PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL DOUTORADO

CAMILA GARCIA KIELING

Imprensa e rupturas institucionais: narrativas do vivido e do imaginário sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em

Porto Alegre 2017

CAMILA GARCIA KIELING

Imprensa e rupturas institucionais: narrativas do vivido e do imaginário sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Juremir Machado da Silva

Porto Alegre 2017

CAMILA GARCIA KIELING

Imprensa e rupturas institucionais: narrativas do vivido e do imaginário sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal

Tese apresentada como requisito para a obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em_____ de ______de ______.

BANCA EXAMINADORA:

______Prof. Dr. Juremir Machado da Silva (PUCRS)

______Profa. Dra. Beatriz Correa Dornelles (PUCRS)

______Prof. Dr. Luciano Aronne de Abreu (PUCRS)

______Prof. Dr. Álvaro Nunes Larangeira (UTP)

______Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins (UMinho)

Porto Alegre 2017

Dedico esta tese aos meus pais, Delmar e Vera, e ao meu irmão, Guilherme.

AGRADECIMENTOS

Ao PPGCOM da PUCRS, todos os seus professores e funcionários. À Capes pelas bolsas Prosup e Sanduíche. Ao meu orientador e mestre Professor Juremir Machado da Silva, por ter sempre me guiado pelos melhores caminhos. Ao professor Moisés de Lemos Martins, meu coorientador, mestre e amigo, pelo carinho e generosidade com que me recebeu na Universidade do Minho e pela orientação atenta. Aos profissionais da Biblioteca Pública de Braga, sempre atenciosos. Às escadarias do Bom Jesus do Monte e à Galícia, que me ensinaram que o caminho se faz andando, e ao Luiz Capra, que fez parte dessa caminhada comigo. Aos amigos que fiz em Portugal, especialmente ao Esser Jorge Silva e ao amigo-irmão José Manuel Peláez Ropero, meu parceiro de escrita, de ideias e ideais. Aos colegas de GEISC e à Professora Cristiane Freitas e colegas do Kinepoliticom. Aos amigos Cristina Sant’Anna e José Angelo Bezerra Silva, pelo amor e tantas acolhidas em São Paulo, pelos papos sempre engrandecedores, por acreditarem e me estimularem sempre a ser melhor. À minha amiga Marta “Tati” Castilhos, por estar sempre ao meu lado e pela visita em Portugal junto com a Ana Lucia Castilhos, Sandra Cury e Gagah Carvalho Leite, às quais também agradeço o carinho e apoio. Ao Alê, Alexandre Dias Ramos, pela amizade, parceria e apoio. Às amigas e colegas de PPG Samara Kalil, Lucia Loner Coutinho, Karine Ruy, Fernanda Lopes de Freitas e Juliano Martins por estarem sempre ao meu lado e dividirem essa jornada comigo. Aos amigos e ex-colegas de trabalho Éder Oliveira e Everton Stankiewcz, pelo carinho e apoio na preparação das aulas na Fabico/UFRGS. À Micaela Rossetti, que fez tudo isso ter sentido.

Se muito vale o já feito, Mais vale o que será E o que foi feito é preciso Conhecer para melhor prosseguir Falo assim sem tristeza, Falo por acreditar Que é cobrando o que fomos Que nós iremos crescer

O que foi feito devera (Milton Nascimento e Fernando Brant, interpretada por Elis Regina)

RESUMO

Nossa tese apresenta uma análise das narrativas de jornais representativos das imprensas hegemônicas brasileira e portuguesa em dois momentos de ruptura institucional: o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal. No primeiro caso, ocorre a derrubada do presidente João Goulart e o início de uma ditadura militar que durou 21 anos. No segundo, a queda de um regime autocrático que já se prolongava por 48 anos e o começo de um processo revolucionário que consolidou a democracia naquele país. Constituem o nosso corpus de pesquisa, no Brasil, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil e, em Portugal, Diário de Notícias e República. Em nossa abordagem, as rupturas institucionais são eventos que dão acesso – através das narrativas midiáticas – à consciência histórica, porque expressam modos particulares de apreensão da mudança, tendo em vista a centralidade dos meios de comunicação na concepção contemporânea de acontecimento, conforme observado por Nora (1979). Através do percurso das narrativas do vivido e do imaginário (SILVA, 2006; 2010) buscamos o desvelamento de nosso objeto de pesquisa através do recobrimento teórico-metodológico. Para tanto, realizamos uma reflexão acerca da categoria acontecimento, tendo como referências principais Nora (1979) e Sodré (2009). Com o método comparativo de Detienne (2004), nossa técnica de análise foi direcionada pela Análise Crítica da Narrativa voltada ao jornalismo, tal como proposta por Motta (2013). Compreendendo a narrativa jornalística como produto de uma tecnologia do imaginário (SILVA, 2006) que interpela os fatos por meio de sua espetacularização, nossa análise é conduzida por categorias comparáveis, as quais nos permitiram compreender a dimensão imaginária das narrativas jornalísticas analisadas sobre os referidos episódios de ruptura institucional, a saber: a composição da intriga, as personagens, as repercussões midiáticas, o léxico e as expressões do tempo.

Palavras-chave: Comunicação. Imprensa. Golpe de 1964. 25 de Abril. Imaginário. Narrativa.

ABSTRACT

This thesis presents an analysis of newspapers narratives representing Brazilian and Portuguese hegemonic presses in two moments of institutional breakdowns: the civil-military coup of 1964 in Brazil and the revolution of April 25, 1974 in Portugal. In the first case, the result was the overthrow of President João Goulart and the beginning of a military dictatorship that lasted 21 years; in the second, the fall of an autocratic regime that existed for 48 years and the beginning of a revolutionary process that consolidated the country democracy. The research corpus is O Estado de S. Paulo and Jornal do Brasil in Brazil and Diário de Notícias and República in Portugal. In our approach institutional breakdowns are events that give access – through media narratives – to historical consciousness for they express particular modes of grasping changes regarding the mass media centrality in the modern conception of an event, according to Nora (1979). Through the narratives of the lived and the imaginary (SILVA, 2006; 2010) we seek to unveil the object of our research through theoretical- methodological covering. Therefore we reflected upon the event category, having Nora (1979) and Sodré (2009) as the major references. With the comparative method of Detienne (2004), our analysis approach was oriented by the Critical Narrative Analysis focused on journalism, as proposed by Motta (2013) Understanding the journalistic narrative as a product of the technology of the imaginary (SILVA, 2006) through which facts are challenged through its spectacularisation, our analysis has been conducted by comparable categories that enabled us to acquire an understanding of the imaginary dimension of the journalistic narratives used to report those episodes of institutional rupture, namely: the composition of intrigue, the characters, the media repercussions, the lexicon and the expressions of time.

Key words: Communication. Press. 1964 Coup. April 25th. Imaginary. Narrative.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Diagrama dos níveis de poder na narração jornalística ...... 92

Figura 2: Eixos de análise de processos comunicacionais na Análise Crítica da Narrativa ...... 93

Figura 3: Charge Jango (OESP, 1/4/1964, p. 16) ...... 114

Figura 4: Charge Cristo Redentor (JB, 1/4/1964, p. 16) ...... 127

Figura 5: Charge Marcelo Caetano (OESP, 16/3/1974, p. 2) ...... 236

Figura 6: Anúncio Livro Portugal e o Futuro (OESP, 1/4/74, p. 25) ...... 237

Figura 7: Charge Pianista (JB, 26/4/1974. p. 6) ...... 261

Figura 8: Charge Liberdade (JB, 27/4/1974, p. 6) ...... 268

Figura 9: Charge Rendição (República, 27/4/1974, p. 11) ...... 282

Figura 10: Aviso censura (República) ...... 283

Figura 11: Aviso “Não foi visado” (República) ...... 283

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Manchetes dos jornais brasileiros sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 31 de março e 1º de abril ...... 186

Tabela 2: Títulos dos jornais portugueses sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil ...... 187

Tabela 3: Manchetes dos jornais brasileiros sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 2 e 3 de abril de 1964 ...... 189

Tabela 4: Títulos dos jornais portugueses sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 2 e 3 de abril de 1964 ...... 189

Tabela 5: Manchetes dos jornais brasileiros sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal ...... 280

Tabela 6: Manchetes dos jornais brasileiros sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal ...... 280

LISTA DE ABREVIATURAS

AMFNB Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil ANI Agência Noticiosa de Informação CGT Comando-Geral dos Trabalhadores CIA Central Intelligence Agency CNTI Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria DCDP Divisão de Censura de Diversões Públicas DGS Direção-Geral de Segurança DN Diário de Notícias DOPS Departamento da Ordem Política e Social DRIL Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação FRELIMO Frente de Libertação de Moçambique GNR Guarda Nacional Republicana IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática JB Jornal do Brasil JSN Junta de Salvação Nacional MFA Movimento das Forças Armadas MPLA Movimento Popular de Libertação de Angola MRPP Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado NATO Organização do Tratado do Atlântico Norte OESP O Estado de S. Paulo ONU Organização das Nações Unidas PAIGC Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde PCP Partido Comunista Português PIDE Polícia Internacional de Defesa do Estado PREC Processo Revolucionário em Curso PRP Partido Republicano Paulista PSD Partido Social Democrático PTB Partido Trabalhista Brasileiro SPN Secretariado de Propaganda Nacional UDN União Democrática Nacional UNCTAD Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 17

1. A IMPRENSA E AS RUPTURAS INSTITUCIONAIS NO BRASIL E EM PORTUGAL ...... 29 1.1. 1964, imprensa e política no Brasil: adesão e cerceamento ...... 29 1.2. O Estado de S. Paulo: uma instituição liberal na imprensa brasileira ...... 40 1.3. Jornal do Brasil: O “popularíssimo” modernizador ...... 44 1.4. Imprensa em Portugal: liberdade precoce e silenciamento longevo ... 50 1.5. Diário de Notícias: tradição e inovação ...... 59 1.6. República: a sobrevivência na oposição ...... 61

2. PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO: AS NARRATIVAS DO VIVIDO E DO IMAGINÁRIO ...... 65 2.1. A questão do presente: o acontecimento ...... 67 2.2. O acontecimento e o jornalismo como conhecimento do fato ...... 71 2.3. O método comparativo e sua pertinência nos estudos de comunicação em uma perspectiva histórica ...... 78 2.4. Análise Crítica da Narrativa na compreensão do acontecimento ...... 82

3. O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 NO BRASIL ...... 95 3.1. Imprensa brasileira ...... 95 3.1.1. Recomposição da intriga ...... 95 3.1.2. Personagens...... 111 3.1.3. Ruptura e repercussões midiáticas ...... 123 3.1.4. Léxico ...... 136 3.1.5. Relações com o tempo ...... 142 3.2. Imprensa portuguesa ...... 150 3.2.1. Recomposição da intriga ...... 150 3.2.2. Personagens...... 165 3.2.3. Ruptura e repercussões midiáticas ...... 173 3.2.4. Léxico ...... 179 3.2.5. Relações com o tempo ...... 180 3.3. Síntese comparativa...... 182

4. A REVOLUÇÃO DE 25 DE ABRIL DE 1974 EM PORTUGAL ...... 199 4.1. Imprensa portuguesa ...... 200 4.1.1. Recomposição da intriga ...... 200 4.1.2. Personagens...... 220 4.1.3. Léxico ...... 225 4.1.4. Ruptura e repercussões midiáticas ...... 227 4.1.5. Relações com o tempo ...... 231 4.2. Imprensa brasileira ...... 234 4.2.1. Recomposição da intriga ...... 234 4.2.2. Personagens...... 262 4.2.3. Léxico ...... 266 4.2.4. Ruptura e repercussões midiáticas ...... 267 4.2.5. Relações com o tempo ...... 274 4.3. Síntese comparativa...... 276

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NARRATIVAS DO VIVIDO E DO IMAGINÁRIO EM RUPTURAS INSTITUCIONAIS ...... 287

REFERÊNCIAS ...... 301 APÊNDICE A – Tabela de teses e dissertações ...... 314 ANEXO A – CD com jornais digitalizados ...... 315

INTRODUÇÃO

São diversas e importantes as justificativas que apontam para um novo fôlego nas pesquisas dedicadas a compreender o papel da comunicação de massa, em especial das narrativas jornalísticas, em episódios de ruptura institucional, tanto no Brasil como no mundo. Nossa tese procura contribuir para esse debate através da análise da narrativa de jornais representantes das imprensas hegemônicas1 brasileira e portuguesa em dois importantes acontecimentos dessa natureza na segunda metade do século XX: o Golpe Civil-Militar de 19642 no Brasil e a Revolução de 25 de abril de 19743 em Portugal. Esta tese faz parte do projeto de pesquisa A construção dos imaginários, de nosso orientador, o qual publicou, em 2014, no âmbito deste mesmo projeto, o livro 1964: Golpe midiático-civil-militar. Em termos de trajetória acadêmica pessoal, a tese dá continuidade ao estudo das articulações entre imprensa e política, iniciada em nossa monografia de conclusão do curso de Jornalismo, ocasião em que estudamos o jornal alternativo Pato Macho, semanário humorístico que circulou no Rio Grande do Sul durante a ditadura militar. Na dissertação de Mestrado, investigamos o jornal O Povo, periódico publicado entre os anos de 1838 e 1840 no contexto das revoltas provinciais do período regencial brasileiro (1831-1840). Nora (1979; 1983), ao discutir a questão da especificidade da chamada história “contemporânea” (1979, p. 179), afirma que um vasto fenômeno de democratização da história, derivado de tudo o que se costuma entender por “mundialização” – as guerras mundiais, a rapidez das comunicações, a penetração das economias em escala global – leva a uma “circulação generalizada da percepção histórica” e culmina em um fenômeno novo: o acontecimento” (1979, p. 180). De acordo com o autor, a comunicação de

1 Baseados em Gramsci (1995), compreendemos imprensa hegemônica como aquela que desempenha, pela classe dominante ou aspirante ao domínio, direção intelectual e moral na esfera da sociedade civil, cooptando, através da direção e do consenso, aliados para seus projetos. 2 Optamos por usar as expressões “Golpe Civil-Militar” e “ditadura militar”, de acordo com Fico (2014), enfatizando a participação e apoio de importantes setores civis para a implantação e a consolidação do regime militar no Brasil. 3 Optamos por usar a palavra “Revolução” para referir o 25 de Abril de 1974 em Portugal baseados em levantamento historiográfico realizado por Rezola (2008, p. 18), o qual demonstra que “O debate em torno da natureza do 25 de Abril está, de certa forma, superado. César de Oliveira observa que o 25 de Abril foi um golpe militar que o povo nas ruas transformou em Revolução”.

17 massa desempenha um papel central nesse processo: “Os mass media têm agora um monopólio sobre a história. Nas sociedades contemporâneas, é através da mídia e somente através dela que um acontecimento nos atinge e não nos pode escapar”4 (NORA, 1983, p. 5). Mais do que simplesmente meios de transmissão de mensagens, os mass media abarcam a própria condição da existência dos acontecimentos. Nora identifica o começo desse fenômeno a partir do último terço do século XIX e cita o caso Dreyfus, na França, como uma amostra da relação de profunda afinidade entre um acontecimento e determinados meios de comunicação. No exemplo citado, entre o acontecimento e a imprensa: “O caso Dreyfus teve tudo da imprensa e ela tudo lhe forneceu” (NORA, 1979, p. 182). Mediada e irremediavelmente coberta pela película da atualidade, a percepção da mudança é impactada por essa nova forma de conhecimento sobre o acontecimento. Nesse sentido, os processos de mudanças econômicas, políticas, culturais, etc. (nos interessando, nesta tese, os eventos de ruptura institucional) foram, ao longo dos séculos XX e XXI, reconfigurados pela ação dos meios de comunicação de massa, em um processo que pode ser explicado, ao menos em parte, pela mitologia da prática jornalística. Para Sodré (2009), a imprensa, como meio de comunicação preferencial da burguesia, tem sua modernidade “visceralmente ligada às mesmas exigências históricas que presidem ao fenômeno da construção do mundo por meio do discurso esclarecido” (p. 11). Sua legitimidade é fundada no princípio da superioridade da razão discursiva, alimentando o que autor chama de uma ideologia da transparência pública. A imprensa moderna constitui-se dentro da ética liberal como porta-voz dos direitos civis e reduto fundamental da liberdade de expressão. Sodré (2009, pp. 13-14) compõe um quadro da forma ideológica assumida pela imprensa industrial: ela é universalmente burguesa e europeia, tecnicamente, foi aperfeiçoada pelos norte-americanos; e os ingleses, por sua vez, contribuíram para a constituição da notícia como a narração do acontecimento racionalizada como mercadoria.

4 Original: “The mass media now have a monopoly on history. In modern-day societies, it is through the media and through them alone that an event strikes us, and cannot escape us”. Tradução nossa.

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O jornalismo, porém, funda-se em um paradoxo, uma vez que não deixa de lançar mão de recursos mitológicos, como o da “construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade” (SODRÉ, 2009, p. 12). A mitologia do liberalismo encobre as disputas em torno da atribuição de sentidos que presidem à constituição do discurso jornalístico ao mesmo tempo em que confere à notícia o estatuto de esclarecimento neutro. É sobretudo a partir do século XX, através da ação dos meios de comunicação de massa, que a mudança – ou leitura midiática dessa noção – emerge como um valor preponderante na consciência histórica ocidental:

O texto de jornal representa basicamente um tipo de intervenção na língua – com os recursos retóricos da clareza e da concisão – afinado com a estrutura ideológica do sistema informativo, cuja forma mais evidente é a presumida transparência da realidade, por meio da evidência noticiosa dos fatos. É, porém, uma presunção que esconde as refrações, as distorções e a mística do que se pretende erigir como espelho do real. (SODRÉ, 2009, p. 16).

Nora (1979) também assinala a dimensão imaginária que a mediação de massas provoca no acontecimento: “Na medida em que efetivamente o acontecimento se tornou intimamente ligado à sua expressão, sua significação intelectual, próxima de uma primeira forma de elaboração histórica, esvaziou- se a favor de suas virtualidades emocionais. A realidade propõe, o imaginário dispõe” (p. 184). De “espelho do real”, o jornalismo é encarado, nessa tese, como uma narrativa e como uma tecnologia do imaginário (SILVA, 2006). Além do fenômeno do acontecimento, percebemos, ainda, a marca midiática na construção da memória sobre os eventos considerados “históricos”, como os estudados nesta tese. Em 2014, no segundo ano de nosso doutoramento, completaram-se 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e 40 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal, efemérides que provocaram a imprensa a revisitar esses acontecimentos, propiciando novas leituras. No caso do Brasil, regia o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, que foi presa e perseguida política durante a ditadura. Sob seu

19 governo, iniciado em 2011, instalou-se, em 2012, a Comissão Nacional da Verdade, que visou investigar as violações aos Direitos Humanos por parte de agentes do Estado ocorridas durante o regime militar. Ganharam força os movimentos a favor da abertura de arquivos e pela revisão da Lei da Anistia. Em junho de 2013, manifestações ocorridas por todo o Brasil trouxeram à tona discursos, valores e imaginários conectados, de forma mais ou menos explícita, à ditadura militar. No dia 17 daquele mês, uma passeata reuniu mais de cem mil pessoas no centro do Rio de Janeiro, repetindo, em número de participantes, o histórico feito de 26 de junho de 1968, que reuniu a multidão contra o regime de força instalado no Brasil. As manifestações de 2013 colocaram em relevo um imaginário positivo, de ação política coletiva e de luta pelos direitos dos cidadãos em um país ainda marcado por profundas desigualdades. Mas também fizeram aparecer alguns fantasmas dos tempos da repressão. A violência exagerada da polícia contra manifestantes provocou o debate sobre o despreparo do poder público para conduzir esse tipo de situação e para dialogar com a sociedade. Episódios de vandalismo foram pretexto para que se aventasse a possibilidade de uso da Lei de Segurança Nacional, cuja versão mais recente é ainda da época da ditadura (1983)5. Em novembro de 2013 foi colocada em andamento a exumação e a análise pericial dos restos mortais do ex-presidente João Goulart, procedimento que buscou esclarecer as circunstâncias de seu falecimento, as quais levantam suspeitas de eliminação, por envenenamento, pela operação Condor6. Apesar de inconclusiva, a investigação, finalizada em dezembro de 2014, promoveu a revisão de fatos e imaginários do passado. No dia 21 de novembro de 2013, o Congresso Nacional brasileiro aprovou o projeto de resolução proposto pelos senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) e anulou a sessão do Congresso de 2 de abril de 1964, que declarou vaga a Presidência da República, etapa essencial para a consolidação do Golpe Civil- Militar que determinou a queda do presidente João Goulart.

5 JURISTAS se dividem sobre uso da lei de segurança nacional. O Globo [online], Rio de Janeiro, 8 out. 2013. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2013. 6 Organização conjunta das forças de repressão e informação dos países sob ditadura no Cone Sul, levada a cabo entre as décadas de 1970 e 1980 (QUADRAT, 2002).

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A efeméride também provocou a mídia nacional. Grandes grupos de comunicação, como Estado, Folha e Globo, reviram suas participações nos acontecimentos em 1964 e produziram cadernos e reportagens especiais sobre o tema. Veículos e profissionais, muitos em plena atividade, investem em uma narrativa mítica de resistência à ditadura, com ênfase na censura e esquecendo-se do apoio, adesão e mesmo conspiração dedicados ao golpe e ao regime militar. Esse posicionamento vem sendo revelado e esclarecido por diversas pesquisas, tema que aprofundamos no Capítulo 1 desta tese. Voltando às efemérides, tivemos oportunidade, entre fevereiro e setembro de 2014, de realizar estágio doutoral sanduíche em Portugal, na Universidade do Minho, em Braga, sob orientação do Prof. Dr. Moisés de Lemos Martins. A viagem de estudos alterou substancialmente nosso projeto de pesquisa, abrindo a oportunidade de acesso a um novo mundo de convivência universitária, por meio das novas aulas, professores, colegas, acervos, bibliografia, exposições, congressos. Assim como foi possível perceber movimentos de reflexão sobre a história e a memória que aconteceram no Brasil na ocasião dos 50 anos do Golpe Civil-Militar de 1964, a efeméride também motivou debate intenso em Portugal. As comemorações dos 40 anos da Revolução foram permeadas por discussões sobre a consolidação das democracias liberais no continente europeu, tendo em vista a profunda crise mundial iniciada em 2008 e ainda não superada pela “Europa do Sul”, na expressão do sociólogo português Boaventura de Souza Santos. Acompanhamos in loco as comemorações aos 40 anos do 25 de Abril de 1974. Neste mesmo dia, em 2014, e ao longo das semanas que antecederam e sucederam a data, participamos de eventos relativos às comemorações em Lisboa e em Braga. Assistimos ao Congresso “A Revolução de Abril”, organizado pelo Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II, a Fundação Mário Soares, a Câmara Municipal de Lisboa, a Associação 25 de Abril e apoio da Fundação José Saramago, e realizado entre os dias 21 e 24 de abril. Na ocasião, pudemos presenciar debates sobre diversos aspectos da Revolução, compreendendo

21 que a data foi realmente um divisor de águas na história portuguesa e que, apesar das críticas pontuais – especialmente a partir de desdobramentos do PREC7, de questões relativas à memória do 25 de Abril e da crise na atualidade –, o balanço dá conta de inegáveis avanços em todos os campos da sociedade portuguesa. Mario Soares (1924-2017), fundador do Partido Socialista, ex-presidente e ex-primeiro ministro de Portugal, então prestes a completar 90 anos, realizou a conferência de abertura do evento, lembrando que, ao completar 40 anos do 25 de Abril, a vida democrática em Portugal já celebrava quase o mesmo tempo de duração que o longevo regime salazarista. Ressaltou em sua fala a adesão popular que conferiu o inegável status revolucionário ao Movimento das Forças Armadas (MFA) e da quebra narrativa que esse acontecimento significou ao mostrar que era possível, mesmo após a sangrenta experiência chilena, em 1973, que um golpe de Estado perpetrado por militares conduzisse, efetivamente, a uma experiência pacífica e democrática. Ao falar sobre a crise portuguesa em 2014, Soares destacou que a “retórica política” do neoliberalismo é eficaz na conquista da opinião pública, fomentando um discurso econômico pseudocientífico e uma narrativa que aposta em um conflito de gerações (os “velhos”, que gastaram demais, e os “jovens”, que agora devem pagar a conta) que apresenta como única solução para a crise uma política de austeridade para a qual não parece haver alternativa política. Ainda de acordo com Soares, a falta de alternativa abriria caminho ao populismo anti-partidário, “tapete vermelho para o autoritarismo”. Destacamos, ainda neste Congresso, a sessão plenária sobre “A Comunicação Social e a Revolução”, com a participação dos jornalistas Adelino Gomes, Diana Andringa e José Rebelo, os quais refletiram sobre o difícil aprendizado da profissão de jornalista a partir de 1974, depois de anos de repressão. “A liberdade aprende-se praticando-a”, afirmou Adelino. Pudemos acompanhar, ainda diversos lançamentos editoriais que assinalam a pluralidade de vozes e narrativas que se manifestavam sobre o 25 de Abril por ocasião da efeméride: do lado dos capitães do MFA – os quais muitas vezes reclamam do esquecimento de seu papel fundamental na

7 Sigla para Processo Revolucionário em Curso, que compreende o período de intensa disputa política vivido entre a Revolução de 25 de Abril de 1974 e o golpe militar de 25 de novembro de 1975, o qual consolida os grupos de centro-direita na condução política do país.

