro altamente categorizado, para não dizer até certo ponto – especialmente na época – sofisticado; e texto brasileiro que realmente respirava a realidade brasileira, ou melhor, respirava a realidade carioca. Isso o identificava e transformava num momento de fraternidade extremamente grande. Além disso – o que também me fez sofrer muitas vezes depois – havia nesse espetáculo alguma coisa de expressionismo. Uma partida para fora da realidade, para fora do realismo comum. Um expressionismo composto, mas realmente me parece – embora fale sobre a minha obra – um expressionismo que não pecava pelo formalismo grande demais, como o expressionismo sempre peca. Era um expressionismo de forma, uma forma de espetáculo com extremo realismo, quase puxado para o naturalismo da interpretação do texto. Então, havia o sabor de uma composição que sintetizava, reduzia a realidade na sua forma existente, e ao mesmo tempo abria pela verossimilhança para aquilo que acontecia dentro das figuras. Me parece que esta colocação feliz é uma das coisas que mais pesavam no espetáculo Vestido de noiva . Essa tragédia carioca, título que ele [Nelson Rodrigues] depois ousou outra vez, fazendo Boca de ouro , mas na verdade a grande tragédia carioca era Vestido de noiva . Então me parece que esta colocação, este tipo de espetáculo era muito mais adiantado do que tudo que eu fiz depois. 337

Gustavo Dória comenta: Vestido de noiva, como espetáculo em seu todo, era um marco definitivo. Despertava ele a atenção para o teatro que nos estava faltando; encorajava o novo autor brasileiro, o de importância intelectual, com a sonhada oportunidade, enquanto que destruía o tabu de que o teatro, como profissão, servia a apenas um determinado grupo. Em matéria de linguagem, o Vestido de noiva abria novas perspectivas, acabando com o diálogo empolado, características de qualquer autor brasileiro que se propusesse a escrever um original inteligente. (...) Para os componentes do grupo, então, essa estréia tinha ainda um significado maior, pois que positivava as possibilidades reais de Ziembinski, no nosso teatro, desde que a sua lentidão se transformava num grande dinamismo, diante do diálogo de Nelson Rodrigues, curto, rápido, incisivo, sem dar tempo a elucubrações mentais prolongadas. 338

Contudo, possivelmente, a mais precisa análise da montagem de Vestido de noiva para o teatro brasileiro de seu tempo foi escrito, 41 anos após, por Décio de Almeida Prado: Vestido de noiva de Nelson Rodrigues (1912-1980) diferia com efeito de tudo que se escrevera para a cena entre nós, não apenas por sugerir insuspeitadas perversões psicológicas, a seguir amplamente documentadas em outros textos do autor, mas, principalmente, por deslocar o interesse dramático, centrado não mais sobre a história que se contava e sim sobre a maneira de fazê-lo, numa inversão típica da ficção moderna. A essa singularidade inicial, Zbgniew Ziembinski (1908-1978), encenador polonês exilado pela guerra, somou as suas próprias não menos significativas, pelo menos dentro do nosso acanhado panorama dramático. O que víamos no palco, pela primeira vez em todo o seu esplendor, era essa coisa misteriosa chamada mise-en-scène (só aos poucos a palavra foi sendo traduzida por encenação), de que tanto se falava na Europa. Aprendíamos com Vestido de noiva , que havia para os atores outros modos de andar, falar e gesticular além dos cotidianos, outros estilos além do naturalista, incorporando-se ao real, através da representação, o imaginário e o alucinatório. O espetáculo, perdendo a sua antiga

337 Depoimento de Ziembinski ao SNT em 16/4/1975. Segundo Yan Michalski em opus cit, versão integral não publicada, p. 82. 338 DÓRIA, Gustavo A. Opus cit transparência, impunha-se como uma segunda criação, puramente cênica, quase tão original e poderosa quanto a instituída pelo texto. Não faltou quem atribuísse maldosamente o êxito da peça mais a Ziembinski do que a Nelson Rodrigues. O choque estético, pelo qual se costuma medir o grau de modernidade de uma obra, foi imenso, elevando o teatro à dignidade dos outros gêneros literários. (...) Repentinamente o Brasil descobriu essa arte julgada até então de segunda categoria, percebendo que ela podia ser tão rica e quase tão hermética quanto certa poesia ou certa pintura moderna. 339

O sucesso da temporada d’Os Comediantes e o prestígio conquistado nas faixas mais influentes da opinião pública, da imprensa e da intelectualidade solidificaram a importância de Ziembinski no cenário teatral brasileiro – o que, sem dúvida, vai aproximá-lo do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), em 1949, convidado a dirigir o grupo em dois de seus espetáculos. O Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado na década de 40 pelo médico Waldemar de Oliveira, raro fenômeno de longevidade no moderno teatro brasileiro, continua funcionando, com poucas interrupções, até hoje. Assim como tantos outros, o grupo nasceu de uma iniciativa circunstancial, pois ao aproximar-se o centenário da Sociedade de Medicina de Pernambuco, o seu presidente, Otávio de Freitas, solicitou a Waldemar de Oliveira a organização de uma festa de arte a integrar-se no programa das solenidades . Em vez da hora da arte tradicional em certos momentos festivos, Waldemar de Oliveira, que já possuía uma tradição teatral no grupo Gente Nossa, propõe a apresentação de um espetáculo de teatro, com um elenco de “médicos e senhoras de médicos” e com um texto ligado a assuntos médicos: Knock, ou o triunfo da medicina de Jules Romains. O espetáculo foi encenado no dia do centenário, 4 de abril de 1941, sob a direção de Waldemar de Oliveira. Aquilo que tencionava ser um sarau único, tornou-se a semente originária do TAP. 340 Em relação à formulação do convite feito a Ziembinski pelo TAP e à chegada do mesmo à capital pernambucana, além da reflexão sobre o teatro brasileiro, o Diário de Pernambuco lhe indaga e o diretor polonês responde: Duas coisas são essenciais para o teatro no Brasil; dois elementos da mais alta importância e que temos na Europa e em outros países: público perfeitamente educado para receber a mensagem artística teatral e atores conscientemente integrados na missão de que são incumbidos como mensageiros da arte.

339 PRADO, Décio de Almeida. Teatro 1930-80 (Ensaio de interpretação). História geral da civilização brasileira, sob a direção de Boris Fausto, Tomo II, O Brasil republicano, 4º volume, Economia e Cultura (1930-64). Capítulo XII, p. 528-531. 340 MICHALSKI, Yan. Opus cit, p. 145-6. Antes de tudo é preciso que as pessoas que se dão à arte de representar criem dentro de si a mística do teatro; façam do teatro uma religião. É necessário que a cada vez que se entre num teatro se tenha a sensação de estar penetrando num templo religioso.

(...) ... acredito piamente no teatro brasileiro atual, diante do movimento de renovação que se processa, tendente a moralizar uma arte talvez nunca compreendida dignamente pelos próprios brasileiros, que estão agora reabilitando. O Brasil é um povo demasiadamente sensível às manifestações de arte; e a nenhuma outra é mais propensa que a teatral. É isso que me dá uma confiança ilimitada que deposito no futuro do Brasil. (...) Estou aqui [Recife] a convite do Teatro dos Amadores para dirigir e montar três peças e confesso que o farei satisfeito pois o contato com essa gente está me sendo muito agradável. Já tive oportunidade de examinar o material humano de que disporei e acho-o excelente.(...) 341

Procedendo uma avaliação, quarenta anos depois do percurso do TAP, Décio de Almeida Prado escreveu que o TAP representava o papel de um TBC menor, valendo-se fartamente de um repertório estrangeiro, importando do sul encenadores europeus (lá estiveram Ziembinski e Bollini), buscando e achando com freqüência o ponto de equilíbrio entre o sucesso comercial e o sucesso artístico. Sem passar ao profissionalismo, e sem abandonar o regime de temporadas esporádicas, o TAP assegurou, com admirável pertinácia, até os dias de hoje, a continuidade da vida teatral pernambucana, mantendo sempre o alto nível de interpretação e chegando até mesmo a construir e reconstruir, após um incêndio – a sua própria sala de espetáculo num exemplo único de junção entre o desinteresse amador e as responsabilidades econômicas do profissionalismo. Em opinião a este teatro que se poderia considerar oficial, pelo prestígio alcançado junto à imprensa, ao público e às autoridades, levantaram-se sucessivamente levas de grupos amadores mais jovens e menos organizados, todos de duração efêmera, porém desfraldando precocemente, alguns deles, a bandeira do nacionalismo e da popularização do espetáculo. 342

341 Jornal do Brasil. Antes de mais nada é preciso criar uma mística teatral, Diário de Pernambuco, 15/3/1949. Citado por MICHALSKI, Yan. Opus cit, p. 148-9. 342 PRADO, Décio de Almeida. Teatro 1930-80 (Ensaio de interpretação) . Opus cit, p. 521.

4 – Vertentes e vontades: cena e violência – um espetáculo social

4.1 – Teatro brasileiro: como discussão social

No teatro do passado, que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando, em busca do tempo perdido, quer “suspender” o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso. Bachelard. A poética do espaço.

A década de 50 marcou-se pelo surgimento em São Paulo, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), iniciativa empresarial sem precedentes no teatro brasileiro, comandada pelo industrial italiano Franco Zampari, em 1948, (mesmo ano da fundação da Escola de Arte Dramática), associado a várias figuras de destaque nas altas rodas do mundo dos negócios e da tradicional sociedade paulistana. Zampari transforma um prédio na rua Major Diogo num bem equipado teatro de 365 lugares, e passou a oferecer aos melhores grupos amadores de São Paulo, que se apresentariam ali em sistema rotativo. É a denominada tendência do teatro paulista, que passou a liderar o panorama nacional. Em 1949, com a contratação do diretor italiano Adolfo Celi, tem início a fase profissional da companhia e a constituição do seu elenco permanente. São Paulo, em 1950, já passara a dois milhões de habitantes, alcançando o escalão do cosmopolitismo. Daí Zampari ansiar por uma São Paulo com espetáculos do mesmo quilate que outras metrópoles estrangeiras, tal Paris, Londres ou Nova York. Por esse ângulo, o aparecimento do TBC foi uma realização. Além de Adolfo Celi, o grupo foi dirigido por outros encenadores estrangeiros contratados: Ruggero Jacobbi, Luciano Salce, Flaminio Bollini Cerri, entre outros. Nessa época, o TBC já era uma realidade promissora, com uma série de espetáculos de acabamento profissional na sua programação, encenados pelos dois diretores fixos da companhia, Adolfo Celi e Ruggero. Seu elenco reúne atores ainda jovens porém já constando entre os melhores de sua geração: Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Maurício Barroso, Célia Biar, Ruy Affonso, Waldemar Wey, Renato Consorte, Nydia Lúcia, Fredi Kleemann, Elizabeth Henreid. Yan Michalski assinala que, para compreender a natureza especial dessa companhia, e da participação de Ziembinski no seu trabalho – uma vez que este ao aceitar o convite do TBC paulista vai incorporar-se à equipe permanente do Teatro Brasileiro de Comédia freqüentando com assiduidade a Ponte Aérea Rio-São Paulo – é preciso lembrar que São Paulo, por volta de 1950, está no auge de dinâmico boom de industrialização e progresso material que confere uma importância e um poder impressionantes a uma cada vez mais ampla elite burguesa, cosmopolita nas suas origens e seus gostos culturais. Existe espaço para que essa camada crie um teatro à sua imagem e semelhança, parecido com o que ela conhece das suas freqüentes viagens à Europa. Zampari soube captar as características dessa demanda, e a empresa por ele criada atendia aos condicionamentos ditados pelo universo social e pessoal tanto de seus mecenas como de seus consumidores. Nesse universo, não havia praticamente margem para preocupação com a problemática nacional; havia, em compensação, grande preocupação com o nível artístico, o acabamento artesanal, a imagem de prestígio cultural, que podia passar tanto pelos clássicos como pelos mais destacados autores da atualidade, sem desprezar o repertório leve, do qual viriam em parte, os recursos necessários para a sustentação dos projetos mais ambiciosos e comercialmente mais arriscados. 1

Assim, o TBC se configurava como autêntico legatário, em visão cultural, do movimento amador dos anos 40 – ressaltando a diferença de que agora se tratava de

1 MICHALSKI, Yan. Opus cit, p. 179. teatro profissional, e de um cometimento que se dispunha a manter uma grande e competente equipe artística e técnica, propiciando-lhe a possibilidade de retirar o seu alimento do seu trabalho teatral, sem necessidade de apelar a outras empresas. O Teatro Brasileiro de Comédia nasceu de uma aposta. Na realidade o conjunto paulista, de extraordinário significado, ainda não analisado em profundidade, para o desenvolvimento do teatro brasileiro, foi também uma espécie de brincadeira cultural da burguesia de São Paulo, 2 segundo as palavras de Fernando Peixoto. Os aspectos concretos do movimento foram muitas vezes louvados por uma crítica absolutamente identificada com os valores ideológicos e esteticistas propostos pela companhia. Parece- nos residir aí constantemente uma visão saudosista ou unilateral do problema. O Teatro Brasileiro de Comédia tem uma importância fundamental, no entanto a conseqüência, o significado sócio-cultural de sua existência, nunca foram solucionados com exatidão. O surgimento do TBC evidencia uma seqüência de problemas, como o sufocamento de uma tradição de teatro popular e desprovido de sentido cultural mas autêntico, as vantagens ou desvantagens da união em uma só companhia profissional dos vários movimentos de teatro amador que existiam em São Paulo, a implantação de uma estética importada e eclética, essencialmente comercial, ideologicame nte comprometida com uma classe, desvinculada da realidade cultural do país, institucionalizada durante muito tempo como símbolo de qualidade sagrada etc. 3 E igualmente a resistência que a alienação cultural oferecida pelo TBC provocou na juventude brasileira, motivando o surgimento de correntes nacionalistas de dramaturgia e encenação, como ocorreu com o Teatro de Arena e de outros grupos, ainda que amadores, em outros estados. O Brasil vivia sob a vertigem inflacionária do segundo governo Vargas (1951- 1954), período inconstante e de grandes pressões da classe dominante, descontente com a política nacionalista e populista de Getúlio. O seu suicídio, em 1954, estimulou grandes manifestações, que contrabalançaram a tentativa de golpe militar. Tal como toda a sociedade brasileira, nesse mesmo ano de 1954, também o TBC viveria uma crise

