O povoamento rural romano na vertente fluvial do Rio Ave, Noroeste de . Dinâmicas de estabelecimento sob o ponto de vista geo-espacial

Jorge Manuel Rocha de Araújo Pinho, Mestre em Pré-História e Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. [email protected]

RESUMO O que propomos é a análise aos vários núcleos de habitat romano ao longo da bacia do baixo Ave, na faixa mais a litoral do Noroeste Peninsular, de acordo com as suas características geo-espaciais de implanta- ção, assim como na óbvia simetria ocupacional demonstrada, onde as linhas de circulação fluvial, marí- tima e viária tiveram enorme preponderância para a prosperidade económica da região, numa área rica em termos agrícolas e minerais. Falamos da zona mais a Sudoeste do Conventus BracaraAugustanus , na província da Tarraconensis .

Palavras-Chave: Romanização; Tipologia de ocupação rural; Vale do Ave, Análise geo-espacial

ABSTRACT We propose to analyze the various Roman core habitat along the lower basin of the Ave river, in the strip over the northwestern Iberia coast, according to their geospatial deployment characteristics, as well as an obvious occupational symmetry, where traffic river, road and sea lines have a preponderance for the eco- nomic prosperity of the region, an area rich in agricultural and mineral resources. We are speaking of the area over the Southwest Conventus BracaraAugustanus, Tarraconensis province.

Keywords : Romanization; Rural occupation typology; Ave river valley; geospatial analysis

RESUM El que proposem és analitzar els diferents nuclis d'hàbitat romà al llarg de la conca baixa de l'Ave a la franja de la costa nord-occidental de la Iberia, d'acord a les seves característiques de desplegament geoespacials, així com el treball demostrat simetria manifest, quan línies de flux del riu, el mar i la carretera va tenir pre- ponderància per a la prosperitat econòmica de la regió, una zona rica en minerals i agrícoles. Parlem de més al sud, la província Occidental del Conventus Tarraconensis BracaraAugustanus..

Paraules Clau: Romanització; Tipologia de l'ocupació rural; Vall Ave, anàlisi geo-espacial

INTRODUÇÃO Este artigo apresenta-se na sequência da co- Por limitações óbvias de tempo, apenas se efec- municação efectuada em inícios de Maio, no tuou um resumo breve da área investigada e da JIA 2010, encontro de Jovens Investigadores problemática subjacente ao título desta comu- de Arqueologia que se realizou em Barcelona. nicação. Esta provêm do nosso trabalho de in-

Rebut: 1 septembre 2010; Acceptat: 1 decembre 2010

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vestigação, no âmbito da dissertação de mes- Augusta até Cale e Tongobriga , nas margens trado, a qual abrangeu uma longa diacronia de do Rio . ocupação, de todo o Iº milénio a.C. e as mu- danças subjacentes que culminaram nos pri- Caracterizámos o povoamento romano do meiros contactos exógenos com o mundo nosso território na sua forma plenamente esta- romano durante a viragem para a nossa era, belecida e já sob administração de Roma. Con- numa área específica do Noroeste Peninsular siderámos, para o efeito, que as formas do (Vale do Ave/Distritos do e ). povoamento rural em muito contribuíram para a estabilidade e desenvolvimento do território Para tal, utilizámos determinadas ferramentas em determinado período, detendo especial im- de análise de campo, nomeadamente, a deter- portância no processo de desenvolvimento ur- minação das áreas de provável influência dos bano, como? Se tivermos em linha de conta que vários núcleos, compilação dos dados disper- a exploração do território se fez a partir destas sos, tentando, nesta medida, a organização de estruturas, decorrente da especialização econó- acordo com a área de dispersão de vestígios, ti- mica, consoante as várias posições geo-morfo- pologia de materiais e prováveis relações entre lógicas: a planície marítima e o vale. os núcleos rurais que se foram formando e os anteriores povoados fortificados, assim como LOCALIZAÇÃO E GEO-MORFOLOGIA para com as vias romanas existentes na região DA ÁREA EM ESTUDO: VALE DO RIO e que ligavam as respectivas capitais a todo um AVE universo rural, determinantes no desenho orga- O relevo do Douro Litoral (Fig. 1), a par da re- nizativo da ocupação rural de todo um territó- gião minhota, desenvolve-se em forma de an- rio entre a Capital de Conventus Bracara fiteatro natural desde o oceano até à Serra dos

