Nonada: Letras em Revista E-ISSN: 2176-9893 [email protected] Laureate International Universities Brasil

Zilberman, Regina Desafios da literatura brasileira na primeira década do séc. XXI Nonada: Letras em Revista, vol. 2, núm. 15, octubre, 2010, pp. 183-200 Laureate International Universities , Brasil

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Challenges of brazilian literature in the first decade of the century xxi

Regina Zilberman

RESUMO Desde o começo do século XXI, a literatura brasileira mostra uma situação inteiramente diferente, se compara com as décadas anteriores: o aumento do número de publicações de livros escritos por autores brasileiros, o alargamento do público leitor, o crescimento do mercado, a globalização de sua circulação são fenômenos desse novo tempo. Estes fatos tornam-se desafios para os escritores e os leitores, a serem aqui examinados.

PALAVRAS-CHAVE Mercado literário; Cânone; criação literária.

ABSTRACT Since the beginning of the 21th Century, the Brazilian Literature shows a whole new situation, if compared with the previous decades: the increase of publica- tions of books written by Brazilian authors, the enlargment of the reading public, the growth of the market, the globalization of its circulation are phenomenons of this new age. Those facts become challenges for the writers and the readers, challenges to be examined here.

KEY WORDS Literary Market; Canon; Literary creativity.

A literatura brasileira experimenta um momento particularmente favorável: estatisticamente, cresceu o número de publicações origina- das de autores nascidos no Brasil; diversificaram-se os gêneros em que um escritor pode se manifestar, estendendo-se as opções dos modelos mais elevados da ficção e da poesia à produção para a imprensa, para Desafios da literatura brasileira na primeira década do séc. XXI

o cinema ou para o público jovem; profissionalizam-se os criadores de arte, adotando a prática de agentes literários, que medeiam as relações com editores, tradutores e divulgadores no campo cultural. Também é sintomático do novo status da literatura brasileira o au- mento do número de concursos literários que recompensam escritores consagrados, colaborando para sua estabilidade profissional. Exemplos são os prêmios promovidos por empresas privadas, como Portugal Te- lecom e Zaffari-Bourbon, entidades não governamentais, como a Aca- demia Brasileira de Letras, e por administrações estaduais, como as de São Paulo (Prêmio São Paulo de Literatura) e de (Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura), ou entidades federais, como a Fundação Biblioteca Nacional. Essas premiações, somadas, alcançam mais de um milhão de reais (aproximadamente quinhentos mil euros), sendo concedidas anual ou bienalmente a escritores em língua portugue- sa. Os vencedores, por extensão, se beneficiam da repercussão obtida por suas obras, facultando-lhes chegar com mais facilidade ao público consumidor. Por sua vez, autores novos são prestigiados por prêmios literários que, embora de menor envergadura e de abrangência regional, alavancam carreiras e estimulam talentos promissores. O quadro da indústria editorial também se alterou no Brasil do novo milênio: empresas estrangeiras descobriram o mercado nacional, adqui- rindo editoras de grande porte, como a Moderna, de São Paulo, focada na demanda escolar por livros didáticos, paradidáticos e infanto-juvenis, e a Objetiva, do , cujo catálogo inclui best sellers, como Luís Fernando Veríssimo (1936) e João Ubaldo Ribeiro (1941). A reunião de editoras sob um único selo constitui acontecimento da última década, permitindo a um grupo como a Record abrigar os catálogos, entre outros, da Bertrand Brasil, José Olympio, Civilização Brasileira e Difel, e dispor em sua carteira das obras de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e (1930), entre os poetas, e Cristóvão Tezza (1952), Edney Silvestre (1955) e Luís Ruffato (1961), entre os ficcionistas. A adoção de contratos de exclusividade, com o pagamento de royalties aos autores