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Revolução – através de obras memorialísticas como Alvorada em Abril, de Otelo Saraiva de Carvalho e Os rapazes dos tanques, com fotografias de Alfredo Cunha e reportagens de Adelino Gomes sobre os jovens soldados que efetivaram o golpe de Estado; na literatura, o lançamento de Os Memoráveis, romance de Lídia Jorge que versa sobre a memória e a relação entre as gerações que viveram a revolução e as que vieram depois dela; a reedição de Portugal, a Flor e a Foice, do jornalista José Rentes de Carvalho, obra editada pela primeira vez em 1975 na Holanda, onde o autor encontrava-se exilado; o abrangente e curioso Nas bocas do mundo – o 25 de abril e o PREC na imprensa internacional, levantamento, com edição fartamente ilustrada, do jornalista Joaquim Vieira e do historiador Reto Monico sobre as repercussões dos tempos revolucionários na imprensa internacional; e, por fim, no campo da historiografia, a publicação de História do Povo na Revolução Portuguesa, da historiadora Raquel Varela, que buscou aprofundar a compreensão sobre a dimensão da participação popular na Revolução. A articulação, nesta tese, entre as narrativas sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 e sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 tem entre seus objetivos colaborar com a criação de novos referenciais para a compreensão do papel da imprensa hegemônica em momentos de ruptura institucional. A comparação entre esses acontecimentos específicos (VEYNE, 2008) torna-se especialmente interessante porque Brasil e Portugal possuem uma importante história em comum e também porque os eventos selecionados para análise, apesar terem sido ambos executados por militares, tiveram propostas e resultados diferentes: no Brasil, foi derrubado o presidente trabalhista eleito João Goulart e inaugurou-se um período de 21 anos de ditadura; em Portugal, o golpe de Estado pôs fim ao regime autocrático salazarista e teve início um processo revolucionário que culminou na abertura política e consolidação da democracia. Em linhas gerais, Portugal vivia, durante o recorte abarcado nesta pesquisa, um regime fechado que ficou conhecido como ou Salazarismo (1933-1970), denominação que faz referência ao seu principal líder, António de Oliveira Salazar (1889-1970). O 25 de Abril, Revolução que deu fim à ditadura, foi conduzida pelo Movimento das Forças Armadas e iniciou

23 o processo que levou à implantação de um regime democrático, com a aprovação da Constituição de 25 de abril de 1976. No Brasil, onde a ditadura já durava 10 anos e encaminhava-se a posse do quarto presidente militar, a oposição festejou o sucesso da insurreição portuguesa. Curiosamente, o governo brasileiro logo reconheceu a Junta de Salvação Nacional (JSN):

Apesar do anticomunismo, apesar das relações amistosas com governos ditatoriais e de direita, como os de Pinochet no Chile e de Stroessner no Paraguai, para nos restringirmos à América Latina, o posicionamento brasileiro foi contrário a tudo o que dele se esperava. Já no dia 27 de abril, o Brasil reconhecia formalmente o novo regime português, tendo sido o primeiro país a fazê-lo. E ofereceu imediatamente asilo político ao presidente da República deposto, Américo Tomás, e ao presidente do Conselho de Ministros, sucessor de Salazar, Marcello Caetano, que veio a falecer no Brasil seis anos depois. (MARTINHO, 2007).

O inusitado posicionamento tem a ver, de acordo com Martinho (2007), com a questão colonial, especialmente com as guerras de independência de Angola, Moçambique e Guiné, já que o Brasil tinha interesse em herdar de Portugal a influência cultural e comercial sobre as colônias. Os movimentos nesse sentido provocaram estranhamentos entre as diplomacias brasileira e portuguesa. Entre essas situações, destacam-se o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau (julho de 1974) sem consulta aos portugueses, e o apoio diplomático do Brasil ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em novembro do mesmo ano, contrariando, inclusive, aspirações americanas (MARTINHO, 2007). Vemos, assim, que o estabelecimento de uma conexão de nossa pesquisa com a mídia e os movimentos políticos em Portugal contribui para a complexidade da análise, pois expõe os interesses contraditórios que estão em jogo no contexto da produção dos textos midiáticos. Nesta pesquisa, interessou-nos, sobretudo, como já mencionamos, a imprensa hegemônica, através de jornais diários de referência, com circulação nacional e tiragem expressiva. Como nossa análise comparativa compreendeu os anos de 1964 e 1974, observamos, também, a continuidade dos periódicos selecionados ao longo desse período, a fim de que fosse possível comparar os mesmos jornais nas duas ocasiões. Assim, a seleção dos jornais brasileiros compreende O Estado de S.Paulo, e Jornal do Brasil; em Portugal,

24 selecionamos Diário de Notícias e República, corpus cujas características serão aprofundadas no Capítulo 1 desta tese. No Brasil, por questões geográficas, selecionamos um jornal de São Paulo e outro do Rio de Janeiro; em Portugal, essa diferenciação não pareceu necessária, sendo os dois periódicos editados em Lisboa. Nossas escolhas teórico-metodológicas recaem sobre as noções de acontecimento e imaginário nas narrativas jornalísticas em uma perspectiva comparada. Sendo assim, centramos nossa análise do “calor dos acontecimentos”, ou seja, nos momentos decisivos que marcaram o ponto de mudança (nos casos analisados, rupturas institucionais), buscando explorar dessa forma a dimensão de atualidade abarcada pela narrativa jornalística moderna. Assim, as edições analisadas correspondem, especialmente, aos dias 31 de março, 1, 2 e 3 de abril de 1964 e 25, 26, 27 e 28 de abril de 1974. Nossos problemas de pesquisa centram-se nas seguintes questões: Como o nosso recorte das imprensas hegemônicas de Brasil e Portugal, em suas narrativas sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 e a Revolução de 25 de Abril de 1974, converteram esses eventos de ruptura institucional em acontecimentos-intriga? Concebendo esses processos através de uma análise comparada, quais categorias comparáveis nos permitem des(en)cobrir camadas do imaginário na narrativa jornalística dessas rupturas? Por fim, o que essa análise diz sobre a narrativa jornalística como produtora de conhecimento através de sua relação específica com a concepção da mudança? Sendo assim, nosso objetivo geral é estudar comparativamente a construção das narrativas jornalísticas de jornais representativos das imprensas hegemônicas de Brasil e Portugal sobre dois processos de ruptura institucional nesses países (o Golpe Civil-Militar de 1964 e a Revolução dos Cravos em 1974) a fim de des(en)cobrir e compreender as camadas do imaginário articuladas à noção de acontecimento consolidada pelo jornalismo na modernidade. Através do método comparativo (DETIENNE, 2004) e da técnica de Análise Crítica da Narrativa (MOTTA, 2013) buscamos categorias de análise que nos permitiram aceder aos enunciados narrativos predominantes na imprensa selecionada em nosso recorte e compreender significados e sentidos que estes produzem.

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Nesse percurso, buscamos, no Capítulo 1, realizar um levantamento bibliográfico sobre as relações entre as imprensa brasileira e portuguesa e as rupturas institucionais ocorridas nesses países – o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal. No primeiro caso, vemos que, apesar das narrativas das empresas de comunicação e dos próprios jornalistas tentarem minimizar, justificar ou negar, a absoluta maioria da imprensa hegemônica no Brasil em 1964 foi favorável à deposição do presidente João Goulart através de um Golpe Civil-Militar. Em Portugal, compreendemos que a imprensa vivia sob censura prévia e que a política interna era, até a Revolução, um tema controverso nas redações. Excessivamente vigiada, a editoria impunha aos profissionais sérias restrições ao trabalho e resumia-se, muitas vezes, à simples repetição de comunicados oficiais e uma protocolar cobertura de cerimônias controladas e encenadas pelo regime. Essa situação fazia com que jornalistas da área fossem realmente ou confundidos com colaboradores do regime salazarista. No 25 de Abril, “todos os jornais acordaram revolucionários”8; a liberdade de expressão foi uma das manifestações mais festejadas entre as mudanças políticas em curso em Portugal e o manejo dos meios de comunicação, uma das arenas mais “quentes” do processo revolucionário. No Capítulo 2, explicitamos nossos referenciais teórico-metodológicos, buscando, de acordo com as narrativas do vivido e no imaginário (SILVA, 2010), elementos que nos ajudassem a recobrir nosso objeto de pesquisa a fim de alcançar um desvelamento. Para tanto, realizamos uma reflexão acerca da categoria acontecimento como articuladora entre a Comunicação e a História, tendo como referências principais Nora (1979) e Sodré (2009). Na aproximação entre esses campos, estudamos, baseados em Detienne (2004), o método comparativo como forma de acesso à consciência história, especialmente através da dimensão da mudança tal como operada pela narrativa jornalística analisada. Nossa abordagem foi direcionada, ainda, pela Análise Crítica da Narrativa voltada ao jornalismo, sistematizada por Motta (2013). Os Capítulos 3 e 4 compreendem as análises propriamente ditas.

8 Expressão do professor Moisés de Lemos Martins em correspondência eletrônica destinada a autora desta tese em 2014, ao comentar suas indicações para a composição de nosso corpus de pesquisa.

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Iniciamos pelo Golpe de 1964 no Brasil, analisando, primeiramente, a imprensa autóctone e, depois, a imprensa portuguesa. Da mesma forma, o Capítulo 4, dedicado à Revolução de 25 de Abril de 1974, inicia com a análise da imprensa portuguesa e, em seguida, passamos à imprensa brasileira. De acordo com nosso referencial teórico-metodológico, estabelecemos, a partir do exercício comparativo, cinco categorias de análise que guiaram nossa pesquisa. São elas: a compreensão da intriga, a análise das personagens, das escolhas lexicais, das repercussões midiáticas internacionais e das expressões das relações com o tempo. Cada capítulo da análise se encerra com uma síntese comparativa, colocando lado a lado as observações realizadas sobre cada imprensa estudada. Nas considerações finais, buscamos rearticular essas sínteses com o tema das rupturas institucionais, procurando compreender, novamente com base nas categorias escolhidas, as camadas de imaginário expressas nas narrativas jornalísticas nesses contextos. Ressaltamos algumas informações importantes para o nosso leitor. Por uma questão de clareza, todas as citações de textos retiradas dos jornais do nosso recorte estão referenciadas, de forma completa, em nota de rodapé. Reunimos, em CD anexo, o material digitalizado que foi consultado. Os jornais portugueses foram fotografados durante a pesquisa em acervo realizada em nosso Doutorado Sanduíche e, especialmente os exemplares do 25 de Abril, acessados através de arquivos em formato pdf disponibilizados pela Biblioteca Pública de Braga ou Hemeroteca Municipal de Lisboa. Os jornais brasileiros já eram integralmente digitalizados: o Jornal do Brasil, acessível pública e gratuitamente através do Google News e O Estado de São Paulo, mediante assinatura. Destacamos, ainda, que a grafia em língua portuguesa foi padronizada respeitando o Acordo Ortográfico de 1990, o qual entrou em vigor no Brasil em 2009.

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1. A IMPRENSA E AS RUPTURAS INSTITUCIONAIS NO BRASIL E EM PORTUGAL

Neste capítulo, temos como objetivos compreender as relações entre as imprensas hegemônicas brasileira e portuguesa e os processos de ruptura institucional estudados nesta tese, além de explorar a trajetória dos jornais que compõem nosso recorte (no Brasil, O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil; em Portugal, Diário de Notícias e República), a fim de explicitar nossas escolhas relativas ao corpus. Iniciamos com a imprensa brasileira e o Golpe Civil-Militar de 1964.

1.1. 1964, IMPRENSA E POLÍTICA NO BRASIL: ADESÃO E CERCEAMENTO

A trajetória da imprensa no Brasil está atrelada à política e ao poder, das mais variadas formas: em sua constituição ideológica; na iluminação ou obscurecimento dos assuntos que tocam a opinião pública; em sua relação com o Estado – que pode ameaçá-la pela censura, cerceamento ou corte de verbas, mas que, por sua vez, também pode ser ameaçado pela divulgação de fatos, ideias e argumentos contrários aos seus interesses. Trata-se de um jogo complexo, no qual o dito e o não dito interagem com o público e produzem significados, e que está atrelado não só à política em sentido estrito, mas a aspectos econômicos, sociais e culturais. De nosso recorte, O Estado de S. Paulo (1875) e o Jornal do Brasil (1881) nascem na esteira dos intensos debates políticos que envolvem a implantação e consolidação da República no Brasil. A virada do século XIX para o XX na história da imprensa brasileira é marcada por muitas transformações, tanto na esfera das tecnologias quanto das ideias. O linotipo, o telégrafo e o daguerreótipo são algumas das novidades que impactam jornais, jornalistas e leitores, confrontando-os com uma nova relação com o tempo e o espaço. Os olhos estão voltados para o futuro, para a República. O impacto das novas tecnologias é essencial para a construção de uma “imagem do jornalismo como lugar da informação neutra e atual” (BARBOSA, 2007, p. 24).

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Gradualmente, começa a acontecer a separação entre opinião e informação, acompanhada do desenvolvimento dos processos capitalistas e industriais, o que torna ainda mais complexa relação entre jornalismo e política. Ao estudar a imprensa brasileira dos anos 1950, a pesquisadora Ana Paula Goulart Ribeiro (2002) comenta essa intricada relação simbiótica:

O campo jornalístico – tal como se configurou historicamente no Brasil – jamais conseguiu se autonomizar totalmente em relação à política. Os jornais brasileiros nunca puderam assumir, por exemplo, o papel de watchdogs, que lhes era reservado no ideário norte-americano. Nunca conseguiram exercer, de fato, vigilância sobre a ação do Estado, no sentido clássico do liberalismo, pois nunca mantiveram uma distância suficiente dos personagens públicos. A imprensa sempre teve uma relação simbiótica com a política [...]. Acreditamos que esse caráter das empresas jornalísticas está relacionado à própria configuração do campo político no Brasil, marcada por uma constante tensão entre modernidade e arcaísmo, entre, de um lado, a impessoalidade e a racionalidade das instituições (baseadas nos princípios da representatividade, da sociedade de direitos, da cidadania) e, de outro, as práticas oligárquicas, clientelísticas, familiares, patriarcais e patrimonialistas. (RIBEIRO, 2002, p. 12-13).

Nos anos 1960/70, período que interessa à nossa pesquisa, Barbosa (2007) reafirma a marcante intervenção da política nos meios de comunicação. A censura que se desenvolve com o regime militar faz com que se reconfigurem as relações entre a imprensa e o poder. A presença e a influência da televisão faz emergir novos modos de consumo de informação. Caparelli (1989) identifica, a partir desse período, o estabelecimento de um novo modelo de desenvolvimento nos países do Cone-Sul da América Latina: a internacionalização do processo de produção industrial, que substitui a industrialização substitutiva de importações. No Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, esse movimento foi acompanhado por regimes repressivos, mas teve características próprias em cada um dos países estudados. No Brasil, foi marcante a acentuada intervenção do Estado, tanto na economia quanto nos produtos culturais do rádio, da televisão e da imprensa.

O golpe de Estado de 1966 na Argentina e o de 1964 no Brasil representam uma mudança considerável na história dos meios de comunicação. Porque agora se pode dizer que já existem, nesses dois países, as bases para um mercado de bens culturais e, por

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consequência, o impulso necessário ao desenvolvimento das indústrias culturais. (CAPARELLI, 1989, p.12).

No Brasil, os meios de comunicação se desenvolvem em um contexto de autoritarismo e os produtos culturais são então um reflexo do novo modelo de desenvolvimento, com marcada intervenção do Estado. Na área da imprensa, a modernização de parques gráficos foi estimulada através de empréstimos com juros favoráveis em bancos estatais. São exemplos disso a modernização tecnológica dos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil. Vemos, assim, que o cenário político e econômico em que estão inseridas as comunicações de massa no Brasil no período que interessa ao nosso recorte possui algumas características marcantes: trata-se do momento da consolidação e expansão das indústrias culturais no Brasil, fomentadas por uma forte intervenção do Estado, alinhadas com a perspectiva de integração de mercados promovida pelos militares. Há, ainda, uma ampla conquista de público e novas formas de consumo de informação, especialmente através do rádio e da TV. A imprensa, objeto de nosso estudo, também reflete esse contexto em sua trajetória, como veremos a seguir.

Partimos do entendimento de que há um encobrimento sobre parte das relações entre a grande imprensa brasileira, o Golpe Civil-Militar e a ditadura militar. Essa zona de sombras é resultado, em grande parte, da própria narrativa produzida e fomentada por veículos de comunicação e seus profissionais, os quais optam por abastecer um imaginário sobre a imprensa como vítima de um censor algoz, destacando sua resistência frente ao cerceamento e assumindo, consequentemente, o papel de defensores da liberdade de expressão. De acordo com Barbosa (2007, p. 187), trata-se de uma questão complexa na qual a tomada da parte pelo todo, ou seja, as generalizações, acabam por produzir distorções:

Há, portanto, idealização na forma como se percebe a atuação da imprensa durante períodos de exceção. Há, também, uma idealização na divulgação recorrente do discurso de que a imprensa luta bravamente – de maneira indiscriminada e genérica – contra a ação da censura. Na prática, essa luta não é tão uníssona, como também

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se observam as acomodações. Como uma empresa que procura aferir lucros e ganhos simbólicos, a imprensa se defronta entre a construção de um discurso que a coloca num lugar heroico e a sua própria sobrevivência no mercado jornalístico e de bens simbólicos.

Esta região sombria vem sendo explorada, tanto pela pesquisa acadêmica quanto pelos próprios meios de comunicação, cada vez mais confrontados pelo público em suas ambiguidades. Nesse sentido, são exemplares as recentes manifestações dos jornais Folha de S. Paulo e O Globo sobre suas atuações durante o regime militar. Em 2011, a Folha de S. Paulo admitiu o apoio ao Golpe Civil-Militar de 1964 e à ditadura, em texto do jornalista Oscar Pilagallo, no caderno comemorativo aos 90 anos do jornal. O texto ameniza a admissão do apoio ao contrapor-se à conspiração efetivada por O Estado de S. Paulo e à ação de grupos “terroristas” de luta armada:

A Folha apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa brasileira. Não participou da conspiração contra o presidente João Goulart, como fez o "Estado", mas apoiou editorialmente a ditadura, limitando-se a veicular críticas raras e pontuais. Confrontado por manifestações de rua e pela deflagração de guerrilhas urbanas, o regime endureceu ainda mais em dezembro de 1968, com a decretação do AI-5. O jornal submeteu-se à censura, acatando as proibições, ao contrário do que fizeram o "Estado", a revista "Veja" e o carioca "Jornal do Brasil", que não aceitaram a imposição e enfrentaram a censura prévia, denunciando com artifícios editoriais a ação dos censores. As tensões características dos chamados "anos de chumbo" marcaram esta fase do Grupo Folha. A partir de 1969, a "Folha da Tarde" alinhou-se ao esquema de repressão à luta armada, publicando manchetes que exaltavam as operações militares. A entrega da Redação da "Folha da Tarde" a jornalistas entusiasmados com a linha dura militar (vários deles eram policiais) foi uma reação da empresa à atuação clandestina, na Redação, de militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional), de Carlos Marighella, um dos 'terroristas' mais procurados do país, morto em São Paulo no final de 1969. Em 1971, a ALN incendiou três veículos do jornal e ameaçou assassinar seus proprietários. Os atentados seriam uma reação ao apoio da "Folha da Tarde" à repressão contra a luta armada. Segundo relato depois divulgado por militantes presos na época, caminhonetes de entrega do jornal teriam sido usados por agentes da repressão, para acompanhar sob disfarce a movimentação de guerrilheiros. A direção da Folha sempre negou ter conhecimento do uso de seus carros para tais fins. (PILAGALLO, 2011 – grifos do original).

Ao lançar o projeto Memória, as Organizações Globo, em 31 de agosto de 2013, publicaram o texto Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro, no qual

32 afirmam: “A consciência não é de hoje, vem de discussões internas de anos, em que as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio se constituiu um equívoco” (APOIO, 2013), referindo-se especificamente ao jornal O Globo. É importante destacar o uso da expressão “à luz da História”: a empresa admite o apoio ao golpe, mas esse apoio se converte em “equívoco” apenas com o passar do tempo. No calor dos acontecimentos, “O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país” (APOIO, 2013). Essas manifestações dos meios de comunicação são uma resposta (e uma confirmação) das empresas ao que já se vem demonstrando e aprofundando através das pesquisas em âmbito acadêmico sobre a atuação da imprensa brasileira ao longo do regime militar. A produção científica sobre o tema é ampla e segue despertando o interesse dos investigadores, como pudemos constatar em nossa revisão da literatura. Assim, investidos pelos princípios metodológicos das narrativas do vivido e do imaginário (aprofundados no Capítulo 2), damos início ao processo de entranhamento (SILVA, 2010) em nosso objeto de estudo. Destacamos, de início, que as fontes para esse trabalho se mostram exaustivas. Muito já se produziu sobre a ditadura militar brasileira e, especificamente em relação aos meios de comunicação, sobressaem os trabalhos acadêmicos voltados para a questão da censura ou com ênfase na imprensa alternativa. Esclarecem os mecanismos – alguns perversos, outros até mesmo risíveis – da censura. Muitas vozes significativas, que no momento da repressão só puderam se expressar através de meios alternativos, foram e são reveladas e estudadas. E, certamente, há ainda muito a pesquisar. Levantamento bibliográfico apresentado por Fico (2012), restrito ao campo da História, aponta 15 teses e dissertações sobre a imprensa. Dessas, seis tratam da imprensa alternativa e outras três são anguladas pela análise da cobertura da imprensa sobre episódios ou trajetórias específicas. Sobre o tema censura, o autor conta 13 trabalhos. Pesquisa realizada no começo do desenvolvimento testa tese, em junho de 2013, no repositório da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (IBICT) resultou em 36 teses ou dissertações que traziam as

33 expressões “imprensa” e “ditadura militar”, simultaneamente, em seus resumos9 publicadas nos cinco anos anteriores (entre 2007 e 2012). Reduzindo o recorte apenas às pesquisas que tinham a imprensa como objeto em si, excluímos dos resultados aquelas que a utilizaram como fonte complementar, para falar de outros assuntos que não ela mesma, resultando em 17 trabalhos. Destes, História e Comunicação dominam o campo de produção das pesquisas, cada um com quatro trabalhos, seguidos em segundo lugar pelas Ciências Sociais, com três. Das pesquisas da Comunicação, duas utilizam a grande imprensa como fonte e as outras duas tratam da imprensa alternativa. Sem pretender aprofundar a análise quantitativa da produção acadêmica sobre o assunto, é possível perceber, nesses recortes, que há uma ênfase das pesquisas na censura, na imprensa alternativa e na cobertura específica de episódios ou personagens da imprensa. Assim, entendemos que há ainda espaço para pesquisas que procurem entender, do campo da Comunicação, a atuação da imprensa hegemônica e que nossa proposta comparativa, utilizando a imprensa estrangeira – no caso, portuguesa – é ainda pouco explorada. Como afirmamos anteriormente, a constatação do apoio da imprensa hegemônica ao Golpe de 1964 é tema que conta com sólido fundamento na literatura. De clássicos da história da imprensa e da historiografia sobre o golpe, novas pesquisas vêm aprofundando o assunto, especialmente a partir dos anos 2000. Neste último grupo, são exemplares os trabalhos de Aquino (1999), Abreu (2004), Kushnir (2004), Amado (2008), Chammas (2012), Larangeira (2014) e Silva (2014), entre outras. Barbosa (2007) e Bahia (1990) expõem as semelhanças entre o comportamento da imprensa às vésperas do Golpe de 1964 com aquele desempenhado na campanha contra o presidente Getúlio Vargas, dez anos antes. Para Bahia (1990), a opinião concentrada da mídia desempenha um papel central entre os fatos políticos que culminam com o suicídio de Vargas em 1954, no sentido de desestabilizar o sistema de poder representado pelo chefe de governo, fenômeno que se repete em 1964:

9 A tabela completa está apresentada no Apêndice A.

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O pretexto é combater a subversão e restaurar as liberdades públicas tidas como ameaçadas. Durante três meses – janeiro, fevereiro e março – os meios de comunicação de massa atuam em bloco, emitindo uma opinião e um noticiário dirigidos para enfraquecer e demolir o “inimigo comum”, personificado em Goulart. No caso Vargas, o papel preponderante é dos jornais e das rádios. Em 64, acrescenta-se a TV. (BAHIA, 1990, p. 269).

Para Barbosa (2007), o período entre 1950 e 1960 deve ser visto como um momento de intensa oposição entre os jornais Tribuna da Imprensa e Última Hora, sendo que, em 1954, este último era o único jornal, entre a grande imprensa, que apoiava o governo Vargas. A autora identifica, dez anos mais tarde, o mesmo modo de operação:

As greves de 1953, a elevação dos salários dos operários, no início de 1954, a radicalização do discurso oficial e a dinamização da vida sindical são temas explorados ao máximo pelos jornais para conseguir o apoio dos grupos médios para o golpe e, também, a simpatia do proletariado urbano. Os jornais criticam, em uníssono – destoando apenas UH –, a “corrupção” do governo em nome da “moralidade”. Dez anos depois, os nomes mudarão, mas a ação da grande imprensa será semelhante, ao opor “democracia” ao “comunismo”. (BARBOSA, 2007, p.181).

Sodré, autor do clássico História da Imprensa no Brasil (2011), sustenta a tese de que o golpe foi organizado e que a tentativa de tomada de poder em 1961, quando da abdicação de Jânio Quadros, foi um “ensaio” para 1964:

[...] vencido em 1961, o movimento antinacional e antidemocrático retraiu-se, organizou-se e preparou, longa e meticulosamente a investida que lhe permitiria a vitória. Em março de 1964, com tudo rigorosamente articulado, no exterior e no interior, deflagrou a preparação publicitária que anunciaria as ações militares: toda a grande imprensa, articulada em coro, participou dessa preparação psicológica, como o rádio e a televisão. (SODRÉ, 2011, p. 599-600).

Skidmore (2000), autor de obras de referência sobre a ditadura militar no Brasil, também identifica o fenômeno: “A Revolução de 1964 foi entusiasticamente festejada pela maior parte da mídia brasileira. Jornais importantes como o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo pugnavam abertamente pela deposição do governo Goulart” (SKIDMORE, 2000, p. 63).