2 PEIXOTO, Fernando. Teatro em pedaços. 2ª edição. São Paulo: Editora HUCITEC, 1989, p. 11. 3 Idem, ibidem. financeira, devido aos altos salários pagos a um elenco fixo de trinta atores, além de dispêndio com direção e encenação estrangeiras. Zampari anuncia Flávio Rangel para dirigir Leonor de Mendonça de Gonçalves Dias. A escolha de Flávio Rangel para a direção artística do TBC é o início da crise. É o começo de uma agonia. Não havia outra alternativa a Zampari, pois os antigos esquemas não exerciam mais resultados positivos. Urgia a renovação do TBC. O segundo elenco, no Rio, revelava um grande fracasso econômico. A idéia de um terceiro elenco excursionando pelo país, inicialmente ao Rio Grande do Sul, parecia inviável. Em terras paulistas o público não mais comparecia como anteriormente. Zampari notava que os jovens estavam voltados para o Teatro de Arena. Nessa fase, o TBC tenta adaptar-se aos novos tempos encenando vários autores brasileiros. Com os diretores brasileiros, o TBC ainda viveu instantes de êxito e força. Para legitimar tal situação, servimo-nos das palavras de Fernando Peixoto que afirma: os novos espetáculos revelavam uma poética e uma postura novas, revolucionárias, como forma e conteúdo. O povo entrou em cena no TBC trazido por Flávio Antunes. O povo baiano de Pagador de promessas e de Revolução dos beatos , o povo russos de Almas mortas , os camponeses fanáticos de Vereda da salvação . E sobretudo os operários de A semente de Guarnieri. Este espetáculo é o ponto de partida para a análise do fim do TBC; os problemas políticos abertamente debatidos na peça de Guarnieri eram exatamente o oposto de tudo aquilo que as paredes do TBC haviam até então escutado. Em cena discutia-se os caminhos da revolução proletária. As paredes do TBC e o público burguês do TBC devem ter estremecido. Guarnieri em cena, com seu texto polêmico e vigoroso, dirigido por Flávio, foi o resultado lógico da escolha irreversível de Zampari. O Brasil tomava conta do TBC e toda uma geração se reconhecia e se empolgava no palco da Major Diogo. E, logicamente aquele público de antes tinha que fugir do TBC. O tempo da brincadeira burguesa tinha chegado talvez não a um fim, mas a um impasse. Daí para o fim, foi um pulo. O sucesso estrondoso de Ossos do barão foi o melancólico, ainda que festivo, enterro dos ossos de uma aristocracia contestada. 4

Sem conseguir, no entanto, administrar a crise financeira, Franco Zampari fecha o TBC. A classe teatral, extremamente prejudicada com a deliberação, apela ao Estado, que encampa a companhia em caráter de intervenção. Segundo Fernando Peixoto, o Teatro Brasileiro de Comédia é a árvore de onde ramificam, a seguir, todas as principais manifestações do novo teatro. 5 Surgem daí as companhias Tônia Carrero – Adolfo Celi e ; Nydia Lícia – Sérgio Cardoso; o Teatro Cacilda Becker e o Teatro dos Sete.

4 Idem, p. 13. 5 Idem, p. 16-7. Pouco mais de dez anos depois do aparecimento de Vestido de noiva , de Nelson Rodrigues, surge um dramaturgo que vai marcar um ciclo novo e original no teatro brasileiro. Referimo-nos ao paulista Jorge Andrade, cuja primeira obra, A moratória , foi apresentada em 1955 no Teatro Maria Della Costa. Usando a decadência da aristocracia rural e o drama do homem da terra, Jorge Andrade explora, em vários de seus textos, a partir de A moratória , um espaço paulista e mineiro, preenchendo um tempo que vai desde as bandeiras e a Inconfidência até a crise do café. Inovadora, sua obra encerra uma espécie de epopéia em nossa dramaturgia .6 Destacamos os textos As confrarias , Pedreira das almas , O telescópio , Vereda da Salvação , Senhora da boca do lixo , Os ossos do barão como pertencentes ao ciclo do café, além de outras peças. Jorge Andrade assim se expressa: Durante dez anos trabalhei na fazenda de meu pai como fiscal. E como fiscal, ia para o cafezal às sete da manhã e voltava à noite. Almoçava, tomava café, trabalhava, conversava com os colonos, vivia com eles o dia todo. Freqüentava suas casas, bailes, casamentos, enterros e batizados. Sentado sob um pé de café, andando pelos corredores, em torno dos montes de milho, perto dos batedores de arroz ou no eito das capinas, ouvia suas queixas e sonhos e, pouco a pouco, aprendi a estabelecer a horrível equação: o que tinha direito a receber da vida e o que realmente recebiam. A diferença formava uma muralha que emparedava, na mesma injustiça, fazendeiro e colonos. (...) Como A moratória ou Pedreira das almas , Vereda da salvação pertence entranhadamente à minha memória familiar. Nas colônias que conheci, nos bailes que freqüentei, nas ruas de café em que trabalhei, conheci muitos Joaquins e muitas Dolores. 7

A dramaturgia de Jorge Andrade aponta três ciclos muito claros. O primeiro, material de memória, discute a problemática da decadência da aristocracia rural paulista a partir do crack da Bolsa de Nova York, em 1929 ( O telescópio, A moratória, A escada e Os ossos do barão ). Depois, o ciclo de dramaturgia urbana, com Senhora da boca do lixo e O milagre na cela . Posteriormente, o ciclo televisivo do autor que adaptou para a tevê Os ossos do barão e A escada para a novela Os ossos do barão e escreveu, ainda, O grito , entre outras. Pensando-se no Brasil na virada da década de 50/60, nossa lembrança evidencia um tempo de grande euforia. É que nossa memória reporta-nos para um clima de exaltação e delírio – de um presidente bossa-nova , Juscelino Kubitschek -, bastante risonho, que prometia realizar 50 anos em 5 . Um governo agitado, inventivo, em que

6 CAMPEDELLI, Samira Youssef. Teatro brasileiro do século 20 . São Paulo: Scipione, 1995, p. 23. (Coleção Margens do texto) 7 Declaração de Jorge Andrade a Delmiro Gonçalves conforme prefácio do livro ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio . São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 12-3. surgem as vanguardas artísticas, tais como o concretismo, na literatura, a bossa-nova, na música, o cinema novo. O Plano de Metas do governo JK, através do qual o país dobrou a produção industrial, abriu 20 mil quilômetros de estradas de rodagem e, na marcha para o Oeste , JK preparava a mudança da Capital Federal para Brasília, com projetos arquitetônicos de . Em 1958, em São Paulo, o rinoceronte Cacareco “vence” as eleições para vereador. Eis um sinal de protesto e de deboche do povo para com a inoperância das autoridades políticas. O rádio é a grande válvula de escape e mobiliza os desejos. Como diz Paulo Sérgio do Carmo 8, concursos de Miss Universo e de Rainha do Rádio eram verdadeiras guerras. Ângela Maria e Cauby Peixoto são os dois cantores mais populares da época. Ouvia-se rádio costurando na máquina Singer com tecidos comprados nas Casas Pernambucanas. A novela de sucesso, O direito de nascer , provocava lágrimas. Bom mesmo era tomar a Fanta da época: Crush (laranja) ou Grapett (uva). Na porta de casa, apanhava-se o leite em garrafa e nas raras lanchonetes tomava-se milk- shake . Estavam em uso uma vestimenta sintética, o Ban-lon, as jaquetas de couro, as calças de brim coringa e os mocassins.

Reconhecemos que, pelo mundo, no final da década de 50, artistas plásticos como Richard Hamilton, Andy Warhol e Roy Lichetenstein resolvem criticar a ruptura que existia entre obra-de-arte e objeto de consumo. E, numa sociedade em que tudo se converte em mercadoria, parecia disparate resguardar uma “pureza” irrestrita da obra perante o mercado – na verdade, tudo virava produto de consumo, incluindo-se as próprias obras de arte. O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, como o cinema, a tevê e os gibis, e da linguagem publicitária – evidente em anúncios, outdoors , embalagens etc – tornava todos esses dados parte de um imaginário urbano, quer dizer, de uma seqüência de símbolos e imagens relacionados à vida na cidade. Paiano ratifica que: esses artistas resolveram então desafiar a divisão arbitrária entre arte e consumo, produzindo objetos híbridos. Lichtenstein trabalhou com histórias em quadrinhos, transformando o traço simples e a mensagem direta em opção estética. Andy Warhol, fascinado pelas criações publicitárias, como rótulos de latas de sopa, e pelos mitos da indústria cultural, como James Dean, Elvis Presley e Jacqueline Kennedy, deu uma interpretação própria para a superexposição e a onipresença dessas imagens nos meios de comunicação de massa. Em vez de lamentar uma suposta pureza artística perdida, preferiu tematizar o grande dilema da sociedade de consumo – o consumo do próprio homem. 9

8 CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão . São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2001, p. 17-8. 9 PAIANO, Enor. Tropicalismo: bananas ao vento. São Paulo: Scipione, 1996, p. 30-31. No Brasil, o povo lotava as salas de cinema para rir das chanchadas com Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Dercy Gonçalves e Mazzaropi como Jeca Tatu. Surgem críticas de costumes no teatro de revista. Os artistas do rádio e do teatro só eram vistos nas cidades do interior do Brasil por intermédio do cinema. João Gilberto cantando Desafinado dava início ao movimento denominado bossa nova. As bienais de arte, em São Paulo, assumiam projeção internacional. Na televisão, não havia videoteipe, então, os erros eram corrigidos no instante em que ocorriam. A revista O cruzeiro , sucesso nacional, atingiu, em 1956, a uma tiragem semanal de quase 600 mil exemplares numa época de população bem menor e de grande índice de analfabetos. A Manchete era sua única concorrente de peso. Em um país com tantos analfabetos, as imagens proporcionadas pela fotografia das revistas abriam uma janela para o mundo . 10 Paulatinamente, a televisão foi apropriando-se da imagem das revistas. O teatro nessa época, como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), de São Paulo, mantinha-se elitista direcionando seu olhar para os êxitos de Paris ou de Nova York. Preocupava-se mais em entreter que fazer denúncia social. Contudo, alguma coisa estava mudando, pois, ao lado das vanguardas surgidas na literatura, na música e no cinema, o teatro também segue a trilha da renovação da arte de representar. Grupos como o Arena e o Oficina, assinalavam uma “virada” no teatro brasileiro, representando a nossa realidade social incorporando o feio na forma de apresentar o país. Era uma reflexão, de certo modo, dos novos tempos de euforia desenvolvimentista do governo JK. O Teatro de Arena surgiu como grupo experimental, em 1955, com a finalidade de encontrar uma maneira brasileira de representar. As preocupações eram mais imediatas. Propósitos revolucionários de levar o teatro aonde o público se encontrasse compunham o ideário do grupo. Para tanto, a apresentação de uma idéia nova – a arena – possibilitava montagens de espetáculos sem grandes gastos e com poucos recursos, por meio de adaptação pouco dispendiosa de um espaço; além, é notório, de introduzir uma revolução copernicana na relação palco-platéia .11 Mostaço nos mostra que:

10 CARMO, Paulo Sérgio do. Opus cit, p. 18. 11 MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião – uma interpretação da cultura de esquerda. São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 24. deslumbrados com a descoberta da forma nova, as implicações estético/ideológicas circunscreviam alturas mais modestas, centrando em cima do ator o espectro de preocupações. (...) O long-shot do teatro de palco italiano deveria ser substituído pelo close , os grandes gestos e máscaras exageradas dos atores das décadas de 20 e 30, por gestos miúdos e um aprofundamento interpretativo mais real, o detalhe e a minúcia sobrepondo-se ao largo e ao eloqüente, a multivisão da platéia obrigando o ator a representar continuamente e em eixo, pois que, como um objeto cubista, ele era percebido no todo e nas partes. 12

O Teatro de Arena manteve o denominado laboratório de interpretação , cujos Seminários de Dramaturgia propiciaram o surgimento de autores como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Freire, José Renato, Paulo Afonso Grisoli entre outros. O laboratório de interpretação visava estudar e adaptar textos de Stanislawski e o processo do seu ensinamento seguia o Actor’s Studio. Augusto Boal, coordenador geral desses laboratórios, viera de um período de dois anos nos Estados Unidos, onde estudara teatro na Universidade de Columbia, sendo aluno de John Gassner e impregnado das idéias do realismo norte-americano de Arthur Miller, Tennessee Williams, entre outros, desenvolveu excelente trabalho no citado laboratório. O repertório do Teatro de Arena dava realce especial aos temas sociais, após a fase dedicada à nacionalização dos clássicos. Ratos e homens , de John Steinbeck, com Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho nos papéis principais, é a primeira montagem de Augusto Boal para o grupo do Arena, em outubro de 1956, grande êxito artístico e de público. Miroel Silveira reconhece que a qualidade da encenação de Augusto Boal, bem como a importância literária, teatral e humana de Steinbeck, não eliminam o fato de não ser Ratos e homens uma peça indicada para arena .13 Porém, é a encenação de Ratos e homens que marca a entrada de preocupações sociais mais ativas politicamente, no teatro brasileiro, embora o texto se referisse a uma realidade norte-americana. Boal vê, como idéia central da peça, que por piores que sejam as circunstâncias sociais em que vive o homem, ele lutará sempre por um mundo melhor. Para em seguida concluir que: nesta peça, como na vida, o homem acredita no incrível, desde que o incrível seja belo. 14