Figura. 1 – Localização da área de estudo e geomorfologia

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Carvalhos nas imediações da Serra da Cabreira Augusti e Asturica Augusta , perfazendo um (DINIS, 1993: 10; RIBEIRO, 1998; MORAIS, triângulo administrativo que, juntamente com 2005: 28). Trata-se, portanto, de uma zona de as capitais regionais e de Civitates, perfilharam relevos fracos, com atravessamentos de linhas as mudanças definitivas no mundo organiza- de água, na sua maioria pertencentes a afluen- cional indígena. tes do Rio Ave. A segunda, o Rio Este, ganha também alguma preponderância, cujo curso, Esta reorganização do território provocará al- muito sinuoso, se dirige de NE para SW (Ibi- terações fisionómicas da paisagem, incidindo dem). fundamentalmente no aumento das áreas de cultivo e das rotas de comércio, bem como nas Nestas áreas, encontramos entre uma mancha alterações arquitectónicas dos grandes oppida de xistos que corta o território Norte-Sul os gra- cabendo-nos aferir que neste período de con- nitos alcalinos, formando duas manchas prin- tacto com os primeiros contingentes romanos cipais: na região Sudoeste, constituindo o se denota, arqueologicamente, um aumento das prolongamento para Norte do granito do Porto; linhas de muralha, o aparecimento de elemen- e outra na região setentrional, entre o granito tos ao nível do simbolismo indicando altera- monzonítico porfiróide e o Silúrico (TEI- ções sociais, como as estátuas de Guerreiro XEIRA et al., 1965: 31). Galaico , assim como indícios de um proto-ur- banismo emergente e o registo mais insistente Esta rocha, presente em quase todo o Entre- de cerâmica de importação proveniente das Douro-e- tornar-se-á, na Idade do Ferro, zonas meridionais. a principal fonte de matéria-prima, em virtude da evolução da chamada cultura dos Castros, Por outro lado, regista-se uma nova forma de autênticas “civilizações da pedra” (ALMEIDA, estabelecimento, sem preocupações defensivas, 1983: 70). mais próximas dos recursos a explorar, assim como das linhas de comércio naturais, precisa- CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICO- mente a rede fluvial, planície marítima e rede GEOGRÁFICA viária. As transformações operadas no Noroeste Pe- ninsular a partir do século II a.C., trouxeram A reorganização do território implementada uma nova forma de estabelecimento, uma nova por Augusto , parece ter incidido especialmente geografia ao mundo indígena. nas áreas e povoados indígenas mais desenvol- vidos social e economicamente, denotando-se, É assente na comunidade arqueológica, que um dessa forma, uma aparente hierarquização do dos marcos cronológicos mais importantes no território indígena (SILVA, 1986; MARTINS, quadro historiográfico do Noroeste Peninsular, 1990; CARVALHO, 2008). De forma hetero- dá-se entre 138/136 a.C, no momento da pas- génea, esta linha hierárquica terá beneficiado sagem, rumo aos terrenos sobre o Douro, de um conjunto de povoados que, à luz dos finais Décimo Júnio Bruto, Governador da Hispânia do Iº Milénio a.C., apresentavam um emer- Ulterior. gente desenvolvimento, quer nas relações de domínio perante outro conjunto de povoados e A mutação social e organizativa do mundo in- vias de comunicação, quer na centralidade te- dígena culmina com a reorganização do terri- rritorial demonstrada, com exemplos claros na tório por Augusto, aquando da criação das três influência exercida na paisagem, nos elementos capitais conventuais Bracara Augusta, Lucus de ourivesaria existentes e nos materiais cerâ-