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Melo (1985) utiliza a participação da mídia no “clima” de instabilidade política que culminou com o golpe de 1964 para exemplificar as relações de força entre imprensa e Estado, citando artigo do norte-americano Jonathan Lane que, já em 1967, identificou que as instituições jornalísticas brasileiras que atuaram durante a queda do governo Goulart tiveram a intenção explícita de “criar pânico entre as forças armadas, conduzindo-as à insubordinação contra o regime constitucionalmente instalado” (MELO, 1985, p. 80). Vemos, assim, que a atuação da imprensa como apoiadora do Golpe de 1964 está identificada por grande parte da bibliografia sobre a história da imprensa brasileira. Mesmo assim, jornais e jornalistas, a partir de suas perspectivas e ações memorialísticas, apresentam uma narrativa um tanto diversa, que busca relativizar esse apoio. Uma tentativa de rever essa trajetória acontece mesmo antes do fim do regime militar. A coletânea O golpe de 64: A imprensa disse não (1979) reúne textos de diversos colunistas (entre eles, Alceu Amoroso Lima, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux) publicados ao longo do primeiro ano da ditadura. No texto introdutório Quem é quem – E por que está aqui, a organizadora da obra, Thereza Cesário Alvim, afirma:

Basta! e Fora! são os títulos de dois violentíssimos editoriais saídos no Correio da Manhã, respectivamente, nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964, em apoio à derrubada de João Goulart. Já no dia 2 de abril, quando Última Hora, com a redação depredada na véspera pela mesma horda de fanáticos que incendiou o prédio da UNE saía com edição de guerra, aquele jornal, dirigido por Niomar Muniz [sic] Sodré Bittencourt, demonstrava reconhecer que havia tomado o bonde errado – e assumia esse engano com a lealdade e a coragem que logo o transformaria no órgão brasileiro de imprensa mais importante da época, na melhor tribuna de oposição à ditadura emergente. (ALVIM, 1979, p. 11).

São brechas críticas, muitas bastante sutis, registradas na imprensa ao longo do ano de 1964, especialmente no Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Última Hora. Fica claro que os jornalistas que participam da coletânea reclamam por uma separação entre a sua voz e a do jornal como empresa de comunicação, admitindo, de certa forma, a participação no golpe, como mostra a menção de Alvim (1979) aos famosos textos publicados no Correio da Manhã e que contaram com a colaboração de participantes da coletânea para sua

36 confecção10. A reunião de textos tem o mérito de mostrar que o jornal é espaço de contradições, porém, não é possível admitir a veracidade do título da obra: a grande imprensa brasileira e os jornalistas disseram “sim” ao Golpe de 1964. Parte importante da produção historiográfica que busca explicar o Golpe Civil-Militar de 1964 afirma que a desestabilização civil foi forte, ao passo que a ação militar foi um tanto improvisada, como afirma Fico (2004, p. 55):

Sem a desestabilização (propaganda ideológica, mobilização da classe média etc.) o golpe seria bastante difícil; sem a iniciativa militar, impossível. Portanto, é preciso bem distinguir a atuação desestabilizadora (a propaganda do IPES e outras agências) da conspiração golpista civil-militar, que em muitos momentos não passou de retórica radical e somente se consolidou às vésperas do 31 de março. Assim, creio não ser abusivo afirmar o acerto histórico da leitura segundo a qual a “desestabilização civil” foi bastante articulada, mas a ação militar não foi inteiramente planejada, com segurança e sistematicidade, ficando à mercê de iniciativas de algum modo imprevistas [...].

Para Silva (2013; 2014), golpe não só contou com a desestabilização civil organizada como teve participação decisiva da mídia, que articulou a construção de um imaginário favorável ao desfecho. Para o autor, o golpe de 1964 foi midiático-civil-militar, com a imprensa desempenhando o papel, designado por Gamsci (1985), de intelectual orgânico: “A mídia foi o intelectual orgânico do empresariado da modernização conservadora brasileira em luta contra o nacionalismo trabalhista que rotulou, para desqualificar, de populista e de demagógico” (SILVA, 2014, p. 11). Larangeira (2014), em extenso levantamento que abrangeu a imprensa de sete cidades Brasileiras (Belo Horizonte, Juiz de Fora, Porto Alegre, Santa Maria, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro), analisou o posicionamento editorial dos principais jornais diários dessas localidades durante o golpe e ao longo do regime militar. Dos 42 jornais pesquisados, apenas dez opuseram-se ao golpe, defendendo a legalidade do mandato de João Goulart. Além do apoio inicial, o autor demonstra, com farto material documental, que a imprensa agiu como “cão de guarda do sistema e capitã do mato da ditadura”, em um momento que

10 Carlos Heitor Cony, em depoimento a Gaspari (2002a) relata as condições de produção do famoso editorial “Basta!”, do Correio da Manhã de 31/3/1964. O jornalista fez parte do grupo que redigiu o texto, junto com Otto Maria Carpeaux, Osvaldo Peralva, Newton Rodrigues e Edmundo Moniz (GASPARI, 2002a, p.65).

37 o autor descreve como “a segunda dentição do jornalismo brasileiro”. Nas décadas de 1960 e 70 ocorre um refinamento da concepção empresarial e da percepção dos produtos midiáticos como bens de consumo:

A atabalhoada postagem das matérias, misturando temas e gêneros díspares de sentido no mesmo espaço, dá passagem ao jornalismo editorial, aprimoramento estético da técnica jornalística e agenciamento temático mercantilizado. Por que então empresas de comunicação signatárias do liberalismo econômico e liberdade de expressão, com histórico de enfrentamento ao patriarcalismo militar- coronelista da Primeira República e ao autoritarismo do Estado Novo Getulista, afeiçoariam-se e legitimariam o governo dirigista autocrático implantado em 1964, numa voluntariosa fusão de horizontes? Estratégia? Não, e sim afinidade ideológica com o sistema supraestruturado nos elitismos burocrático [...] e empresarial [...]. (LARANGEIRA, 2014, p. 162).

A gestação dessa “segunda dentição” ao longo do regime militar – especialmente com a frustração das eleições de 1965 e a ação da censura nas redações, institucionalizada no Ato Institucional número 5 (dezembro de 1968) –, renova o jogo entre a imprensa e o poder político, tornando esse equilíbrio mais complexo. Fico (2004) e Kushnir (2004) são autores que exploraram as dinâmicas da censura e as formas como a imprensa brasileira se relacionou com elas durante o regime militar. Fico (2004, p. 72) aposta na ascensão daquilo que chama de utopia autoritária entre os militares golpistas, o que incluía o extermínio de todos os “óbices” ao “destino de grandeza” do Brasil, ou seja, a eliminação do comunismo e de tudo aquilo que fosse entendido como tal. Essa utopia autoritária justificou a “operação limpeza” (ou “punições revolucionárias”) que ocorreu desde os primeiros momentos do golpe e, como veremos em nossa análise, está presente na narrativa dos jornais brasileiros de nosso recorte. Um dos braços dessa ação autoritária era a censura, que ocorreu, no Brasil, de duas formas: a censura de diversões públicas (que existia institucionalmente através da Divisão de Censura de Diversões Públicas – DCDP desde 1946), com cunho fortemente moral (reprovando palavrões, nudez, atentados aos “bons costumes”), e que passa, a partir de 1964, a dedicar-se também aos temas políticos; e a censura da imprensa, de cunho “revolucionário”. Esta última não era institucionalizada, apesar de largamente

38 praticada através de telefonemas ou “bilhetinhos” que informavam os jornalistas sobre as proibições. Mesmo depois do AI-5, era praticada de forma confusa, primeiro através de comandantes de unidades militares ou agentes da polícia federal e, mais tarde, centralizada no Ministério da Justiça. Kushnir (2004, p. 80) aprofunda-se nas relações entre censores e jornalistas, constatando que, na grande imprensa brasileira do período de governo militar, muitos censores eram jornalistas e que, depois de 1968, havia também jornalistas que eram policiais, ocorrendo uma experiência de colaboracionismo de uma parcela da imprensa com a repressão. A pesquisadora focou sua análise na Folha da Tarde, vespertino que teve uma primeira existência entre 1949 e 1959 e foi relançado em 1967, na esteira de mudanças empresariais, editoriais e tecnológicas no Grupo Folha da Manhã, que a desejava “moderna, colorida, impressa em offset. Nas suas páginas deveriam estar as questões nacionais do momento e, principalmente, a efervescência que transpirava pelas ruas do país” (pp. 81-82). De uma redação composta por jornalistas em sua maioria opostos ao regime militar, o diário muda completamente com o AI-5, quando grande parte da redação é demitida. A partir de julho de 1969, a Folha da Tarde passa a ser conhecida como o jornal de “‘maior tiragem’ devido ao grande número de policiais que compunham a sua redação” (KUSHNIR, 2004, p. 85, grifo nosso) e passa a uma linha editorial alinhada ao regime militar, situação que só se altera quando essa postura já parece “antiquada” e as tiragens caem, o que coincide com a campanha das Diretas Já, em 1984. Para a autora, a trajetória do vespertino “pontua como as elites brasileiras não perderam o controle e reafirmaram, nesses episódios, e em muitos outros, a tradição da conciliação” (p. 89). Tudo isso com a colaboração de muitos de seus jornalistas, os quais a autora chama (assim como Larangeira, 2014), cães de guarda. Aquino (1999) traça um panorama das complexas relações entre imprensa, censura e cerceamento ao longo do regime militar, ao analisar as trajetórias de O Estado de São Paulo e do semanário alternativo Movimento entre 1968 e 1978. Explica, em relação a OESP, que não há uma incoerência entre o apoio deste jornal ao golpe de 1964 e as posteriores críticas à ditadura militar, já que seu posicionamento editorial decorre mais da defesa de um

39 liberalismo lockeano do que de princípios propriamente democráticos (AQUINO, 1999, p. 39). De acordo com a autora, OESP aponta, tanto em 1964 (por Goulart) quanto em 1968 (pelos militares), o “afronte às instituições”. Ao contrário do que se possa pensar, já que o governo Geisel ficou conhecido pelo começo da abertura política, o ano de 1974 é sinalizado por Aquino (1999) como um período de elevação na quantidade de proibições da censura “revolucionária”. A autora percebe, na comparação entre OESP e o semanário Movimento, uma atuação mais amena da censura no primeiro caso, já que “a grande imprensa parte de uma concepção de informação e de história que orientam a produção jornalística na direção da cobertura da exceção, oficializando a concessão da palavra aos privilegiados” (p. 249). A seguir, apresentamos a trajetória de cada um dos jornais brasileiros que compõem o corpus desta pesquisa, organizados por ordem cronológica de aparecimento: O Estado de S. Paulo (1875) e Jornal do Brasil (1891).

1.2. O ESTADO DE S. PAULO: UMA INSTITUIÇÃO LIBERAL NA IMPRENSA BRASILEIRA

É o jornal pioneiro e mais longevo da amostra selecionada para esta tese, perdurando até os dias de hoje. Foi fundado em 4 de janeiro de 1875 com o nome Província de São Paulo, por um grupo liderado por Américo Brasiliense de Almeida Melo e Manuel Ferraz de Campos Sales. Diário e matutino, surge no contexto de intensa luta e discussão em torno da causa republicana. Sodré (2011) retrata com detalhes o ambiente em que o jornal foi criado:

Em 1875, o ambiente em São Paulo refletia os acontecimentos que abalavam o país: terminara a Guerra contra o Paraguai há um lustro, surgira a tempestade da Lei do Ventre Livre, os fazendeiros temiam o futuro, as ideias republicanas ganhavam adeptos em todas as áreas, realizara-se a Convenção de Itu, o abolicionismo alastrava-se. A imprensa do governo era ardorosa e disciplinada; sentia-se a necessidade de um jornal que, “não sendo republicano extremado, viesse discutir com serenidade os absorventes problemas do momento”. (SODRÉ, 2011, p. 335).

Cético em relação às reais possibilidades de queda da monarquia no Brasil, o jornal declara-se apartidário, adotando uma linha independente:

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Na verdade, a Província de São Paulo defendeu desde o início os interesses da elite agrária, combatendo a centralização política e administrativa imposta pelo Poder Moderador ao longo do Império. O jornal reivindicava igualmente eleições diretas para o Senado e para a presidência das províncias, a separação entre a Igreja e o Estado, a instituição do casamento e dos registros civis e a substituição progressiva do trabalho escravo pelo trabalho livre. (LEAL; SAUL; BASTOS, 2013)

A Província de São Paulo foi um dos primeiros jornais a organizar-se através de uma sociedade por cotas (MARTINS; LUCA, 2011). Sodré (2011) especifica essa organização, descrevendo-a como uma sociedade em comandita11, que levantou 50 contos de réis de capital, constituindo a Província de São Paulo como uma “colossal empresa” (p. 335). Os sócios solidários foram Francisco Rangel Pestana e Américo Brasílio de Campos, sob a razão social Pestana, Campos & Cia, pioneirismo que marca o incipiente processo de industrialização da imprensa brasileira. Sodré corrobora essa visão:

Era o esboço da imprensa industrial. As alterações da empresa não invalidam – com a propriedade individual, ou de família, que ocorre depois – essa origem marcadamente empresarial. Fazer um jornal importava, a partir daí, em despesa de vulto. (SODRÉ, 2011, p. 336).

Como era comum à época, o jornal sustentava-se com anúncios e assinaturas. A tiragem inicial foi de 2.000 exemplares. Não havia venda avulsa, prática na qual a Província de São Paulo também foi pioneira: em 23 de janeiro de 1876, o ajudante de impressor Bernard Gregoire saiu pelas ruas a cavalo, tocando uma corneta e vendendo o jornal. Na época, a ação provocou escândalo, gerando repulsa ao que se chamou de “mercantilização da imprensa” (SODRÉ, 2011). A imagem acabou virando a marca do jornal, ilustrando o logotipo da publicação até os dias de hoje. O selo acompanha também, na atualidade, os editoriais do jornal. A capital paulista, na época, tinha cerca de 30.000 habitantes e uma cultura letrada um tanto restrita, se comparada ao Rio de Janeiro ou Recife. Nos primeiros anos, a publicação enfrentou crises financeiras que levaram, em 1882, à dissolução da sociedade comanditária. Francisco Rangel Pestana

11 “Sociedade comercial na qual um sócio ou alguns deles (sócios comanditários) participam apenas com o capital (capital comanditário), limitando-se a isso sua responsabilidade. Os outros (sócios solidários), entrando ou não com capital (capital comanditado), são responsáveis por todas as obrigações que a empresa assumir.” (SANDRONI, 2002, p. 571).

41 tornou-se o proprietário exclusivo da Província de São Paulo. Ao mesmo tempo, o veículo assume uma posição francamente favorável ao Partido Republicano Paulista – PRP. O ano de 1885 marca a constituição de uma nova sociedade comanditária e a entrada de Júlio César Ferreira de Mesquita no jornal, como redator-gerente. Entre 1888 e 1891, foi codiretor no jornal, ao lado de Pestana. Com a eleição deste último ao Senado, em 1891, Mesquita ficou à frente da direção do jornal. Desde então, a direção permaneceu nas mãos da família Mesquita. Durante os anos 1880, a Província defendeu o projeto republicano e o abolicionismo. Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, o nome do jornal passa a ser O Estado de S. Paulo (OESP). Em 1927, morreu Júlio Mesquita, fato que provocou diversas mudanças na estrutura administrativa do jornal, sendo a direção dividida entre Nestor Rangel Pestana e Júlio de Mesquita Filho. O posicionamento do jornal frente às articulações políticas que levaram à Revolução de 1930 pode ser considerado discreto, tendendo, em um primeiro momento, ao apoio da situação. Neste momento, o jornal alcança a tiragem de 100 mil exemplares diários. Na eclosão em armas do movimento revolucionário encabeçado pela Aliança Liberal, sob a liderança de Getúlio Vargas, de forma repentina o jornal aderiu ao movimento revolucionário. O apoio desapareceria logo, principalmente diante do acirramento das diferenças entre os rumos escolhidos por Getúlio Vargas e os interesses das elites políticas paulistas, discordância que teve como ápice a Revolução Constitucionalista (1932), apoiada pelo Estado, “cujos dirigentes, ligados ao Partido Democrático, eram artífices da Revolução” (PILAGALLO, 2002). A derrota da revolução paulista conduziu Júlio de Mesquita Filho ao exílio até novembro de 1933. Diante do golpe do Estado Novo, desfechado em 10 de novembro de 1937, mesmo com o apoio do PRP, o jornal sofreu com a censura e a perseguição e foi, aos poucos, abandonando o noticiário político e dando grande destaque à ascensão do movimento nazista na Alemanha. A intervenção da ditadura foi forte e a 26 de março de 1940 o jornal foi invadido pela polícia. Em 7 de abril, voltou a circular, mas com uma nova diretoria,

42 totalmente articulada com os interesses do governo. A direção se manteve até o final do Estado Novo, em 1945. A partir daí, o governo devolve O Estado de S. Paulo a Júlio de Mesquita Filho, e o jornal vincula-se politicamente à União Democrática Nacional (UDN), posicionando-se contra qualquer partido ou candidato que representasse algum tipo de continuísmo à política de Vargas. Durante o novo mandato deste último (1950-1954), fez dura oposição, apoiando, em 1954, o Manifesto dos Coronéis, que criticava a política do então ministro do Trabalho, João Goulart; atribuiu ao governo o atentado da rua Tonelero, contra o jornalista Carlos Lacerda; publicou a manifestação de diversos grupos sociais que pediam a renúncia de Vargas, até seu suicídio, a 24 de agosto de 1954. O Estado também opôs-se ao governo de Juscelino Kubitschek. Iniciou simpático ao mandato do udenista Jânio Quadros, mas diversos atos do presidente fizeram o jornal mudar de posição (como a admissão da República Popular da China na Organização das Nações Unidas – ONU, o reestabelecimento das relações diplomáticas com Hungria, Romênia e Bulgária e a condecoração do ministro cubano Ernesto “Che” Guevara). Jânio Quadros renuncia em agosto de 1961 e o jornal reage de acordo com seu histórico antivarguista, colocando-se contra a posse de João Goulart, a solução parlamentarista e o plebiscito que restaurou o presidencialismo. Mas a diretoria de O Estado de S. Paulo foi além da mera oposição, engajando-se nas conspirações contra o governo: “Júlio de Mesquita Filho redigiu o documento posteriormente conhecido como Roteiro da Revolução12, o qual, segundo o periódico, teria inspirado e orientado algumas das primeiras medidas tomadas pelo movimento político-militar de 31 de março de 1964” (LEAL; SAUL; BASTOS, 2013). No resumo histórico que consta em seu próprio site, a empresa afirma:

Editorialmente o jornal sempre manteve sua linha de apoio à democracia representativa e à economia de livre-mercado. Em 1964, “O Estado” apoiou o movimento militar que depôs o presidente João Goulart ao constatar que o mesmo já não tinha autoridade para governar. No entanto, entendia que a intervenção militar deveria ser

12 Trata-se de uma carta redigida por Júlio de Mesquita Filho, na qual ele responde a um interlocutor desconhecido qual a sua opinião sobre os rumos que uma possível intervenção militar deveria tomar, caso se efetivasse. A carta data de janeiro de 1962 e foi publicada na edição de 12 de abril de 1964.

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transitória. Quando se evidenciava que os radicais de extrema direita aumentavam sua influência, objetivando a perpetuação dos militares no poder, O Estado retirou seu apoio e passou a fazer oposição. (RESUMO HISTÓRICO).

Em 1966 foi lançado o Jornal da Tarde, uma edição vespertina de O Estado de S. Paulo. A partir desse momento, de acordo com a bibliografia consultada, o jornal passa a ter um posicionamento que saúda as conquistas econômicas do governo militar, mas apresenta descrédito em relação aos movimentos políticos. Em 1967, a tiragem ultrapassa os 340 mil exemplares. A tensão com os militares vai crescendo. Em dezembro de 1968, com a publicação do editorial “Instituições em frangalhos”, a edição do jornal foi apreendida e o cerceamento sobre a redação intensificado, acompanhando o movimento de fechamento generalizado do regime, com o Ato Institucional nº 5 (13/12/1968). Com a morte de Júlio de Mesquita Filho em julho de 1969, assume a direção Júlio de Mesquita Neto, mantendo a tradição familiar na administração. Surpreendentemente, levando em consideração a trajetória conservadora da empresa, O Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde foram os únicos jornais da grande imprensa brasileira que sofreram censura prévia, recebendo diariamente, a partir de agosto de 1972 e até janeiro de 1975, um censor em sua redação (AQUINO, 1999). Assim, OESP – que segue em atividade – é um dos jornais mais tradicionais e influentes do Brasil, assim como uma referência, como veremos em nossa análise, na imprensa internacional. Tem uma trajetória marcadamente liberal, conservadora e anti-trabalhista, a qual foi determinante para o estabelecimento de relações específicas com os regimes autoritários brasileiros estabelecidos ao longo do século XX, tanto durante o Estado Novo varguista (1937-1945) quanto ao longo da ditadura militar (1964-1985).

1.3. JORNAL DO BRASIL: O “POPULARÍSSIMO” MODERNIZADOR

O segundo jornal analisado em nosso recorte é o Jornal do Brasil (JB), periódico carioca diário e matutino fundado em 9 de abril de 1891 por Rodolfo de Sousa Dantas e Joaquim Nabuco.

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No contexto das disputas políticas que se seguiram à proclamação da República (1889), o JB surge como representante dos defensores da monarquia. Os textos de Nabuco criticando o que chamou de “ilusões republicanas” provocavam o debate público, ao mesmo tempo em que o jornal dedicava-se aos problemas cotidianos da cidade, especialmente na seção Melhoramentos urbanos, na qual discutia questões sobre saneamento, circulação, arquitetura e urbanismo. As críticas de Nabuco ao regime republicano provocaram reações extremadas: “Na noite de 16 de dezembro de 1891, a redação do Jornal do Brasil foi invadida por uma multidão, aos gritos de “Mata! Mata Nabuco!”, e as oficinas foram completamente depredadas” (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013). Depois desse episódio, Dantas e Nabuco deixam o jornal, que começa uma transição de sociedade comanditária para sociedade anônima. A mudança administrativa não impede que, na prática, o jornal continuasse alinhado com figuras de relevo ligadas ao império. Nabuco continua escrevendo, sob o pseudônimo “Axel”, mas a publicação sofre com o empastelamento e passa a enfatizar o noticiário policial, no intuito de arrecadar mais leitores. Em 1893, um grupo ligado a Rui Barbosa compra o Jornal do Brasil, a quem entrega a sua direção. Do original tom comedido, passa a defender o regime republicano e suas páginas viram palco da ferrenha disputa política entre Rui Barbosa (1849-1923) e Floriano Peixoto (1839-1895). A insistência em publicar notícias e questionar em artigos os aspectos legais da Revolta da Armada (setembro de 1893) teve como consequências a invasão militar da sede do jornal e seu fechamento. Só foi reaberto um ano e quarenta e cinco dias depois, em 15 de novembro de 1894. A partir da sua reabertura, o jornal passa por várias mudanças, tanto administrativas quanto editoriais. A empresa organiza-se em setores, tanto na redação, quanto na administração e oficinas:

A prosperidade do jornal nessa nova estruturação é assombrosa. Seis anos depois dessa transformação administrativa, que leva igualmente a uma profunda mudança redacional/editorial, imprime uma segunda edição diária – a vespertina – e adquire o controle da Revista da Semana, que passa a ser uma publicação semanal do Jornal do Brasil. Editam além dos inúmeros romances, publicados anteriormente em suas páginas sob a forma de folhetim, uma edição

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mensal – o Guia Mensal do Jornal do Brasil – e uma edição anual – o Anuário do Jornal do Brasil. (BARBOSA, 2007, p.34).

Reforça editorialmente sua face popular, colocando-se como defensor dos pobres e porta-voz de suas reclamações. Ganham destaque assuntos como o carnaval, o jogo do bicho, as crônicas policiais. Seu slogan é “O Popularíssimo”. “O Jornal do Brasil modela sua popularidade na esteira da construção de uma autoimagem fundamental: defensor daqueles que não têm quem propugne por eles” (BARBOSA, 2007, p. 32). É importante destacar que esse diálogo com o popular apresentava limitações: “Essas modificações não alteraram, porém, o conteúdo do Jornal do Brasil, que se manteve voltado para o noticiário popular, embora jamais encampasse as lutas populares que contivessem qualquer tipo de ameaça à ordem constituída” (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013). A partir de 1900, inova mais uma vez, abrindo espaço às grandes ilustrações. Nesse sentido, é emblemática a capa de 15 de novembro de 1900. Nela, fica claro um cruzamento do espírito de tempo com o espírito do JB: as tecnologias (telégrafo, a impressora, o barco a vapor); o público (pobre e oprimido), o repórter (tomando nota das informações que recebe ao telefone); uma alegoria representa a imprensa, que alcança o universo; o jornaleiro distribui a folha pela cidade; o público leitor é senhorial e elegante. Em 1906, começa a atravessar algumas dificuldades, devido ao investimento pesado em maquinaria. Passa então a ocupar a capa com anúncios classificados, que seriam uma marca da publicação até os anos 1950. As dificuldades financeiras se aprofundaram com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, em 1918, o jornal passa às mãos do conde Ernesto Pereira Carneiro, que entrega o cargo de redator chefe ao futuro fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. A gestão do conde foi marcada pela recuperação financeira e do prestígio do jornal, através da valorização das seções de artes e literatura – com colunas assinadas por intelectuais de Academia Brasileira de Letras – e de um posicionamento mais moderado e discreto em relação às questões políticas. Mesmo assim, a publicação foi alvo de empastelamento durante a Revolução de 1930, deixando de circular por 4 meses.

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A neutralidade foi a saída encontrada para a sobrevivência do jornal, que resistiu ao longo das décadas de 1930 e 40 e através de uma estratégia de cautela política, evitando confrontos diretos com os representantes do poder, até mesmo durante o Estado Novo (1937-1945). Ainda em 1935, José Pires do Rio assume a direção financeira do jornal. No começo da década de 1950, ocorrem os falecimentos do diretor financeiro Pires do Rio e do conde Pereira Carneiro, cuja viúva, Maurina Dunshee de Abranches Pereira Carneiro, assume a direção do jornal, que começa uma fase de transformações. O jornalista Odilo Costa Filho é convidado a coordenar a reformulação do Jornal do Brasil. Em 1956, surge o Suplemento Dominical, caderno literário. Na capa, que continuava ocupada por anúncios, foi inserida uma fotografia (BARBOSA, 2007). Na editoria de esportes, houve diversas mudanças no estilo dos textos e na diagramação. Politicamente, o jornal manteve o tom discreto. Condenou o atentado da rua Tonelero, mas não se colocou a favor do impeachment de Vargas e também não encampou as denúncias de Carlos Lacerda. Mais tarde, no governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961), elevou o tom, opondo-se declaradamente ao presidente. No final da década de 1950 é quando ocorrem as mudanças mais significativas. Em 1959, os classificados são suprimidos da capa, que passa, finalmente, a dedicar-se somente ao noticiário. Sob o comando do designer Amílcar de Castro, o Jornal do Brasil realiza uma completa reestruturação gráfica. Os tradicionais classificados ficam restritos ao Caderno C e surge o Caderno B, voltado para a cultura e as artes. Esse ciclo é completado com a entrada de Alberto Dines no cargo de editor-chefe, elevando o periódico a um novo espaço no debate político brasileiro:

Em 196113, com a entrada de Alberto Dines, a reformulação do Jornal do Brasil finalmente se consolidou. Segundo Nascimento Brito [genro do conde Pereira Carneiro e membro da direção do jornal], foi Alberto Dines — editor do jornal de 1961 [sic] a 1973 — quem sistematizou as modificações, permitindo que se chegasse a uma verdadeira consciência do que foi chamado de “reforma do Jornal do Brasil”. Essa reforma fez de fato com que o jornal passasse a ocupar outra posição no seio da imprensa carioca, ganhando uma nova estatura na formação da opinião política do país e estimulando a

13 Barbosa (2007) informa, reproduzindo fala do próprio Alberto Dines, que sua entrada no jornal como editor-chefe se deu em 6 de janeiro de 1962 e não em 1961.