12 Idem, p. 25. 13 SILVEIRA, Miroel. A outra crítica. São Paulo: Símbolo, 1976, p. 222. 14 BOAL, Augusto. Conforme programa da peça na época. Após a montagem de Eles não usam black-tie , de Gianfrancesco Guarnieir, em 1958, que ficou em cartaz por um ano, o elenco do teatro de Arena passou a encenar vários textos com assuntos brasileiros, em montagens que presumiam uma feitura livre, como por exemplo: Arena conta Zumbi , Arena conta Tiradentes , Castro Alves pede passagem , que emergiam temas do passado com interpretações modernas. Eles não usam black-tie é um texto que aborda os problemas sociais provocados pela industrialização, em lutas reivindicatórias de melhores salários. É ambientado na favela carioca e gira em torno do conflito de gerações entre pai e filho, que têm posições ideológicas e morais diferentes. O filho foi criado fora da favela e aspira à ascensão social e às comodidas da vida burguesa. Sente medo da vida proletária. O pai crê na força dos operários e na luta por melhores salários. Parece-nos que a esperança é a idéia principal da peça. Em relação ao texto Eles não usam black-tie , Sábato Magaldi assim se coloca: (...) Embora o ambiente seja a favela carioca, o cenário existe apenas como romantização de possível vida comunitária, já que a cidade simboliza o bracejar do indivíduo solitário. Nem por isso o tema deixa de ser profundamente urbano, se for considerado o produto da formação dos grandes centros, e nesse sentido a peça se definia com a mais atual do repertório brasileiro, aquela que penetrava a realidade do tempo com maior agudeza. Que a tese implícita do texto seja marxista, não se pode duvidar. Mas o autor não deformou os caracteres, em função de um objetivo político, desenvolvendo antes as situações, para que a platéia concluísse a seu gosto. A dignidade artística do trabalho isenta-o de sectarismo, e a peça se beneficia de uma convicção sincera, que informa o entrecho com evidente consciência. 15

Seguindo a trilha de enfatizar os temas nacionais, o TBC montou em 1960, a peça A semente , também de autoria de Guarnieri, sob a direção de Flávio Rangel. Possivelmente, este texto é a mais política obra teatral brasileira. Descreve o interior do Partido Comunista, seu funcionamento interno e a preparação e posterior repressão de uma greve operária. Mostaço, na obra já citada, torna claro que: Agileu, chefe de uma célula operária, é vítima de uma tramóia da polícia, que consegue fazê-lo passar por traidor de vários outros partidários, ao mesmo tempo que o destrói como líder grevista. Ele é “julgado” na célula e destituído dos quadros do Partido, tendo, ao final, de amargar sozinho a solidão humana e ideológica. Obra de militância, não deixou rogada uma realidade cada vez mais presente na vida brasileira de então, que era a presença do PC junto às crescentes greves operárias e que encontrou em Guarnieri seu mais fiel intérprete dramático. 16

15 MAGALDI, Sábato. Um palco brasileiro: o Arena de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 28-29. (Coleção Tudo é História; 85) 16 MOSTAÇO, Edélcio. Opus cit, p. 37.

A trilogia Eles não usam black-tie , Gimba e A semente constitui-se num ciclo compacto de inquietudes com a realidade imediata, no intuito d refleti-la, entendê-la e, do mesmo modo, modificá-la. Engajada, política e esteticamente , segundo Mostaço, constituiu obra pioneira do teatro voltado para a realidade e debruçado sobre ela, não declinando inclusive de portar uma tocha iluminadora de outros rumos para a dramaturgia brasileira. 17 Dentre as mais importantes peças levadas à cena pelo grupo do Teatro de Arena devemos mencionar Chapetuba Futebol Clube , de Oduvaldo Vianna Filho, Gente como a gente , de Roberto Freire e Farsa da esposa perfeita , de Edy Lima. Mostaço afirma que foi Chapetuba Futebol Clube , sem dúvida, e não o texto de Guarnieri, o primeiro resultado elaborado nos trabalhos das longas discussões, remontagens, reelaborações, sessões de críticas, louvores etc. que constituíam o exercício de aplicação do Seminário de Dramaturgia, com estréia acontecida em 17 de março de 1959. 18 No mês de julho do mesmo ano estréia Gente como a gente , texto que Roberto Freire discutiu no Seminário. A peça ficou em cartaz somente dois meses e Boal a apresentou como uma visão católica de um problema social .19 No final do ano, é encenada A farsa da esposa perfeita da autora gaúcha Edy Lima. O Teatro de Arena abriu caminhos para vários grupos teatrais. Os anos compreendidos entre 1960 e 1964 apresentaram o mais expressivo movimento não só quantitativo como qualitativo na intenção de inserir uma cultura de função participante e popular no Brasil. Neste período, grupos estudantis criavam com grande facilidade núcleos teatrais, que com a mesma facilidade se afugentavam. Porém, várias proposições estudantis se juntaram para formar um dos mais úteis grupos de teatro jovem que já aconteceu no Brasil – o Oficina. O Oficina foi criado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Faculdade do Largo de São Francisco) e impetuosamente apoiado pelo Centro

17 Idem, p. 37-38. 18 Idem, p. 38. 19 BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 53. Acadêmico XI de Agosto, que possibilitou ao grupo a realização das primeiras produções. Mostaço observa que no Oficina, há uma busca de textos preferentemente ligados ao realismo social norte-americano, que o grupo considerava apropriado às suas preocupações estilísticas e a seu público. (...) Para o Oficina, encontrar uma forma mediatizada entre a eficácia de um espetáculo, de suas propostas, jogo de valores, avanços conteudísticos e ideológicos e os inevitáveis entraves propostos pelo público que freqüentava seus espetáculos era o principal objetivo a ser alcançado e, ao mesmo tempo, seu maior empecilho. Daí a escolha do repertório, quase sempre um arcabouço melodramático, realista, psicológico, que era buscado para facilitar e prender o espectador a uma fórmula conhecida (advinda do TBC) para um conteúdo problemático, insidioso, subversivo mesmo. 20

Salinas Fortes, em Teatro e privilégio , revela as reais intenções e apreensões que se interpunham ao grupo Oficina: Não é por ser erudito ou popular, metafísico ou panfletário, que o teatro atrai esta ou aquela espécie de público. Antes pelo contraio; a composição do público é determinada por fatores de ordem social preexistentes ao próprio teatro como espetáculo e é o tipo de composição do público que acabará por determinar o próprio conteúdo do teatro. (...) Na noite em que fomos assistir A semente , de Guarnieri, ouvimos um comentário de um respeitável senhor (...): “Que maravilha o lirismo dos operários!” Isto foi o bastante para liquidar todos os pacientes esforços do indefeso dramaturgo: aquilo que pretendia se apresentar como protesto violento, como escândalo, foi, em um abrir e fechar de olhos, maquiavelicamente transformado em um dado inofensivo, pitoresco e classificável do universo burguês. 21

Assim, evidenciando de modo claro o esboçamento da mais perspicaz incompatibilidade do teatro burguês, o grupo Oficina tinha por objetivo outra perspectiva de atuação, até mesmo à própria modificação interna do teatro, que se não se restaurasse nunca atingiria outro tipo de público. E é ainda Salinas Fortes quem nos afirma que é em função de um público virtual, ainda não existente, mas que seja capaz de se dar sem reservas ao espetáculo (...) que devem ser organizados os projetos artísticos das novas gerações. 22 Acreditamos que o teatro que seja com base nessa urgência de renovação que o Teatro Oficina tentava nova produção, divergente da programação que o caracterizou em toda sua primeira fase. Devemos ressaltar que o golpe militar de 64 impõe uma revisão total de rumo. Todas as entidades culturais que apresentavam idéias novas e de algum modo estavam comprometidas com a frente

20 MOSTAÇO, Edélcio. Opus cit, p. 71. 21 SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Teatro e privilégio . Arte em revista. São Paulo: Kairos/CEAC, nº 6, Teatro, 1981. Sem indicação de página. 22 Idem, ibidem. nacionalista foram colocadas, em síntese, na ilegalidade, seus líderes e participantes perseguidos. Mais uma vez recorremos a Mostaço para acusar que O CPC e o MCP literalmente destruídos; o ISEB desmantelado, através de inúmeros IPMs; a Universidade de Brasília, especialmente, e as demais universidades importantes, vítimas de expurgos intermináveis que fizeram evadir cérebros preciosos para a inteligência nacional. Todos os setores culturais ligados ao teatro, música, cinema, tevê, literatura, cultura popular, etc., vítimas de uma verdadeira caça as bruxas, onde não foram poupados nem os escalões subalternos, sem nenhum comprometimento com as direções. O medo, a insegurança, a falta de caminhos se abateu sobre o sonho degustado durante anos de uma possível virada nos destinos do país. 23

Notava-se que as portas começariam a se fechar em 1964, ano-símbolo de um longo período dominado pela censura, pela repressão e pelas perseguições políticas de toda a forma. Fecha-se o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), que buscava um teatro popular (sobre e para o povo). O Ato Institucional nº 2 (AI-2) desagrega os partidos políticos. Em 1968, o Congresso Nacional é fechado pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5). Cerram-se as portas e as cortinas da criação. Eis que um “silêncio ensurdecedor” toma conta da arte, do meio artístico. Peças são deturpadas por cortes bruscos da censura, ou simplesmente não são liberadas. O estabelecimento do AI-5 leva o panorama da cultua nacional a uma grande transformação, levando o teatro, a música à linguagem metafórica e à alegoria. Por outro lado, a televisão , como nos diz Campedelli, veicula uma cultura “oficial”, refletindo a imagem do Brasil Grande feliz e patriótico, muito conveniente à ditadura .24 Alguns autores teatrais não se intimidaram com essa situação e, através de seu processo de criação, denunciavam as mais variadas situações sociais de injustiças. Tais situações motivaram o Grupo Opinião, nascido em dezembro de 1964, no Rio de Janeiro, cuja primeira montagem foi co-produzida com o Teatro de Arena de São Paulo. , Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, João das Neves, Tereza Aragão e Armando Costa foram seus fundadores. Os espetáculos do Opinião, por não possuírem uma estrutura teatral bem consistente, caracterizavam-se mais como shows musicais apoiados nas personalidades de seus intérpretes: João do Vale, Zé Keti, Nara Leão, que, desta forma, de uma hora para outra, tornaram-se personagens, e daí, mitos. João do Vale, um negro nordestino e

23 MOSTAÇO, Edélcio. Opus cit, p. 74. 24 CAMPEDELLI, Samira Youssef. Opus cit, p. 44. Zé Keti, um negro carioca, se não recusavam suas origens populares, demonstravam estar dissolvidos na cultura classe-média esquerdizante do Rio de Janeiro. Nara Leão, cantora identificada com a ala estudantil, a classe média conscientizada, em sua posição de “musa” – da ex-bossa nova e, naqueles instante do Opinião, da música de protesto -, tinha como tarefa sugerir, intuir, captar, interpretar os sentimentos, emoções, esperanças e empreendimentos que o povo produzia e desejava. Nara foi a introdutora da calça Lee (americana) e da camiseta nos palcos, sendo a cantora quem conduzia a “opinião” do espetáculo. Se não tem água, eu furo um poço/ Se não tem carne/ Eu compro um osso (...) / Que eu não mudo de opinião. 25 Ferreira Gullar, escrevendo na contracapa do LP Manhã de liberdade , de Nara Leão, afirma que o interesse político de Nara não lhe impede de ter uma visão ampla da canção popular e de valorizá-la em seus diferentes aspectos, como em suas diferentes épocas e fases. Ela parece fazer questão de mostrar que a canção popular muda, transforma-se, se enriquece e, não obstante, continua a mesma. 26

Liberdade, liberdade , de Millôr Fernandes e Flávio Rangel foi a montagem seguinte do Grupo Opinião, que estreou numa significativa data: 21 de abril de 1965, com elenco formado por Paulo Autran, Thereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e, mais uma vez, Nara Leão, entre outros. Produção do Teatro de Arena de São Paulo e do Grupo Opinião do Rio de Janeiro, Liberdade, liberdade refletia o sentimento dos jovens intelectuais brasileiros. Sem dúvida, tal espetáculo tornou-se um libelo à postura hostil que o governo do General Castelo Branco exercia em face da liberdade e das críticas esquerdistas ao militarismo. A mensagem do texto de Millôr Fernandes e Flávio Rangel está, claramente, em seu título. É formada por fragmentos de textos que traduzem acontecimentos históricos, desde o julgamento de Sócrates, na Grécia antiga, indo à condenação a trabalhos forçados de um poeta soviético, na atualidade. Em depoimento incisivo acerca da peça, Millôr Fernandes se posicionara: Não tenho procurado outra coisa na vida senão ser livre. Livre das pressões terríveis da vida econômica, livre das pressões terríveis dos conflitos humanos, livre para o exercício da vida física e mental, livre das idéias feitas e mastigadas. (...) Tentamos fazer um espetáculo que servisse à hora presente, dominada, no Brasil, por uma mentalidade que,

25 ZÉ KETI. Opinião . CD O melhor de Nara Leão. Com açúcar e com afeto. Polygram, 1998. 26 Ferreira Gullar na contracapa do LP Manhã de liberdade. sejam quais sejam as suas qualidades ou boas intenções, é nitidamente borocochô. E cuja palavra de ordem parece ser retroagir, retroagir, retroagir. 27

Em síntese, continuava a luta dentro e fora do palco. O ano de 1968 – ano de contestações sociais, políticas e culturais em várias partes do mundo – vê no Brasil o surgimento de um grande movimento social de protesto e de oposição à ditadura militar, com ênfase para o movimento estudantil e para a volta do movimento operário, com greves que estouraram por todo o país. O AI-5, mais o Decreto 477 de repressão aos estudantes, levava a ditadura militar, inteirar o fechamento político, em meio a uma série de violências e prisões, torturas e mortes. O Congresso recebe em meio ao ano de 1969, após fechamento por dez meses, sem 94 parlamentares cassados, com a tarefa de confirmar a escolha, previamente realizada pela cúpula militar, do general de “linha dura” Emílio Garrrastazu Médici para a presidência da República Federativa do Brasil, no espaço de tempo de outubro de 1969 a março de 1974. Seu governo herdava as condições econômicas e políticas que autorizavam a então época do falso “milagre brasileiro” . Podemos dizer que o teatro foi uma fortaleza de resistência ao regime militar. Ressaltamos, ao juntarmo-nos a Reverbel, que: Os homens dos teatros Arena, Oficina e Opinião, atentos à luta política travada dentro e fora do palco, mantiveram-se voltados para a pesquisa e experiência estética teatral. O golpe militar surpreendeu o Arena encenando Tartufo , de Molière, que, sem sofrer alteração, era muito bem recebido por uma platéia capaz de perceber a crítica à situação sem que vivia. Boal dirigia Opinião no Rio, enquanto o grupo paulista, tendo à frente Guarnieri, cria Arena conta Zumbi , um espetáculo estruturado sobre uma base dramática mais densa, transformando em personagens os negros dos quilombos. 28

Ao concluir esta parte do trabalho, podemos afirmar que a fragmentação do Estado populista pós-64 possibilitou gerar uma outra etapa histórica nas composições econômico-políticas capitalistas, novas constelações e articulações em todos os níveis. Trocando a antiga classe política oligárquica por escalões tecno-burocratas, obteve-se integrar, no mesmo instante, a viabilização de sucesso dos mais avançados setores da burguesia coniventes com o imperialismo e unir todas as categorias administrativo- políticos a uma doutrina de segurança nacional, centralizadora, repressiva, ditatorial –

27 Millôr Fernandes citado por CAMPEDELLI, Samira Youssef. Opus cit, p. 56. 28 REVERBEL, Olga. Teatro. Uma síntese em atos e cenas. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 112. o que nos faz, então, perceber que a militarização crescente, com sua indisfarçável ideologia de hierarquização imanente , dominaria todas as relações entre o Estado e a sociedade civil. Com a repressão acentuada e a censura intensamente castradora, a exemplo do elevado número de grupos europeus e norte-americanos bem ativos na década de 60, os grupos Oficina, Arena e Opinião encontravam os caminhos para sua dissolução.