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micos de importação aqui recolhidos (MAR- sias urbanas, precisando do campo para sub- TINS, 1990). Entre estes materiais, encontra- sistir e desenvolver (PÉREZ LOSADA,1998; se a cerâmica de proveniência Itálica, como os 2002: 15). Tal como hoje, o fornecimento dos contentores anfóricos vinários, cerâmicas cam- produtos que alimentam a urbe é proveniente panienses, lucernas, entre outros (FABIÃO, do campo, estabelecendo-se um círculo dinâ- 1998: 184). mico em movimentos centrípetos campo/ci- dade. A cidade funciona como uma força Os primeiros contactos com os contingentes ro- magnética que absorve toda a massa produtiva manos parecem ter provocado na fisionomia rural, daí as formas de estabelecimento se lo- dos povoados alterações profundas. O contacto calizarem, preferencialmente, de forma circun- com o mundo clássico terá acelerado este des- dante aos núcleos urbanos e/ou ao longo das envolvimento estrutural do mundo indígena, vias de acesso a esses mesmos núcleos. culminando com o domínio pleno e o progres- sivo abandono das anteriores formas de habitat Tendo em consideração esta lógica, que subjaz em detrimento de outras. à génese do povoamento romano no vale do Ave, torna-se possível o agrupamento em nú- Um novo estado ocupacional do território co- cleos, consoante o perfil tipológico específico. meça a ganhar forma, sendo a partir da passa- Este quadro apresenta-se sob uma bipolariza- gem de D. Júnio Bruto que começam a ser ção conceptual, balizando-se entre o perfil ur- mais visíveis mudanças físicas nos povoados. bano/rural e/ou agrupado – cidades, vici e Castella – e o mundo rural e/ou disperso e in- Já anteriormente, o interesse demonstrado por dividual – genericamente denominadas por vi- Roma na Hispânia associou-se a uma eventual llae , granjas e casais (PÉREZ LOSADA,1998; ligação económica, face ao conhecido poten- 2002: 15). Neste grupo poderão enquadrar-se, cial da Península e das diversas zonas plena- igualmente, as stationes, mutationes e mansio- mente circunscritas, que demonstravam uma nes , que se associam à rede viária. especial riqueza mineral (BLÁSQUEZ MAR- TINEZ, 1977; TRANOY, 1981). Esta aferição Ora, o quadro de sítios que estudamos mais em é corroborada pelos autores clássicos como Es- pormenor referem-se aos pertencentes ao po- trabão, Plínio, Posidonius, Silius Italicus e voamento disperso e/ou rural e individual, Floro (CARVALHO 2008: 81). tendo sido possível aferir, através dos dados disponíveis (escavações, achados isolados e Estrabão (III) e Plínio (XXXIV, 47) referem, prospecções) um quadro de sítios heterogé- de forma precisa, que: neos, na tipologia e morfologia. [“…a terra dos iberos estaria cheia de me- tais…” e “…que o ouro não estaria somente Neste particular utilizamos outros dados para- nas minas, mas também surge nas águas dos lelos, disponíveis em vários estudos (GOR- rios e nas torrentes…”] (ESTRABÃO, III) GES, 1979: 271; POTTER, 1986: 147; MARTINS, 1990: 224; SALINAS de FRÍAS, [“…é sabido que o estanho é um produto da 1992-93: 178; LEMOS, 1993: 409, 417; CA- Lusitânia e da Galécia…”] (PLÍNIO, RRERAS MONFORT, 1996: 99; DÍAZ de XXXIV,47). GARAYO, 1996: 29; ALARCÃO, 1998b: 92; PERESTRELO, 2002: 144-151; CARVALHO, A estruturação da paisagem romana encontra 2008) e que nos deram, sem sombra de dúvida, no mundo rural a base de apoio às idiossincra- uma outra perspectiva como se entende e com-

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partimenta, de acordo com os materiais prove- tente do baixo Ave – a tipologia de assenta- nientes do campo, um determinado sítio. mento perfila-se e insere-se no denominado mundo rural, estando subjacentes diversos es- Salvo todas as condicionantes específicas as- tabelecimentos consubstanciados na sua maio- sociadas a alterações pós-deposicionais, enten- ria em meros achados ocasionais, onde se demos que esta seria a melhor forma de registam alguns elementos cerâmicos, que nos organizar um conjunto enorme de dados que se possibilitam inferir determinados pressupostos, encontravam bastante dispersos em várias assim como perceber que o grosso do povoa- obras distintas. mento rural procedeu-se consoante a disposi- ção das vias terrestres e ao longo das vias de CIVITATES E VILLAE – MODELOS DE comunicação naturais, como os rios Ave e Este, ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL NO e a franja marítima. MUNDO RURALO modelo das civitas é o que melhor espelha a Estamos perante uma tipologia de povoamento ideologia subjacente à romanização no nosso de matriz agro-silvo-pastoril e mineira locali- território. (Fig. 2) É uma mistura entre a Urbs zando-se essencialmente entre a urbe Bracara (núcleos urbanos) – espaço de criação e desen- Augusta e a capital de Civitas Cale (Porto) e, volvimento das ideologias – e o Territorium com as devidas reservas, Oculis (Caldas de Vi- (mundo rural circundante aos núcleos urbanos) zela). Mais a Sul domina a capital de Civitas – espaço onde se localiza a massa produtiva Tongobriga (Marco de Canaveses). (PÉREZ LOSADA, 2002: 15). Para a área em estudo – a franja litoral e a ver- Então, de acordo com estes pressupostos, de-