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reestruturação gráfica dos demais periódicos. Apesar de tudo, porém, o Jornal do Brasil manteve os quatro atributos que sempre nortearam sua atuação, definindo-se como um órgão “católico, liberal- conservador, constitucional e defensor da iniciativa privada”. (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013, grifo nosso).

No episódio da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, o Jornal do Brasil defendeu a posse do vice-presidente João Goulart, o que fez com que o jornal sofresse duros cerceamentos do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Ferreira e Montalvão (2013) afirmam que ponto marcante do rompimento do Jornal do Brasil com o governo Jango foi a falência do Plano Trienal (plano elaborado pelo Ministro do Planejamento Celso Furtado, que pretendia conciliar a contenção da inflação com o desenvolvimento do país) e “a maior inclinação do governo para a esquerda”, caracterizada pelos episódios da Revolta dos Sargentos, do Comício da Central e da Revolta dos Marinheiros. O golpe é apoiado e a relação com o governo militar, ao longo do tempo, é, de acordo com Ferreira e Montalvão (2013) de alinhamento, com restrições em casos pontuais, como, por exemplo, as cassações efetivadas já no AI-1 (1964), a candidatura à Presidência do então Ministro do Exército, Costa e Silva (1966), a outorga do AI-5 (1968), a política econômica estatizante de Geisel. A edição de 14 de dezembro de 1968, por ocasião do AI-5, é considerada um marco da tensão entre o jornal e o regime militar. Os censores que foram vistoriar a publicação não perceberam alguns detalhes, como a nota de previsão do tempo, publicada no canto superior esquerdo da capa:

“Tempo negro, temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx. 38º, em Brasília; Mín. 5º, nas Laranjeiras”. A metáfora era óbvia. A referência do local dizia respeito aos dois centros em que se situou o Executivo na República (Palácio do Catete/Laranjeiras e Palácio do Planalto/Brasília). As marcas da temperatura representavam o AI-5 e o Ato Complementar número 38, publicado na mesma ata (13 de dezembro) e que decretava o recesso do Congresso Nacional. (AQUINO, 1999, p. 207).

Diferente de OESP – que, como vimos, sofreu censura prévia – o JB se relacionou com o cerceamento através da autocensura, ou seja, os bilhetinhos

48 e telefonemas que informavam as proibições. As ordens foram compiladas em um volume chamado “Livro Negro”, através do qual, segundo Aquino (1999), é possível perceber a imprecisão de muitas solicitações, a ausência de assinatura (apócrifos) assim como ordens bastante explícitas, como a proibição da menção do nome de Dom Hélder Câmara. O verbete do CPDOC/FGV sobre o Jornal do Brasil traz entre suas fontes o depoimento de Luiz Alberto Bahia, editor de opinião do JB entre 1973 e 1975. O jornalista avalia o posicionamento editorial do jornal durante a ditadura, revelando uma série de matizes das complexas relações entre este meio de comunicação e o Estado, nas quais interesses políticos e econômicos se entrecruzam com a censura e outras formas de pressão. Em um primeiro momento, os militares teriam sido apoiados em razão da desordem econômica e da “ameaça comunista”. A falência do projeto econômico do governo Goulart teria provocado descrédito em alguns valores liberais, e a concentração do poder nas mãos dos militares significaria uma certa “modernização” da administração pública no Brasil: “O jornal teria justamente encampado essa visão de uma ‘democracia moderna’, conciliando assim sua linha tradicional com a nova situação, abandonando os valores liberais em nome de uma opção tecnocrática” (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013). Mais tarde, com o endurecimento do regime, a justificativa do apoio residiria na crença em “projetos de desenvolvimento e na ideia da grandeza nacional. Aceitando essa perspectiva, o Jornal do Brasil apoiava a política econômica e financeira do ministro da Fazenda Antônio Delfim Neto” (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013). Entendemos que o depoimento do jornalista Luiz Alberto Bahia aponta para uma rede complexa de valores, simbólicos, políticos e econômicos, que influenciaram o posicionamento editorial do Jornal do Brasil durante a ditadura militar. Esses valores dialogam com aquilo que Carlos Fico (2004b) chama de utopia autoritária: a crença da superioridade militar sobre os manipuláveis civis, a proposta de “cura do organismo social” através da extirpação do “câncer comunista” e a busca da superação das deficiências da sociedade brasileira. No caso da imprensa, esses elementos foram misturados com o cerceamento da liberdade de expressão, noção fundadora do jornalismo como atividade autônoma – seja

49 através da censura ou de outros procedimentos, o que poderia explicar, ao menos em parte, a ambiguidade das relações da imprensa com o regime militar:

Na esfera política, entretanto, a despeito das pressões e da censura constante, o jornal mantinha uma posição menos comprometida. De acordo com Luís [sic] Alberto Bahia, mesmo nos momentos de mais intensa repressão, foram mantidas “certas janelas de oposição forte ao regime. Essa era uma forma de [o jornal] manifestar sua fidelidade às suas origens liberais. Sob o constrangimento e a coação de um regime todo-poderoso, o Jornal do Brasil preservou certas brechas através das colunas assinadas de Alceu do Amoroso Lima (que usava o pseudônimo de Tristão de Ataíde) e Carlos Castelo Branco, por onde podiam ser veiculadas críticas, ainda que a linha editorial do jornal fosse de apoio”. (FERREIRA; MONTALVÃO, 2013).

Assim, entendemos que nossa pesquisa deve atentar para as tais “janelas de oposição”, levando em consideração as origens de cada um dos jornais analisados, as pressões políticas e econômicas às quais foram submetidos e suas escolhas narrativas. JB insere-se em nosso corpus como representante da imprensa carioca, sendo um jornal, assim como OESP, de inspiração liberal, mas diferenciando-se pela trajetória e concepção editorial marcadas por um diálogo mais intenso com o popular. JB entrou, ainda antes de OESP, na “segunda dentição” (LARANGEIRA, 2014) da imprensa brasileira, modernizando sua linguagem gráfica e editorial já no começo dos anos 1960. Manteve-se ativo e dialogou com a ditadura militar, através do apoio ao golpe e, mais tarde, pela autocensura, atravessando o período de interesse de nossa pesquisa14.

1.4. IMPRENSA EM PORTUGAL: LIBERDADE PRECOCE E SILENCIAMENTO LONGEVO

Neste subcapítulo, tratamos da história, das características da prática jornalística e da interferência do Estado Novo na imprensa portuguesa. Iniciamos este arrazoado pelo advento da Revolução Liberal do Porto, em

14 Diferente, por exemplo, de outro diário carioca importante, o Correio da Manhã, não selecionado nesta tese porque encerrou suas atividades em 1974, apresentando avançado grau de degradação financeira e editorial.

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1820, movimento que traz consequências tanto para a história do Brasil quanto de Portugal. Desde a transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, Portugal era controlado militarmente por forças britânicas e encontrava-se em profunda crise econômica, provocada em grande medida pelo fim do pacto colonial (a exclusividade das relações comerciais com o Brasil). A revolução angariou amplo apoio em prol de um projeto de monarquia constitucional de cunho liberal. A imprensa, que se via, até então, reduzida a quatro periódicos, recobra seu vigor: em novembro de 1820, esse número está elevado a catorze (CHAPARRO, 2008). Uma das discussões mais acaloradas recaía sobre o tema da liberdade de imprensa: “o empolgante sucesso das ideias revolucionárias criou condições para que, em 12 de julho de 1821, [...] com 42 anos de atraso em relação à França, Portugal conquistasse, enfim, sua primeira lei de liberdade de imprensa” (CHAPARRO, 2008, p. 44). A partir daí, o país viveu um grande desenvolvimento da imprensa periódica, com a modernização de técnicas e conteúdos. Era um momento de discussão de grandes problemas nacionais, o que estimulou um jornalismo argumentativo. Mas os absolutistas ainda dispunham de poder e influência, fazendo com que a censura prévia fosse ilegalmente praticada e, entre golpes e contragolpes na disputa pelo poder, entre 1828 e 1834, D. Miguel volta a assumir como rei absoluto e instala-se uma guerra civil. Muitos jornalistas portugueses emigram e continuam a publicar ideias liberais. Entre os jornais de resistência, destacam-se diários publicados nos Açores, entre eles Crônica da Terceira, aparecido em 1830, na Ilha Terceira. Em maio de 1834, com a assinatura da convenção de Évora Monte, D. Miguel entrega as armas e, em dezembro deste mesmo ano, é reinstaurada a liberdade de imprensa em Portugal, que revive, a partir daí, a efervescência da atividade jornalística:

Apareceu, então, uma imprensa partidária, com novos conteúdos ideológicos e com eficácia aumentada pela qualidade dos jornalistas retornados e pela modernização técnica dos equipamentos e dos processos. A discussão partidária acentuou a predominância do artigo como forma do discurso jornalístico – influência estilística que vinha, forte, do jornalismo francês e inglês, ambos argumentativos e fortemente ideológicos. (CHAPARRO, 2008, p.47-48).

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Os tempos ainda eram instáveis e, com a morte de D. Pedro I ainda em 1834, o trono fica com D. Maria II, sua filha de apenas 15 anos. Novas revoluções agitam a cena política a partir de setembro de 1836, é o “setembrismo”. Em 1846, espalham-se as guerras da Patuleia, quando o governo fecha ainda mais o cerco à imprensa oposicionista. O conflito cessa com um acordo em junho de 1847, com vitória das forças da situação. A partir de 1851, iniciam-se “quatro décadas de tranquilidade e modernização para a imprensa portuguesa” (CHAPARRO, 2008, p. 51). É entre esses 40 anos de grande prosperidade e consolidação da imprensa portuguesa que surge o primeiro jornal de nosso recorte: o Diário de Notícias, em 1º de janeiro de 1865. O jornal introduz, de forma pioneira, mudanças na linguagem e no perfil empresarial da imprensa portuguesa. A partir do Diário, “o jornal passou a ser produto numa economia já organizada em moldes capitalistas” (CHAPARRO, 2008, p. 66). Fundado pelo tipógrafo e jornalista Eduardo Coelho (1835-1889), inaugura a linha jornalística que privilegia a informação, influenciando o surgimento da imprensa noticiosa em Portugal. Outra inovação do Diário foi, à moda do La Presse francês, sustentar o jornal através da publicidade, podendo assim fixar um preço acessível, alcançando maiores público, tiragem e lucro. Além disso, era vendido pelas ruas, sem que o leitor precisasse se deslocar até a empresa editora para adquirir o jornal, assim como vimos, no Brasil, no pioneiro Província de S. Paulo. Sousa (2011) descreve as mudanças proporcionadas pela iniciativa privada com a inserção de um modelo industrial no cenário jornalístico português:

[...] rapidamente alguns empresários se aperceberam do lucrativo negócio que constituía a imprensa popular noticiosa, politicamente independente, de baixo preço e difusão massiva já existente noutros países. [...] Começaram, então, a reaparecer em Portugal jornais populares noticiosos, direcionados para toda a sociedade, com meios técnicos e financeiros que propiciavam grandes tiragens (à escala do Portugal de então), baixo preço por exemplar (custos sustentados pela publicidade), linguagem clara e acessível, que normalmente não discutiam nem polemizavam, que não seguiam qualquer linha política definida, antes procuravam, principalmente, relatar fatos importantes ou simplesmente interessantes, com a verdade e objetividade possíveis. (SOUSA, 2011, p. 59-60).

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A entrada no modelo industrial traz mudanças no trabalho jornalístico português, tal como no Brasil: as redações artesanais produtoras de artigos políticos dão lugar a um corpo de repórteres incumbidos de noticiar: “[...] então as técnicas de redação rapidamente foram contaminadas pela busca da factualidade, pela separação entre informação e opinião, pelo predomínio do objeto sobre os sujeitos que o enunciam (objetividade)” (SOUSA, 2011, p. 60). As alterações não se restringem ao conteúdo, atingindo também o estilo, que se torna mais claro e conciso; o formato, mais aproximado do tabloide; a diagramação, que passa a ser em quatro colunas; o preço, mais barato do que os concorrentes. Neste primeiro momento, o Diário dispensa o artigo de fundo, que definia o posicionamento político do jornal. Mais tarde, o posicionamento aparecerá em editoriais, assinados pelo diretor da redação, sob a rubrica “Assuntos do Dia”. Mas todas essas mudanças não operam uma transfiguração espaço noticioso em apolítico, ao contrário:

A política fugia, assim, cada vez mais, ao espaço “racional” das instituições políticas criadas pelos estados liberais, em especial do parlamento, para se instalar na imprensa, transfigurada em novo espaço público. Consequentemente, ao mesmo tempo que a nação se convertia em objeto discursivo, a integração de mais cidadãos, menos cultos, no espaço público e, portanto, nas discussões políticas, devido à força da imprensa, foi prejudicando a coerência do discurso político. (SOUSA, 2011, p. 72).

Assim, vemos que o jornalismo, mesmo sob o manto da objetividade e imparcialidade, não se afasta da política. Ao contrário, esta relação torna-se mais complexa, porque a política é incorporada ao cotidiano, ao espaço público, à vida das pessoas, da qual os seus movimentos não estão descolados e, em última análise, contribuem para modificar para melhor ou pior. O avançar do século XX traz a abertura do jornalismo de Portugal ao modelo francês, enquanto que, no Brasil, a influência maior é do modelo americano, voltado ao empreendimento empresarial:

Apesar da censura, talvez até por causa do desafio que ela representava como inibidora de um jornalismo de ideias, os vespertinos, em especial o Diário de Lisboa e, quando surgiu,

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também o Diário Ilustrado, puseram em prática a estratégia do chamado “jornalismo de dossiês”, inspirando-se no Le Monde para aprofundar temas e discussões, com textos de qualidade. É o modelo que ainda hoje, em Portugal, inspira momentos de bom jornalismo nos melhores semanários e diários de referência. (CHAPARRO, 2008, p.73).

A tendência ao modelo de jornalismo mais interpretativo está relacionada à emergência do Estado Novo português (1933-1974). A Constituição de 1933 legalizou a censura prévia, que deveria, de acordo com o texto da lei em seu artigo 4º, “impedir preventiva e repressivamente a perversão da opinião pública”. As comissões de censura não podiam alterar o texto censurado, devendo limitar-se a eliminar os trechos inconvenientes. A intensa vigilância e as constantes orientações vindas do gabinete do próprio ditador, António de Oliveira Salazar, provocaram o efeito perverso da autocensura, “o lado mais esperto do sistema, porque induzia as redações, pelo receio das consequências, a um comportamento quase generalizado de cooperação” (CHAPARRO, 2008, p. 75). À censura, somava-se a atuação do jornalista António Ferro à frente do Secretariado da Propaganda Nacional, órgão responsável pela propaganda positiva sobre os feitos do governo salazarista. Vemos, assim, que o Estado Novo português, por suas especificidades, concebeu e pôs em prática um aparato repressivo focado na censura prévia. Ao mesmo tempo, a autocensura foi um efeito colateral nefasto na imprensa deste país, assim como aconteceu no Brasil durante a ditadura militar. Baptista (2012), a partir do relato de jornalistas que atuaram no período, afirma a noção de que “não existia” jornalismo político em Portugal durante o Estado Novo, consistindo em atividade meramente oficial, acrítica: “era um ramo diminuído do jornalismo, a evitar por quem não quisesse confundir-se com a tropa de elite ao serviço do elogio aos governantes” (p. 180). Um dos periódicos que marcam a resistência em Portugal durante o Estado Novo foi o Jornal do Fundão, semanário regional publicado entre 1946 e dezembro de 1969, criado por António Paulouro. O Fundão ficou marcado por ser um jornalismo de ideais, e, inicialmente, sem preocupação em ser oposição. A virada à esquerda ocorre em 1959, quando ilegalidades impedem a eleição do general Humberto Delgado para a presidência da República e o jornal passa a ser alvo de um regime especial de censura. A redação do

54 semanário escrevia sempre com folgas, consciente de que grande parte do que era produzido poderia ser cortado. Das “sobras” foi possível montar um acervo de dez grossos volumes, provas dos abusos que a imprensa portuguesa sofreu nos anos de ditadura. A partir de 1935, e até 1974, são considerados oposicionistas os diários República, O Século, Diário de Lisboa e mais tarde, A Capital (LEMOS, 2006). Estes jornais resistiam, apesar da censura prévia, das perseguições, prisões e ameaças. Aos opositores que não se submetiam à censura, restava apenas a alternativa da clandestinidade. Além dos jornais simpáticos e aderidos ao regime, especialmente os católicos e monárquicos, a União Nacional (partido único da ditadura) publicou alguns periódicos, sendo os mais importantes o Diário da Manhã, nascido em 1931, e seu sucessor, A Época, de 1971. A luta política, ainda que silenciada na imprensa, ocasionalmente abria brechas no fechado sistema repressivo. O tema das guerras em territórios africanos (Angola, Guiné e Moçambique) foi alvo de forte censura:

Com três das parcelas do império transformadas em campo de batalha, avolumou-se a tensão em que os portugueses viviam, ainda que não lhes fosse proporcionada uma panorâmica completa dos acontecimentos em África. É que a Censura, por um lado, e a PIDE, por outro, tudo faziam para que a opinião pública fosse “defendida” de quanto pudesse provocar preocupações... Daí as cortinas de silêncio sobre as baixas militares provocadas pela guerrilha, as tentativas de impedir a divulgação de massacres como o de Wiriyamu (Moçambique), ou da repressão exercida sobre quem se manifestasse contra a guerra colonial, como foi, por exemplo, o caso dos “padres brancos”. Regra geral as informações dadas pela Imprensa relativamente a acontecimentos mais “delicados”, pouco ia além do conteúdo das notas oficiosas dimanadas dos departamentos governamentais. (DIAS, 1999, p. 197).

Apesar do cerceamento, Tengarrinha (2006) afirma que a eclosão das guerras nas colônias obrigou a ditadura a repensar seu posicionamento em relação à imprensa. Salazar precisava, por um lado, levantar a opinião pública nacional a favor da “integridade do território nacional” e, por outro, passar ao mundo a imagem de um país democrático, especialmente frente à crescente condenação internacional à política colonial portuguesa. É nesse contexto que aparecem as Novas Diretivas Gerais da Censura, em 1961, conformando o

55 controle da imprensa nacional no sentido de angariar apoio interno às ações no ultramar através de alguma abertura “à crítica administrativa à administração geral e local e livre a informação de acontecimentos nacionais” (TENGARRINHA, 2006, p. 64) e vigiar a censura sobre o noticiário internacional, de onde as críticas poderiam abrir brechas, através da obrigatoriedade do “envio de títulos e subtítulos dos artigos e noticiários, nomeadamente ‘referentes a acontecimentos militares do Ultramar’” (p. 64). A queda política de Salazar, por motivos de saúde, e sua substituição por Marcelo Caetano em 27 de setembro de 1968 criaram uma expectativa liberalizante, porém, a nova Lei de Imprensa, a 5 de novembro de 1971, mantinha, agora sob o nome de “exame prévio”, a censura administrativa. “A tentativa de ocultação ia ainda mais longe ao ser proibida a publicação pelos jornais do ‘Visado pela Censura’” (TENGARRINHA, 2006, p. 66). Ao assumir o Conselho de Ministros, Caetano “encontrou uma imprensa, principalmente a vespertina de Lisboa, recheada de jornalistas contrários ao regime e que, naturalmente, imprimiam a esses jornais uma orientação que não era a que mais agradava ao regime” (LEMOS, 2006, p. 69). Caetano, além disso, promovia coerções de ordem econômica aos jornais, levando bancos a adquirir os veículos e mudar as administrações e diretores. Tengarrinha (2006, p. 68) atenta, assim como vimos em relação à imprensa brasileira, para a complexidade do sistema de cerceamento da comunicação pública em Portugal. No caso deste país,

“[...] a censura foi também um instrumento fundamental orientado para a tentativa de formação de um “bloco de opinião nacional”. Só na globalidade deste processo (considerando a multiplicidade de meios, as mensagens, a determinação dos objetivos políticos) a intervenção censória pode ser compreendida.

O autor explica que a um grupo de militares, envolvidos no desenvolvimento político nacional desde 1926, foi responsável pela condução ideológica do aparelho censório no sentido “de uma nação una, que superasse as divisões partidárias agravadas pelo caos político da I República, de um Estado autoritário, corporativo e conservador, da religião tradicional, do nacionalismo, da boa moral cristã, da missão civilizadora nas colônias”

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(TENGARRINHA, 2006, p. 68). Não se pode deixar de mencionar, na história da imprensa portuguesa, o importante papel desempenhado pela imprensa clandestina, entre eles o Avante!, órgão central do Partido Comunista Português (PCP), publicado a partir de fevereiro de 1931, resistindo até a Revolução de 25 de Abril de 1974. Correia e Baptista (2007) afirmam que se, por um lado, a periodização da imprensa portuguesa em um bloco homogêneo que vai de 1933 (ou 1926) a 1974 faz sentido por conta do papel decisivo da censura sobre a prática jornalística, por outro, seria possível distinguir um período de alterações qualitativas nas formas de conceber e praticar o jornalismo entre os anos de 1956 (ano da criação do Diário Ilustrado) e 1968 (começo do Marcelismo). Há aqui a “introdução de inovações no pensar no agir que, sem produzir propriamente uma ruptura com o passado, podem ser interpretadas como a gênese do jornalismo que só viria a ser possível, em toda a sua plenitude, depois do derrube da ditadura” (p. 23). Frente a perspectiva tradicional que coloca a história da imprensa como uma ciência auxiliar da história moderna e contemporânea, os autores propõem o reconhecimento de uma autonomia e dinâmica próprias dos jornais e jornalistas. Nessa perspectiva, colocados como testemunhas e atores, sempre com posição ativa, identificam, entre 1956 e 1968, a emergência de novas condições de visibilidade nas redações, sob a influência de pelo menos 3 fatores: rejuvenescimento, maior qualificação acadêmica e feminização (CORREIA; BAPTISTA, 2007). As fronteiras do território profissional dos jornalistas em Portugal foram constituídas tanto por processos internos, através das práticas nas redações, quanto por pressões externas, como a censura. Em resposta à interdição do político como matéria noticiosa imposta pela ditadura, a resistência passou ao campo da cultura, e muitos jornalistas da época fazem parte dessa frente cultural antifascista. A parceria entre jornais e inciativas culturais inovadoras têm influência não só nas temáticas, mas também no formato dos textos. Os cadernos ou páginas culturais abrem espaço para críticas e entrevistas com encenadores, cineastas, escritores, artistas plásticos. Por outro lado, ocorre a forte identificação do jornalismo junto a realidade popular, através das

57 reportagens sociais, fait divers e até mesmo campanhas de caráter social ou humanitário, evidenciando a debilidade das estruturas públicas na tarefa de cuidar dos mais desfavorecidos. A partir do 25 de abril de 1974, quase todos os jornais diários do país foram nacionalizados, em um movimento de ocupação dos espaços de poder pelos comunistas (CHAPARRO, 2008). Muitos deles fecharam suas portas, entre eles República (que não foi nacionalizado) e o influente Diário de Lisboa. “[...] Também a Revolução dos Cravos teve como rosto a comunicação social. Houve saturação ideológica, partidarização e uma roda-viva de aparecimento e desaparecimento de jornais” (p. 101). Chaparro (2008) aponta, entre as diferenças das imprensas brasileira e portuguesa, o perfil e o porte empresarial das editoras. No Brasil, os grandes jornais foram organizados em conglomerados familiares, grandes empresas com estruturas complexas e inseridas na lógica de mercado. Em Portugal, as relações entre a redação e a empresa jornalística são mediadas por Estatutos Editoriais e Profissionais, Conselhos de Redação e Códigos Deontológicos: “lá, ao contrário do que persiste no Brasil, os empresários donos dos meios não são, nem se imagina que possam ser, diretores de redação” (p. 106). Por outro lado, os eventos políticos e a intervenção do Estado foram, em Portugal, fatores determinantes para o surgimento ou desaparecimento dos periódicos. As empresas que seguiram um perfil mais comercial conseguiram sobreviver às mudanças de regime. Exemplo disso é o Diário de Lisboa, que, com foco em um jornalismo informativo, fazia uma oposição liberal comedida ao Estado Novo, encerrando suas atividades em 1990. Também o Jornal de Notícias fez a transição entre a ditadura e a democracia sem grandes mudanças internas e na linha editorial, colocando-se como grande órgão de informação popular e mantendo-se ativo até hoje. Já o Diário de Notícias é nacionalizado em 1974 e, a partir daí, experimenta várias mudanças na redação, mas mantem-se em circulação e, atualmente, é o quarto jornal diário em números de circulação em Portugal, com uma média de 41.504 exemplares diários15.

15 No primeiro bimestre de 2013. Fonte: Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação (APCT). Disponível em: http://www.apct.pt/. Acesso em: 16 nov. 2013.

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Como veremos na análise das narrativas jornalísticas sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974, no Capítulo 4, a mídia teve um papel ativo na composição deste acontecimento-intriga (MOTTA, 2013). De acordo com Rezola e Marques (2014, p. 9), “ainda que o novo regime tenha abolido a censura e o exame prévio, que vigorava no país há mais de 40 anos, e que uma das medidas mais aclamadas do Programa do Movimento das Forças Armadas tenha sido a consagração da liberdade de expressão e pensamento, rapidamente são criados novos sistemas de controle da comunicação social”. A luta em torno do projeto de país que resultou do processo revolucionário foi vivida também nas redações. A seguir, passamos à descrição das trajetórias de Diário de Notícias e República.