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ou a seus herdeiros, para garantir o privilégio, tornou-se outra prática do mercado editorial brasileiro. Assim, a Companhia das Letras adquiriu os direitos de publicação das obras de (1912-2001) e de Erico Verissimo (1905-1975), blockbusters nacionais há mais de cinquenta anos, além da compra da obra integral de (1923). Por sua vez, os escritos de (1920-1977) são difundidos tão- somente pela Rocco, que inclui em seu catálogo os renomados Affonso Romano de Sant’Anna (1937) e (1926). Na mesma di- reção, a Globo, nascida no e atualmente radicada em São Paulo, conta, entre seus nomes de peso, com a produção de Monteiro Lobato (1882-1948) e de Mario Quintana (1906-1994). A concentração editorial em poucas empresas de grande porte, poucas delas inteiramente nacionais, teve como consequência a reação regio- nal, impulsionando o aparecimento de projetos destinados à difusão de escritores de circulação local ou emergentes. Trata-se aqui de outro procedimento, que responde a uma lógica diferenciada, porém não menos focada no mercado. Tirando vantagem dos modernos editores de texto e de softwares di- recionados à diagramação, é possível, de modo fácil e rápido, preparar originais, proceder ao planejamento gráfico, chegar à arte final e deixar uma obra pronta para publicação. Um original, preparado em pdf [porta- ble document format], pode ser impresso, sem requerer necessariamente a fotolitagem, o que barateia o custo. As editoras podem, portanto, se resumir a empresa de pequeno porte, empregando poucas pessoas ou terceirizando os serviços, o que também contribui para a diminuição das despesas operacionais. Tais circunstâncias colaboram para o apare- cimento e desaparecimento de empreendimentos dessa natureza, cujo catálogo é formado, na maioria das vezes, por autores emergentes ou regionais, desatendidos pelas grandes editoras, que os desconhecem ou não desejam investir em criadores de alcance unicamente local. Boa parte dos escritores brasileiros hoje conhecidos e premiados começaram sua trajetória, valendo-se desse expediente, tendo sido,

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em muitos casos, eles próprios editores de seus livros. Daniel Galera (1979), ganhador do Prêmio Literário , da Fundação Biblioteca Nacional, em 2008, e um dos vencedores, em 2009, do Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, lançou seu primeiro título, Dentes guardados, em 2001, pela Livros do Mal, de que era sócio, junto com Daniel Pellizzari (1974) e Guilherme Pilla. O panorama da literatura brasileira no primeiro decênio do novo sé- culo distingue-se daquele experimentado nas décadas anteriores, ainda que várias iniciativas, bem sucedidas, datem de programas, projetos e posicionamentos inaugurados nos anos 1970. Uma delas diz respeito a em- preendimentos governamentais, nos planos federal, estadual e municipal, apoiando a publicação de obras inéditas de autores emergentes, bem como estimulando a circulação de escritores nacionais em escolas e universidades, com o fito de levá-los a dialogar, sem mediações, com seu público. Outra decorre da ação dos intelectuais brasileiros, artistas e pensadores, que agiram em prol da redemocratização do país, luta que os colocou perante as forças da repressão, da censura e da indiferença, mas que resultou em uma literatura voltada para a conscientização dos leitores e engajada no processo de restauração das liberdades políticas e dos direitos civis. Esses aspectos, favoráveis, alguns, desfavoráveis, outros, apresentam- se na qualidade de desafios perante os quais todo escritor, consagrado ou aspirante, precisa se defrontar, posicionar-se e, eventualmente, resolver, dado seu conteúdo às vezes enigmático. Tais desafios são enumerados a seguir.

1 A difícil profissionalização

Desde a segunda metade do século XIX, os escritores e intelectuais brasileiros pugnam por sua profissionalização, o que significa o reco- nhecimento, de uma parte, de sua condição de trabalhadores, de outra, de seus direitos de autor, o que requer justa e permanente remunera-