4.2 – Cena e violência – a dor como espetáculo

Tantas vezes me mataran Tantas vezes me mori Sin embargo estoy aqui, resucitado Gracias doy à la desgracia Y a la mano com puñal Porque me mato tan mal ... Tantas vezes me borraran Tantas desapareci A mi próprio enterro fui, Solo y llorando Hice un nudo en el panuelo Pero me olvide después Que no era la unica vez.

Canção popular argentina

A relação entre cena e violência diz respeito à cultura ocidental, em que a cena e a morte, o pensamento e o sangue estão estreitamente ligados. Assegura-se que a ação histórica necessita ser cênica para que haja um sentido e ser ação violenta para ser real. Ao afirmar-se a necessidade de ser cênica, queremos dizer que há de representar um modelo, ritualizar um mito, recitar um texto, pois deve criar acima da sociedade natural uma sociedade racional . Perniola exemplifica essa situação com a observação de Marx citando a Revolução Francesa de 1789 como a representação de um roteiro extraído da história da Antiga Roma. Registra, porém, que ela precisa também ser violenta, porque não pode apresentar-se simplesmente como espetáculo sem cair na farsa. Então, torna-se forçada a manter a seriedade da representação com a morte, e, nos casos extremos, com o terror . Olhando-se por esse ângulo, o Terror da Revolução Francesa deve ser considerado conseqüência lógica de suas proposições teatrais. 29 Lembramo-nos de que Roland Barthes estabelece uma estreita relação de coerência entre cena e violência, entre espetáculo social e a morte, entre a teatralidade política e o terrorismo. Há uma tendência de a violência organizar-se em cena; os comportamentos mais violentos – como ferir, eliminar, matar, derrotar – são também os mais teatrais. Em toda violência é possível perceber-se um foco literário. 30 Perniola declara que conceder efetividade à ideologia, convertê-la em algo real pressupõe por isso, insistentemente, o exercício do negativo e da morte . O crítico em questão cita Alexander Kojève – grande estudioso de Hegel – que teria dito em relação a Maio de 1968: Lê sang n’a pas coulé, il ne s’est rien donc passê. E Perniola assegura que, de fato, conforme a perspectiva dramatúrgica da história, encetada com a Revolução Francesa, a ideologia conseguirá provar a própria realidade somente quando estiver preparada para pôr em cena uma representação que verta sangue. Sendo assim, o crítico confirma que, nesta, a ação política é imitação de uma ação considerada prototípica, plena de significado (como os feitos dos antigos romanos para os protagonistas da Revolução), que funda a própria seriedade sobre o fato de que dispensa a morte e se expõe ao risco de morte. Na cena política dos últimos dois séculos, parece essencial pelo menos ter corrido o risco de ter sido morto. 32

Sem dúvida alguma, um corpo é sede da vida , compleição apta aos mais variados movimentos e a uma infinidade de trocas no espaço em que se situa; conjunto de órgãos (...) recoberto por uma superfície elástica e sensível que delineia uma forma mais ou menos estável a partir da qual um indivíduo se reconhece e se representa para os outros. 33 Um corpo doente, restrito a seus movimentos e em sua real capacidade de trocas com espaço circundante permanece sendo um corpo. Um corpo morto – diz-nos Kehl – é um corpo: chamamos de corpo o cadáver que a vida já abandonou. Um corpo

29 PERNIOLA, Mário. Cena e violência . Muito além do espetáculo. Organização Adauto Novaes. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005, p. 183. 30 BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes . Tradução Leyla Perrone – Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 32 PERNIOLA, Mário. Opus cit, p. 184 33 Maria Rita Kehl no prefácio de O corpo torturado . Organização Ivete Keil/Márcia Tiburi. Porto Alegre: Escritos Ed., 2004, p. 9. torturado, esquartejado, ferido, virado pelo avesso, rompida a superfície sensível da pele, mesmo assim isso que vai nos aproximar do horror e nos remete ao limite do Real continua sendo o corpo .34 Entendemos, como Kehl, que um corpo tirado de seu próprio controle – corpo que passa a não pertencer mais a si mesmo e transfigurou-se em objeto nas poderosas mãos de um outro, quer o Estado ou o crime; um corpo objeto de gozo maligno de outro corpo; ainda que seja um corpo torturado continua sendo um corpo. O último recurso de um corpo torturado não é o grito/berro: é o silêncio. O silêncio é a escolha de quem não tem mais escolha nenhuma , diz-nos Kehl, para, depois, arrematar: e como escolha, é o último reduto (ético) de humanidade desse homem/corpo despojado de todos os outros avatares da condição humana. 35 Acreditamos que a tortura inscreve-se no campo ético, pois revela a fronteira da ética da verdade: para o torturador, a verdade pode ser tomada de alguém pela pressão do sofrimento/da dor. Para Georges Vigarello, a dor não pode se tornar o cadinho da verdade, como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras do infeliz. 36 Em suma, parece-nos que a tortura existe, pois a sociedade, de maneira implícita ou explicitamente, a admite. Por encontrar-se num vínculo social, a tortura não nos aparenta ser desumana, porque, como assegura Kehl, não conhecemos nenhuma espécie animal capaz de intrumentalizar o corpo de um indivíduo da mesma espécie, e de gozar com isso, tanto quanto a espécie humana. 37

4.2.1 – As vertentes da dor nos textos teatrais escolhidos

4.2.1.1 – À flor da pele

34 Idem, ibidem. 35 Idem, p. 10. 36 Georges Vigarello. Dos suplícios . O corpo torturado . Conforme citação n° 34. 37 Maria Rita Kehl, conforme obra citada, p. 13. O texto À flor da pele de Consuelo de Castro foi escrito em 1969. As personagens da peça são um professor de arte dramática, autor de telenovelas e sua aluna que pretende ser atriz. O núcleo do texto é desenvolvido com a caracterização de ambos: ele, Marcelo, é um intelectual de esquerda, ligado ao PCB, mas na verdade um burguês acomodado, muito mais velho do que sua aluna e amante. Ela, Verônica, é uma jovem estudante, anárquica, com uma energia imensa, mas não canalizada ainda para nada em definitivo. A partir do caso sentimental dos dois, desenvolveu-se a ação da peça, onde vão surgir todos os problemas deste relacionamento, pois Verônica não aceita a atitude moderada e acomodada de Marcelo e ele sente uma enorme dificuldade em domar a revolta e a indisciplina de Verônica. Os antagonismos políticos e pessoais dos dois vão ficando claros até o final da peça e chegam a tal ponto de tensão que Verônica, não suportando mais, acaba por suicidar-se, representando a personagem Ofélia de Shakespeare, em Hamlet – atitude que revela uma autodestruição desesperada, porém lúcida, convencida de que também estava profundamente contaminada pela decadência do mundo que pretendia destruir. Partindo do relacionamento afetivo de Verônica e Marcelo, a autora tenta caracterizar não só o conflito de gerações, inevitável na relação entre um intelectual mais velho e uma jovem estudante, como também traçar um perfil da intelectualidade brasileira no final da década de 60, mais precisamente após a instauração do AI-5, quando a repressão cultural começa a atingir o seu ponto mais alto, além das diversas facções políticas em que a esquerda se dividiu. Consuelo de Castro nos fala: Minha peça fala do pseudo-equilíbrio, da crise sem saída em que se encontra parte de nossa intelectualidade. Coloquei isso em duas pessoas, um professor e sua aluna e amante. Ela é a criaturinha que o contesta permanentemente, mas uma contestação sem saída. A moça tem uma generosa energia que infelizmente não a leva a nada. Os dois se enfrentam e a luta é sucessão de tese, antítese, tese, antítese até a saturação total quando a jovem se mata. O professor vive em permanente contradição a partir do fato de detestar a televisão, mas escrever par ela. Está vendido a uma engrenagem que teoricamente combate. A engrenagem da TV seria em última análise o retrato da outra mais ampla que a gente vive. 38

38 CASTRO, Consuelo de. Depoimento ao jornal Folha de São Paulo, em 05/10/1969. Marcelo, professor de Verônica na Escola de Arte Dramática, é casado e tem uma filha adolescente. Intitula-se um intelectual de esquerda, mas há muito tempo já abandonou qualquer veleidade revolucionária. Escreve telenovelas e assim não tem mais tempo de criar obras verdadeiramente suas. Zelosos da incolumidade de seu status quo , que tenta defender e preservar a todo custo assume atitudes covardes e oportunistas e é autoritário com Verônica: Marcelo : Vai falar tudo. Pensa que é assim? (Gesticula) Estoura na minha casa, põe a minha mulher doente e minha filha histérica e depois é tirar o corpo fora...(Imita-a) Não quero falar, e pronto. Bela solução, não é? Verônica : Eu não quero saber dos teus conflitos domésticos. Marcelo : Conflitos domésticos que você causou. (Pausa. Ela rodopia, fingindo nem notar mais a presença dele, leve como um fantasma. Sua expressão infantil reflete, no entanto, apreensão e medo). Mas onde estamos... meu Deus... Você invade a minha casa, bêbada feito um gambá... sabendo que não estou lá para segurar as pontas. Chama minha mulher e minha filha e diz um monte de cretinices que põe as duas em estado de choque. Foi uma atitude digna de novela de rádio. Verônica : (Ruído) Não precisa ir tão longe. Foi um capítulo das tuas novelas lá na televisão. Aquelas merdas! Marcelo : Eu já sei que você acha a televisão uma merda e outra merda as minhas novelas. O problema agora é saber quem te autorizou a brincar de atriz de novelas... Na minha casa! Verônica (Cínica): A vida... imita a arte!

Marcelo representa o intelectual da velha linha do Partidão, que teve seu ardor revolucionário apagado pelos atrativos da sociedade de consumo, a qual ele ajuda, e alimenta, mas cuja participação ele insiste em negar. Sabe-se que as formas de consumo em uma sociedade de abundância produzem duplo efeito: satisfazem necessidades materiais que de outro modo poderiam levar ao protesto e alimentam a identificação das pessoas com a ordem estabelecida. Ou seja, a tecnologia das sociedades industriais adiantadas habilitou-as a eliminar o conflito por efeito de assimilar todos aqueles que, em formas anteriores de ordem social, representam vozes ou forças de dissensão. A tecnologia faz isso, em parte, ao criar a abundância. É o que acontece com Marcelo. Porém, ele é incapaz de perceber ou assumir isso. O fato de escrever para a televisão torna-lhe possível viver de uma maneira tranqüila a ponto de sustentar duas casas. Verônica, jovem na casa dos 20 anos, filha de pais abastados, mas vítima de incompatibilidade no lar. Ideologicamente angustiada, volta-se para um niilismo que torna a sua relação com os outros e consigo mesma, exasperante. Possui uma personalidade multifacetada, de acordo com a profissão que escolheu: atriz. Pode ser amante dominadora e sensual, a outra que ama e deseja só para si o homem que escolheu e não mede conseqüências para conseguir o que quer ou a estudante politizada e agressiva disposta a destruir o mundo inteiro, porque o que existe não a agrada. Porém, o traço principal de sua personalidade é uma profunda angústia que se reflete em todos os seus atos: na política, no relacionamento afetivo e até mesmo no seu amor pelo teatro. O que Verônica não suporta é a mesquinharia do dia-a-dia. Tudo para ela deve possuir grandeza e ser original. Ela não quer, por exemplo, em termos de política, transformar o modo de produção capitalista em socialista, como Marcelo. Ela quer arrebentar com qualquer sistema. Verônica : ... que é que você quer que eu explique, mestre Marcelo? Marcelo : Esta frase: Vamos incendiar o mundo. Verônica : Quer dizer: Vamos incendiar e destruir esta merda que está aí! Marcelo : O que tem em especial? Verônica : Pra começar, a televisão. Depois a sagrada família, os preconceitos de raça, sexo, religião...(Didática) O conceito de certo e errado, o conceito de bem e mal... Não vai sobrar nada!