1.5. DIÁRIO DE NOTÍCIAS: TRADIÇÃO E INOVAÇÃO

O Diário de Notícias (DN) inaugurou a fase do jornalismo industrial em Portugal. Criado em 1865 por Eduardo Coelho e Tomás Quintino Antunes (1820-1898), era impresso na Tipografia Universal, de propriedade de Quintino. Dois irmãos de Coelho também atuaram como jornalistas, mas no Brasil: Adriano Gaspar Coelho, fundou o jornal O Cisne e colaborou em vários outros periódicos. Abel Maria Coelho foi redator e proprietário do jornal O Guarani, de Uruguaiana (RS), localidade onde também fundou O Noticioso. Sousa (2014, pp. 20-21) descreve as características que diferenciavam o DN:

Era um jornal diferente dos restantes jornais portugueses de então, nos conteúdos (noticiosos), no estilo (claro, conciso, preciso e simples), na forma, nomeadamente no aspecto (paginação a quatro colunas e não a duas ou mesmo a uma, conforme era habitual), na dimensão (que já era de jornal, portanto sensivelmente semelhante aos atuais tabloides, e não mais de panfleto ou livro, como era norma na época) e ainda no preço (dez reis por exemplar, menor quando vendido por assinatura). A sua concepção era empresarial, buscando lucro nas vendas e na publicidade (logo no primeiro número, o jornal anunciava que se recebiam anúncios a vinte reis a linha). Esta renovada e contemporânea perspectiva do jornalismo noticioso e informativo, generalista, que se propunha ser neutro, ético (separando o público do privado), independente e o mais verdadeiro possível (consciência dos limites), dirigido a toda a população, encarado essencialmente como negócio [...].

O jornal teve uma trajetória de sucesso. Em 20 anos, viu sua tiragem

59 média triplicar: dos iniciais 7 mil e 300 exemplares para, em 1885, 26 mil. O modelo do DN assume a notícia como mercadoria e o jornalismo como negócio e passa a dialogar com a política de uma nova forma, a qual não agrada aos setores tradicionais, que a veem como uma decadência da atividade jornalística. Assim como vimos na trajetória da imprensa brasileira, esse tipo de jornalismo assume uma relação estreita com a tecnologia, valendo-se do telégrafo, das linhas dos caminhos de ferro e das agências noticiosas. No último quartel do século XIX, o DN também inova na parte gráfica publicando, por exemplo, páginas ilustradas pelo artista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), autor do clássico personagem “Zé Povinho”, popularizado nas páginas do periódico crítico A Lanterna Mágica. O DN também abre espaço aos folhetins e aos anúncios classificados, aumentando ainda mais sua popularidade e circulação entre diferentes públicos. Assim, a trajetória deste jornal é marca, em Portugal, de uma transição na própria concepção da atividade jornalística, que, da redação de um homem só, movida por paixões confundida com o fazer política ou fazer literatura, passa a ser concebida como uma profissão ligada ao lucro, à publicidade, à novidade e à técnica. Logo outros diários com essas mesmas características foram lançados, como O Século (1881), que, na entrada do século XX, rivalizava com o DN na liderança das tiragens (o primeiro com uma média de 80 mil exemplares e, o segundo, com 70 mil). Após a morte de Eduardo Coelho, em 1889, é o seu genro, o advogado e jornalista Alfredo Carneiro da Cunha (1863-1942), que assume a direção do jornal e da empresa. Nos anos agitados da política portuguesa que antecederam o regicídio em 1908, Cunha e o DN sofrem restrições do gabinete de censura instalado, em 1907, pelo governo do Presidente do Conselho de Ministros João Cunha, na fase final da monarquia constitucional portuguesa. Cunha esteve à frente do DN até 1919, quando vendeu a empresa para a Companhia Industrial de Portugal e Colônias, passando a ser administrado por uma sociedade anônima. A direção passou ao jornalista e político monarquista Augusto de Castro (1883-1971), cargo no qual manteve-se até 1924 e que reassumiu em 1939 até a sua morte (com apenas uma interrupção entre 1945-

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47, quando foi embaixador de Portugal em Paris). Vê-se, assim, que o DN passa de uma administração familiar para uma sociedade anônima e que sua direção é assumida por um político com intensas ligações com a ditadura instalada em 1926. Na primeira saída de Castro da direção, em 1924, Eduardo Schwalbach Lucci (1860-1946) tomou a frente da redação em um período em que o DN se notabilizou pela publicação de grandes entrevistas com o ditador Oliveira Salazar – entre os dias 19 e 23 de dezembro de 1932, mais tarde editadas em livro – realizadas por António Ferro (1895-1956), diretor do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), organismo de propaganda do Estado Novo. Avesso ao contato com a imprensa, essas entrevistas contribuíram para o imaginário sobre Salazar como o operador de um “milagre” nas finanças portuguesas. Além disso, o ditador já manifestava, nas entrevistas, seu desejo de criar um organismo controlador da imprensa, como realmente aconteceu: o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) foi instituído em setembro de 1933, poucos meses depois da entrada em vigor da Constituição de 11 de abril. Em 1961, o “caso do Paquete Santa Maria” – uma das tantas tentativas de derrubar o regime salazarista – aparece no DN como “’um assalto de triste modelo antigo, realizado por bandos de civis armados’, que Augusto de Castro, diretor do jornal, rotulava como ‘tresloucados’” (DIAS, 1999, p. 194). Em 1964, ano de nossa pesquisa, exibia no cabeçalho a mensagem “A maior tiragem e expansão de todos os jornais portugueses”. Seguiu uma linha de subserviência ao regime. Após a Revolução, foi nacionalizado.

1.6. REPÚBLICA: A SOBREVIVÊNCIA NA OPOSIÇÃO

República nasce matutino em Lisboa em 1911, fundado pelo político republicano António José de Almeida, que viria a ser o sexto Presidente da República portuguesa, entre 1919 e 1923. Nesta primeira etapa de publicação, entre 1911 e 1927, constitui-se como órgão do Partido Republicano e, ao longo do conturbado período pós-Primeira Guerra Mundial que coincidiu com o governo de seu fundador, afirmou, na edição de 1º de janeiro de 1920, que “a

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República não dará o seu apoio a nenhum movimento operário com caráter revolucionário. Ao contrário, combaterá qualquer movimento com esse caráter” (apud LEMOS, 2006, p. 540). O jornal ressurge, agora vespertino, em uma segunda série, que se estende de 1930 a 1975, novamente na defesa da bandeira republicana. Submetido à censura prévia, como toda a imprensa portuguesa, dialoga com o cerceamento de maneira peculiar. Muitas vezes, simplesmente deixou de publicar temas importantes, como o fraudulento o resultado das eleições presidenciais de 1958, que deram a vitória a Américo Tomás. República havia salientado, em sua cobertura, a candidatura do general Humberto Delgado, a qual reuniu várias correntes da oposição e expressivo apoio popular. Delgado seria assassinado pela PIDE na fronteira com a Espanha, em 1965. Um dos episódios mais marcantes de sua trajetória ocorre em janeiro de 1961, quando República foi suspenso por três dias por recusar-se a publicar um editorial criticando o assalto ao paquete Santa Maria. O caso chamava a atenção para a ação de oposicionistas ao regime salazarista em conjunto com espanhóis contrários ao franquismo:

Em 21 de janeiro de 1961, um grupo constituído por portugueses e espanhóis opositores às ditaduras dominantes da Península Ibérica atraiu a atenção do mundo para este recanto da Europa através do assalto ao paquete português “Santa Maria”, que fazia carreira entre Lisboa e a América Central. Comandou a operação, denominada “Dulcineia”, um dissidente do salazarismo, o capitão Henrique Galvão [...]. (DIAS, 1999, p. 179).

O episódio, qualificado de “ato comunista” por jornais afeitos ao regime, recebeu de República o tratamento de “revolta a bordo” levado a cabo por “rebeldes”, citando como fontes as agências France Presse e Reuters e rejeitando a oficiosa ANI (Agência Nacional de Informações). O jornal foi suspenso por três dias e, apesar de outros periódicos terem noticiado a punição, voltou a circular sem sequer poder aludir ao ocorrido. Curiosamente, o ataque ao paquete foi uma iniciativa do Diretório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL), criado no Brasil pelos generais Humberto Salgado e Herrera. O assalto tinha como objetivo desviar a rota do paquete para o norte de Angola, onde procederia a proclamação de um Governo português

62 provisório no exílio. A ação foi frustrada e encerrada em águas brasileiras, no Recife, quando o recém-empossado presidente Jânio Quadros concedeu asilo político aos rebeldes. Em 1963, República passa a ser impresso em duas cores, depois do empreendimento de uma campanha Pró-rotativa que contou a colaboração de milhares de cidadãos. Em 1972, atravessava uma grave crise financeira, com endividamento e diminuição da tiragem. Nessa época, um lote de ações foi comprado pelos socialistas Mário Soares, José de Magalhães Godinho e Francisco Salgado Zenha, mas o capital social da Editorial República continuava disperso por mais de mil acionistas (CAVACO, 2012). Raul Rêgo (1913-2002), que entrara no jornal como diretor adjunto no fim de 1971, torna- se diretor em agosto de 1972. Rêgo, figura de destaque na oposição ao regime, chamava o República de “uma empresa cívica” e nunca aceitou a prática da autocensura e, sob sua direção, o jornal aumentou a tiragem de 3 para 10 mil exemplares. Escrevia a coluna “Momento”: “Esta coluna era uma das mais lidas e que mais influenciou os homens que depois fizeram o 25 de Abril” (CÂMARA, 2005, p. 11). Foi dele a decisão de não enviar o República ao exame prévio em 25 de abril e de publicar o famoso rodapé “Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”. Durante o período revolucionário, o jornal passa por um processo de forte disputa política que fica conhecido como Caso República, encerrando suas atividades em 1976. O núcleo central de jornalistas e proprietários do República fundam o jornal A Luta, órgão declaradamente apoiador do Partido Socialista (PS) cuja primeira edição foi publicada em 25 de agosto de 1975 (FIGUEIRA, 2014). De trajetória corajosa e oposicionista, República, em nosso recorte, representa uma alternativa ao discurso excessivamente controlado da imprensa portuguesa, acuada sob a censura prévia. Em 1964, apresentava-se como “O diário da tarde de maior circulação em Portugal”.

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2. PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO: AS NARRATIVAS DO VIVIDO E DO IMAGINÁRIO

A tentativa de produzir um discurso com legitimidade científica através da análise de discursos jornalísticos constitui um paradoxo interessante. Significa, pela ótica das narrativas do vivido e do imaginário, recobrir um encobrimento: cercar o objeto de pesquisa, que é ele mesmo uma produção revestida de imaginário, de todos os elementos possíveis para que ele mesmo se exprima. “Afinal, de onde olha quem olha?” (SILVA, 2010, p. 16) é uma pergunta pertinente, que pretendemos responder ao analisar as narrativas dos jornais de nosso recorte. Mas é preciso que o próprio pesquisador consiga demonstrar de onde olha seu objeto, seu metaponto de vista. Para poder ser exposto à dúvida, o discurso científico tem de conformar- se metodologicamente. “O que se pode fazer para evitar a conformação metodológica? Nada. Exceto apostar na pluralidade de métodos para que várias interpretações possam conviver e disputar o estatuto de verdade” (SILVA, 2010, p. 25). Assim como não podemos fugir da técnica, também não podemos considerá-la neutra, é o que nos explica Silva (2010), apoiado em Heidegger. O método pode reduzir o objeto à sua própria narrativa, conformando-o em seus “preconceitos teóricos”. Se conduzido dessa forma, o método serve, dentro da proposta das narrativas do vivido e do imaginário, apenas ao encobrimento. Para passar ao des(en)cobrimento, é preciso “identificar as camadas de imaginário no real (no vivido ou plasmado numa obra simbólica) e as camadas de real num imaginário (as marcas do concreto redimensionado simbolicamente)” (SILVA, 2010, p. 30). O primeiro passo para isso é o desvendamento, ou seja: o pesquisador deve “tirar a venda” e mudar as lentes que usa para olhar o objeto. A capacidade de des(en)cobrimento consiste em revelar, através da análise dos textos, o que está encoberto pelo imaginário, ou seja, fazer emergir as contradições dos discursos. Para tanto, as narrativas do vivido e do imaginário sugerem procedimentos de atuação, dispositivos de explicitação, modalidades de desencobrimento e operações de

65 desvendamento/desvelamento (SILVA, 2010). Cabe destacar que esse esquema não é rigoroso (ao contrário, seu propósito é libertar o pesquisador para traçar seu caminho metodológico), ou seja, o sucesso da pesquisa não está diretamente relacionado ao seguimento de todos esses passos e nem a uma ordem em que eles possam ser executados. Em nossa pesquisa, atuamos através do entranhamento, ou seja, buscamos, nas narrativas jornalísticas analisadas, compreender as razões do outro, buscando o subentendido, os mecanismos da narrativa, as razões, os sentimentos e o seu lugar de fala. De acordo com Silva (2010, p. 42),

O entranhamento, numa obra, busca descobrir: - O subentendido - Os nexos não explicitados - As operações narrativas - Os fundamentos da construção narrativa - Os mecanismos formais - As ênfases de conteúdo - As figuras de linguagem - Os procedimentos argumentativos (predomínio da razão, da sedução, da emoção, da retórica ou imagem).

Nossa modalidade de desencobimento se dá em uma perspectiva comparada (DETIENNE, 2004), procurando fazer emergir a contradição, o paradoxo, a diferença nas narrativas analisadas. “Essa operação discursiva funciona como narrativa (des)legitimadora, revelando as mitologias de cada época, lugar ou cultura e assinalando os rastros do diálogo permanente entre (in)exatidão e (in)verdade” (SILVA, 2010, p. 52). Como operação desvendamento/desvelamento, procuramos, através da noção de acontecimento-intriga (MOTTA, 2013), compreender a narrativa estudada como enunciação recoberta pela técnica jornalística, uma tecnologia do imaginário que envolve angulação, omissão, ponto de vista, espetacularização. Situada no campo das Ciências da Comunicação, nossa tese inscreve- se no paradigma historicista, ou seja, valoriza a temporalidade e adota “o ponto de vista de que é indissolúvel o vínculo estabelecido entre compreensão e situação, entre interpretação e preconceito, entre conhecimento e crença, entre teoria e prática” (MARTINS, 2010, p. 79). As Ciências da Comunicação, fundadas neste novo enredo teórico do paradigma historicista, ocupam o

66 espaço do atual e do contemporâneo, que se articulam com o presente e o cotidiano (MARTINS, 2010).

2.1. A QUESTÃO DO PRESENTE: O ACONTECIMENTO

A perspectiva temporal (e sua análise crítica) está no centro do debate do que se denomina, no campo da História, história do presente. Chaveau e Tétart (1999) indicam alguns aspectos importantes sobre o surgimento dessa noção, entre elas, uma disposição geracional (especialmente daqueles historiadores que viveram a Segunda Guerra Mundial), a influência dos meios de comunicação de massa (uma demanda social) e os movimentos universitários da sociologia e da ciência política como analistas do presente:

[...] nesse processo, o aumento e aceleração da comunicação, a renovação progressiva da imprensa e da edição, a elevação do nível de estudo e a força dos engajamentos ideológicos, morais, dos anos 50-60 [do século XX], tiveram um papel determinante. A demanda social é, portanto, um fator central. (CHAUVEAU; TÉTART, 1999, p. 17).

Assim, a história do presente está intimamente ligada à imprensa e às demandas sociais que surgem no mundo mediado que se consolidou durante o século XX. É natural, portanto, a tentativa dos autores em diferenciar as atividades historiográficas e jornalísticas. Primeiramente, diferenciam a história do presente da história imediata. Esta última seria mais próxima do jornalismo, e teria o valor de testemunho e não de registro histórico, ficando a sua “verdade”, portanto, condicionada a uma releitura. O critério para a diferenciação proposto pelos autores é essencialmente metodológico: técnicas jornalísticas em oposição à ciência histórica:

De fato, o procedimento da história imediata é mais parecido com as técnicas jornalísticas do que com as da ciência histórica. Os fatores conjugados que lhe deram nascimento não resultam, em primeiro lugar, do princípio inicial da história: o recuo, o desprendimento em relação ao fato. (CHAUVEAU; TÉTART, 1999, p. 22, grifo nosso).

Para Chaveau e Tétart (1999), o diferencial da história do presente

67 centra-se, ao contrário da história imediata, na incorporação de uma reivindicação pessoal da subjetividade: “É, portanto, indispensável refletir em termos de presença do historiador em seu tema – presença direta ou indireta no tempo, presença intelectual, moral, filosófica ou mais simplesmente psicológica ou física” (p.30). Nessa perspectiva, supera-se a noção de que o historiador não pode trabalhar com fatos que viveu. Rioux (1999) se pergunta se o presente pode ser objeto da história. Primeiramente, concorda com Chaveau e Tétart (1999), afirmando que o nascimento da história do presente, como disciplina, é um imperativo das demandas sociais. Por outro lado, vai mais longe na análise da questão ao compreender o “desmonte” que a história do presente realiza na relação entre a passagem do tempo e o recuo histórico. Se a questão é o método, a passagem do tempo está excluída da fórmula metodológica do historiador, desimpedindo-o de trabalhar com o presente:

A história do presente, como vemos, nasceu sem dúvida bem mais de uma impaciência social do que de um imperativo historiográfico, pelo menos na França. E os historiadores do recente, nadando na indolência conceptual assinalada há pouco, mas bastante bem garantidos sobre suas retaguardas sociais, fizeram bonito, no final das contas, martelando o bom senso do velho artesão, metodologicamente pouco sofisticado mas passavelmente percuciente: o argumento da falta de recuo não se sustenta, dizem eles, pois é o próprio historiador, desempacotando sua caixa de instrumentos experimentando suas hipóteses de trabalho que cria sempre, em todos os lugares e por todo o tempo, o famoso “recuo”. A ambição científica constrói, a boa distância, o seu objeto de estudo, métodos de investigação histórica acertados desde Langlois e Seignobos anestesiam apropriadamente a carne de um presente alarmado, o questionamento rigoroso apazigua a desordem partidária.” (RIOUX, 1999, p.46-47, grifos nossos).

Para o autor, a história do presente traz uma angulação que globaliza e unifica a narrativa sob o fogo das representações e das ações, podendo tornar- se mais rica e abstratizante que a história tradicional. Assim, o movimento da história do presente, mais do que avalizar a atuação do historiador no tempo vivido, promove uma aproximação ainda mais profunda entre os campos da comunicação e da história. Resta claro, nesse debate, que à problemática do presente interessa menos o campo de origem do pesquisador do que a ideia pela qual se explicam o atual e o contemporâneo: a ideia do acontecimento

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(MARTINS, 2010, p. 81). Nora (1979), ao problematizar a questão da identidade da história contemporânea, observa que em “[...] nenhuma época se viu, como a nossa, viver seu presente como já possuído de um sentido ‘histórico’” (p. 180). O fenômeno da vasta democratização da história através da “mundialização” – ou seja, da presença e mobilização geral das massas, seja através dos meios de comunicação, da integração das economias em escala mundial ou dos processos de descolonização – é específico da história contemporânea. “[...] A atualidade, essa circulação generalizada da percepção histórica, culmina em um fenômeno novo: o acontecimento (NORA, 1979, p. 180, grifo nosso). Nora (1979) localiza a gênese da noção contemporânea de acontecimento no final do século XIX, com a transformação da história em uma ciência nacional. Coube ao positivismo, por um lado, fundamentar a história como o estudo do passado separado do presente, e, por outro, movimentar esse passado por um encadeamento de acontecimentos, orientados por uma causalidade contínua. Nesse sentido, os positivistas inauguraram uma tradição que fez do historiador o “grande ordenador do acontecimento” (p. 181), até o aparecimento dos meios de comunicação de massa. A partir daí, “É aos mass media que se deve o reaparecimento do monopólio da história. De agora em diante esse monopólio lhes pertence” (NORA, 1979, p. 181). De acordo com o autor, os meios não são apenas meios, são a própria condição de existência do acontecimento, guardando tamanha afinidade entre si que, em determinados momentos, parecem inseparáveis. Cita como exemplos o caso Dreyfuss em sua relação com a imprensa e o caso Watergate, no qual identifica a ação da imprensa na fase de divulgação e da televisão na fase judiciária. Outros fenômenos históricos dependeram do rádio, como aconteceu no período entre guerras e ao longo da Segunda Guerra Mundial. Os meios de comunicação de massa tornam-se protagonistas da articulação entre discurso e ação:

É a própria história, pela voz de seus atores, que o rádio permite falar, reativando, dessa forma, em uma larga escala, o mais poderoso motor da história desde os profetas e os oradores gregos. Os media transformam em atos aquilo que não teria sido senão palavra no ar, dão ao discurso, à declaração, à conferência de imprensa a solene eficácia do gesto irreversível. (NORA, 1979, p. 182).

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O acontecimento passa a oferecer-se ao historiador antes mesmo de seu trabalho de pesquisa, antes do “trabalho do tempo”. Ele “é projetado, lançado na vida privada e oferecido sob a forma de espetáculo” (p. 183), processo no qual prevalece a dimensão emocional antes da significação intelectual: “A realidade propõe, o imaginário dispõe” (p. 184). Assim como Silva (2012), Nora (1979) compreende uma afinidade entre o fenômeno da comunicação de massa e uma emergência das expressões do imaginário em nível social:

Não que não haja mais diferença entre o fato cotidiano e o acontecimento: mas sobre qualquer acontecimento no sentido moderno do termo, o imaginário de massa quer poder enxertar qualquer coisa do fato cotidiano: seu drama, sua magia, seu mistério, sua estranheza, sua poesia, sua tragicomicidade, seu poder de compreensão e de identificação, o sentimento da fatalidade que o acompanha, seu luxo e sua gratuidade. O imaginário pode, dessa forma, apropriar-se de qualquer fato cotidiano – o caso Dreifuss como Maio de 68 – e fazê-lo atravessar pelas mudanças de acontecimentos sucessivos, o cabo do acontecimento mais maciço, no momento mesmo em que a história faz sentir sua degradação em fatos cotidianos. (NORA, 1979, p. 184-185).

Por meio do desenvolvimento técnico, a instantaneidade capta o acontecimento e o projeta no vivido das massas, agora sob a forma de espetáculo. É no tempo do vivido mediado da cena pública que se constitui a historicidade do acontecimento: “Daí essa impressão de jogo mais verdadeiro que a realidade, de divertimento dramático, de festa que a sociedade dá a si própria através do grande acontecimento” (NORA, 1979, p. 185, grifo nosso). Neste cenário de participação efetiva das massas, no qual ninguém está completamente privado do saber ou do poder, emerge a “impalpável realidade da vida contemporânea que se chama opinião” (p. 186). Para Nora, a informação encontra-se “esquartejada entre o real e a sua projeção espetacular” (p. 186). O acontecimento, que derivava do excepcional, passa a ser o seu próprio sensacional. A máquina informativa exige constante alimentação, o que ocasiona um inflacionamento factual, integrado à vida cotidiana moderna através de um modo particular de apreensão da mudança ou da ruptura:

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A modernidade segrega o acontecimento, do contrário das sociedades tradicionais que tinham de preferência inclinação a torná- lo raro. O acontecimento vivido das sociedades camponesas era a rotina religiosa, a calamidade climática ou a transformação demográfica; uma não-história. Mas os poderes instituídos, as religiões estabelecidas tendiam a eliminar a novidade, a reduzir seu poder corrosivo, a digeri-la através do rito. Todas as sociedades procuram dessa forma perpetuar-se por um sistema de novidades que tem por finalidade negar o acontecimento, pois o acontecimento é precisamente a ruptura que colocaria em questão o equilíbrio sobre o qual elas são fundamentadas. Como a verdade, o acontecimento é sempre revolucionário, o grão de areia na máquina, o acidente que transforma e prende inesperadamente. Não há acontecimentos felizes, são sempre catástrofes. Mas para exorcizar o novo há dois meios: conjura-lo através de um sistema de informação sem informações, ou integrá-lo ao sistema da informação. Países inteiros no Leste vivem sob o regime da notícia sem novidade. Leia-se a imprensa, nada de imprevisível: vida interna do partido, aniversários e comemorações esperadas, performances de produção, novidades do Ocidente recuperadas pela deformação que arriscaria colocar em questão a instituição que a emite. [...] O segundo meio de conjurar o novo consiste em fazer dele, até os limites da redundância, o essencial da mensagem narrativa, arriscando-se a dar ao sistema de informação a vocação de destruir a si próprio: é o nosso (NORA, 1979, p. 186-187)

Essa segunda forma de se relacionar com o novo, característica das sociedades contemporâneas, provoca, ao mesmo tempo, super e subinformação. Tendo em vista que “saber é a primeira forma do poder numa sociedade de informação democrática” (p. 188) e reconhecendo as várias formas de fabricar, degradar ou silenciar a informação, o acontecimento é um fenômeno que mostra e, ao mesmo tempo, esconde, configurando um paradoxo que interessa à análise das narrativas do vivido e do imaginário.

2.2. O ACONTECIMENTO E O JORNALISMO COMO CONHECIMENTO DO FATO

Vista a centralidade dos meios de comunicação na apreensão do acontecimento no presente, resta-nos explorar sua conformação no jornalismo: a notícia. Para Sodré (2009), a imprensa, como meio de comunicação preferencial da burguesia, tem sua modernidade “visceralmente ligada às mesmas exigências históricas que presidem ao fenômeno da construção do mundo por meio do discurso esclarecido” (p. 11). Sua legitimidade é fundada no princípio

71 da superioridade da razão discursiva, alimentando o que autor chama de uma ideologia da transparência pública. A imprensa moderna constitui-se dentro da ética liberal como porta-voz dos direitos civis e reduto fundamental da liberdade de expressão. Sodré (2009, pp. 13-14) compõe um quadro da forma ideológica assumida pela imprensa industrial: ela é universalmente burguesa e europeia; tecnicamente, foi aperfeiçoada pelos norte-americanos; e os ingleses, por sua vez, contribuíram para a constituição da notícia como a narração do acontecimento racionalizada como mercadoria. Ao analisar a imprensa brasileira do começo do século XX, Barbosa (2007) traz recortes de jornais onde figuram comentários sobre as inovações tecnológicas da época. O linotipo, o daguerreótipo e, principalmente, o telégrafo e a fotografia contribuem para uma nova relação com o tempo e o espaço, mediada pela imprensa. “Constrói-se, paulatinamente, a imagem do jornalismo como conformador da realidade e da atualidade. As tecnologias são fundamentais para a construção do jornalismo como lugar da informação neutra e atual” (p. 24). Trata-se de um momento no qual diversos elementos que configurariam o jornalismo como prática autônoma começam a se firmar: o protagonismo do repórter na construção da notícia, o valor do ineditismo e da objetividade:

Observa-se, pois, que as bases para a construção do ideal de objetividade do jornalismo, que seriam aprofundadas com as reformas por que passariam os jornais cinquenta anos mais tarde, estão lançadas na virada do século XIX para o XX. A rigor, o mito da objetividade deve ser percebido na longa duração, como um simbolismo construído pelas próprias empresas jornalísticas e pelos jornalistas para assim cunhar uma distinção, no sentido que confere a esta palavra Bourdieu (1989), ou um lugar autorizado de fala. (BARBOSA, 2007, p. 40).