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ção. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1996; LAJOLO & ZILBERMAN, 2001) A fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, representou um das facetas dessas reivindicações, voltada antes à aceitação do escritor como um membro responsável da sociedade e cidadão, assim como à desconstrução da imagem do boêmio desocupado, que povoara as fantasias românticas. Foram, contudo, os militantes do projeto republi- cano, entre os quais se destaca o socialista Pardal Mallet (1864-1894), que combateram em prol da legislação dedicada ao reconhecimento da propriedade literária e da necessidade de remuneração do exercício intelectual por meio do pagamento de direitos autorais. Porém, ao longo do século XX poucos escritores tiveram condições de depender tão-somente dos rendimentos de seu trabalho literário. Citam-se frequentemente os nomes de Jorge Amado e Erico Verissimo, para evidenciar a carência de uma política de auto-suficiência econô- mica a ser experimentada por poetas e ficcionistas. Alternativas como a aceitação de emprego no serviço público – a que esteve vinculado, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade –, um lugar na diplomacia – como fizeram João Cabral de Mello Neto (1920-1999) e Vinícius de Moraes (1913-1980), entre muitos outros – ou a atuação na imprensa – a opção mais usual, citando-se como exemplo os nomes de (1912-1980), Clarice Lispector (1920-1977) e (1913-1990), responsáveis por notável produção em jornais e em revis- tas nacionais – são encontráveis na biografia daqueles que vieram a constituir o cânone da literatura moderna do Brasil. Duas situações vividas especialmente no primeiro decênio do século XXI revelam que o mercado editorial pode hoje garantir a autonomia financeira do autor brasileiro: a produção de livros sob encomenda, em resposta a projetos coletivos: é o caso da coleção Cinco Dedos de Prosa, da Objetiva, em que (1926), Mário Prata (1946), Luís Fernando Verissimo, Fer- nanda Young (1970) e Manoel Carlos (1933) elaboram narrativas a partir de cada um dos dedos da mão. Na coleção Devorando Shakespeare, da

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mesma editora, Luís Fernando Verissimo, Adriana Falcão (1960) e Jorge Furtado (1959) retomaram a trama de obras do dramaturgo inglês (res- pectivamente, A décima segunda noite, Sonhos de uma noite de verão e Trabalhos de amor perdidos), criando narrativas que não perdem em originalidade e ambiência contemporânea e nacional, embora sugeridas por peças distantes no tempo e no espaço. A coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras, contratou vários escritores, entre os quais se contam Adriana Lisboa (1970), Amílcar Bettega Barbosa (1964), Bernardo Carvalho (1960), Daniel Galera, Lourenço Mutarelli (1964) e Luiz Ruffato, para redigirem narrativas passadas em metrópoles de todo mundo, colocando o tema amoroso no centro do enredo. Que a iniciativa é bem sucedida comercial e literariamente, indica-o o fato de que as coleções, com temas encomendados, continuam em processo de expansão. É sugestiva igualmente a circunstância de vários romances, presentes nas listas de coleções, serem premiados, como ocorreu ao já mencionado Cordilheira, de Daniel Galera; por sua vez, outros títulos, como O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, ou Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato, são finalistas em concursos literários de abrangência nacional. a contabilização dos direitos autorais. O exemplo mais notório é o de (1947), responsável por grandes êxitos editoriais no Brasil e no Exterior. Outros escritores, porém, chegam a patamar semelhante, ao menos no âmbito nacional, como ocorre a Luís Fernando Verissi- mo, há alguns anos citado em periódico de circulação nacional como o escritor com o maior número de livros vendidos no país. Exemplo recente é o de Cristóvão Tezza, cujas premiação e comercialização de seu romance O filho eterno, de 2007, permitiram que ele abandonasse a carreira de professor universitário, passando a dedicar-se exclusiva- mente à sua escrita, capaz de mantê-lo financeiramente. A profissionalização pode, pois, colocar-se no horizonte de expectati- vas do escritor brasileiro. Porém, para tanto, ele deverá também aceitar um segundo desafio.

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2 A circulação entre escolas, feiras de livros e festas literárias

Eventos dedicados a festejar o livro datam dos anos 50 do século XX brasileiro, se tomarmos como referência o evento realizado na cidade de Porto Alegre desde 1955. Nos anos 70, na esteira da Bienal do Livro de São Paulo, promoções dessa natureza aumentaram em número, dimensão e diversidade. Desde o começo da primeira década do novo milênio, são realizadas em quase todas as capitais brasileiras e na maioria das cidades de porte médio, acolhendo grande quanti- dade de pessoas. A Feira do Livro de Ribeirão Preto, por exemplo, cidade situada no interior de São Paulo e polo de sua região, anunciou ter acolhido mais de quatrocentas mil pessoas nos onze dias de sua duração, em 2009. Ao lado das feiras e bienais do livro, destacam-se as movimenta- ções provocadas pelas festas literárias, que, a exemplo da prestigiada FLIP (Festa Literária de Parati), reproduzem-se com sucesso em outras regiões do país, especialmente as situadas no litoral, como Porto das Galinhas, em Pernambuco, alcançando representativo noticiário veiculado pela imprensa nacional, bem como por redes de televisão, sites e blogues. Feiras, como a de Ribeirão Preto, e festas literárias, como a de Parati, podem acontecer anualmente e, mesmo assim, são acontecimentos que atraem público e mídia, já que se trata de um evento pop que coloca escritores, intelectuais e pesquisadores ao lado de astros dos meios de comunicação de massa. Ainda que grande parte do público dessas promoções desloque-se ao local onde se instalam os palcos de debates ou aos estandes que vendem livros para assistirem aos shows de seus ídolos na música e na televisão, esses compartilham um espaço que é do escritor, que, da sua parte, precisa se comportar como aqueles, pronto a dar entrevistas, fazer declarações sobre assuntos variados, acolher a admiração de seus leitores e fãs.