Figura 2 .- Implantação das áreas das respectivas capitais, Bracara Augusta, Cale e Tongobriga , assim como alguns dos Vici conhecidos e outros prováveis.

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terminamos agrupamentos de núcleos, tendo sempre como referência um importante povo- Ao nível estrutural todos eles apresentaram, ado fortificado (Mapa 3). Desta forma, foi pos- para além de fragmentos de mosaicos (um dos sível analisar alguns dos mesmos que indícios-directores preconizados por vários au- apresentassem indícios de ocupação para além tores (ALARCÃO, 1998b) como um dos ele- da linha cronológica do século I d.C.. De facto, mentos caracterizadores da presença de uma todos os que ultrapassaram esta fronteira, apre- villae ), cerâmica fina (Fragmentos de Sigillata sentaram óbvias relações de cumplicidade para Itálica e Hispânica ), surge também material as- com as villae das imediações, entre outras es- sociado a uma especialização económica, pecificidades, tais como achados isolados ou sendo particular a existência de estruturas de “in situ ” de epigrafia, vias romanas muito pró- salga do peixe e produção do garum . Associa- ximas e uma linha de água principal, onde se dos a estes, a presença de material anfórico é pudesse efectuar um conveniente escoamento igualmente predominante, sendo as ânforas dos produtos e entrada de outros. Haltern 70 caracterizadoras dessa realidade, assim como a presença de anzóis e grandes Por conseguinte, tivemos igualmente em con- contentores de armazenamento (CARVALHO, sideração um conjunto de sítios que apresen- 2008). tassem uma tipologia de materiais nobres, nomeadamente mosaicos, epigrafia, e cerâmica Todos eles localizam-se actualmente em pleno fina ( Sigillata principalmente), para além da areal, tendo sofrido agressões antrópicas, ape- mancha de dispersão dos mesmos. Assim, sar de alguns terem sido intervencionados. compartimentamos o território e as suas Villae , sabendo que as mesmas tiveram como papel a O Alto de Martim Vaz , que se encontrava na organização e a modelação estrutural da paisa- Póvoa de Varzim, onde actualmente se im- gem, de acordo com a metodologia preconi- planta um parque de estacionamento, regista- zada e abordada em várias obras distintas ram-se diversos achados relacionados com o (MARTINS, 1990: 224; SALINAS de FRÍAS, enquadramento económico marítimo referido 1992-93: 178; LEMOS, 1993: 409, 417; anteriormente (neste local há referências e des- ALARCÃO, 1998b: 92; PERESTRELO, enhos de campo que descrevem a existência em 2002: 144-151; CARVALHO, 2008). plenas rochas marítimas de tanques de salga e produção dos preparados piscícolas (GOMES, a) Villae a mare (5000/25000 m², com mate- 1996; et al., 2005), ainda nos inícios do século riais nobres como Sigillata , mosaicos, elemen- XX). tos de epigrafia, tipologia de estruturas, entre outras): Villa Mendo, Alto de Martim Vaz e Ca- Em Vila Mendo (GOMES, 1996; et al., 2005; xinas ( Cividade de ). ALMEIDA, 1998), encontrada aquando da es- cavação privada de uma campo na Estes exemplos supra mencionados referem- freguesia da Estela, Póvoa de Varzim, im- se a localizações litorais, alvo de intervenções planta-se a cerca de 500 metros do mar, apesar programadas de escavações e com exemplos de actualmente não serem visíveis quaisquer claros ao nível da cultura material de contactos vestígios relacionados, apenas os consequentes entre a ocupação romana e o paralelismo dia- da recolha efectuada aquando da escavação crónico ocupacional com alguns dos povoados logo de seguida ao seu achado e onde se regis- fortificados existentes na zona, com especial taram vários níveis arenosos, assim como um exemplo para a Cividade de Terroso. muro de uma construção com cerca de 2,20