Á flor da pele coloca em evidência o drama do desentendimento fundamental entre duas pessoas de ritmos diferentes de existência e visões diferentes de uma mesma e dolorosa realidade, além de viver o ar de desencanto e desespero que caracterizou o retrocesso da explosão de esperança em 1968. Cremos que reflita o princípio de um entendimento mais eficaz das grandes dificuldades do mundo contemporâneo, quando a civilização ocidental, mergulhada em sua crise, descrê na sua capacidade de abrir espaços para sínteses mais altas e verdadeiramente novas, livres de envolvimentos com um passado glorioso mas fantasmal. 39 Antônio Cândido diz que, em À flor da pele , as incompatibilidades do homem são percebidas à luz de um instante que estilhaçou tudo. Destaca que a sensibilidade de Consuelo de Castro torna-se responsável para que haja, de modo sutil, a ligação de duas vertentes, o que faz do texto um sinal de tempos dilacerantes, vividos em ritmo de

39 Mario Schenberg. Uma autodestruição desesperadamente. CASTRO, Consuelo de. Urgência e ruptura. São Paulo: Perspectiva, 1989. (coleção Textos;10), p. 522. tragédia moderna, na qual as personagens, antes nobres, são agora dois pobres amantes sem linha .40 O ano de 1969 revela um teatro brasileiro em êxito surpreendente ao lançar várias peças de mérito de autores bastante jovens, em que duas personagens dialogavam. Nelas duas personagens apresentavam os problemas mais profundos da nova geração: a sua insatisfação visceral, a sua perplexidade ante algumas situações embaraçosas de um mundo complexo e desumano e, sobretudo a sua lucidez. À flor da pele , de Consuelo de Castro, foi uma delas, embora numa posição diferente. O assalto , de José Vicente, Fala baixo senão eu grito , de Leilah Assunção, O cão siamês , de Antônio Bivar e As moças, de Isabel Câmara se relacionam com a peça pioneira de Plínio Marcos, Dois perdidos numa noite suja e também com a clássica Zoo story, de Albee, com a sua ênfase na situação existencial da época. À flor da pele faz uma abordagem mais deliberada dos grandes problemas históricos mundiais, mostrando o ambiente dos estudantes, intelectuais e artistas, um dos mais nevrálgicos de toda a estrutura social. 41 Verônica é uma personagem trágica de grande vitalidade e profunda verdade. Além de ser estudante e artista, Verônica é de família burguesa rica, acostumada a todos os tipos de confortos e requintes que a civilização tecnológica permitia. Como intelectual e burguesa, situa-se de modo privilegiado e sente com grande intensidade o esvaziamento das motivações existenciais conseqüentes da exaustão dos valores que marcam a tradição da cultura ocidental. Verônica necessitava de Marcelo para confirmar os seus valores básicos inconscientes. Marcelo vai simbolizar o pseudo-intelectual, sem capacidade criadora, que não nota a identidade de cultura e criatividade. Ele não sabia que as velhas palavras deviam receber continuamente conteúdos novos, diz Schenberg, para terem algum sentido e adquirirem vitalidade. 42 Marcelo acreditava que os mortos pudessem guiar os vivos, em vez de serem ressuscitados pelos vivos. Verônica entendia que uma vida humana é uma existência prendada de um sentido continuamente criado pelo homem.E, com Schenberg, concluímos que o grande

40 Antônio Cândido. CASTRO, Consuelo de. Opus cit, p. 526. 41 Mario Schenberg. Castro, Consuelo de. Opus cit, p. 523. 42 Idem, p. 524. trabalho do homem é a criação desse sentido: a própria criação da sua humanidade . Só nessa forma é que o trabalho se torna a essência do homem. Marcelo simboliza a vida subumana, que Verônica repudiou com o seu suicídio.43

4.2.1.2 – O amor do não O texto O amor do não de Fauzi Arap retrata uma fase conturbada da história brasileira, quando, por volta da metade dos anos 70, ainda se ensaiavam os primeiros passos para a abertura política. No centro da trama, a convivência complexa entre três náufragos da cidade grande, cujos destinos se confundem na mesma marginalidade. Através do relacionamento conflitante de Martim, funcionário público, escritor, homossexual, Lula, um travesti, cantor de boate, seu companheiro homossexual assumido e Chico, um ex-preso político que escolhe a contestação política como forma de reagir a um mundo equivocado, Fauzi Arap radiografa a gênese das várias discriminações marcadas pelos diferentes mundos desiguais que apontam um universo social denso, aderente e, sobretudo verdadeiro. O amor do não apresenta os seguintes personagens: Martim: é um funcionário de uma biblioteca municipal de uma grande cidade. E gostaria de ter sido um escritor. Tem entre quarenta e cinqüenta anos, e vive com o Lula, o travesti. Esse tem um emprego qualquer durante o dia para sustentar sua arte noturna num cabaré de terceira. E Chico: um jovem sobrevivente de um movimento político fracassado. Martim demonstra ser um perdedor sábio. Ele descobriu com sua vida o que ganha secretamente o perdedor que assume a sua derrota. O vazio cheio. O fracasso de seu casamento egoísta com Lula é uma vitória revelada pelo encontro com Chico. A paixão salvação pelo todo e por todos, o contrário da solidão egoísta em que tem vivido. Chico desperta em Martim sua dimensão social que andava adormecida. Lula incorporou, como o homem comum da classe média, a idéia do sexo como objeto de consumo, um hábito ou vício inofensivo, e desejável pelo prazer que pode proporcionar, e pelo sentido de afirmação que traz dentro dos valores vigentes. Dos três personagens, surpreendentemente é o que mais se aproxima do mundo dos normais: aceitando travestir-se, Lula na verdade incorporou totalmente o sistema e seus valores, e

43 Idem, ibidem. sua inofensividade e a aceitação que tem de seu papel o integra no mundo de todos. Ele se presta a cartazes da auto-repressão dos indivíduos ditos normais, e o mundo da personalidade não se sente ameaçado com sua presença. A normalidade da aparência, do mundo das aparências existe às custas de indivíduos como Lula. Ele é absolutamente cego para a dimensão social de seu problema, e aceita integralmente a visão preconceituosa que os outros tem de si. Chico introjetou a imagem paterna do repressor, e também o seu método, a violência física, como caminho de solução para seus problemas. O extrovertido – projeta seus problemas sobre o mundo exterior e diante de um corte abrupto da possibilidade de lidar com esse mundo exterior, se vê diante de um impasse – que pode conduzir a paranóia, a loucura. Pois a sua identificação com o mundo exterior é real. E ele percebe sua interioridade como inexistência. Ou ele a teme como uma coisa terrível, uma ameaça, a presença de seu inimigo em si. A alma do homem é feminina, como disse Jung. A luta, a violência, sempre trazem em si a presença da coisa homossexual: quem vai comer quem? Trazem na sua natureza a concorrência, o veneno capitalista. Chico tem pavor do que é feminino em si, e esse pavor é um valor cultural herdado. O materialismo rasteiro vê como solução única de integração dessa feminilidade, a homossexualidade. Consumo. Resposta objetiva. Lula é para ele o fantasma vivo do que ele teme, se parar para pensas, e se interromper sua luta . O desejo de Lula de que Martim transe sexualmente com Chico é o desejo de castrar a relação possível entre os dois no que ela tem de transformador. A tabula rasa, o reduzir tudo a um caso , anularia o significado e o aprofundamento da relação. Numa espécie de preconceito às avessas, Lula chama de doente a relação, pelo fato de Martim não buscar o encontro físico com Chico. Também para o mundo de Lula, Chico é presença subversiva e perigosa. E sua atitude resulta absolutamente análoga a do mundo lá de fora. Lula encarna a opinião da classe média, uma vez que introjetou a imagem do oprimido mulher, e assumiu os valores que a história tem reservado para esse papel (a dona de casa). Martim pode ser pensado como o lado inconfessado de Lula, o lado que essa mesma classe média esconde no fundo de si como loucura ou doença . E Chico reencontra nos dois uma caricatura de sua família, de nossa família, da família de todos. O amor do não é um texto sobre a violência e o preconceito. Também dos marginais, vítimas dessas duas formas de violência: o marginal político e o sexual. O texto investiga a relação paralela, possivelmente, existente entre as duas situações. Fala a respeito do valor, sobre a importância da contradição e sobre a necessidade absoluta e fatal de absorver a voz discordante para que haja transformação e vida. O discurso de questionamento é uma constante tanto na mente preocupada de Chico, como na ansiedade de Martim. Como afirma Xênia Antunes, o amor é o coração desobediente de Lula que, ignorando as razões da moral estabelecida, resolve bater de acordo com seu próprio ritmo. 44 Ainda que seja um texto onde a tensão é evidenciada pela força com que assuntos tais como ideologia política e sexualidade são tratados, nem por isso deixa de revelar ares de lirismo que transparece nas emoções entre seus personagens. Martim : (Depois de uma pausa) Você me fez escrever de novo. Merda, você me fez escrever de novo, entende? Eu não escrevia uma linha há anos. E a única coisa que me recoloca no mundo que me liga verdadeiramente ao mundo é escrever. Eu não pretendia tocar nesse assunto com você. Eu sei que... Eu não queria te assustar... Agora, está feito... Você sabe. Se meu sentimento te ameaça você pode... sei lá... Mas eu não vou mentir... Eu não quero mentir par você... E ele tem razão. No fundo, esse tempo todo que você tem estado com a gente, eu tenho sido seu cúmplice contra ele. Chico : Mas eu não fiz nada contra ele. Martim : O preconceito. É uma espécie de violência. A violência não existe somente na forma física. Você mesmo experimentou isso na pele. Você falou das palavras que te obrigaram a ouvir... Chico : Se você quiser eu vou embora agora. (Pausa) Você disse que eu não atrapalhava a vida de vocês e insistiu pra que eu ficasse. Eu também não quero mentir. Não é confortável pra mim conviver com uma bicha. Não estou falando de você. Desculpa... Tudo que eu possa dizer vai parecer agressivo. Mas eu não tenho nada a ver com isso entende? Eu sou materialista... Eu acho que isso vem de uma engrenagem que nos envolve... Tudo isso é uma doença do sistema. E eu não te condeno. Mas eu também não acho legal... Martim : (Muito emocionado e um pouco fora de si) Eu quero te mostrar uma coisa... Deixa eu ver... Está aqui: Quando vem a inspiração, ela escreve sem numerar as páginas e fora de ordem. Ela é um desabafo? Ela é autônoma. Ela independe de mim e ela é minha liberdade e eu acho que a única possível. A única liberdade possível enquanto se está vivo é o caminho para a liberdade, é a antevisão dela . Não é isso. Eu queria te mostrar outra coisa... Eu quero dizer... Isso não é doença do sistema só, entende... É mais, é outra coisa. Chico : Se você quiser eu vou embora, você não precisa se explicar para mim...

44 Xenia Antunes. Correio Brasiliense , 16/3/83. Martim : Merda, eu não estou me explicando... Você está me ajudando a escrever, é isso... E isso pra mim é importante... Não me importa o que você pense do que está acontecendo...

Trata-se de um texto lírico profundamente denso, onde são narrados os problemas existenciais de seres humanos que, aparentemente antagônicos em suas certezas filosóficas sobre a vida e igualmente bem definidos em suas posições, deparam-se virtualmente identificados por vários pontos de confluência: a solidão, a opressão e a repressão, sobretudo o medo de uma sociedade que os marginaliza, persegue e tortura física e mentalmente, orgânica e espiritualmente. Cremos que a tortura que Chico sofreu no intuito de renegar sua causas e ideologias e delatar seus companheiros de luta não parece tão distante dos dilemas de consciência de Martim, cujo trabalho literário vive condicionado ao gosto das formas indeterminadas dos padrões burgueses e de pseudo moral, nem da agressão que Lula sofre quando se entrega a mais uma aventura sexual. Afinal, na interseção do circunstancial triângulo, entre abalos e lutas oriundos da posição de cada um, existe uma desatinada necessidade de ser autêntico consigo, nem que para isso cada um dos personagens chegue ao máximo de denunciar a si mesmo para evidenciar o grande dote da paixão, que se emaranha e se debate entre as falsas concepções do amor e dos padrões culturais. Parece-no o amor do não . A respeito do texto O amor do não , assim se manifesta Fauzi Arap: Minha peça investiga o SIM e o Não, a tentação de permanecer o SIM, de permanecer o MASCULINO, paralisa o pensamento. A capacidade de ouvir no homem pode ser pensada como um atributo feminino e nem por isso indesejável ou suspeito. O identificar- se total e radicalmente, com a própria opinião, e como o resultado fica impermeável. À opinião alheia, é atitude do machismo que valoriza a violência como bem e a própria opinião como prioridade. O desejo capitalista de ganhar transforma o encontro humano numa disputa que busca a vitória e o acúmulo quantitativo de bens, mas o erro fascista reside exatamente aí, não se pode impor violentamente o bem. A violência é reveladora da potencialidade da coisa maldita que o justiceiro pretende eliminar fora. E a divisão em nós que a projeção do Mal fora de nós provoca, é incurável. 45

Visto assim, é possível afirmarmos que a dialética dentro-fora, eu e o outro, só ela é realmente transformadora. É o salto qualitativo – uma nova consciência – só não pode advir da não identificação com a própria opinião, só pode advir de uma atitude aberta que não transforma a própria opinião e a própria posição num cartão de identidade e numa questão de segurança.

45 ARAP, Fauzi. Reportagem de Hilton Viana, no Jornal Diário de São Paulo. São Paulo, 20/10/1977. É Fauzi Arap que ainda nos fala: poderíamos brincar perigosamente com as palavras, e dizer que o Amor do não é uma peça sobre a sexualidade das esquerdas (e, portanto também dos poderosos), e sobre a violência do preconceito, de todos eles, e também sobre o preconceito que se oculta na violência. 46

Como já dissemos, partindo de três personagens, cada qual um grande tronco temático: Chico, ex-preso político, detido entre os sonhos idealísticos, os fantasmas que habitaram seu momento seguinte de pesadelo e temeroso do futuro. Jovem sobrevivente de um movimento político fracassado. Lula, um travesti assumindo a tragicomédia a que está exposto seu cotidiano e Martim, que busca a atmosfera adequada para refletir o que sua meia-idade pode lhe revelar do mundo. Fauzi Arap constrói um texto permeado de reflexões, mas sem perder o potencial de agilidade de que necessita o teatro se não quiser virar um compromisso, algo cansativo. Essas reflexões nos chegam como inteligentes, pois delimita às personagens o espaço de um apartamento decadente, cujas paredes seriam tênues fronteiras a defendê- las ou colocá-las em contato com a realidade. Parece-nos que defendê-las durante a maior parte do tempo; afinal, Chico quer respirar, quer se refazer, possivelmente até fugir de si e do mundo; Lula, entre outras marginalizações, agressões, pequenas recompensas, etc; e Martim, numa tentativa de lembrar o passado para projetar o futuro, através da Literatura. Resta-nos a indagação: e o presente? O presente é o contato entre as duas realidades: a das ruas e a do apartamento. É impossível evitar que a atmosfera do lar seja interceptada pelo que se passa lá fora. Objetivando as reflexões, Fauzi Arap fala de meios e fins. Refere-se à luta política como meio de se chegar a uma sociedade melhor, não se exaurindo simplesmente em tentar destruir uma sociedade com instituições carcomidas, envelhecidas, repressoras; fala do sexo como meio de comunicação, expressando amor e não como fim a relacionamentos neurotizados. Assim procedendo, Fauzi Arap recoloca situações importantes porque, mesmo colocando em cena emoções, sentimentos, discussões não extremamente novos, tem o mérito de deter o cotidiano, fotografá-lo e ir revelando foto por foto, cuidadosamente.