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Tal disponibilidade não se aplica apenas a eventos públicos relacio- nados ao livro e à cultura. Ela precisa se materializar igualmente na predisposição para se apresentar em salas de aula e auditórios, dirigindo- se a uma plateia formada não apenas de adultos, como professores e estudantes universitários, mas também infantil e juvenil, como os alunos das escolas do ensino básico. Essa prática data dos anos 1970 e teve, em suas primeiras manifesta- ções, declarado intuito político. À época, a censura e a repressão domi- navam a cena pública, condenando as pessoas ao medo e ao silêncio. Ao mesmo tempo, configurava-se uma nova geração de escritores, de que faziam parte José J. Veiga (1915), Rubem Fonseca (1925), Ignacio de Loyola Brandão (1936), (1937), João Antônio (1937), Deonísio da Silva (1948), que buscava alternativas de comunicação com seus prováveis leitores. Ultrapassar o bloqueio dos órgãos de comunicação, cerceados pela censura, dar visibilidade a obras publicadas de modo quase marginal, passar o recado da insatisfação com a situação vigente – eis as metas desse grupo de autores que foi atrás de seus destinatários, valendo-se da alternativa que restava: o contato direto por intermédio do diálogo e da solidarização com os jovens que também desejariam manifestar sua inquietação e vontade de mudar o regime e a sociedade. A redemocratização, a partir da segunda metade dos anos 1980 e, mais intensamente, na década seguinte, conferiu nova configuração ao processo. Consolidou-se a tese de que crianças e jovens interessar-se-iam mais pela leitura se fossem motivados a tal atitude em decorrência da presença viva e estimulante do escritor. Assim, a crise de leitura levou ao aumento de projetos educacionais, bancados por órgãos governa- mentais, de uma parte, e por editoras, de outro, de visitas de autores a escolas e cursos superiores, produzindo, em muitos casos, o aumento das vendas das obras literárias, em outros, a disseminação de uma prática segundo a qual o artista ultrapassa o âmbito privado de sua produção e aprende a se comunicar com seus possíveis destinatários.

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Pedro Bandeira (1942), autor de textos para crianças e jovens, pôde, assim, chegar à marca dos vinte milhões de obras comercializadas até 2006, recorde de que avizinham Ziraldo (1932), (1942) e (1931), entre os criadores de narrativas para a infância e juventude. Sob esse aspecto, o criador transforma-se em agente do mercado, colaborando para seu fortalecimento. Eis outro de seus desafios.

3 O fortalecimento do mercado

Como se observou antes, a indústria editorial brasileira passou por substantivas mudanças na última década. Grupos editorais europeus adquiriram empresas brasileiras formando conglomerados, como a Santillana, que congrega os selos da Moderna, Objetiva e Alfaguara, ou a Planeta, que englobou a Enciclopédia Barsa, além de publicar o catá- logo de Paulo Coelho. Por sua vez, a editora Abril, em 2004, incorporou a Ática, enquanto o Grupo Record inclui os selos da Bertrand Brasil, José Olympio, Best Seller, Civilização Brasileira, Nova Era, Difel, Rosa dos Tempos, BestBolso e Galera, entre os quais se distribuem obras de poesia, clássicos da literatura brasileira, auto-ajuda, traduções de best sellers internacionais e literatura infantil. Pode-se concluir que o mercado consumidor de livros no Brasil é atraente e que o país conta com um público leitor crescente e consis- tente. A conclusão é enganosa, embora seja inegável que se registrou um aumento no número de livros adquiridos e um alargamento do público leitor. Contudo, a melhora dos dados quantitativos deve-se a alguns fatores específicos. Um deles, é certo, decorre da vendabilidade dos livros de escritores brasileiros como o sempre citado Paulo Coelho, ao lado do qual se podem colocar os nomes de Lya Luft (1938), Martha Medeiros (1961) e Laurentino Gomes (1956), além dos incontornáveis responsá-