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metros de altura, bem como os vários momen- (Fig. 3) tos de derrube. Ao nível da ocupação rural de vale , detectá- Esta presunção é assumida perante algumas das mos indícios que nos permitiram igualmente tegulae que foram recolhidas inteiras sob vá- retirar da sua análise concreta algumas ilações: rios outros níveis de areias. Para além deste achado, foram recolhidos diversos elementos b) Villae de Vale : Campos Pereira, Vila Boa e cerâmicos de tipologia análoga às cerâmicas Rorigo Velho (Castro de Alvarelhos – Trofa); micáceas da Idade do Ferro, idênticas às que se Devesa, S. Simão, Sobreiral, Monte dos Saltos registam na Cividade de Terroso e que se en- (Castro do Padrão – Santo Tirso). quadram cronologicamente nos finais do Iº mi- lénio a.C. / inícios da nossa Era. Os achados Quanto à ocupação de vale, consubstanciada culminam com o registo de um tesouro em neste conjunto de sítios acima descritos (Fig. ouro (arrecadas, colar, fragmento de torques 3), caracterizam-se por paralelismos ocupacio- em ouro e prata) análogo aos achados também nais que partilham a mesma génese, concreta- na Cividade de Terroso, Cividade de Bagunte e mente, o tipo de implantação, tipologia e no Monte de S. Félix (povoado de tipologia B cronologia de materiais (apesar de neste ponto da Idade do Ferro e provável atalaia de apoio termos apresentado na nossa dissertação algu- defensivo à Cividade de Terroso) (ALMEIDA, mas questões discutíveis sobre potenciais for- 1972: 33; PINHO, 2009: 54-55). mas de ocupação do território, decorrentes da cronologia dos materiais disponíveis), assim Neste particular, poderemos conjecturar uma como relações com o ambiente circundante aparente relação entre estes povoados litorais e (povoados indígenas e viação romana). a sua contemporaneidade para com a Cividade Assim, desta forma, podemos aferir que o po- de Terroso, sendo crível o paralelismo crono- voamento rural de vale, tal como o nome indi- lógico e a consequente ocupação ter sido efec- cia, implanta-se quase sempre em áreas tuada por indígenas, provenientes deste Castro. privilegiadas, normalmente em locais de média

Figura 3 .– Relação altimétrica entre os vários núcleos rurais romanos (Villae, Granjas e Casais) e os po- voados fortificados associados.