46 Idem. Podemos citar um dos resultados da exposição de emoções, sentimentos, vivências como o de lembrar que viver meios como fins reflete o automotismo a que foram habituadas as pessoas por um conjunto de fatores políticos-sociais e elas, assim, acabam diante da sociedade. Revela Martim: Temos o pavor do desconhecido. Por isso nos precavemos. Traçamos um círculo em torno do que conhecemos e maldizemos o desconhecido. Mas, de vez em quando, esse desconhecido nos violenta. Rompe o círculo. Ou a tentação, ela nos faz ultrapassar a barreira protetora que o círculo representa. O círculo: nossa casa, nossos nomes, nossos hábitos... Mas, o puramente conhecido, tende à morte. O apenas conhecido é absolutamente mortal. 47

Fauzi Arap, então, disseca como as instituições estão entorpecidas, distorcidas e ainda vigoram, valendo-se de tais atitudes. Para isso, vai pegar a realista exemplificação da prisão dando voz ao personagem Chico: O sadismo deles oculto atrás da máscara do bem. O bem não deveria precisar se mascarar nunca. Eu era minha nudez e eu era nu, tão nu eu estava como nunca, nem ao menos perante mim mesmo eu tinha ousado. E começou. A tortura era um sonho e um pesadelo, era as gargalhadas e a sede e a fome e o tempo interminável e a sensação de morte. Até que o cansaço, bendito cansaço físico, material, me faz duvidar de tudo. 48

Os personagens reconhecem-se uns aos outros. O funcionário público especialmente sente no jovem potencialidades que já foram suas. Na cena final, quando se despedem, o que fica patente é a sua crença na possibilidade de o jovem conciliar luta e ternura. Este é o grande momento do texto. Fauzi Arap propõe uma filosofia de vida alheia a muita gente, mas o faz com tanta delicadeza e respeito por opiniões contrárias – representadas pelo perseguido político – que não escapa à emoção. (Lula passa para o banheiro) Lula : Com licença. (Entra no banheiro e ouve-se o chuveiro) Martim: A gente tem que saber se encontrar e tem que saber se despedir. Acho que chegou a hora. (Espia pela janela) Acho que ela está te esperando. Chico : Martim, eu gostaria de ter mais tempo... Martim : Eu sei. Chico : Como a gente perde tempo se defendendo... Martim: ... do amor. A gente precisa confiar. Chico : Eu... eu não aprendi a viver sem lutar. As coisas... Martim, eu vou continuar a minha vida, a única que aprendi, a única que eu sei, isso eu queria te dizer. E... me desculpa tudo o que eu disse ... porque... foi bom falar... Eu sei agora onde você queria chegar. Eu tenho muito pra aprender. Mas não sei se vão me dar o tempo. Martim : O tempo sempre dá. Vai dar, sim. A gente se vê. Chico : Eu vou andando. (Eles se dão um grande abraço) Martim: Mande notícias.

47 Fala do personagem Martim no texto O amor do não . 48 Fala do personagem Chico em O amor do não. Chico : Eu mando. (Chico sai e em seguida Lula deixa o banheiro)

Chegamos à conclusão de que O amor do não não julga ninguém. Cremos que o autor ouve com carinho o depoimento de cada um e deixa que a cena esclareça o que vai por dentro deles. A intenção de Fauzi Arap é ressaltar mais uma vez a necessidade do amor na ação humana. Todos os gestos e decisões tomadas pelo personagem são filtradas segundo esta perspectiva. E Fauzi Arap declara que é preciso amar o Não. O Sim, por fatalidade, deve amar o Não. 49 O amor do não discute chamas da vida e faz uma reportagem sobre um certo tipo de político brasileiro através de requintes de silêncios, frases entrecortadas, verdade interior e corajosas reflexões – reflexões sobre as angústias do presente.

4.2.1.3 – Milagre na cela Aluísio Jorge Andrade Franco definitivamente marca seu espaço na cena do teatro brasileiro com A moratória , encenada em 1955, no Teatro Maria Della Costa. O percurso de sua obra revelaria um painel preciso e compassivo da formação, crise e fim da aristocracia cafeeira paulista. Os personagens de A moratória são fazendeiros paulistas, gente que teve o seu esplendor repentinamente abalado pela crise de 1929. Jorge Andrade via esta situação com visão crítica ainda que não isento de clareza nostalgia. Descreveu as ilusões e desesperos dos proprietários das grandes fazendas cafeeiras. Em Milagre na cela , o autor dá um testemunho sobre os anos de ditadura após o AI-5, mostrando da abordagem política da tortura à reflexão sobre o intrincado relacionamento psicológico entre vítima e algoz. Esse texto foge ao ciclo denominado Marta, a árvore e o relógio . Milagre na cela é seu penúltimo texto, escrito em 1977, marca o distanciamento do autor em relação ao baronato cafeeiro para falar de uma personagem encarcerada e torturada sob alegação de motivos políticos. Não faz referências históricas ou geográficas explícitas, nem a fatos, nem pessoas. Surgem, no texto, imagens bíblicas, personagens alegóricos, sem nomear ninguém. Impõe-se mais como um símbolo do

49 Fauzi Arap, conforme nota 45. martírio ou sofrimento, mas cabe-nos, afinal, reconhecer que o texto remete a conteúdos historicizáveis como componentes da realidade brasileira pós-64. Uma freira, Irmã Joana de Jesus Crucificado, acusada de subversão, é presa e seriamente interrogada por um delegado, Daniel. Certa de sua inocência, Joana não se dobra aos torturadores, ainda que sofra coisas terríveis, como agressões e convivência com uma prostituta, Jupira, na mesma cela. Excelente pai de família, Daniel envolve-se passionalmente com Joana, transtorna-se ao ponto de agredir a esposa em casa e de ameaçar seu homem de confiança, Cícero, ex-carcereiro, de devolvê-lo ao presídio. São frustrados os planos de Daniel, porque Joana se reduz; Miguel, um criminoso sem mãe, tem um carinho edipiano por ela e Cícero desconfia do homem que lhe garantiu a liberdade. O delegado parte para a radicalização: tortura Joana pela vagina, com um cabo de vassoura. Nua na cela, Joana que aprende com Jupira, alguns macetes para resistir, acaba por provocar desejo em Daniel, subordinando-o sexualmente. Enquanto isso, o convento a que Joana pertence age na peça pela omissão; e a visita do Bispo a ela surpreende-o com uma revelação, no mínimo, demoníaca: a gravidez da irmã. Apaixonando-se cada vez mais por Joana, sem por isso renunciar à violência verbal, Daniel é estrangulado dentro da cela, no momento que beija a Irmã, por Miguel, cuja consciência de que Joana está sendo brutalizada pelo delegado é inteiramente forjada por Cícero. Libertada da prisão como um terrível engano , Joana sai recitando versos de um poeta anônimo, suicida (ou morto?) que deixara poemas nas paredes da cela, que no fim são caiadas. O sistema de repressão, no final, não se altera; morre apenas o homem que o personalizou, confundindo trabalho com transtornos egocêntricos. (...) Homem : Não tenho nada com o que aconteceu. Joana : Eu sei! No fim ninguém é responsável e tudo continua na mesma. Outro será preso, torturado e solto sem culpa formada. Tudo por um terrível engano! E se alguém perguntar pelos direitos humanos, receberá como resposta uma gargalhada. Ora, aqui não existem homens, só animais que devem ser tratados a chicote! E se contar lá fora o que se passa nestas celas, ninguém vai acreditar. Vão dizer que sou louca, que isto não acontece aqui nem em parte alguma, que o nosso povo é de muito boa índole!... e por aí afora. Preferem não acreditar para não se sentirem culpados. (De repente, determinada) Posso sair agora? Homem : Vim para buscar a senhora e levá-la em sua casa. Ou prefere o convento? (Insinua) Creio que seria o melhor... nesta situação! Joana : (Pega a tábua e a toalha) Minha casa é o mundo. Homem : Não precisa levar nada. Joana : Preciso. Sei que vou armar meu altar em outros lugares. Homem : Lá fora existem muitos altares verdadeiros. Joana : Mas este é o meu. Homem : Venha! Joana : Pode me esperar lá em cima? Quero ficar um minuto sozinha nesta cela. Homem : Pensei que quisesse sair imediatamente! Joana : Só quero me despedir.] Homem : (Volta-se da porta) Ah! Já ia me esquecendo. Antes de sair precisa assinar uma declaração. Joana : (Em guarda) Que declaração? Não fui considerada inocente? Homem : Foi, mas... Joana: Mas o quê? Homem : Deve assinar uma declaração, dizendo que nada de anormal aconteceu enquanto esteve aqui... entre a senhora e uma autoridade. (...) Homem : Qual parede que é pra caiar? Cícero : Estas aqui. Quero tudo limpinho.

(O homem se volta e sai acompanhado por Cícero, desaparecendo. O outro homem começa a caiar a parede. Joana olha e sorri)

Joana : Adeus, poeta! Vou encontrar pessoas como você em muitos lugares. Não importa que apaguem seus versos. Eles vão surgir em novas paredes. São como os nomes que não cicatrizam, sangrando nas sombras, lentas gotas de amanhã. É por isto que vou assinar a declaração. Descanse em paz! (Joana sai e se aproxima de Jupira)

O texto Milagre na cela revela o relacionamento torturador- torturada. Inspirado em fatos reais, tem por modelo do torturador o então delegado Sérgio Fleury. Como vítima, o autor escolhe uma freira, colocando nas mãos da mulher o embate entre a repressão e os religiosos que resolveram pôr em prática entre nós a Teologia da Libertação. Vítima da arbitrariedade, tachada de falsa freira, madre Joana de Jesus Santificado é uma inocente que sofre todo tipo de pressões... ministradas por delegado- modelo , conforma assinalam Xexéu e Bojunga. 50 Acreditamos que o instante decisivo em sua luta contra o horror e a morte é o que a madre Joana prefere ser deflorada e engravidada por seu carrasco a ser violentada por um cabo de vassoura. Daí em diante, há mudanças de posicionamentos: frente à falsa freira – Joana que agora é apenas uma mulher , o delegado-modelo , o macho intrépido e grosseiro perde o equilíbrio, porque a alma da religiosa é invencível. Daniel : Poderia ter um altar verdadeiro se cooperasse. Joana : Cooperasse, como? Daniel : Admitindo pelo menos uma das acusações. Joana : Não posso admitir mentiras. Sou uma freira. Daniel : (Irritado) Deixe disto! Você não é mais uma freira. Joana : Sou mais do que nunca.

50 Artur Xexéo/Cláudio Bojunga. Revista Veja. 22/4/1981. Daniel : Joana! Venha aqui! Você é minha. Joana : Deixe-me! Se não consegue me respeitar como religiosa, respeite seu filho. Daniel : Por que não age como qualquer mulher? Joana : Porque não sou uma mulher qualquer. Daniel: Você não é uma religiosa. Sabe muito bem como se entregou a mim... gemendo de prazer. (...) Daniel : Joana! Admita sua culpa e darei jeito no seu processo. Venha comigo para o mundo e seja minha mulher. Eu arranjo um apartamento para nós. Joana : (Mais provocante ainda) Sou uma freira. Daniel : Uma mulher grávida não pode ser freira. Admita sua culpa e tudo ficará fácil. Joana : Culpa de quê? De amar o próximo mais do que a mim mesma? (Sensual) De desejar até mesmo o meu torturador? (De repente, terrível!) Você é belo como o demônio! Ele toma mesmo todas as formas. Você tem a perfeição da maldade, o tamanho para todos os sofrimentos. Vem! Fique nu diante de mim, como já fiquei diante de você. Mostre seu corpo, seu sexo! Daniel : Não fale assim! Você não é a Jupira. Joana : Atinja a perfeição da maldade... só assim eu poderei atingir a perfeição do martírio.Vem! Penetre-me com todas as maldades do mundo, filhas do prazer e da luxúria! (Joana rebola, sensual, lúbrica, diante de Daniel)

Percebemos que, numa época em que a tortura contra presos políticos era fato notório em comum, a peça de Jorge Andrade inscrevia-se na relação dos protestos necessários e importantes. Sendo escrita com adequada dose de repúdio, Jorge Andrade cumpria seu dever de cidadão. Queremos dizer que, além e, possivelmente, acima do protesto contra os atentados aos direitos e à dignidade do ser humano, praticados nas prisões políticas quando o texto era escrito, ele se propõe a ser uma reflexão sobre o mais contínuo dos temas do teatro universal: o modo pelo qual o homem reage a adversidades aparentemente esmagadoras, que se abatem sobre ele como algo fatal. Fica evidente a capacidade jorgeandradina de mostrar a evolução do torturador que, ao enfrentar uma adversária possuidora de fortaleza moral, sucumbe ao encantamento de valores cuja existência ignorava e, então, vê o seu próprio sistema de valores desmoronar de maneira tão ruidosa que a morte que o surpreende nos surge como uma daquelas soluções naturais, dentro da logicidade específica da tragédia. No texto Milagre na cela , sente-se uma inclinação apocalíptica numa dimensão universal de conflito entre o bem e o mal , cuja significação nos faz pensar na relação dualística entre o Céu e o Inferno , a vida e a morte , a luz e as trevas , Deus e o Demônio . A figura apocalíptica do demônio é o dragão. Nota-se essa representação no texto Milagre na cela , onde no Céu da consciência e no Inferno da cela/prisão se realiza um embate mítico-universal da situação de finitude do homem. (De repente Daniel faz um sinal. Instantaneamente, os homens começam a simular uma luta de karatê em volta de Joana. Eles saltam no ar, jogando pés e punhos na direção do rosto de Joana, ao mesmo tempo em que gritam. Os pés e os punhos fechados passam a um palmo do rosto e do corpo de Joana. A luta simulada se transforma num bailado sinistro. O rosto dos homens são máscaras odientas. Seus gritos, sons primitivos. Daniel olha para eles como se fossem feras domesticadas. De repente, os homens para e voltam aos seus lugares, estáticos. Olham Joana com um desejo assassino, como se fossem cabeças da mesma hidra, do mesmo dragão. Daniel sorri) Daniel : Então? Joana : (Hirta, sofredora) Por um momento... me fizeram lembrar o grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez cornos, e que ameaçou Nossa Senhora! Como ela, também não senti medo. Você só dispõe de força animal, mas nada vai destruir minha liberdade interior. Daniel : (Ri) Acredita mesmo nisto, santinha? Joana : Acredito. Com o uso da força pode fazer comigo o que desejar, até mesmo uma pasta. Sou a parte fraca e não posso reagir. Mas medo não pretendo sentir. Se me trouxe aqui para isto, pode me mandar de volta para a cela. (De repente) Você tem medo? Daniel: Claro que não. Joana : Então, por que não sai à rua sozinho, sem guarda pessoal, sem armas e sem estar cercado de policiais? Vocês têm medo de tudo e de todos. Têm até uns dos outros. Mas eu não tenho medo de nada. Estou disposta, neste instante, a responder perante Deus. Daniel : (Retesado) Como sabe que saio assim? Joana : Vi fotografias num jornal. (Ataca) Isto é ter medo e ser covarde, como está sendo agora comigo. (Enfurecido, Daniel faz sinal a um dos homens. Este se adianta e dá uma bofetada em Joana. Enfurecida, Joana investe valente contra o homem, tentando devolver a bofetada. Os homens empurram Joana, um para o outro, como se fosse peteca. Enquanto rodopia, entre os homens que se divertem, Joana grita sem temor) Joana : Covardes! É a única força que vocês têm. Soltem os cães! Não são piores do que vocês. Não vou admitir nunca o que não fiz. Quero saber porque estou presa...!