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veis por obras de esoterismo e auto-ajuda, como Zibia Gasparetto (1926) e Augusto Cury (1958). Outro relaciona-se à intensa participação do Estado no processo de compra, por intermédio de projetos governamen- tais, de obras literárias, com a consequente, mas nem sempre eficiente, distribuição deles entre escolares. Programas governamentais de aquisição e difusão de livros povo- am a história da leitura no Brasil. Desde a emancipação do país, na terceira década do século XIX, os políticos se debatem com a questão, discutindo as melhores alternativas para, primeiramente, derrubar as taxas de analfabetismo, bastante elevadas até os anos 1990, e, depois, formar uma nação de leitores. Nesse sentido, foram privilegiados, em distintos períodos da história, o livro didático, o texto informativo, re- vistas semanais, enciclopédias e dicionários, obras de poesia e ficção, a produção dirigida à infância e à juventude, gêneros considerados aptos a motivar uma criança ou um adulto a ler mais e melhor. Nas últimas décadas, esses gêneros têm sido amplamente favoreci- dos por programas nacionais, como o PNLD ou o PNBE, ou regionais, dependentes, esses, das ações de secretarias estaduais de educação ou de cultura, ou de prefeituras, especialmente a das capitais. Editoras se beneficiam amplamente dessas políticas, que repercutem sobre os escritores, pois compete a esses últimos a produção de obras adequa- das às compras governamentais. Por essa razão, a maioria dos autores brasileiros atuantes no sistema literário nacional apresenta, em seu catálogo particular, uma ou mais obras destinadas ao público escolar, formado por crianças e jovens. Mesmo artistas transgressivos e auda- ciosos, como João Gilberto Noll (1946), assinou recentemente um texto para o consumidor juvenil, o que não significa, da parte dele, perda de criatividade ou rendição ao mercado. Sugere, por outro lado, a resposta de um ficcionista de reconhecida qualidade e impacto na literatura a um desafio do mercado editorial brasileiro, a que os escritores não podem ficar indiferentes. Contudo, cabe perguntar: e a qualidade artística? Onde está ela?

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4 Inovação e renovação literária

Supõe-se que o único compromisso de um autor de obras literárias, sejam elas de natureza lírica, narrativa ou dramática, seja com sua pró- pria arte. Essa, por sua vez, pode nascer espontaneamente, mas depara- se com alguns horizontes, entre os quais se reconhece a imposição do cânone. Formatado por distintas tradições – a nacional, a internacional, a linguística, a estética – o cânone aparece na condição de um desafio e, sobretudo, de um enigma, que o artista deve decifrar, sob pena de ser devorado, por não souber fazê-lo ou não ser bem sucedido. O cânone, por muito tempo, requereu sua própria reprodução. Distintos classicismos empenharam-se na afirmação de normas e pa- radigmas a que cabia obedecer e dar sequência. Desde as poéticas do final do século XVIII, tendo sido a dos românticos a mais difundida entre nós, a ordem inverteu-se: o cânone aí está para ser desacatado, rejeitado e desconstruído. As vanguardas modernistas levaram a tese ao paroxismo, de que é exemplar a declaração de Mário de Andrade (1893-1945) no Prefácio interessantíssimo, que abre Pauliceia des- vairada, de 1921: se, na primeira frase, o poeta dirige-se ao leitor, afirmando que “está fundado o Desvairismo”, na última, arremata: “E está acabada a escola poética “Desvairismo”. / Próximo livro fundarei outra.” (Andrade, 1987) O ímpeto revolucionário das primeiras décadas do século XX pode ter arrefecido à medida em que os decênios se passaram. Não desapareceu, porém, do horizonte do campo literário, induzindo cada artista, de uma parte, a inovar, se comparado com seus contemporâneos e predecessores, de outra, a renovar-se permanentemente, se examinada sua trajetória artística ao longo do tempo. Diante dessa provocação, e sobretudo quando somada ou cotejada aos desafios anteriores, não se pode negar que as novas gerações de escritores brasileiros têm apresentado inovações substanciais, sem deixar de se renovar continuamente.