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altitude, em plataformas geológicas que possi- centraram o seu dominium em outras forma- bilitam a visualização da linha fluvial principal ções aquíferas, sendo óbvia a preferência pelos (Rio Ave) em toda a sua extensão, neste caso, terrenos circundantes mais férteis, possibili- no sentido Este/Oeste (Montante/Jusante). São tando o cultivo intensivo de culturas, o seu ar- disto exemplos os sítios de Campos Pereira e mazenamento e provável escoamento e venda. Rorigo Velho para o núcleo que se associa ao Esta possibilidade é visível nos sítios de (De- Castro de Alvarelhos e Vila Boa. Esta Villae vesa, S. Simão e Sobreiral) e a depressão do que se implanta numa plataforma dominante vale da Ribeira de Sanguinhedo, terrenos adja- sobre o pequeno vale que corre em sentido centes ao Castro do Padrão no Monte Córdova. Sul/Norte a Ribeira da Aldeia, é, de facto, um dos melhores exemplos da ocupação romana De facto, a localização dos sítios obedece sem- neste território, face aos seus enormes indícios pre ao “principio do transporte” (MARTINS; epigráficos com referências insistentes a teóni- 1990), ou seja, beneficiando de condições fa- mos indígenas (SILVA, 1980: 79-90; MO- voráveis do ponto de vista da circulação dos REIRA, 1992; 2002; DINIS, 1993), pelos quais excedentes. Podemos aferir que a rede viária poderá ter sido a morada dos primeiros habi- fluvial e terrestre construída pelos romanos está tantes distintos que saíram do Castro de Alva- de tal forma integrada na paisagem que se en- relhos e se implantaram nas terras contíguas. quadra numa rede de movimentação entre as várias Villae, os vários Vici e em larga escala, De referir que todas estas villae se implantam com o abastecimento eficaz da Capital de Con- fora da área de exploração dos 30 minutos de ventus Bracara Augusta . distância relativa ao seu local central. No Caso de Vila Boa, que ocupa os terrenos adjacentes Em termos cronológicos a maioria dos sítios à área de exploração do Castro de Alvarelhos, apresenta indícios da fase final de ocupação, localiza-se acima dos 30 minutos de marcha, designadamente, através de vestígios de Sigi- ou seja, fora da área de exploração intensiva llata Clara D e cerâmica de engobe vermelho em termos agrícolas, o que nos indicará a pro- de imitação de Sigillata , num universo entre os vável convivência (exploração simultânea) cro- séculos III/V d.C.. nológica entre o Castro de Alvarelhos e esta villa num período que adivinhámos entre os sé- Todavia, estamos em crer que o inicio de ocu- culo II d.C e o século V d.C. (PINHO, 2009). pação deste espaço se procedeu a partir do sé- culo II d.C., precisamente pelos indícios de Pela sua comprovada importância e associação ocupação visíveis quer na esfera circundante com o exército de Augusto (pelo tesouro que do Castro de Alvarelhos, quer no Castro do Pa- foi registado em uma das várias fases de esca- drão e que se conjugam para uma vivência pos- vação (DINIS, 1993; MOREIRA, 2002), este terior ao século II/III d.C.. Disso são exemplo sítios poderão ter beneficiado de uma centrali- os materiais recolhidos em outros locais, por dade exclusiva, assim como de uma importân- nós integrados em outras categorias como as cia administrativa fora do vulgar, Granjas e pequenos Casais que se integravam comprovando-se a enormidade de indícios ar- no Dominium das Villae que temos vindo a dis- queológicos existentes nesta região, dos quais cutir (PINHO, 2009). Desses locais, destaca- a Via XVI (Cale-Bracara Augusta) e seus mi- mos os sítios de Aldeia/Outeiro, Cerro, Santa liários (MANTAS, 1996) serão os seus princi- Cruz e Dinis, onde foram registados, na sua pais exemplos. maioria, fragmentos de Sigillata Hispânica e Para além desta linha de água, outras villae Cerâmica comum de engobe vermelho de imi-

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tação de Sigillata (MOREIRA, 2002), o que mento dos de xisto. Primeiro, pela potenciali- nos faz crer que do universo diacrónico deste dade de recursos e sedimentos dos primeiros espaço, podemos aferir uma baliza entre o sé- terrenos e segundo, pela ineficaz tecnologia, in- culo II d.C. e o século V d.C. capaz de modelar os terrenos de xisto.

ARTICULAÇÃO DA INFORMAÇÃO De outra forma, cremos que a ocupação do te- Inferimos que estes três povoados indígenas rritório por parte romana estaria já estabelecida terão exercido relativa influência no Territo- a litoral nos finais do século I a.C. e/ou inícios rium rural, sendo agentes modeladores da pai- da nossa era e terá sido desse ponto que a res- sagem ao longo de uma longa diacronia. tante ocupação se procedeu em direcção ao in- terior (PINHO, 2009). É um facto que a administração romana terá aproveitado a antiga ocupação indígena para a As villae de vale terão surgido mais tardia- implantação de redes comerciais, nomeada- mente como nos é indicado pelos vários indí- mente, através da construção da Via XVI (Cale- cios materiais, sempre a partir do século II d.C.. Bracara Augusta) (MANTAS, 1996), que Esta presunção carece de outra base de susten- assenta num provável corredor natural de pas- tação, sendo obrigatórios outros dados prove- sagem pré-romano (Fig. 4). nientes de escavações, de modo a poderem ser aferidos todos estes pressupostos. Por outro Geologicamente denotamos que as villae, tal lado, parece-nos que a administração de Roma como na ocupação indígena, procuraram esta- terá preferido manter alguns dos antigos povo- belecer-se em terrenos graníticos em detri-

Figura 4 .– Evidente relação entre os vários povoados fortificados, o povoamento rural romano (sendo os círculos a localização das Villae) e as várias rotas comerciais, as vias romanas (Via XVI, Via “Per loca Maritima” e Via Bracara Augusta – Egitánia – Augusta Emerita) , a linha fluvial do Rio Ave e o Oceano Atlântico.

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