(Desaparece a cela. Logo em seguida, Joana surge no corredor das celas, trazida por um dos homens. Ele abre a cela e empurra Joana. Joana anda meio desorientada. Subitamente, cai ajoelhada, observada por Jupira)

Joana : Meu Deus! Perdoe-me pelo ódio que senti! Devia ter oferecido a outra face, me lembrado de seu martírio... mas não pude, não pude, não pude! Sei que preciso aceitar tudo com coragem e não temer a tortura. (Frágil) Mas eu temi! Eu temi, meu Deus! Jupira : Ficou assim com a primeira investida? Você não sabe até onde eles podem chegar. Comece a fazer ginástica e prepare o corpo. Reza aqui não adianta. Se adiantasse... muitos não teriam comido o que o diabo amassou com o cu!

(Joana continua rezando. Jupira se volta para o canto. Daniel, agitado, entra na sala do carcereiro)

Milagre na cela é um texto de grande importância na dramaturgia brasileira por denunciar a violência mostrando um elemento de uma instituição historicamente influente no Brasil. Cela , ao mesmo tempo, significa quarto de um convento religioso, chamado assim pelas Regras da ordem de cela e espaço de detentos das prisões públicas.

4.2.1.4 – Fábrica de chocolate Fábrica de chocolate é de autoria de Mário Alberto Campos de Morais Prata. Segundo o autor, seu texto surgiu de indagações, reflexões durante o velório do jornalista Wladimir Herzog. Estava eu e o cunhado do Wlado, João Ribeiro Chaves, que escreveu a peça sobre tortura Patética, que também ganhou prêmio do SNT, dois anos atrás. Era uma noite fria no Alberto Einstein e eu fiquei sentado ali, imaginando... Tinha fotografia do Wlado pendurado, foto do sulco no pescoço, a língua de fora, todos os detalhes, e eu comecei a imaginar quem é que fazia aquele serviço, alguém tinha que ter idéia de que corda no pescoço... 51

Na impossibilidade de escrever diretamente a peça, que não seria montada naqueles anos, a história foi crescendo apenas na cabeça do autor. Ele tomou o cuidado, ao fazê-la, de não pegar depoimentos pessoais de quem tinha sido torturado. Tanto que nem tortura nem torturado aparecem em cena. Como diz , no jornal citado anteriormente, a peça só tem o lado de lá, o lado de cá é a platéia. Não se sabe se por sorte ou perspicácia, Mário Prata descobriu um analista de torturadores. Sem dúvida, uma figura importante no seu processo de criação: imaginem que eu descobri um sujeito que era psiquiatra de torturador. E esse sujeito me deu muita informação, eu mostrava o texto para ele e ele me dava orientação do lado psicológico dos torturadores. 52 O dramaturgo confessa sua preocupação em não mostrar o torturador nem como doente mental porque aí estaria justificando ele faz isso porque é anormal , nem como um inocente na mão do sistema. O que a peça denuncia, portanto, não é a doença do torturador, é a doença do sistema. O texto Fábrica de chocolate possui seis personagens, a saber: Doutor, 32 anos, é o dono da fábrica de chocolates, o patrão; o operário-vítima – Antônio Pereira da Silva, que tinha três filhos e pretendia aumento de salário; Piedade (Maria da Piedade) – era o cérebro do departamento torturador, ex-agente da Pide portuguesa, a mais intelectualizada do grupo, 45 anos, tinha uma especialização: elaborar o laudo dos

51 Jornal de Campinas. Caderno Viver . 16/4/1980, p. 8. 52 Idem. assassinados e transformá-lo em suicidas. Ela não trabalhava diretamente com a tortura, contudo age em entidade de comando e orientação, mostra-se fria e bastante objetiva; Herrera, 40 anos, Antônio Joaquim Herrera dos Santos, chefe da equipe especializada, possui inteligência média, grau cultural na mesma proporção, com grande dose de agressividade; Dodói, 35 anos, tem todas as características físicas e mentais de um quase débil mental. Perdeu o contato com a realidade. Fixou tanto a agressividade, que só consegue satisfação na agressão. Dá-nos a impressão de que é um personagem deteriorado pela dinâmica da tortura; Baseado, 38 anos, é Raul Santana da Silva. Tem uma das fichas mais brilhantes do departamento. Seu currículo apresenta 12 aparelhos localizados, 75 inimigos presos em flagrante, sendo 43 de uma só vez, capturou uma importante militante comunista, interrogou a filha dela de apenas cinco anos, durante quarenta e oito horas seguidas. Católico apostólico romano. Colabora com obras de caridade no bairro onde mora; Rosemary, 22 anos, beirando debilidade mental, nordestino recém-chegado a São Paulo. Para cometer imprudências e servir de bode expiatório recebe Cr$ 30 mil mensais, sempre com medo de Herrera, o chefe que não se compromete, nem com o dono da fábrica, o industrial que distribui chocolates e leva um operário à morte. A tortura, um dos degraus da violência, é analisada pelo teatro, na peça de Mário Prata. Relata uma prática comum que não morreu com a abertura política. Ainda que revele um nome doce, Fábrica de chocolate é a constatação amarga de encenação preparada para transformar uma morte por violência em suicídio . A ação da peça tem início após a morte de um operário da fábrica de chocolate, denunciado como subversivo pelo próprio patrão, torturado além dos limites. Toda trama se desenvolve no porão de um aparelho de repressão, e mostra as manobras adotadas pelos torturadores para transformar a morte em suicídio e apresentá-la à opinião pública. Sem partir do torturado, o autor se preocupa apenas em mostrar a ação dos torturadores, como se mostrasse o dia-a-dia de um escritório público, com sua hierarquia, a opressão dos superiores sobre os subalternos, a submissão destes a seus chefes. As feras que tiram uma visão por excesso de zelo profissional são fracos humanos, que cumprem suas ordens sem emoção, e gostam do que fazem, profissionais que preferem estar ouvindo futebol pelo rádio a estar fazendo hora-extra por uma falha técnica em seu trabalho. Durante a encenação que preparam para transformar o morto em suicida, vão revelando sua mesquinhez, sua prisão dentro de uma engrenagem que também os esmaga. São verdadeiros dentes de uma engrenagem; são peças do sistema. Se existem, é porque há quem os sustente. Como o dono da fábrica de chocolates, que alimenta estes porões com seus operários – aqueles que tentam submeter a ordem lutando por melhores condições de vida. (Baseado entra com um enorme rádio portátil debaixo do braço, cortando a frase de Herrera. Herrera fica olhando para o radio enorme) Baseado : Só tinha esse. Serve? Herrera : Onde foi que você arrumou esse trambolho? Baseado: Comunicações, uai. Herrera: (Examinando o rádio) Tudo tranqüilo por lá? Baseado: Tudo certo. Só que o Dodói está lá. Herrera: Ai minha caceta. É hoje. É hoje. Rosemary: (Ao mesmo tempo) Ai, aiai, aiai. Herrera: Como é que ele está? Baseado: Por enquanto, tranqüilo. Herrera: Só faltava ele aparecer hoje por aqui. Não faltava mais ninguém. Já disse mais de mil vezes ao chefe que o Dodói tem que ser internado. Mas alguém me ouve aqui nessa merda? Alguém me ouve? Esse cara ainda vai acabar dando trabalho pra gente aqui dentro hoje. Pode escrever. Rosemary: No fundo até que eu gosto dele. Herrera: Vai nessa, vai. Baseado: Parece quieto. Tá assistindo o Ciborg. Herrera: Ciborg, Ciborg. Não sei o que vocês vêem nesse cara. Queria ver o Ciborg aqui do nosso lado, enfrentando terrorista na rua. Isso que eu queria ver. Iam desaparafusar o cara inteiro na primeira oportunidade. Baseado: O Picuinha disse que esse rádio pega até em Cuba. Herrera: Quero que Cuba se foda. Pegando o Morumbi, tá muito bom. Vê se pega o Osmar Santos aí. (Baseado vai para o fundo da sala, na poltrona, tentando achar a melhor estação para a transmissão da partida de futebol) Herrera : Parece até mentira, mas sempre perco as decisões. Me lembro da Copa de 70. Merda! Passei o jogo todo interrogando uns filhos da puta que tinham seqüestrado a bicha de um embaixador da puta que o pariu. (Lembrando-se) Mas foi uma beleza. Teve um interrogatório de uma menina da USP que o chefe até guardou a fita de lembrança, para mostrar em palestras. Tamanha a perfeição que a gente atingiu. Que beleza, aquela tortura. Bons tempos, Rosemary. Bons tempos. Também, o trabalho foi dirigido pelo doutor Antenor. E quando o doutor Antenor estava com a macaca... Aquilo sim que eu chamo de delicadeza. Não é essa cagada que vocês dois fizeram. Não se ouvia um pio, não se via uma marca, uma gota de sangue. O doutor Antenor atingiu um grau de perfeição que o sujeito saía daqui da sala e você podia jurar que estava saindo do cabeleireiro. Saía enxutinho. Mas por dentro, tava tudo moído. Maravilha. Sabia, Rosemary, que o doutor Antenor passou quase que o ano de 73 todo fazendo palestras em diversos países da América do Sul e Central? Foi homenageadíssimo. Ele que não saía contando aí pelos jornais porque ele é a modéstia em pessoa.

Em Fábrica de chocolate , o analisado não é o oprimido, é o opressor. Mário Prata aproveita o momento, a hora para dar voz ao torturador de se mostrar. O texto nos revela seis pessoas direta ou indiretamente ligadas à repressão, aos mais bárbaros tipos de torturas. São elementos comuns, que gostam de futebol, têm família, gostam de quadrinhos, freqüentam igrejas ou terreiros; enfim, são pessoas que podem estar próximas a nós a qualquer instante, como, por exemplo: Rosemary – Rosemiro dos Anjos – filho de uma prostituta do agreste e pai desconhecido que gosta de cantar músicas de bordel durante os interrogatórios, daí o apelido, na época com sete para oito anos, cegou um garoto na Paraíba, insuflando fogo em seu rosto com uma lata de flicts . Religioso, freqüenta tendas e é beque central (nomenclatura antiga) do time de futebol do departamento. É notório que o sadismo é um dado de cada personagem, faz parte de seu equipamento, como um objeto do tipo alicate ou cinto. Assim, podemos concluir que Fábrica de chocolate é um texto sem metáforas inúteis a revelar lucidez surpreendente, em todas as implicações de sua trama. É um texto que não é apenas a representação fiel, dolorosa e repugnante de um período de nossa história; vai além para lançar questionamentos de natureza psicológica, sociológica, política e, essencialmente, ética.

5 – Conclusão Eu investigo, eu não asseguro. Não afirmo coisa alguma com certeza definitiva. Conjecturo, tento, comparo, ensaio, pergunto...

Adumbratio Kubbalae Christiane

O que passou, passou. Mas pode voltar. Isso, é preciso que a gente não se esqueça nunca.

João das Neves. A pandorga e a lei.

A gente nunca sabe o dia de amanhã. Mais é tão fácil mudar as coisas. Os dias são tão iguais. Quando a gente vê, a vida passou e aquela vontade de ser feliz continua igualzinha dentro do coração.

Marta, personagem de A nossa voz, de Luiz Maria Lima.