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Cabe mencionar primeiramente autores cujas obras inaugurais datam da década de 1960, como Dalton Trevisan (1925), que, se de uma parte permanece fiel à forma do conto, de outra, investe ininterruptamente em uma narrativa transgressiva, cortante e implacável, de que são exemplos Pico da veia e Macho não ganha flor, vencedores do Prêmio Portugal Telecom de Literatura respectivamente em 2003 e 2007. Sinal de sua produtividade é a publicação de Violetas e pavões, em 2009, apontando para a fertilidade de seu imaginário de contista. Foram, porém, os escritores estreantes nos anos 70, do século XX, que acompanharam a nova situação da literatura brasileira, de que os desafios aqui dispostos são efeito. de Holanda (1944) publicou seu primeiro romance, Fazenda modelo, em 1974, alegoria de fundo político que desmontava o “milagre brasileiro” propalado pelo regime militar. Seus investimentos literários subsequentes foram Estor- vo, de 1991, e Benjamin, de 1995, propostas, sobretudo a primeira, de linhagem experimental, sendo a cronologia movida pelo fluxo da me- mória e pelos distúrbios emocionais do protagonista. Dez anos depois, Buarque afina-se ao pendor intertextualista da literatura, publicando o multipremiado Budapeste, de 2004; mas o ficcionista dá novo giro à sua prosa, lançando, em 2009, Leite derramado, romance em que trava um debate com a tradição do romance brasileiro, encarnada em Machado de Assis (1839-1908) e Oswald de Andrade (1890-1954). Também Cristóvão Tezza começou a publicar seus primeiros livros nos anos 1970, tendo alcançado a maturidade desejada nesta primeira década do século XXI. Exemplos são tanto O fotógrafo, de 2004, agracia- do com o Prêmio Academia Brasileira de Letras, quanto o bem sucedido O filho eterno, de 2007, romance em que se diluem as fronteiras entre a memória e a fantasia, e entre a história e a ficção. O amazonense Milton Hatoum (1952) talvez possa representar o melhor exemplo de inovação e impacto nos anos 1990, quando lançou o romance Relato de um certo Oriente, mescla de narrativa memorialista, metaficção historiográfica e discussão das possibilidades de representa-

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ção do exotismo tropical. Dois irmãos, de 2000, e Cinzas do Norte, de 2005, dão continuidade à carreira exitosa, de repercussão internacional, a que se seguem as publicações mais recentes do autor: Órfãos do El- dorado, de 2008, e A cidade ilhada, de 2009. A última década deu vazão a uma plêiade de novos talentos, podendo- se destacar os seguintes nomes, considerados sobretudo aqueles que vêm recebendo prêmios significativos em concursos de repercussão nacional: Bernardo Carvalho, autor de Nove noites (2002) e Mongólia (2003); Luiz Ruffato, autor de Eles eram muitos cavalos, de 2001; Nuno Ramos (1962), artista plástico e escritor, autor de Ó, de 2008; Maria Esther Maciel (1963), autora de O livro dos nomes, de 2008; Amílcar Bettega Barbosa, autor dos contos de Deixe o quarto como está, de 2002, e Os lados do círculo, de 2004; Lourenço Mutarelli, autor de A arte de produzir efeito sem causa, de 2008; Marcelo Mirisola (1966), autor de Bangalô, de 2003, e Animal em extinção, de 2008; Rodrigo Lacerda (1969), autor de O mistério do leão rampante, de 1995, e Outra vida, de 2009; Michel Laub (1973), autor de O segundo tempo, de 2006; Tatiana Salem Levy (1979), autora de A chave da casa, de 2007. Relacionaram-se aqui apenas ficcionistas, e tão-somente criadores nascidos entre 1960 e 1980, o que corresponde a uma geração que, em 2010, oscila entre os trinta e cinquenta anos de idade. Logo, constituem não apenas a literatura que se faz hoje no país, mas também a que provavelmente continuará ativa nas próximas duas décadas. Ela se depara com outro desafio, o último a se mencionar nesta ex- posição: dar vazão a uma arte de alcance internacional, sem deixar de se revelar eminentemente brasileira.