Assim, vemos que imprensa funda-se em um paradoxo, uma vez que não deixa de lançar mão de recursos mitológicos, como o da “construção de uma narrativa sobre si mesma como entidade mítica que administra a verdade dos fatos sociais, e mais, a retórica encantatória na narração fragmentária sobre a atualidade” (SODRÉ, 2009, p. 12). A mitologia do liberalismo encobre as disputas em torno da atribuição de sentidos que presidem à constituição do

72 discurso jornalístico ao mesmo tempo em que confere à notícia o estatuto de esclarecimento neutro. É sobretudo a partir do século XX, através da ação dos meios de comunicação de massa, que a mudança – ou leitura midiática dessa noção – emerge como um valor preponderante na consciência histórica ocidental:

O texto de jornal representa basicamente um tipo de intervenção na língua – com os recursos retóricos da clareza e da concisão – afinado com a estrutura ideológica do sistema informativo, cuja forma mais evidente é a presumida transparência da realidade, por meio da evidência noticiosa dos fatos. É, porém, uma presunção que esconde as refrações, as distorções e a mística do que se pretende erigir como espelho do real. (SODRÉ, 2009, p. 16).

Sodré parte da constatação: “a notícia é o relato de algo que foi ou que será inscrito na trama das relações cotidianas de um real-histórico determinado” (p. 24). Vejamos os pressupostos e desdobramentos dessa afirmação. Na obra A narração do fato, o autor (2009) realiza um estudo epistemológico da notícia, procurando contribuir para seu entendimento através de uma hipótese que conecta cotidiano, tempo e acontecimento. Apoia-se na comparação entre ficção literária e discurso informativo para amparar seus argumentos na compreensão da dimensão narrativa que aproxima esses relatos. O autor afirma que existe, na notícia, o “germe de uma narrativa”, além de elementos imprescindíveis de um “enredo”, compreendidos como indicadores de “campos problemáticos da experiência” (p. 26). Para Sodré (2009), a concepção da notícia como narrativa está relacionada com o acontecimento, seu referente. O jornalismo se relaciona com os fatos através de um senso (comum) específico, moldado pelo positivismo: toma o fato como uma experiência sensível da realidade, desprezando a ideia de essência. “Na notícia, que é uma estratégia ou gênero discursivo essencialmente jornalístico, o acontecimento referido obriga-se a ser verídico (real-histórico, portanto) e a obedecer a técnica corrente na prática do jornal. O real da notícia é a sua ‘factualidade’, a sua condição de representar um fato por meio do acontecimento jornalístico” (p. 27, grifos do autor). O jornalismo, assim, produz conhecimento a partir da adesão dogmática aos “fatos brutos”:

A informação jornalística parte de objetos primariamente tidos como

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factuais, para obter, por intermédio do acontecimento, alguma clareza sobre o fato sócio-histórico. Só que a positivação do fato é aí associada a um funcionalismo de natureza industrial que define a atividade informativa como mera produção e distribuição de relatos referentes a uma realidade já dada como pronta e acabada. O jornalismo implica, portanto, um tipo particular de “conhecimento de fato” [...]. (SODRÉ, 2009, p. 32).

Nessa mesma linha, para Mouillaud (2002) “o acontecimento é a sombra projetada de um conceito construído pelo sistema da informação, o conceito do fato” (p. 51, grifos nossos). A mídia de forma geral, e o jornalismo em particular, engendram o processo central de visibilização dos fatos sociais na esfera pública moderna – a midiatização. Uma das características mais importantes dos processos midiáticos e, em especial, dos textos informativos, e que interessa sobretudo para os estudos do imaginário é a sua natureza reflexiva, a qual Sodré (2009) chama de “profecia autorrealizadora” (p. 39). A narrativa jornalística pratica e recebe a ação ao mesmo tempo, é autoconfirmativa, circular. “Dá-se, assim, a profecia autorrealizadora, ou seja, uma suposição ou predição que, só pela única razão de ter sido feita, converte em realidade o fato suposto, esperado ou profetizado e, desta maneira, confirma sua própria ‘objetividade’” (p. 39). A tradução jornalística dos fatos é resultado de uma rede complexa de operações profissionais e de um jogo de expectativas e contratos tácitos de credibilidade entre a “entidade” jornalística e seus públicos (leitores, governos, sociedade civil organizada). Nem sempre o falseamento, a manipulação ou a desinformação deliberada explicam os enviesamentos empreendidos pela imprensa. Para Silva (2006), a própria técnica jornalística configura um imaginário: “O jornalismo espetacular forja o seu destinatário, cria o ser receptor e programa o seu jornalista. Instala-se, de ponta a ponta, um imaginário” (p. 105). A técnica jornalística, em sua fase pós-industrial, espetacular, funciona como uma provocação: “um modo de desvelamento que interpela e afeta radicalmente o sujeito e os acontecimentos cobertos” (SILVA, 2006, p. 106). Consideramos que a exposição e a compreensão desses constrangimentos ou enviesamentos é essencial, levando em conta o papel central do jornalismo para a conformação de uma verdade pública que produz

74 efeitos reais nas vidas das pessoas: “a ideologia do campo profissional procura sempre passar a ideia de que a verdade do jornalismo pertence ao enunciado, ao invés da enunciação” (SODRÉ, 2009, p. 46). A noção de verdade no jornalismo (e, portanto, sua credibilidade) está apoiada no senso comum, ou seja, na noção de correspondência entre os enunciados e os fatos do mundo e que desconsidera a hegemonia da enunciação. Para Silva (2006), a essência da técnica jornalística deveria ser a revelação como enunciação da verdade, “Porém, a verdade que se enuncia, o que sobrevém, o que emerge é o fato de que a técnica jornalística espetaculariza o acontecimento, levando ao não- acontecimento” (p. 106). A enunciação jornalística funda-se, ainda, no papel do jornalista como testemunha: “Histor (de onde deriva a palavra história) é como o antigo grego designava a testemunha, aquele que, por ter visto o acontecimento, investia-se do direito de narrar” (SODRÉ, 2009, p. 48). Diferente da História, que constrói parte de sua credibilidade através do manejo de diferentes temporalidades, o jornalismo cola-se aos fatos da atualidade e extrai deles sua força de verdade social. Para Sodré (2009), o jornalismo realiza um processo de singularização dos acontecimentos, pautado, especialmente, pela atualidade. A experiência sensível do homem moderno com o tempo é marcada pelo compasso midiático de um presente orientado racionalmente no sentido do progresso. Nesse sentido, compreendemos que a narrativa jornalística está relacionada com as configurações da experiência moderna do homem no tempo porque é eminentemente através dos processos de mediação que é compreendida a dimensão da mudança (ou ruptura, como interessa nesta tese) na consciência histórica (DETIENNE, 2004). “A atualidade, enquanto renovação continuada, pereniza a ruptura com o passado” (HABERMAS apud SODRÉ, p. 61). A atualidade, apresentada como notícia, opera um jogo entre o individual e o universal, entre espaço e tempo:

A complexidade do atual é uma noção-chave: a ideia de jornalismo como uma forma de conhecimento próprio, voltado para a atualidade do fato, seria capaz de revelar a especificidade dessa prática profissional. O pressuposto desenvolvido por Genro Filho (o jornalismo como visibilização pública de um singular) direciona a forma da estrutura do seu produto básico, a notícia. Por meio dela, a

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informação individualiza a situação ou fato apresentado, procurando em seguida, quando for o caso, demonstrar o quanto de universal existe, contextualizando-a na realidade circundante (espacialidade) e pontuando-a com a realidade histórica que a constitui (temporalidade). (SODRÉ, 2009, p. 63).

Sodré (2009) corrobora e aprofunda a questão da conexão da prática jornalística com a estruturação do tempo na modernidade: “A informação pública [...] insere-se na lógica moderna da estruturação do tempo social. A temporalização operada pelo jornalismo realiza uma síntese das continuidades, mudanças e passagens que, de modo disperso ou caótico, definem o cotidiano” (SODRÉ, 2009, p. 87, grifo nosso). “O acontecimento, que movimenta a vida pública na sociedade moderna, é, assim o aspecto temporal do fato social” (SODRÉ, 2009, p. 87, grifos do autor). O tempo midiático modula, no presente, a interseção entre passado e futuro e, mais, imprime seu ritmo ao cotidiano, tanto através do compasso dos acontecimentos quanto por meio de sua característica periodização (no caso do impresso, que interessa nesta tese, um ritmo diário). Assim, Sodré (2009) aponta mais uma característica – agora ligada à dimensão temporal – da marcação semiótica realizada pela narrativa jornalística: “O acontecimento jornalístico é marcação semiótica do fato por meio de uma pontuação rítmica, de uma escansão” (SODRÉ, 2009, p. 89, grifos do autor). Há ainda a dimensão da duração – aqui o uso da expressão cara ao campo da história não é inocente – do acontecimento jornalístico: todo acontecimento jornalístico tem um ciclo, dura algum tempo no noticiário. Assim, o autor compreende que os tradicionais valores-notícia propostos pelas teorias de newsmaking são insuficientes para explicar a seleção dos fatos que se transformam em notícia, dado que a ruptura, a diferença, a novidade ou a relevância não abarcam a dimensão estrutural de sistematização do “conhecimento de fato” operada pela mídia – em geral – e pelo jornalismo – em particular. Nesse sentido, Sodré recorre à terminologia Gramsciana para descrever o resultado do amálgama operado pelo discurso jornalístico entre as dimensões geral (de ordem estrutural) e particular (da ordem da derivação do fato em acontecimento) como narrativa estruturante do homem no mundo cotidiano:

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Evidentemente, o fluxo noticioso decorre de um sistema interpretativo, que pode ser visto como um conjunto hegemônico de regras inerente à construção do acontecimento, logo, como uma articulação ideológica, ao mesmo tempo técnica e valorativa, capaz de destilar estereótipos sobre o diverso ou sobre o que a normalização da vida social considera como padrão de saúde para a cidadania. Orientando-se pelo epicentro do fato em sua atualidade e tornando-se visível sob a forma fragmentária das pequenas narrativas, a notícia, mesmo com todos os seus efeitos ditos terapêuticos, pode bloquear a reflexão coletiva sobre macroacontecimentos críticos, tais como as agressões bélicas das grandes potências militares e econômicas ou induzir o público-leitor à confusão entre o imaginário grandioso que a ordem hegemônica constrói sobre si mesma e a realidade do mundo. A imprensa não tem certamente uma homogeneidade discursiva, mas a corporação jornalística, em sua predominância social, tem sido até hoje uma espécie de intelectual coletivo e orgânico das classes dirigentes. (SODRÉ, 2009, p. 98).

Nesta tese, compreendemos o discurso como enunciação, ou seja, como “ação concreta da linguagem, ação na história” (SODRÉ, 2009, p. 142), elemento que pode ser abordado pelo viés estrutural do significado e também pela dimensão semântica e sociocomunicativa do sentido, “o que faz do discurso um ‘fato social’, dependente de situações marcadas por tempo e espaço” (p. 142). Assim, interessa-nos compreender a enunciação e os enunciados em suas relações com o real-histórico (circunstâncias de tempo, lugar e sujeito), em especial na notícia, gênero que edificou o jornalismo, ao longo do século XX, como conhecimento de fato e o jornal como uma máquina logotécnica (SODRÉ, 2009). Nesse sentido, Nora (1979) oferece algumas indicações metodológicas que vão ao encontro da perspectiva que adotamos nesta tese, a saber: operar o “deslocamento da mensagem narrativa nas suas virtualidades imaginárias, espetaculares, parasitárias” a fim de “assinalar, no acontecimento, a parte do não factual” (p. 188). “O acontecimento testemunha menos pelo que traduz do que pelo que revela, menos pelo que é do que pelo provoca” (p. 188). Para o autor, há uma estranha reciprocidade entre um tipo de sociedade e sua existência factual:

Estabelece-se, dessa forma, entre um tipo de sociedade e sua existência factual, uma estranha reciprocidade. Por um lado, é a sucessão de acontecimentos que constitui a superfície contínua da sociedade, que a institui e a define, na medida mesmo em que a rede de sua informação represente uma instituição. [...] tais acontecimentos veiculam todo um material de emoções, hábitos,

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rotinas, representações herdadas do passado que frequentemente afloram à superfície da sociedade. Lugar de projeções sociais e de conflitos latentes, um acontecimento [...] é o encontro de várias séries causais e independentes, um rasgão do tecido social que o próprio sistema tem por função tecer. E o mais importante dos acontecimentos é aquele que faz readquirir a herança mais arcaica. (NORA, 1979, p. 190).

Assim, interessa ao pesquisador olhar para o acontecimento como um feixe de significações esparsas. Essas significações devem ser desunidas para que se passe à evidência do sistema que as une. Na dialética entre as evidências e os sistemas, tomamos a comparação das narrativas sobre os eventos de ruptura institucional analisados nessa tese como uma abordagem metodológica que dá acesso às camadas de real e imaginário que constituem o jornalismo como forma de conhecimento do fato. É essa abordagem que explicitamos a seguir.

2.3. O MÉTODO COMPARATIVO E SUA PERTINÊNCIA NOS ESTUDOS DE COMUNICAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Em Comparar o incomparável, o historiador francês Marcel Detienne (2004) apresenta um manifesto em defesa do método comparado no campo da História, apoiando-se especialmente na crítica à adesão cega de parte dos estudos desta disciplina ao construto de seu lugar como “ciência” e “nacional”, em oposição ao campo da Antropologia, que, por sua vez, não respeita limites pré-concebidos no exercício comparativo. O autor identifica que os historiadores da Renascença, colocados frente à exploração do que se chamou Novo Mundo, foram aqueles que abriram caminho para uma abordagem “crítica das tradições e de tudo que nos é transmitido” (p. 21). Naquele momento, em busca da “perfeição histórica”, historiadores como La Popelinière (1541-1608) propunham a exploração presencial dos locais e das humanidades que ali habitavam, demonstrando uma disposição etnográfica, uma “vontade de experimentar sobre si da mesma forma que sobre os outros, distantes e próximos, mortos ou vivos” (p. 22). As primeiras experiências etnológicas aparecem no começo do século XVIII, com franceses como Fontenelle e Joseph-François Lafitau (1681-1746), os quais

78 empreenderam estudos comparativos entre as fábulas e mitologias dos antigos gregos e dos “selvagens” da América. Rapidamente, os estudos são enquadrados em uma perspectiva evolucionista; as culturas, classificadas das mais primitivas às mais evoluídas, e o mundo helênico é interditado ao exercício comparativo. Marc Bloch, pela sua vez, contribuiu uma nova visão sobre os estudos comparados a partir do método de trabalho próprio dos filólogos e antropólogos. Na sua obra, destacou a importância que devia ser concedida ao método comparado como via necessária para desenvolver a síntese historiográfica e reconhece sua dívida com linguistas como Meillet, o sociólogo Ëmile Durkheim e o antropógo J. G. Frazer. Partidário de um método de trabalho que misture a divisão do trabalho e o trabalho em equipe, Bloch – cuja obra tem gozado de maior prestígio nos Estados Unidos que em sua Europa natal – tem influência decisiva na atual história comparada, especialmente depois da eclosão da sociologia histórica e dos cultural studies. Detienne (2004) apresenta um ponto de vista bastante crítico aos movimentos comparativos de historiadores do século XX na França, Inglaterra e Alemanha – inclusive ao próprio Marc Bloch – por considerar estas abordagens restritas, ainda, ao caráter nacional e aos limites de “sociedades vizinhas, contemporâneas e de mesma natureza” (p. 35) – natureza europeia, frise-se. Ao comentar o caso inglês, provoca: “É claro que nenhuma sociedade extraeuropeia é recomendável para pensar o que significa fundar uma colônia, conquistar um território ou inaugurar modos de viver juntos em um espaço novo” (p. 35). Para o autor, “construir comparáveis” é uma atividade eminentemente coletiva, baseada na noção de singular-plural, favorecendo o trabalho em cooperação entre historiadores e antropólogos e que rompa com limites pré- concebidos de tempo e espaço:

O essencial para trabalhar junto é se libertar do mais próximo, do natal e no nativo, e tomar consciência, bem cedo e bem rápido, de que temos de conhecer a totalidade das sociedades humanas, todas as civilidades possíveis e imagináveis, sim, a perder de vista, historiadores e antropólogos da mesma forma confundidos. Esqueçamos os conselhos, prodigalizados por aqueles que repetem há meio século, de que é preferível instituir a comparação entre sociedades vizinhas,

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limites e que progrediram na mesma direção, de mãos dadas, ou então entre grupos humanos que atingiram o mesmo nível de civilização e que, à primeira vista, oferecem de modo suficiente homologias para navegar com toda a segurança (DETIENNE, 2004, p. 46).

Para motivar o trabalho de comparação, o autor sugere a procura de categorias “suficientemente genéricas” (p. 49), evitando-se aquelas demasiadamente específicas de uma cultura. Por exemplo, para responder à pergunta “o que é um lugar?”, seu grupo de pesquisa recorreu às categorias “fundar, fundação, fundador”. Elas serviram para compreender o objeto de estudo como um mecanismo de pensamento, permitindo aos pesquisadores recompô-lo, desmontá-lo, articulá-lo, refiná-lo sob diferentes configurações, condicionadas pelo exercício comparativo. As entradas escolhidas pelo pesquisador para empreender o exercício comparativo são denominadas pelo autor como “comparáveis”. Eles não devem servir à produção de temas, tipologias ou morfologias, mas, sim, trabalhar como “placas de encadeamento” que colocam em perspectiva as configurações de uma sociedade. “Quando uma sociedade [...] adota um elemento de pensamento, ela faz uma escolha entre outras que teria podido fazer” (DETIENNE, 2004, p. 58). Em resumo, o comparativismo de comparáveis defendido por Detienne (2004) preocupa-se em detectar e analisar mecanismos de pensamento (p. 65). Há na comparação, ainda, um valor ético que conduz o pesquisador a empreender um olhar crítico sobre sua própria tradição e seus valores, procurando identificar e interrogar seus pressupostos. Significa admitir que todas as sociedades são históricas e que é possível, especialmente através da comparação, construir categorias para compreender aquilo que o autor chama de “consciência histórica” e que se manifesta, especialmente, através de três noções: memória, mudança e passado. Nesse sentido, a memória não se consagra no domínio de um estoque de informações, mas na complexa construção do tempo humano: a “apreensão no tempo de uma distância de si em relação a si mesmo” (DETIENNE, 2004, p. 74). Interessa ao pesquisador atentar para as formas humanas de projetar essa distância dentro de diferentes arquiteturas do tempo, lembrando que aquilo que

80 concebemos como consciência história começa com a organização dessa “ausência presente” (p. 76) e que esse movimento não é espontâneo. O papel da mudança na constituição da consciência histórica está atrelado à composição de espaços críticos nos quais são compartilhadas as experiências de mudança, ainda que sejam “numerosas as sociedades que sofreram transtornos e mudanças radicais, sem tê-las reconhecido, ou pensando, ou teorizado” (DETIENNE, 2004, p. 77). Nas sociedades ocidentais, fundamentadas nas técnicas da escrita e no saber histórico que acredita que seu objeto seja o passado em si mesmo, a mudança é compreendida em uma ideia de tempo linear e irreversível, manifesta em acontecimentos imprevisíveis e singulares. Por fim, os modos de representação do passado são também manifestações da consciência histórica. Do passado como “aquilo que foi” – radicalmente cortado do presente – ao passado presente, que ensina, autoriza e também se abre em direção ao futuro, estão diversos modos de abordagem da tradição e da ancestralidade. É nesta última direção que aponta a definição de História proposta por Huizinga (1936, p. 9): “É a forma intelectual na qual uma civilização presta contas a si mesma a respeito de seu próprio passado”. Empregando essas reflexões no campo midiático – e, em nosso caso, jornalístico, especificamente – propomos aqui uma definição de jornalismo sob a perspectiva de sua inserção na consciência histórica: é um espaço de crítica característico da modernidade no qual a sociedade presta contas a si mesma a respeito de seu presente. A imprensa, do modo como é concebida nesta tese, age de forma bastante específica na manifestação do que seja a mudança – e, por consequência, o acontecimento – nas sociedades modernas. Ainda que sejam “numerosas as sociedades que sofreram transtornos e mudanças radicais, sem tê-las reconhecido, ou pensado, ou teorizado” (DETIENNE, 2004, p. 77), a extraordinária expansão dos meios de comunicação no último século inseriu a civilização ocidental em um espaço inédito de crítica da mudança. Parece-nos que o estudo das diferentes manifestações dos fenômenos da comunicação social seja essencial para compreender a consciência histórica manifesta nos eventos de ruptura institucional que analisamos através das narrativas

81 jornalísticas. Para realizar tal tarefa, utilizamos como técnica a Análise Crítica da Narrativa, explicada a seguir.

2.4. ANÁLISE CRÍTICA DA NARRATIVA NA COMPREENSÃO DO ACONTECIMENTO

Nesta tese, compreendemos o jornalismo como atividade hegemônica da constituição da realidade através da composição da narrativa fática. Ressaltamos que a ênfase da análise está no enunciado como indicativo de um processo de comunicação narrativa (o ato da enunciação) e não como conteúdo isolado. Encarar o texto jornalístico como narrativa é admitir de antemão sua dimensão mitológica e, portanto, imaginária. “Narrar é uma forma de dar sentido à vida. Na verdade, as narrativas são mais que representações: são estruturas que preenchem de sentido a experiência e instituem significação à vida humana” (MOTTA, 2013, p. 18). O caráter crítico de nosso posicionamento metodológico está na procura de des(en)cobrir as camadas de real e de imaginário estabelecidas nas narrativas jornalísticas analisadas: “É na correlação de forças da comunicação narrativa em cada situação concreta que o sentido e a verdade serão coconstruídos” (MOTTA, 2013, p. 20, grifos do autor). A comunicação narrativa é encarada como “busca permanente da coerência requerida pela organização da intriga (encadeamentos, sequências, etc.) e pela expectativa semântica e pragmática desencadeada pelo discurso narrativo (flashbacks, suspenses, clímax, etc.). Mas também pelos ingredientes da situação comunicativa (quadro temporal, objetivos dos participantes, correlações de poder, etc.) e pelo contexto sociocultural (representações mentais, estereótipos, modelos de mundo e memória coletiva, etc.) que os interlocutores trazem para o ato de fala” (MOTTA, 2013, p. 20-21). “Narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho. Implica, portanto, narratividade, uma sucessão de estados de transformação responsável pelo sentido. A palavra-chave é sucessão” (MOTTA, 2013, p. 71, grifos do autor).

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Nesse sentido, os acontecimentos estudados nesta tese – as rupturas institucionais – são compreendidos como pontuações da existência, pontos de virada, descontinuidades, ou seja, elementos essenciais da narrativa social. Como aponta Detienne (2004), uma das formas de percepção da consciência histórica está na mudança. Motta (2013) utiliza como critério distintivo entre as narrativas fáticas e ficionais a vontade de sentido que se estabelece na relação comunicativa. No caso do jornalismo, é estabelecido um protocolo de veridicção (grifo do autor) e a narrativa se configura em uma linguagem referencializada, marcada por estratégias de objetivação que veremos em pormenor a seguir. “O mundo existe lá fora, mas não é o mundo per se que é objetivo, é a linguagem que é organizada de maneira objetivada” (p. 39). Cabe ressaltarmos que essa constatação, em nossa perspectiva, não quer dizer que a realidade é produto exclusivo da linguagem, mas sim que a linguagem mobiliza conceitualmente a compreensão do real. O homem só é capaz de configurar sua experiência no tempo através da narrativa, seja ela fática ou ficcional. Na verdade, ela só se realiza na convergência entre ambas: “[...] A história nos dá acesso ao possível, enquanto a ficção, ao nos permitir aceder ao real, nos leva de volta ao essencial” (MOTTA, 2013, p. 52). No âmbito da cognição social, o autor indica a dimensão essencial da negociação de sentidos que acontece através da narrativa. É apenas através dela que compreendemos o canônico e a ruptura. “O afastamento do canônico e do legítimo traz em si uma carga inerente de dramatismo (moral, ético, estético, cultural) e requer um relato que o explique. Esses relatos são explicações dos limites da legitimidade” (MOTTA, 2013, p. 54). Em uma sociedade mediada, isso significa, por um lado, uma variedade crescente de relatos divergentes de conhecimento do mundo; por outro, indica o poder dos meios de comunicação de massa na organização da experiência cotidiana, ao naturalizar e estabilizar determinados aspectos da vida social. Narrar é uma atitude argumentativa, seja qual for seu referente (fático ou ficcional). O jornalismo, ao atuar tanto na contingência quanto na estabilização, ao noticiar

83 os “extraordinários do dia a dia”, ocupa posição central como narrativa do cotidiano, especialmente a partir de sua fase industrial. Em termos teórico-metodológicos, consideramos a narrativa jornalística como narrativa do cotidiano, mediadora das ações no tempo, organizadora da experiência entre o passado, o presente e o futuro: “O jornalismo observa o mundo desde o atual, ancora seu relato no presente para relatar o passado e antecipar o futuro. Opera uma mediação que é, ao mesmo tempo, linguística e temporal” (MOTTA, 2005, p. 9). Nesse sentido, o texto é ponto de partida, mas não perdemos de vista o fato de que ele só produz sentidos na relação com atores históricos humanos e com o contexto:

O texto e suas significações são apenas os nexos entre a produção e o consumo, entre o ato de enunciar e o ato de interpretar (atos de alguém, de algum sujeito). São apenas a forma que assume a relação entre atores humanos históricos. Concebemos a análise da narrativa como caminho rumo ao significado porque o significado é uma relação, não há significado sem algum tipo de troca. (MOTTA, 2005, p. 3).