Enfim, mas nunca como palavra definitiva haveremos de pôr termo à nossa investigação acerca do que nos propomos sob o título de Violência à flor da pele: vertentes e vontades – uma abordagem poética . Podemos dizer que qualquer tipo de violência é verdadeiramente violação da personalidade daquele que a sofre. É possível que se considere toda violência como um gosto intimidativo de morte, uma vez que atingir a dignidade do homem é atingir sua vida. A violência, para qualquer cidadão no mundo de hoje e bem especialmente no Brasil, está distante de ser um assunto teórico. Pelo contrário, de um modo acentuadamente preciso, entra pelas residências e corpos, põe em perigo a vida em suas variadas dimensões e vai deixando, pelos caminhos, um vestígio de morte e destruição. Alcança e envolve todos os setores da vida, até mesmo a religião. Parece-nos que o debate que se realiza no Brasil em relação à própria violência e às suas causas é bem complexo. De um ângulo, freqüentemente, se sobrepõe e às vezes se conflitua com o debate sobre o processo de democratização, a natureza do Estado e os limites da democracia brasileira. Sob outro ângulo, ao se multiplicarem os estudos que restauram as relações sociais, a vida do dia-a-dia e as culturas de um período essencial brasileiro como o que compreende a crise do Império e do sistema escravocrata e o início da República – o que nos parece iniciar uma composição de um mosaico cada vez mais evidente sobre as raízes de uma violência que corta/atravessa a organização social como um todo. Um balanço do século XX traz uma sucessão de violências a todos os níveis, que vão iniciar com a guerra de 1914-1918, suas trincheiras, uso de gases venéficos e milhões de mortos civis e militares. A fratricida guerra civil espanhola sucede esses tempos e o surgem logo os campos de extermínio: Dachau, Auschwitz, Treblinka – que buscam apagar, com o Holocausto, a contribuição do povo judeu para a construção da modernidade. No Brasil, o golpe de 64 impôs uma violência das mais sofisticadas da história do país. Decapitou a inteligência progressista, dissolveu as Ligas Camponesas e o Movimento Estudantil, esmagou as guerrilhas e os sindicatos, praticou terríveis torturas e deixou no ar o suspense pelas centenas de desaparecidos. O capital internacional beneficiou-se do uso direcionado e consciente desta violência, pois ela garantiu a produção de lucros e soterrou as utopias de mais de quarenta organizações de esquerda que optaram pela luta armada. 343 Essa interrupção brutal de uma ação transformadora foi fruto de uma profissionalização crescente dos militares que fizeram no Exterior 344 à aplicação prática da repressão nas ruas e no campo. Pairou sobre o país uma atmosfera de medo generalizado, produção sistemática de pânico e terrorismo, com fins já previstos. Portanto, a partir da compreensão que apresentamos sobre a violência e conscientes de que, no final da década de 50, a temática social passou a ser o centro de interesses das atenções de teatrólogos e cineastas, e nos anos 60, o teatro ganhou nova

343 Segundo O perfil dos atingidos em Projeto Brasil: nunca mais , p. 17. 344 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 5ª ed. Trad. Laboratório da Faculdade de Letras UFMG, por Ayeska Branca de Oliveira Farias et alii. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 77/82. Apesar de não falar diretamente da violência, o autor mostra a formação de toda uma geração de militares brasileiros nos Estados Unidos, sistematicamente doutrinados contra a subversão e o comunismo, recebendo as devidas instruções para abater o inimigo. dimensão com o Teatro de Vanguarda, surgindo peças como Eles não usam black-tie e outras encenadas por Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal no Teatro de Arena de São Paulo, retratando aspectos da vida operária e o Grupo Opinião, no Rio de Janeiro, liderado por Oduvaldo Vianna Filho – eis, então, um conjunto de elementos que constituiu um processo muito amplo, iniciado em 64 e que encontra condições reais de implantação após 69, época conhecida em alguns círculos como segundo golpe. O AI-5 transformou o panorama cultural brasileiro. Com o AI-5, seguido do Decreto 477 de repressão aos estudantes, a ditadura militar completava o fechamento político, em meio a um indício de violências e prisões, torturas e mortes. Como já dissemos no percurso do trabalho, fechados por dez meses, o Congresso reabriu em meados de 1969, desfalcado de 94 parlamentares cassados, com a incumbência de ratificar a escolha, previamente feita pela cúpula militar, do general de linha dura , Emílio Garrastazu Médici para presidência da República, no período de outubro de 1969 a março de 1974. O general Médici tomava posse herdando as condições econômicas e políticas que permitiram o período do falso milagre econômico . Com a repressão acentuada e a censura profundamente castradora, no início dos anos 70, desapareceu o Oficina, o Arena e o Opinião. Os anos 70 foram anos de chumbo , embora a imagem que o governo militar quisesse passar fosse a do milagre econômico. Na realidade, o crescimento da economia brasileira entre 1969 e 1973 nada tinha de milagroso, explica Nadine Habert, assegurando que O período Médici representou a consolidação da expansão capitalista nos moldes que já vinham se delineando, contando com as bases econômicas e políticas anteriormente implantadas. O que se convencionou chamar de milagre tinha a sustentá-lo três pilares básicos: o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora submetida ao arrocho salarial, às mais duras condições de trabalho e à repressão política; a ação do Estado garantindo a expansão capitalista, e a entrada maciça de capitais estrangeiros na forma de investimento e de empréstimos. 345 Aos anos do milagre econômico e do Brasil Grande correspondeu o período mais fechado e autoritário do governo militar. Referimo-nos à fase que abrangeu de 1969 a 1973, quando o então presidente Médici governava por meio de decretos-leis, apoiando- se quase exclusivamente no Conselho de Segurança Nacional, cercado e protegido pelo

345 HABERT, Nadine. A década de 70. São Paulo: Ática, 1992, p. 12. AI-5. A máquina da repressão desarticulava qualquer movimento de oposição ao regime militar, tendo como alvo principal as organizações de esquerda. O chamado combate à subversão passou a justificar a total liberdade de ação desse instrumento repressivo, que espalhava terror pela sociedade. Ser preso por quaisquer dos órgãos da repressão, entre os quais o DOI-CODI (Departamento de Operação e Informações – Centro de Operação e Defesa Interna), significava invariavelmente a tortura e, para muitos, a morte. Os assassinatos eram encobertos com versões falsas de atropelamentos ou mortes em tiroteio s. Ou então, simplesmente, ninguém explicava nada e tudo era silêncio. A censura estendeu os seus tentáculos por todas as partes – jornais, revistas, livros, rádio, televisão, filmes, teatro, música, ensino. Tudo em nome da segurança nacional, tudo pela moral da família brasileira. Assim se manifestou a dramaturga acerca da censura: Para os menos avisados parecia fácil. Era sentar e escrever. Depois procurar um ator, diretor ou produtor ou alguém que reunisse duas ou três atribuições. Em seguida, mandar a peça para a censura e estrear gloriosamente. Só que não era assim. A realidade estava muito longe dessa imagem de otimismo da década de 40. O mais fácil era escrever. As dificuldades começavam depois (...) com o produtor que se queixaria da falta de dinheiro, de incentivos, do absurdo dos aluguéis de teatro e, finalmente, com a censura que vetaria ou mutilaria o texto de forma a deixá-lo irreconhecível. 346

Com tantos problemas, o teatro, entretanto, não se intimidou. A classe teatral se uniu e, não se curvando ao poder, foi para as ruas, participou de manifestações gritando contra os que a esmagavam. Os autores passaram a escrever... escrever... de modo imperioso. A dramaturgia de grande parte dos autores tem o golpe de 1964 como marco- divisor, pois no conjunto percebe-se que em nenhum momento o teatro deixou de ser político ou comprometido com um engajamento social sem deixar de reavaliar as temáticas e a maneira pela qual deveria ser trabalhada a arte teatral. A repressão da ditadura provocou o surgimento de uma dramaturgia explosiva, demonstrando a violência. Mergulhando com inteligência e sensibilidade nos múltiplos aspectos da violência, eis que autores como Consuelo de Castro, Fauzi Arap, Jorge

346 AMARAL, Maria Adelaide. Os anos negros. Folha de São Paulo, 11 de novembro de 1979. Folhetim – Os anos 70, p. 4. Andrade e Mário Prata denunciam, através dos textos aqui refletidos, um período cruel do Brasil vivido a partir dos anos 60 até os anos 80. Com À flor da pele , Consuelo de Castro coloca em evidência o confronto de duas formas de querer modificar a sociedade: a paciência de quem pensa com o peso de milhares de anos de história e a rapidez de quem só vê saída na supressão da história. Fauzi Arap, com O amor do não, deixa transparecer que Martim, um personagem pouco assumido como homossexual, e de muita bondade pessoal, realmente tinha uma atração especial por Chico, mas era o seu amor pelo não que Chico materializava, algo provavelmente muito maior na avaliação da moral da classe média. E Chico, atingido pela repressão, usava a bondade de Martim para usufruir da sua eventual proteção, todavia jamais conseguiria entender a situação em que se envolvera, como, provavelmente, jamais haveria também entendido a situação política em que se envolvera. Na verdade, Chico, o politizado, tinha o mesmo pensamento de Lula, o alienado, sobre os motivos de comportamento de Martim, a bondade em pessoa, tão bom que o seu amor do não era a suprema realização do idealismo que havia em seu inconsciente, graças a que sua vida igualmente proibida, a homossexualidade , seria, no fundo, semelhante à do perseguido político. Das maiores contribuições para nossa literatura dramática, Milagre na cela , está fora do ciclo Marta, a árvore e o relógio , inicia um novo ciclo jorgeandradino, infelizmente interrompido pela morte de um dos mais complexos dramaturgos brasileiros. Pode-se dizer que Milagre na cela aponta para a realidade de um Brasil de passado recente como o desenclausuramento dos padres e agentes da Igreja – já apresentado por Antônio Callado nos anos 60, quando a Igreja começava a se bipartir entre o reacionarismo secular e adesão de alguns setores às idéias revolucionárias. A freira Joana de Jesus Crucificado é acusada de subversão pelo Delegado Daniel. Tem como companheira de cela a prostituta Jupira, que lhe ensina a resistir, preservar a vida acima de qualquer coisa e a não se constranger com palavrões. A freira acaba por conceituar tortura como produto de uma mente em decomposição . O texto em questão revela um trabalho de bastante coragem, porque 1977 ainda não nos garantia qualquer abertura democrática e, ali, era denunciado, de modo muito evidente, um dos maiores graus de violência que se efetivava. E Fábrica de chocolate de Mário Prata, vai mostrar a doença do sistema, o mecanismo utilizado para tornar um ato de tortura que causa morte em uma situação de morte natural. Texto, segundo o próprio autor, pensado durante o velório de Wladimir Herzog, morto após barbaramente torturado. Fábrica de chocolate é uma provocação, sob o ponto de vista de dramaturgia, porque Mário Prata recusa a emoção que poderia originar a partir da condição da vítima, opta por examinar a fundo a sua perplexidade, procurando entender os valores e a mecânica daqueles que exercem tal função aviltante. Mário Prata procura mostrar o lado inflamante: o do torturador. Revela mais um episódio do longo processo repressivo brasileiro. Enfim, compreender este passado tão próximo com acontecimentos tão violentos: casos de tortura, morte e desaparecimentos de presos políticos, que hoje se faz presente em diversos traços e segmentos culturais onde ontem, o estado de exceção; hoje, uma franca impunidade legal requer algumas reflexões: a) Questionamento dos fatores sociais que contribuíram com intuito de propiciar as condições para o surgimento de uma poética de cunho participante e, b) A da análise da poética de textos representativos a abordar a repressão, levada a cabo pelo regime militar que se instaurou no País, após o Golpe de 64, com a finalidade de conhecer as suas especificidades e o seu valor artístico no panorama da moderna poética brasileira. 6 - Bibliografia

Bibliografia sobre Direito

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Bibliografia geral

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Textos diversos

01 – A ceia dos não convidados . Jornal do Commércio . São Paulo, 22/01/27. 02 – AMARAL, Maria Adelaide. Os anos negros. Folha de São Paulo , 11/11/79. Folhetim – Os anos 70 . 03 – Amnesty internacional. International Secretariat. London, 23/06/1999. 04 – Antes de mais nada é preciso criar uma crítica teatral. Diário de Pernambuco, 15/3/1949. 05 – ARAP, Fauzi. Reportagem de Hilton Viana. Diário de São Paulo, 20/10/1977. 06 – Artur Xexéo/Cláudio Bojunca. Revista Veja , 22/4/81. 07 - BRANDÃO , Tânia. Teatro brasileiro do século XX: as oscilações vertiginosas. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. s/d. 08 - CANTO, Marival D. Chaves do. Autópsia da sombra. Veja. 18/11/1992. 09 - CASTRO, Consuelo de. Depoimento ao Jornal Folha de São Paulo , em 15/10/69. 10 - Conexão: comunicação e cultura. Universidade de Caxias do Sul. V1, nº 2(2002). Caxias do Sul, Educs, 2003. 11 - CORRÊA, José Celso Martinez. Manifesto – programa de O rei da vela. São Paulo: setembro de 1967. 12 - ESTEVAM, Carlos. Brasil 1889-1975 – Desenvolvimento histórico. Revista Dionysos. Set. 1980, nº 25. MEC/SEAC – FUANARTE/Serviço Nacional de Teatro. 13 - FARIA, Antonio Celso Campos de Oliveira. O direito à integridade física, psíquica e moral e a pena privativa de liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais , São Paulo, nº 22. 14 - FOBÉ, Nair Leme. Teatro: espaço privilegiado para a expressão de emoções. Comunicarte. V.1, nº 1, 1982. Campinas, PUC – Centro de Linguagem e Comunicação. 15 - HELIODORA, Bárbara. Conferência no Instituto de Artes da UFRS. Semana de Cultura Brasileira. Departamento de Artes Visuais, 1972. 16 - Jornal Tortura Nunca Mais . São Paulo, agosto-setembro, 1996. 17 - MAIA, Luciano Mariz. Os direitos humanos e a experiência brasileira no contexto latino-americano. Cadernos de Direito e Cidadania: dialogando sobre direitos humanos . São Paulo: Artchip, novembro de 1999. 18 - Manifesto à poesia Pau-Brasil. Correio da manhã. Rio de Janeiro, 18/3/24. Ano XV. 19 - Missa dos Quilombos. Encarte LP gravado ao vivo na Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens em Caraça, Minas Gerais, MG. Autores: Milton Nascimento, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra. Ariola Discos Fonográficos, 1982. 20 - Revista Dionysos . Serviço Nacional de Teatro do Ministério da Educação e Cultura. Ano XIII – maio de 1968, nº 16. 21 - Revista do Teatro . SBAT (322) julho/agosto, 1961. 22 - SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Arte em revista. São Paulo: Kairos/CEAC, nº 6, Teatro, 1981. 23 - SANTOS, Luis Alberto Brandão. Literatura e teatro: interfaces. Gragoatá. nº 1, 2º semestre, 1996. Niteró, EdUFF, 1996. 24 - SANTOS, Roberto Corrêa dos. As desgraças de uma criança: tópicos para estudo. Caleidoscópio; estudos literários . V. 9, nº 9,1989. São Gonçalo, RJ, ASOEC, Faculdades Integradas de São Gonçalo/Departamento de Letras. 25 - Teatro brasileiro. Festa . Rio de Janeiro, 1º de fevereiro de 1928. 26 - Xênia Antunes. Correio Brasiliense. 16/3/83.

SANTOS, Jorge Lopes dos. Violência à flor da pele –vontades e vertentes: uma abordagem poética. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. 196 folhas digitadas. Tese de Doutorado em Poética.

RESUMO

Este trabalho procura refletir, através da leitura de textos dramáticos, alguns tipos de violência manifestada num período compreendido dos anos 60 a 80 aproximadamente, quando uma série de modificações de ordem econômica, política e social vem refletir-se no plano da cultura, dentro do qual enfocamos a violência evidenciada nos textos teatrais como objeto de análise.Tenta-se abordar a repressão levada a cabo pelo regime militar que se instaurou no País, após o Golpe de 64.