5 À la recherche do mercado internacional

Um dos principais projetos dos artistas e intelectuais do século XIX brasileiro consistiu o fortalecimento do mercado de livros no país, de-

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corrente da consolidação do público leitor. Em um país que, em 1870, portanto, quase cinquenta anos depois de sua emancipação política, ostentava uma população formada por 70% de analfabetos e não su- primira o regime escravocrata, contar com leitores e consumidores de impressos constituía um projeto ambicioso e quase utópico, exequível apenas em alguns centros urbanos. Outros problemas assolaram o campo literário até o final do século XIX, como a presença ostensiva da literatura estrangeira, especialmente a que provinha de Portugal e da França, a circunstância de os livros serem impressos, em muitos casos, em tipografias portuguesas ou francesas, o custo do papel, importado e caro (LAJOLO & ZILBER- MAN, 1996). Muitos desses problemas fazem hoje parte da história; outros per- manecem, como os que dizem respeito ao preço do impresso, ainda bastante elevado, e à presença da literatura estrangeira – destacando-se não apenas os contumazes best-sellers, mas sobretudo as obras de auto- ajuda, que colocam há longo tempo livros como Comer, rezar, amar, de Elizabeth Gilbert (1969), O monge e o executivo, de James Hunter, O segredo, de Rhonda Byrne (1951), ou A cabana, de William Young (1955), nas listas dos mais vendidos. Por essas razões, cumpre ainda ao artista e ao intelectual o esforço por se comunicar permanentemente com seu público, aparecendo como alternativa muitas das medidas enunciadas nos parágrafos anteriores. Não referido, mas igualmente importante, é outro projeto dos criadores de literatura no Brasil: a expressão de uma temática nacional. Esse projeto remonta aos românticos, que viram na manifestação da identidade brasileira – traduzida por personagens emblemáticas e pela exploração de virtualidade do espaço geográfico americano – a possibilidade de produzir uma literatura diferenciada, singular e ligada tão-somente a eles mesmos, já que apenas brasileiros nativos poderiam dar conta da tarefa. Por outro lado, não custa lembrar que o projeto,

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de inspiração romântica, acolhia uma poética enunciada por europeus, como Madame de Staël (1766-1817), que, nas primeira metade do século XIX, representavam a vanguarda da escola vigente, para não se mencionar seus seguidores, como Ferdinand Denis (1798-1890), o historiador e crítico literário que grande influência teve entre os inte- lectuais brasileiros do período. A compreensão do que seria propriamente uma temática nacional variou no tempo e no espaço. Machado de Assis (1839-1908), em “No- tícia da atual literatura brasileira”, ensaio de 1873 popularizado com o título de “Instinto da nacionalidade”, rebelou-se contra a noção de que indígenas e cor local fossem as únicas opções colocadas aos criadores, e tratou de percorrer um caminho independente, ainda que os poemas das Americanas cedessem à sedução do Indianismo vigente. Machado de Assis, contudo, não foi a voz dominante, embora seus contempo- râneos tenham entendido que dar vazão a uma temática nacional era diagnosticar os problemas da sociedade brasileira, na cidade, como operam Aluísio Azevedo (1857-1913) e Adolfo Caminha (1867-1897), ou no campo, como procedem (1866-1909) e Domingos Olímpio (1851-1906). Os modernistas recolocaram em primeiro plano o Brasil dos selva- gens, acoplando a ótica da psicanálise à exposição do primitivismo que habitaria as populações originais, de quem resultaram obras como Ma- cunaíma (1929), de Mário de Andrade, e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp (1898-1984). A chamada geração de 30 alterou o foco mais uma vez, optando pela perspectiva propalada décadas antes pelo Naturalis- mo: o Brasil é um país multifacetado, separado em regiões distintas e até antagônicas, com seus problemas específicos. Desse posicionamento nasceu uma prosa variada que aborda a seca no Nordeste, como nos romances de Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Amado e Raquel de Queirós (1910-2003), a ascensão da burguesia no Sul, como faz Erico Verissimo, a decadência da economia agrícola, diagnosticada em Cyro Martins (1908-1995).