Motta (2005) sugere seis movimentos para a análise da narrativa jornalística: 1. Recomposição da intriga ou do acontecimento jornalístico; 2. Identificação dos conflitos e da funcionalidade dos episódios; 3. Construção de personagens jornalísticas; 4. Desvendamento das estratégias comunicativas: a) Estratégias de objetivação: construção de efeitos de real; b) Estratégias de subjetivação: construção de efeitos poéticos; 5. Relação comunicativa e “contrato cognitivo”; 6. Metanarrativas – significados de fundo moral ou fábula da história.

O noticiário apresenta uma natureza fragmentada. O jornalismo diário conta histórias em parcelas, selecionadas e compostas de acordo com valores- notícia (WOLF, 2006), constrangidas pelas características do dispositivo (MOUILLAUD, 2002) e com ênfases narrativas diversas. Um mesmo assunto pode ser tratado por dias, meses, desaparecer do noticiário e ser retomado ou não retomado mais tarde. A análise da narrativa jornalística pressupõe um

84 trabalho interpretativo de concatenação: “é preciso, pois, conectar as partes, identificar a serialidade temática e o encadeamento narrativo cronológico para compreender o tema como síntese (compreender a diegese ou a projeção de um mundo a partir do enredo e das sugestões que dele emanam)” (MOTTA, 2005, p. 4)16. Ao recompor essa história a partir dos fragmentos, o analista (re)compõe uma síntese, a qual o autor chama de acontecimento jornalístico. Podemos afirmar que ocorre, na narrativa jornalística, uma relação de transmutação e de recriação entre o mundo da história narrada e o mundo da vida (MOTTA, 2013). A narrativa jornalística moderna estrutura-se sobre rupturas, desvios, desequilíbrios, contradições. Para (re)compor sua síntese, o analista precisa identificar e compreender qual é o conflito em questão e suas transformações no tempo. Em muitos casos, a narrativa começa pelo clímax, sendo necessário que o jornalismo lance mão de narrativas complementares (os mapas, gráficos, infográficos, boxes) para reforçar a compreensão pelo receptor, assim como nas narrativas ficcionais operam os flashbacks e flash-fowards. Há, ainda, a dimensão dos personagens: atores no/do acontecimento, desempenham diferentes funções na progressão da narrativa e relacionam-se com os receptores em uma dinâmica identificação/projeção. São construídos pela subjetividade do jornalista, ainda que produtos de referentes reais e de uma narrativa fática. “Por força de sua intervenção na história, as personagens podem ser identificadas como protagonistas, antagonistas, heróis, anti-heróis, doadores, ajudantes, etc. O analista estará movendo-se sempre entre a sua própria reconstituição da história e o texto original das notícias” (MOTTA, 2005, p. 7). Estratégias de objetivação, mas também de subjetivização – apesar da deontologia profissional favorecer uma ideia de distanciamento do narrador- jornalista, um apagamento de sua mediação – são operadas na construção da narrativa jornalística. A narrativa jornalística refere e institui a realidade, realiza- se sob essa perspectiva e circula socialmente cumprindo essa missão. O efeito de real é sua principal estratégia, praticada especialmente sob os domínios da

16 Motta (2005) complementa a noção de diegese: “a projeção de um mundo considerado real que vai servir de referente” (p. 4).

85 linguagem e do tempo. Efetiva-se em operações linguísticas: são expressões que criam atualidade, referências geográficas, referência de autoridade, legitimidade do relato ou do testemunho (citações), identificação de lugares e personagens, referencialidade temporal, numérica, estatística. Esses mesmos elementos servem às estratégias de subjetivação, pois, assim como outras linguagens estéticas, o jornalismo tem uma ética e uma poética. A reconfiguração efetivada pelo leitor no ato de leitura – através do qual insere as notícias fragmentadas em uma narrativa com o auxílio de sua memória cultural – é análoga ao movimento epistemológico do analista ao reconstruir as notícias individuais em uma sequência lógica e integral, uma história com início, meio e fim, dotada de um fundo moral. Esta é uma das formas de acesso às estratégias de subjetivação. Outras maneiras são ainda possíveis, como a identificação do uso de recursos linguísticos e extralinguísticos que indiquem catarse, como surpresa, medo, compaixão, ironia, deboche: “Eles promovem a identificação do leitor com o narrado, humanizam os fatos brutos e promovem a sua compreensão como dramas e tragédias humanas” (MOTTA, 2005, p. 11). Identificar estratégias de subjetivação é procurar rastros de comoção na narrativa jornalística. É necessário ainda compreender a narrativa como um ato comunicativo, uma relação intersubjetiva entre narrador e narratário, mediada por um contrato cognitivo. Na medida em que nenhuma narrativa pode ser integral, opera-se na mediação com o leitor o preenchimento de espaços, o encadeamento lógico dos acontecimentos, a projeção de desdobramentos. Há, ainda, o contrato cognitivo mais básico da narrativa jornalística com seu leitor: esta é uma narrativa que “conta a verdade”. Assim, chegamos ao sexto movimento proposto por Motta (2005): a análise das metanarrativas, dos significados de fundo moral da história. Essa dimensão tem início já na seleção daquilo que é noticiado, já que “a notícia representa sempre uma ruptura ou transgressão em relação a algum significado estável” (p. 14). O fundo ético e moral projetado pelas notícias mobiliza as emoções do público, podendo constituir uma experiência – mais do que racional/informacional – estética ou emocional, como ocorre, por exemplo, na cobertura de grandes tragédias. As notícias, impregnadas pela vida

86 cotidiana, “revelam os mitos mais profundos que habitam metanarrativas culturais mais ou menos integrais do noticiário: o crime não compensa, a corrupção tem de ser punida, a propriedade precisa ser respeitada, o trabalho enobrece, a família é um valor supremo, a nação é soberana [...]” (p. 15). Motta (2013) propõe uma análise fenomenológica conjugada com procedimentos da narratologia pragmática. Diferente de uma análise de viés estruturalista, a análise pragmática pretende des(en)cobrir os efeitos de sentido que a narração sugere a partir dos planos da expressão, da intriga e das metanarrativas, procurando compreender as relações entre narrador e audiência por meio das intenções e estratégias reveladas pela narrativa. Assim, a narrativa é considerada, nesta perspectiva, um processo comunicativo e, portanto, histórico. (MOTTA, 2013). De acordo com o autor, o primeiro movimento do analista deve ser “compreender a construção da intriga como uma síntese do heterogêneo” (2013, p. 140, grifo nosso). Toda narrativa tem um início, um meio e um fim, e cabe ao analista encontrá-los ou defini-los. Em narrativas fragmentadas como a do jornalismo, isso implica a definição de cortes devidamente justificados, a fim de que o acontecimento-intriga seja estudado como uma obra completa. Nossa leitura dos eventos de ruptura institucional estudados nesta tese deriva de uma sequência-tipo clássica da teoria narrativa, a saber: degradação- reparação-melhoramento, descrita por Bremond (1971). Uma das portas de acesso ao universal sugerido pela narrativa particular é procurar compreender a dialética concordante/discordante. O rompimento da estabilidade (novamente, a mudança, a ruptura) demanda a compreensão, na intriga, das definições daquilo que é o estável e daquilo que é o discordante dentro da narrativa. A mudança, ao mesmo tempo que é uma ruptura, indica também a construção de novos elos. Nesse sentido, a projeção dos desdobramentos dos fatos, tão comum ao jornalismo, torna-se um elemento central de expressão da subjetivação na narrativa: “Quando o impossível (o extremo da discordância) ameaça a estrutura, o verossímil se torna persuasivo na medida em que é aceitável” (MOTTA, 2013, p. 150). O segundo movimento do analista é compreender a lógica do paradigma narrativo (MOTTA, 2013, p. 146). Do ponto de vista temporal, “as ideias de

87 princípio, meio e fim são efeitos de ordenação temporal da intriga: só na intriga a ação tem contorno, limite, duração temporal (mais lógica que cronológica), pois a intriga é o elo entre a ética (o mundo real) e a estética (o mundo imaginário)” (p. 147). Nesse sentido, as narrativas jornalísticas analisadas nesta tese apresentam uma apropriação própria do tempo. Em nossa pesquisa, é necessário compreender que há uma complexa sintonia entre o tempo dos acontecimentos e o tempo midiático (no caso da imprensa, o tempo do jornal diário). Em nosso caso, o ciclo diário do jornalismo impresso gera uma expectativa a cada nova edição, assim como os capítulos de uma telenovela. Ainda que as fontes de informação sejam múltiplas e que outros meios de comunicação informassem com maior imediatez, cada periódico analisado nesta pesquisa apresenta suas estratégias de captação de atenção do leitor, negocia com ele o contrato de comunicação e constrói sua narrativa com a expectativa de mantê-lo fiel. Podemos afirmar, assim, que há uma expectativa de continuidade tanto na produção quanto na recepção dos textos midiáticos. Motta (2013) vai além, e afirma que o encadeamento narrativo é uma tática argumentativa. Nesse sentido, há ainda uma outra questão importante na relação entre o tempo cronológico e o tempo midiático na composição da narrativa: a criação de suspense. Dado que se trata de uma narrativa factual, o jornalismo precisa dos fatos (referentes) para compor seus acontecimentos-intriga. Diariamente, os jornais impressos deixam perguntas no ar que podem ou não ser respondidas nas edições posteriores. E as perguntas, por vezes, remetem mais à intriga do que aos fatos em si. Ou, ainda, a seleção dos fatos depende da intriga. O suspense também serve para preparar os leitores para possíveis desfechos. Aliado à projeção de cenários, configura um instrumento poderoso de argumentação e, por que não, manipulação da audiência:

É interessante observar que na narrativa jornalística, onde há uma relação íntima entre o referente e o discurso, esses conflitos diegéticos permanecem pendentes de novos fatos no noticiário e duram enquanto houver demanda por esclarecê-los até compor a totalidade. São essas pendências que mantêm as expectativas e tensões do discurso noticioso, criam o efeito de retardamento, geram nervosismo, inquietação e ansiedade, motores da construção diegética da estória jornalística. (MOTTA, 2013, p. 169).

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O terceiro movimento consiste em deixar surgirem novos episódios. A identificação dos novos episódios pode revelar estratégias do narrador para produzir determinados efeitos dramáticos e sugerir inferências cognitivas e de estabilização de sentidos (MOTTA, 2013). O quarto movimento é a identificação dos conflitos dramáticos. “O conflito dramático é o frame cognitivo (enquadramento, perspectiva, ponto de vista) através do qual o narrador organiza a difusa e confusa realidade que pretende relatar” (MOTTA, 2013, p. 167, grifo do autor). Os conflitos – principais ou secundários – revelam os antagonismos e assimetrias entre os personagens. Dão acesso, ainda, ao projeto dramático do narrador e às metanarrativas que compõem o pano de fundo das narrativas. O quinto movimento diz respeito à definição das personagens. Estas carregam as ações e subjetividades das narrativas, posicionando-se em relação ao(s) conflito(s) dramático(s). Sua caracterização e correferências indicam intenções narrativas e, no caso específico do jornalismo, pressupostos incorporados à intriga. Em uma dimensão sociológica, observar a composição das personagens através de suas relações comunicativas pode levar o analista a des(en)cobrir pressupostos e enviesamentos ideológicos do discurso. A relação estabelecida entre as personagens também deve ser observada, como a criação de antagonismos, protagonismos, figurações, etc. As personagens, por sua dimensão irremediavelmente humana, são grandes mobilizadoras da identificação, empatia ou rejeição do público. As personagens das narrativas jornalísticas apresentam suas particularidades: “Um analista da narrativa jornalística precisa manter em mente que as personagens que as notícias relatam habitam a realidade da própria narrativa [...]” (MOTTA, 2013, p. 190). Interessa ao analista da narrativa compreender os personagens como figuras construídas dentro da narrativa jornalística, mas estas personagens não são entidades puramente ficcionais, são também produto de referências fáticas, real-históricas. Nesse sentido – e partindo do entendimento, discutido anteriormente, que a narrativa jornalística relata o “extraordinário cotidiano” –, as personagens do jornalismo guardam uma relação ainda mais estreita com a dimensão do conflito estruturador da intriga. E a narrativa jornalística, como mediadora essencial das relações

89 sociais da modernidade, não apenas reflete, mas contorna e institui a realidade. Os contornos da relação entre as personagens e as pessoas em suas existências referenciais são cada vez mais borrados: “O referente histórico só é acessível por elaborações anteriores, entre as quais se situam também as representações de natureza jornalística” (MOTTA, 2013, p. 195). O sexto movimento diz respeito às estratégias argumentativas. Para Motta (2013), “toda narrativa é argumentativa” (p. 196, grifos do autor). Assim, o analista deve procurar pistas dos efeitos de real e dos efeitos estéticos de sentido. A narrativa jornalística, como já mencionamos, caracteriza-se por um afastamento do narrador e pela força da verossimilhança e da plausibilidade. Muitas vezes, o jornalista toma distância da narrativa na tentativa de colocar-se fora dos fatos e fenômenos (dessubjetivação do real); em outros, assume o papel de testemunha (como, por exemplo, no caso dos correspondentes internacionais). A análise crítica da narrativa trabalha com o horizonte da recepção, ou seja: o interlocutor está sempre presente no texto (mesmo quando ausente fisicamente), seja porque os sentidos só se completam no ato de leitura ou porque o narrador tem o leitor em mente quando utiliza estratégias de produção do efeito de real e também estratégias de criação de efeitos estéticos de sentido. Nesse sentido, o texto é o ponto de partida da análise, mas não perdemos de vista o fato de que ele só produz sentidos na relação com atores históricos humanos e com o contexto:

O texto e suas significações são apenas os nexos entre a produção e o consumo, entre o ato de enunciar e o ato de interpretar (atos de alguém, de algum sujeito). São apenas a forma que assume a relação entre atores humanos históricos. Concebemos a análise da narrativa como caminho rumo ao significado porque o significado é uma relação, não há significado sem algum tipo de troca. (MOTTA, 2005, p. 3).17

No caso das estratégias de produção do efeito de real, e tratando especificamente da narrativa jornalística, estas tendem reforçar a ancoragem da narrativa no aqui e no agora, oferecendo ao leitor “um lugar empírico de onde se pode observar o mundo, compreender o passado e especular sobre o futuro” (MOTTA, 2013, p. 199). O jornalismo é uma forma de organizar o

17 Note-se que Sodré (2009) diferencia significado e sentido. Motta (2013) não parece fazer essa distinção e que aqui assume para a palavra significado a mesma acepção de sentido para Sodré.

90 mundo, o tempo e o espaço, mas é, ao mesmo tempo, uma afirmação radical do atual, de onde deriva, sobremaneira, sua posição de objetividade e/ou neutralidade. Esta mesma posição já marca uma estratégia narrativa: “a objetividade é em si mesma, paradoxalmente, um ardil argumentativo” (p. 200, grifos do autor). São diversas as marcas que indicam os efeitos de real para as quais o analista deve atentar: expressões de atualidade, de referencialidade geográfica, de autoridade; marcas de transparência, exatidão, lógica, fidelidade; citações, transcrições, estatísticas, quantias, volumes, dimensões. As estratégias de criação de efeitos estéticos de sentido são aquelas que mobilizam os efeitos catárticos no leitor, provocando sua identificação com o narrado. Há várias formas de acesso a essas estratégias. A primeira delas é a própria recomposição diegética do acontecimento-intriga. A reconfiguração efetivada pelo leitor no ato de leitura – através do qual insere as notícias fragmentadas em uma narrativa com o auxílio de sua memória cultural – é análoga ao movimento epistemológico do analista ao reconstruir as notícias individuais em uma sequência lógica e integral, uma história com início, meio e fim, dotada de um fundo moral. Esta é uma das formas de acesso às estratégias de subjetivação. Outras maneiras são ainda possíveis, como a identificação do uso de recursos linguísticos e extralinguísticos que indiquem catarse, como surpresa, medo, compaixão, ironia, deboche: “Eles promovem a identificação do leitor com o narrado, humanizam os fatos brutos e promovem a sua compreensão como dramas e tragédias humanas” (MOTTA, 2005, p. 11). Identificar estratégias de subjetivação é procurar rastros de comoção na narrativa jornalística. O sétimo movimento é permitir às metanarrativas aflorar. “Toda narrativa, seja ela fática ou fictícia, se constrói contra um fundo ético e moral” (MOTTA, 2013, p. 205, grifos do autor). Essa dimensão tem início já na seleção daquilo que é noticiado, já que “a notícia representa sempre uma ruptura ou transgressão em relação a algum significado estável” (p. 14). O fundo ético e moral projetado pelas notícias mobiliza as emoções do público, podendo constituir uma experiência – mais do que racional/informacional – estética ou emocional, como ocorre, por exemplo, na cobertura de grandes tragédias. As notícias, impregnadas pela vida cotidiana, “revelam os mitos mais profundos

91 que habitam metanarrativas culturais mais ou menos integrais do noticiário: o crime não compensa, a corrupção tem de ser punida, a propriedade precisa ser respeitada, o trabalho enobrece, a família é um valor supremo, a nação é soberana, e assim por diante” (p. 15). A fusão dos horizontes de expectativa do texto com as expectativas do mundo da vida, reatualizadas no ato de leitura (tanto da audiência quanto do analista), configuram a dimensão imaginária do jornalismo, as quais objetivamos acessar, nesta pesquisa, através das placas de encadeamento do exercício comparativo. Por fim, compreendemos que os jornais de nosso recorte manifestam uma luta–plurivocal, intertextual, polissêmica e polifônica – pelo poder de voz (MOTTA, 2013). No caso da narrativa jornalística, Motta (2013), apoiado nas figuras de domínio de voz de Genette (1998), afirma que há pelo menos três níveis de domínio de voz na narração jornalística: o primeiro narrador é o veículo; o segundo, o jornalista; e o terceiro, os personagens da estória. Para o autor, há uma inegável hierarquia entre esses três níveis, mas eles estão em constante negociação, quase nunca explícita, e sempre em contato com o público. A Figura 1 representa graficamente a relação entre os narradores:

Figura 1: Diagrama dos níveis de poder na narração jornalística. Fonte: Motta (2013, p. 226), com adaptações da autora. Optei por substituir a nomenclatura original do primeiro narrador, “narrador-jornal”, por “narrador-veículo”, por considerar essa expressão mais precisa em relação à expressão do poder econômico e simbólico das empresas jornalísticas.

O primeiro narrador desempenha o papel mercadológico e institucional. Sua marca lhe confere autoridade como voz reconhecida como “capaz para contar publicamente” (MOTTA, 2013, p. 227, grifo do autor). Reconhecemos,

92 ainda, que os veículos possuem vocação mercadológica voltada ao lucro e pretendem, portanto, comercializar suas narrativas, torna-las interessantes ao público consumidor (a notícia como commodity). Cabe ressaltar, novamente, que na consolidação da sociedade moderna, o jornalismo (ou, em plano mais geral, a comunicação mediada) tomou para si a tarefa de administradora da verdade e da visibilidade social, o que confere a essa dimensão uma influência maior na hierarquia do poder de voz. O segundo narrador, o jornalista, opera na mediação entre os demais narradores do esquema. Trabalha na tessitura da intriga, em um entrecruzamento de seus valores pessoais, deontologia profissional, e negociação entre as fontes e interesses do veículo ao qual está subordinado. O terceiro narrador são as fontes ou vozes sociais que configuram, em última análise, os personagens da narrativa jornalística. A princípio, estão subordinados ao segundo narrador, mas também apresentam autonomia, de acordo com os jogos de poder estabelecidos. Finalmente, Motta (2013) sugere que as análises de processos comunicacionais devem centrar-se no entrecruzamento de dois eixos: o da mediação e o da representação. No primeiro estão os narradores e, no segundo, a narrativa e seus personagens, como mostra a Figura 2:

Figura 2: Eixos de análise de processos comunicacionais na Análise Crítica da Narrativa. Fonte: Motta (2013, p. 235), com adaptações da autora.

Passamos, a seguir, à análise propriamente dita das narrativas jornalísticas sobre as rupturas institucionais no Brasil e em Portugal.

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3. O GOLPE CIVIL-MILITAR DE 1964 NO BRASIL

Passamos, neste capítulo, à análise das narrativas dos jornais selecionados em nossa tese. Iniciamos, de acordo com nosso referencial teórico-metodológico, com o movimento de recomposição da intriga, procurando, dentro da fragmentação da narrativa jornalística, compreender a intriga como síntese do heterogêneo, com início, meio e fim. A partir dessa compreensão, selecionamos categorias do plano da intriga e do plano da expressão que se destacaram na narrativa apresentada por esses jornais. A primeira delas é a caracterização das personagens (Forças Armadas, João Goulart, lideranças civis e manifestações populares, sindicais e estudantis). A segunda, a compreensão da forma como as relações internacionais e a repercussão midiática fora do Brasil impactaram a narrativa do golpe, ou seja, procuramos compreender de que forma os jornais realizam a mediação das visões exteriores sobre os fatos ocorridos no Brasil naquele momento. A terceira, no plano da expressão, analisa o léxico empregado para referir o golpe de Estado civil-militar de 1964. A quarta trata da relação das narrativas jornalísticas analisadas com o tempo, ou seja, de que forma passado, presente e futuro são articulados na composição do conhecimento do fato. Essas categorias são os comparáveis que nos ajudarão a compreender os eventos de ruptura institucional estudados nesta tese. Começamos este capítulo pela análise dos jornais brasileiros. A seguir, passamos para os jornais portugueses e, por fim, realizamos uma síntese comparativa entre as imprensas dos dois países.

3.1. IMPRENSA BRASILEIRA

3.1.1. Recomposição da intriga

Nos anos 1960, o OESP dedicava sua capa aos assuntos internacionais e a contracapa aos temas nacionais. Mesmo que não versem diretamente sobre o objeto de nossa pesquisa, consideramos relevante integrar a capa de OESP em nossa análise, visto que essa opção do jornal oferece indícios da

95 linha editorial da publicação e, ainda, nos ajuda a compreender a intriga na qual estão inseridos os acontecimentos relativos ao Golpe Civil-Militar de 1964. Como mencionamos no subcapítulo 1.2, OESP apresenta-se como um jornal marcado pela sobriedade e é, entre nosso corpus de periódicos brasileiros, aquele que dedica maior espaço ao noticiário internacional. Na capa do dia 31 de março de 1964, terça-feira, as chamadas principais de OESP indicam uma intriga fortemente conectada com a Guerra Fria:

 Chile, Panamá e Brasil: cenários principais da guerra fria na A. Latina  Primeira radiomensagem de Páscoa de Paulo VI; alusão à perseguição do comunismo  China diz que Kruschev é social-democrata e terminará na “lata de lixo da História”

A primeira chamada dá conta da divulgação de um relatório do Departamento de Estado Norte-americano sobre “as linhas da guerra fria”, que estariam surgindo, então, no Panamá e no Chile. Sobre a situação no Brasil, o relatório afirma, de acordo com o jornal, que “os comunistas lograram avanços significativos”, porém, “há poucas perspectivas de que os comunistas se apoderem do País em um futuro previsível”. Ainda assim, o relatório indica que “a América Latina se transformou subitamente num dos maiores cenários da guerra fria”18. Ao lado, acompanhado de uma foto, está a matéria sobre a radiomensagem de Páscoa do Papa Paulo VI. A Páscoa havia sido celebrada no domingo anterior, 29 de março. A mensagem do pontífice é transcrita na íntegra e, por ela, percebe-se que a alusão ao comunismo é uma leitura contextual. O texto não menciona explicitamente o comunismo, dirige-se aos que “não tem religião” ou a quem “a combate”19. Compreendemos que a associação com o comunismo é legítima no plano da intriga (já que o Santo Ofício, especialmente entre os anos de 1940 e 1950 publicou diferentes decretos condenatórios em relação aos comunistas). Porém, ressaltamos que,

18 CHILE, Panamá e Brasil: cenários principais da guerra fria na A. Latina. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 1. 19 PRIMEIRA radiomensagem de Páscoa de Paulo VI; alusão à perseguição do comunismo. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 1.