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Nem sempre a atenção voltada à especificidade da vida nacional prejudicou a leitura dos autores brasileiros fora de seu país de origem. Os portugueses mostraram sua admiração pela obra de Erico Verissi- mo por algum tempo, conforme o romancista gaúcho relata em suas memórias. (VERISSIMO, 1976) Jorge Amado foi um dos romancistas brasileiros mais lidos no Exterior por longos anos, até surgir o fenômeno Paulo Coelho. Porém, até meados dos anos 70, do século XX, poucos autores eram conhecidos fora do perímetro geográfico dos leitores em língua portuguesa. Ficcionistas canônicos como Machado de Assis e Guimarães Rosa (1908-1967) gozavam, da sua parte, de poucas tradu- ções confiáveis; além disso, a obra deles em circulação restringia-se a alguns poucos títulos. Podem-se situar na segunda metade da década de 70 os esforços no sentido de inserir a literatura brasileira em um mercado interna- cional. É de supor que o chamado boom experimentado pela litera- tura hispano-americana tenha contribuído para alertar os produtores culturais brasileiros de que a hora era aquela. O início do processo de globalização, partindo da economia e afetando os meios de comuni- cação de massa, certamente colaborou para diminuir a distância que separava o Brasil da Europa ou dos Estados Unidos, estes constituindo os mercados preferidos. Por fim, mas não menos importante, a literatura brasileira apresentava um leque de opções que ultrapassava o exotismo do romance de Jorge Amado, lidando com temáticas de cunho social, político e étnico, além de investir no experimentalismo e na metaficção historiográfica. Algumas medidas foram importantes para que as obras dos escritores nacionais contemporâneos se aproximassem do público não-brasileiro, podendo-se lembrar entre elas: a realização de eventos de alcance inter- nacionais, como bienais do livro e congressos; a participação de escri- tores, editores e tradutores em eventos no Exterior, de que é exemplo a Feira do Livro de Frankfurt; a publicação de obras de nomes conhecidos da cultura brasileira, originalmente não vinculados à literatura, mas, a

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partir de um certo momento, autores de obras literárias, como Chico Buarque de Holanda ou Fernando Gabeira (1941). Vale chamar a atenção para o fato de que, no que diz respeito à difusão da literatura brasileira no Exterior, a ação das empresas – na- cionais ou estrangeiras – ligadas à indústria do livro foi maior que a do Estado. Este patrocinou alguns eventos, colaborou para a participação de pesquisadores brasileiros em congressos no Exterior, estimulou a política de exportação, porém, pouco se envolveu com os produtores de cultura. De todo modo, as traduções apareceram, e alguns escritores experimentaram popularidade digna de nota, como ocorreu à ficção de Clarice Lispector, por exemplo, na França e na América do Norte. Uma geração de escritores atuantes no Brasil do primeiro decênio do novo século experimenta a nova situação com alguma naturalidade, podendo ser citados, além do mencionado Chico Buarque, os nomes de Nélida Piñon (1937), Moacy Scliar e Milton Hatoum. Mas cabe destacar ainda outra faceta desse processo de internacionalização, a saber, a ruptura com o foco nacional. Colocada a questão em outros termos, a literatura brasileira, em especial, sua ficção, absorveu à sua temática cenários internacionais, personagens não-brasileiros, questões de ordem global. Não fosse as- sim, uma coleção como a já mencionada Amores Expressos, promovida pela Companhia das Letras, não existiria, coleção de que resultaram romances como O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, transcorrido na Rússia, ou Cordilheira, de Daniel Galera, cuja ação desenrola-se na Argentina. Nem romances como Budapeste, de Chico Buarque, ou Mongólia, de Bernardo Carvalho, teriam recebido acolhida favorável da crítica e do público. No horizonte da segunda década do novo século, escritores, editores, tradutores e críticos têm-se deparado com tais desafios, que incitam a produção de ações afirmativas e de obras renovadoras. Esperemos que o ímpeto se mantenha nesse novo tempo.

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. In: ___. Poesias com- pletas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987, p. 59.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996.

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. O preço da leitura. São Paulo: Ática, 2001.

VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta: Memórias. V. II. Porto Alegre: Globo, 1976.

REGINA ZILBERMAN Doutorado em Letras, pela Universidade de Heidelberg, Alemanha, leciona atualmente no Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autora de vários livros, entre os quais Estética da Recepção e História da Literatura e Fim do livro, fim dos leitores? E-mail: [email protected]

Recebido em 30/09/2010 Aceito em 30/11/2010

Zilberman, Regina. Desafios da literatura brasileira na primeira década do séc. XXI. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 13, n. 15, p. 183-200, 2010.

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