96 no plano da expressão, não há menção explícita ao comunismo na mensagem do Papa transcrita pelo jornal. Por fim, entre as chamadas principais, está “China diz que Kruschev é social-democrata e terminará na “lata de lixo da História’”. OESP reproduz trechos de um editorial publicado nos jornais chineses Bandeira Vermelha e Diário do Povo com fortes críticas do governo chinês ao líder da União Soviética, qualificado como “revisionista”. Oito anos depois do discurso de Kruschev que apontou os crimes do stalinismo, em 1956, as disputas em torno da Guerra Fria tomam novos contornos, transparecendo, na leitura dos jornais, os conflitos e as diferentes abordagens abrigadas sob o nome “comunismo”. Percebemos que, em relação à forma, o jornalismo praticado por OESP utiliza repetidamente a seguinte fórmula: transcrições da fonte original (o relatório americano, a mensagem do Papa, o editorial do governo chinês) separadas por intertítulos que introduzem tópicos específicos. É nesses tópicos que se assentam as sínteses interpretativas do jornal, ainda que as transcrições configurem uma estratégia de produção do efeito de real. Ainda no contexto internacional que aparece neste jornal, devemos destacar, ainda, que OESP promovia, à época, uma campanha em prol dos presos políticos cubanos, recolhendo assinaturas e moções em repúdio ao tratamento destinado aos presos políticos do regime castrista em Cuba. As moções de solidariedade citadas destacam-se pela afirmação de uma postura apartidária, apolítica e não ideológica na defesa dos direitos humanos. OESP enfatiza que a campanha é uma “luta na defesa de um dos pilares da democracia: a liberdade de pensamento”20. Na América Latina, o modelo político mais próximo do Brasil parece ser o da Argentina peronista, especialmente pelo tratamento da questão sindical, desaprovada pelos jornais de nosso recorte. Em editorial de 2 de abril, o JB afirma:

É necessário, sobretudo, evitar que, como aconteceu na Argentina pós-peronista, o Brasil de agora seja um Brasil anti-sindical. Isto sim, seria o preparo de uma futura guerra civil sangrenta, irremediável. Na Argentina, a luta entre militares e sindicalizados, entre exército e

20 NOVAS adesões à campanha em prol dos presos cubanos. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 4.

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Confederação Geral de Trabalhadores esfacelou ambos, mergulhou a nação amiga num crepúsculo de que só agora emerge. E, sobretudo, transformou um ditador incompetente numa espécie de Presidente no exílio, movimentando de longe suas forças de desagregação.21

Do outro lado do front da Guerra Fria, JB noticia, em texto do jornalista Nahum Sirotsky a 31 de março de 1964, uma redução nas verbas destinadas pelo governo norte-americano para ajuda ao exterior, especialmente aos países “subdesenvolvidos”, através de uma “política mais firme no sentido de obrigar os países recipientes a adotarem programas viáveis e eficientes se quiserem continuar recebendo ajuda americana”22. O texto relaciona a redução ao ano eleitoral nos EUA, já que o presidente Lyndon Johnson, que assumiu após o assassinato de John Kennedy, em 1963, tentava a reeleição. A ajuda externa era um tema importante na produção de votos, porque, de acordo com a matéria, o eleitorado americano, ao contrário do Plano Marshall e da ajuda à Europa no pós-guerra, não via com bons olhos a emissão de recursos a países que “deixam de se alinhar ao lado de seu país” 23. O texto finaliza, ainda, com a projeção de que, depois da eleição vencida, a rigidez do programa seria flexibilizada. Vemos, assim, que a Guerra Fria e os sentidos atribuídos a “comunismo” e “democracia”, além da posição estratégica do Brasil no cenário mundial são pontos centrais para a compreensão do mundo projetado (diegético) dos jornais analisados. Eles configuram o pano de fundo, a metanarrativa que conduz a enunciação dos fatos no plano interno, como veremos a seguir. Nos anos 1960, o Brasil vive, à sua maneira, as grandes questões globais: as tensões da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a URSS e a efervescência dos movimentos de contracultura. Para Gaspari (2002) um dirigismo conservador e anticomunista foi encampado pela direita brasileira, manifestando-se como uma utopia planejadora, centralizadora e que via com maus olhos o voto popular. A crença na ameaça comunista esteve na base dessa utopia, para fins de propaganda, como cimento para unir interesses divergentes e como estereótipo para encobrir bandeiras simplesmente

21 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr.1964, p. 5. 22 SIROTSKY, Nahum. Johnson e a ajuda externa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 6. 23 SIROTSKY, Nahum. Johnson e a ajuda externa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 6.

98 libertárias ou reformistas. Esse movimento conservador encontrou apoio na caçada ao “inimigo vermelho” empreendida pelos Estados Unidos – especialmente, no Brasil, na figura do embaixador Lincoln Gordon (GREEN; JONES, 2009). No Brasil, a Escola Superior de Guerra era dominada pela Doutrina de Segurança Nacional, um conjunto de diretrizes geopolíticas que estabelecia entre os principais objetivos nacionais a proteção do Brasil frente à internacionalização do comunismo através de compromissos recíprocos entre Brasil e EUA para defesa do hemisfério (COUTO E SILVA, 1981). O trabalhista João Goulart, conhecido como Jango, chega à presidência com a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Governa em um ambiente hostil, mas tenta avançar com o programa trabalhista, as Reformas de Base: reforma agrária, fiscal, bancária, urbana, tributária, administrativa e universitária, além do controle do capital estrangeiro e monopólio estatal de setores estratégicos da economia brasileira. O governo progressista de Goulart enfrenta problemas políticos, econômicos e uma oposição destrutiva – encabeçada pela UDN (União Democrática Nacional) e personificada no governador da Guanabara, Carlos Lacerda – que mobiliza setores conservadores da classe média, da igreja e das Forças Armadas na luta “anticomunista”. A intervenção norte-americana é clara, através de organizações financiadas pela CIA (Central Intelligence Agency), como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que defendem os interesses de grandes corporações americanas, grupos privados nacionais e ruralistas e financiam a campanha de deputados da oposição nas eleições legislativas de 1962 (FERREIRA; GOMES, 2014). O apoio norte-americano ao golpe efetiva-se militarmente com a operação Brother Sam como suporte, dispondo a força militar da Frota do Caribe na costa brasileira (KORNBLUTH, 2004) e politicamente, com o reconhecimento imediato dos Estados Unidos ao governo dos militares. Assume a presidência Rainieri Mazzilli, então presidente da Câmara dos Deputados. Na noite de 30 de março de 1964, João Goulart realiza seu último discurso como presidente24. Foi na sede do Automóvel Clube no Rio de Janeiro

24 Íntegra do discurso em: . Acesso em: 3 dez. 2016.

99 e ele falou para uma plateia formada, em sua maioria, por sargentos das Forças Armadas. Foi o ato final de uma grande crise pela qual passava o governo e a “gota d’água” que desencadeou a reação militar para derrubada de Goulart. A crise com militares torna-se insustentável com o episódio da Rebelião dos Marinheiros, a 25 de março. O que deveria ser uma reunião comemorativa pelos dois anos da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil – AMFNB, organização não reconhecida pela Marinha e que reivindicava melhores condições de trabalho para os fuzileiros e marinheiros da Marinha de Guerra – transformou-se em um episódio de quebra de hierarquia militar. De acordo com Ferreira e Gomes (2014), as reivindicações eram justas e teriam sido aceitas pelo então ministro da Marinha, Silvio Mota, desde que a festividade fosse cancelada. Os associados decidiram realizar o evento mesmo assim, e o ministro decretou a prisão de 12 marinheiros e fuzileiros. Com mais de dois mil marinheiros e fuzileiros navais reunidos, a festa se transformou em rebelião. O ministro também endureceu: mandou prender outros 40 marinheiros e enviou 500 fuzileiros navais e 13 tanques para invadir a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, onde tudo se passou. Porém, parte da tropa aderiu à rebelião, que recebeu também o apoio de figuras de esquerda, como Leonel Brizola e Carlos Marighella. Outra parte reagiu a tiros de metralhadora, matando um marinheiro. Instala-se uma grave crise. De um lado, os marinheiros e fuzileiros navais; de outro, a oficialidade da Marinha, reunida no Clube Naval. Ainda sem conseguir superar os conflitos que se estenderam pelo final de semana de Páscoa, o discurso de Goulart no Automóvel Clube é considerado a “gota d’água” para o fim do governo. Na narrativa jornalística que analisamos, há uma clara quebra da hierarquia militar, desordem, insubordinação, comunismo. A cena de degradação é completa, configurando, assim, um ponto de virada, uma bifurcação na narrativa. A situação, nos jornais analisados em nosso recorte, é descrita como uma “crise sem precedentes”25. Diante de tais circunstâncias, a manchete do noticiário nacional de OESP a 31 de março de 1964 é: “Minas unida em defesa da Carta; prontidão rigorosa” e,

25 COMANDO da VI Região adere. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 2. Na fala do General Manoel Pereira, comandante da VI Região Militar, ao aderir ao movimento golpista.

100 como chamada secundária: “Clube Militar hipoteca plena solidariedade ao Clube Naval”. Também no JB, nesse mesmo dia, a manchete sugere unidade nas Forças Armadas: “Clube Militar dá apoio ao Clube Naval”. Em uma leitura bastante homogênea, OESP e JB projetam a legalidade (a invocação da Carta Magna), a coesão e o rigor das Forças Armadas como tábuas da salvação nacional. Interessa perceber que, em sua fragmentação, a narrativa da imprensa analisada é capaz de apresentar quadros de degradação e reparação simultâneos. Os fatos articulam-se aos acontecimentos midiáticos de forma que a reparação projetada encontre eco nos movimentos militares e na desintegração do governo Goulart, como profecias autorrealizáveis. Na profusão de fatos, as manchetes de capa (contracapa, no caso de OESP), são macroproposições (VAN DIJK, 2005) da narrativa, o ponto de fuga para o qual todos os demais fragmentos convergem. Além das escolhas editoriais, essa situação decorre, também, das questões técnicas de produção, já que as capas são, geralmente, as últimas páginas a serem finalizadas nos fechamentos das edições impressas. A 31 de março de 1964, OESP dá espaço à divulgação da mensagem do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, à nação. O parágrafo introdutório destaca a afirmação de que “estão em causa os próprios fundamentos do regime democrático”26. Há nesta mensagem e na cobertura jornalística analisada nesta tese, uma lógica específica para encarar a noção de mudança. Existe, como metanarrativa que fornece o fundo moral sobre o qual se desenrolam os textos jornalísticos tratados aqui, uma noção de normalidade, ordem e tranquilidade a ser respeitada, apesar da admissão da necessidade de reformas amplas. Para compreender a intriga jornalística na qual se inserem os fatos que consumaram o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil, procuraremos compreender essa dimensão da narrativa (desenvolvida, em pormenor, no subitem 3.1.5, quando tratamos da normalização do presente). Assim, as edições de 31 de março de 1964 de OESP e JB dão conta, ao

26 MINAS unida em defesa da Carta; prontidão rigorosa. O Estado de S. Paulo. São Paulo 31 mar. 1964, p. 46.

101 mesmo tempo, de um processo de degradação profunda do governo Goulart, por um lado, e, por outro, da construção de um cenário de unidade e apaziguamento com o movimento27 das Forças Armadas. Ainda que saibamos que a ação militar tenha sido um tanto improvisada (FICO, 2012) e que, logo a seguir as forças que se agruparam em nome da derrubada do governo Goulart tenham entrado em conflito, é importante observar que, na narrativa jornalística analisada aqui, destacam-se a união e a coesão. Em relação à degradação, a narrativa estabelece relação de explícita causalidade entre o episódio da Marinha e a confirmação da infiltração comunista no Brasil, como em matéria que repercute os movimentos do PSD (Partido Social Democrático) em relação à crise:

A rebelião dos marinheiros e fuzileiros positivou, com uma clareza que desafia a contestação, que a técnica foi rigidamente comunista. Os sublevados tentaram organizar um soviete para controlar a Marinha, não procurando disfarçar o claro sentido do movimento sedicioso.28

Outro exemplo é a coluna de Pedro Dantas: “Mais uma brilhante vitória obtiveram os interessados no processo de sovietização do Brasil. [...] Já foi dito por oficiais superiores que os episódios da Semana Santa assinalaram o fim da Marinha. Ou simplesmente o fim”29. Novamente, fica claro que a narrativa chega a um ponto de tensão insustentável. O clima no Congresso, de acordo com OESP, é de “ansiedade”30. Além do governador de Minas, Magalhães Pinto, outras lideranças civis importantes manifestam-se a respeito dos acontecimentos na Marinha, como José Martins Rodrigues, líder do PSD na Câmara, em fala reproduzida em OESP: “Estamos vivendo as últimas horas dessa situação [...] pois não se trata de um simples golpe, mas de uma tentativa de instalar o comunismo no País – e isso não podemos admitir”31. Nesse sentido, as edições de 31 de março mostram uma “onda de solidariedade” entre lideranças civis e militares à oficialidade, demonstrando a coesão do movimento contrário ao governo Goulart: “Solidariedade de S. Paulo

28 APREENSIVO o PSD diante das manobras de Goulart. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 3. 29 DANTAS, Pedro. Ecos no rescaldo. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 3. 30 APREENSIVO o PSD diante das manobras de Goulart. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 3. 31 APREENSIVO o PSD diante das manobras de Goulart. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 3.

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à Marinha de Guerra”, “Dois governadores apoiam a tese de Carlos Lacerda” (a tese de Lacerda é a da “união de chefes do Executivo em defesa do regime democrático”32). Fica expressa, ainda, a intensa mobilização da classe média através das Marchas da Família. OESP e JB projetam o sucesso da mobilização agendada no Rio; o primeiro afirma que “A Marcha do Rio obterá êxito total; marcadas mais 3”33, o segundo, que estão “Prontos os preparativos para a Marcha da Família no dia 2”34. Em OESP, ao mesmo tempo que o tom relativo aos oposicionistas é de coesão, em textos afirmativos, baseados em fontes abundantes e em comunicados oficiais, as menções diretas ao governo são imprecisas, e duvidosas, como, por exemplo, em “O presidente teria pronta a sua nova Constituição”. O uso do verbo no futuro do pretérito e a imprecisão das fontes da matéria são alguns dos elementos que apontam para a incerteza em relação às atitudes do Presidente e, mais, sugerem sua inclinação ao autoritarismo: “Circulava, entretanto, esta tarde, o rumor de que o Sr. João Goulart já dispõe de uma Constituição redigida para ser outorgada logo após o plebiscito a ser convocado por decreto para abril próximo”35. As chamadas de capa do JB de 31 de março também mostram a diferença na caracterização da atitude das forças em jogo: diagramado nas colunas da esquerda, o texto “Goulart pede aos sargentos acato a seus superiores”; nas colunas da direita, “Magalhães exige que a hierarquia seja respeitada” (grifos nossos). Ao centro, o jornal posiciona um editorial (deslocado no espaço habitual, geralmente na página 6), intitulado “Reincidência”. Para o jornal carioca, Goulart reincide na ilegalidade ao anistiar os marinheiros “em atitude de desafio à ordem constitucional, aos regulamentos militares e ao Código Penal Militar”, considerando-se acima da lei: “Para aqueles que protestam em nome da disciplina e da ordem, da própria segurança da família brasileira ameaçada pela indisciplina e insubordinação, a execração pública e a desmoralização. Para os praças revoltados, palavras solidárias”. Finaliza o texto apostando no movimento que tinha início em Minas: “A disciplina facciosa não vingará no Brasil, que já protesta em Minas Gerais

32 DOIS governadores apoiam a tese de Carlos Lacerda. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 4. 33 A MARCHA do Rio obterá êxito total; marcadas mais 3. O Estado de S. Paulo, 31 mar. 1964, p. 4. 34 PRONTOS os preparativos para a Marcha da Família no dia 2. Jornal do Brasil, 2 abr. 1964, p. 12. 35 O PRESIDENTE teria pronta a sua nova Constituição. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 4.

103 unida contra ela. Não vingará nem mesmo sob o manto protetor de um reformismo demagógico e insincero”36. Apesar de, graficamente, ocupar o centro, fica claro que posicionamento do jornal é pelo fim imediato do governo Goulart. As reformas assumem a centralidade nas disputas no plano político, configurando uma competição pelo programa narrativo conduzido, até então, pelo governo Goulart. Em editorial, o JB sintetiza sua visão do problema: “O reformismo do Sr. João Goulart é comunização disfarçada de reformismo”37. Nesta frase, temos a articulação de vários nós da crise política: reformas, comunismo, (i)legalidade e a figura de Goulart como personalização de todos os males. É o que vemos na mensagem do governador mineiro Magalhães Pinto à nação, reproduzida na matéria de contracapa de OESP de 31 de março de 1964:

Não podemos permitir, entretanto, que as reformas sejam usadas como pretexto para ameaças à paz pública, e, através da inquietação e da desordem, um processo de erosão do regime democrático. Reformas, sim e urgentes, mas dentro da Democracia, porque fora da Democracia perecerão as inspirações cristãs e populares que as devem orientar38.

A mesma leitura está em matéria do JB sobre as declarações do deputado líder da oposição Herbert Levi, para quem a crise na Marinha era parte de “plano engendrado pelo Presidente João Goulart para continuar no poder, ‘não importando que, para isso, leve o país ao comunismo’” e que as reformas de base eram “cortinas de fumaça” para o ataque à Constituição e à democracia39. A esta altura, ainda no dia 31 de março, os jornais de nosso recorte mencionam a articulação das classes trabalhadoras, como veremos com mais detalhes no subitem 3.1.2. O JB destaca na capa o manifesto à Nação do Comando-Geral dos Trabalhadores que denunciou “os governadores Carlos

36 REINCIDÊNCIA. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 1. 37 FORA da Lei. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr.1964, p. 6. 38 MINAS unida em defesa da Carta; prontidão rigorosa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 46. 39 LEVI vê na revolta dos marinheiros plano de Goulart para continuar. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 2.

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Lacerda, Ademar de Barros, Ildo Meneguetti e Magalhães Pinto como articuladores de uma tentativa de derrubada do Presidente Goulart, e revelou já ter montado um esquema capaz de paralisar o País a qualquer momento”40. OESP trata do tema em uma nota na página 9. Para o jornal, o comunicado do CGT “repete surrados chavões totalitários”41. Nesta edição, OESP oferece, ainda, outros indicadores da coesão do movimento contrário ao governo Goulart, como setores da Igreja e o empresariado. Em “Unem-se em defesa da Constituição o Governo e as classes produtoras”, fica clara a coesão ideológica entre o governo do Estado de São Paulo e a nova diretoria da Associação Comercial de São Paulo. A notícia dá conta da cerimônia de posse, na qual discursaram, além do governador Ademar de Barros, o então presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Raphael de Souza Noschese. Trechos do discurso são transcritos e são muitas as menções à ameaça comunista no Brasil, críticas ao marxismo e loas a Deus e à família42. Nas edições de 1º de abril, a degradação do Governo Goulart atinge seu clímax e passa a prevalecer a dinâmica de reparação na narrativa jornalística que analisamos aqui, especialmente a partir da adesão do Estado de São Paulo, através das tropas do II Exército, sob o comando do General Amaury Kruel, aos militares mineiros iniciado em Minas. Se, em um primeiro momento, vimos a afirmação da coesão do movimento contra o governo Goulart, passamos, agora, à narrativa da ação propriamente dita. Os jornais de nosso recorte optam, novamente, por manchetes muito semelhantes: em OESP, “São Paulo e Minas levantam-se pela Lei”; no JB, “S. Paulo adere a Minas e anuncia marcha ao Rio contra Goulart”. No caso de OESP, a contracapa (lembrando que a capa se dedicava ao noticiário internacional) é totalmente dedicada a textos sobre fatos que endossam o levante, ignorando as reações do governo ou de qualquer força destoante. Já o JB compõe uma capa mais equilibrada do ponto de vista informativo, mencionando a reação do governo através do I Exército e da exoneração dos generais Mourão Filho e Luís Guedes, a convocação de greve

40 O CGT articula greve geral. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 9. 41 O CGT articula greve geral. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 9. 42 UNEM-SE em defesa da Constituição o governo e as classes produtoras. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 de mar. 1964, p. 16

105 pelo CGT, a repercussão nos EUA e um apelo do ex-presidente Juscelino Kubitscheck pela paz, além de tratar da inserção do próprio veículo nos acontecimentos, por conta da tentativa de bloqueio da circulação do jornal, realizada por fuzileiros navais (episódio analisado em pormenor no tópico 3.1.3). Nos termos de nossa análise narrativa, é nas edições do dia 1º de abril que está colocada, de fato, a proposta de reparação para a condição degradada do governo Goulart: a ação militar. Fica evidente, neste ponto, o alargamento da espessura do tempo neste evento de ruptura institucional: os fatos se avolumam de tal forma que a narrativa se torna um emaranhado de ações e reações. São ações políticas, como manifestos, proclamações, greves, ameaças, alianças, hesitações. Ocorre também violência, prisões, disparos e mortes. O centro das atenções passa a ser o núcleo militar, que toma, antes do poder definitivo, o controle da pauta do dia na imprensa hegemônica. A esta altura, os espaços editoriais tornam-se ainda mais virulentos, adotando tom autoritário. O JB constrói seu discurso com base na questão da legalidade conquistada pelas armas. Sob o título “Fora da Lei”, afirma: “Desde ontem que se instalou no País a verdadeira legalidade: aquela que através das armas do movimento mineiro e paulista de libertação, procura imediatamente restabelecer a legalidade que o caudilho não quis preservar [...]”43. Articula-se, ainda, em uma dimensão chamada por Van Dijk (2005) de “nós versus eles”, que caracteriza um grupo positivamente e o outro, negativamente. Trata-se, para o autor, de um tipo de propriedade do discurso jornalístico que sinaliza opinião, perspectiva, posição, interesses, indicando, por consequência, uma expressão ideológica. O JB, nesse sentido, é claro: “A legalidade está conosco. Estamos lutando por ela e vamos restabelecê-la. [...] A Legalidade está conosco – e não com o caudilho aliado ao comunismo. As opções estão feitas e vamos para a vitória”44. OESP, em tom mais sóbrio, porém não menos contundente, agrupa, em seu tradicional espaço editorial, “Notas e Informações”, na página 3, as forças que balizam o jogo político a partir da união de Minas e São Paulo contra Goulart: ali estão mobilizados os militares da Revolução Constitucionalista de

43 FORA DA LEI. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 6. 44 FORA DA LEI. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 6.

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193245, as “classes produtoras”46 e a ala conservadora da Igreja católica47. As edições do dia 2 revelam o triunfo da reparação e abrem espaço ao melhoramento. A capa da edição de 2 de abril de 1964 do JB destaca na manchete um dos episódios mais controversos entre os que levaram à destituição de Goulart: a incoerência entre a declaração de vacância do cargo pelo Presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, e a permanência do chefe do executivo em solo nacional. A manchete é “Goulart resiste no Sul e o Congresso empossa Mazzilli”. OESP, por sua vez, não titubeia na manchete: “Vitorioso o movimento democrático”48. Nos títulos dessa mesma página (novamente, a contracapa, p. 38), sequer menciona Goulart. Em título secundário, afirma: “Mazzilli será o novo presidente”. É neste texto que jornal esclarece os acontecimentos das últimas horas e, talvez por uma questão de horário de fechamento – já que a sessão que empossou Mazzilli na presidência aconteceu nas primeiras horas da madrugada do dia 2 de abril – opta pelo uso do verbo no tempo futuro. Na seção “Coisas da Política” (p. 2), o JB esclarece um pouco mais o cenário e, diante dele, seu posicionamento editorial. Para o jornal, a situação está definida, restam apenas algumas dúvidas sobre como se consolidará dentro “das recomendações básicas da Constituição”49. Uma dessas dúvidas é: “Por exemplo, o Sr. João Goulart caiu, de fato, permanecendo, contudo, de direito, na chefia teórica de um Governo que se dissolveu. Como cuidar, portanto, de sua sucessão no quadro da legalidade em cujo nome agiram os comandantes militares rebelados?”50. Em outras palavras, como lidar com a flagrante incompatibilidade entre os fatos e a lei? Para o JB, a solução seria declarar o impedimento de Goulart, pois, em outro caso, ele estaria “em condições de criar para as forças vitoriosas o problema da duplicidade de chefias do Executivo: uma que se constituiria em ‘alguma parte’ do País – fantasma constitucional como o Governo de Cuba no exílio – e outra em cujas mãos estariam de fato as rédeas do poder”51. Não por acaso, o modelo

45 S. PAULO repete 32. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 1 abr. 1964, p. 3. 46 AS CLASSES produtoras e a crise. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 1 abr. 1964, p. 3. 47 A IGREJA e as “hipocrisias legais dos comunistas. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 1 abr. 1964, p. 3. 48 VITORIOSO o movimento democrático. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 2 abr. 1964, p. 38. 49 SITUAÇÃO definida, mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 50 SITUAÇÃO definida, mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 51 SITUAÇÃO definida, mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

107 explicativo da situação projetada vem de Cuba, um dos mais importantes palcos da Guerra Fria. O jornal deduz que Goulart “prefere ser deposto”, já que não manifestou alteração na decisão de não renunciar, ainda que o JB não apresente nenhuma fonte para sustentar tal suposição. OESP, por sua vez, resolve esse pormenor ao seu estilo: através da invocação da legalidade. Em nota na página 38 (contracapa), esclarece: “No caso do impedimento do Sr. João Goulart, por não haver vice-presidente, segundo o que dispõe o art. 79, § 1º da Constituição Federal, será chamado a substituí-lo o Presidente da Câmara dos Deputados, Sr. Ranieri Mazzilli”52. Na edição de 2 de abril, o JB publica uma entrevista exclusiva com o General Mourão Filho, líder do golpe a partir de Minas Gerais. Os enviados especiais Nilton Ribeiro e Fernando Abrunhosa foram a Juiz de Fora para conversar com o general. De forma geral, o teor da entrevista é de afirmação da unidade, tranquilidade e unanimidade do movimento militar e garantia da adesão do II e III Exércitos (São Paulo e Rio Grande do Sul, respectivamente). Chamam-nos a atenção detalhes de bastidores publicados na reportagem, que evidenciam, ao mesmo tempo, o autoritarismo dos militares, sua relação de compadrio com a imprensa e o fato de que a unidade militar não era tão forte como o general Mourão quis transparecer na entrevista concedida. A equipe de reportagem do Jornal do Brasil acabou detida no retorno ao Rio, sendo preciso voltar a Juiz de Fora para solicitar novo documento de salvo-conduto, providenciado – “gentilmente” – pelo próprio General:

BLOQUEADO / O regresso da reportagem estava previsto para a madrugada de ontem, contudo, não foi possível e apesar do salvo- conduto que levava, assim mesmo ficou detida no meio do caminho, e entre as tropas do destacamento Tiradentes e as do batalhão de Caçadores de Petrópolis, que até aquela hora não havia aderido ao movimento. Retornamos a Juiz de Fora e nos apresentamos ao General Mourão Filho, que gentilmente mandou que nos fosse fornecido novo salvo- conduto, no qual determinava todo apoio à reportagem do JORNAL DO BRASIL.53

Outras pistas organizam a intriga nas páginas do JB de 2 de abril. É o

52 SUBTITUTO do presidente da República. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 2 abr. 1964, p. 38. 53 GENERAL Mourão diz que revolta é contra desordem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 3.

108 caso da coluna Segunda Seção, assinada pelo jornalista Wilson Figueiredo (1924-), intitulada “Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio”. Nela, o colunista relata, sem citar as fontes, os diálogos de Jango com o Ministro da Guerra, General Jair Dantas Ribeiro, que estava internado em um hospital, e com os Generais Peri Beviláqua e Armando de Morais Âncora. De acordo com o relato, esses militares pressionaram Goulart para romper com o CGT (Comando-Geral dos Trabalhadores) e fazer uma declaração de repúdio ao comunismo, exigências negadas pelo Presidente. Essa situação teria sido definitiva na decisão de deixar o Rio de Janeiro rumo a Brasília. É neste momento que, de acordo com Figueiredo, “Começou o desmoronamento”54. A página 7 da edição do dia 2 de abril, contudo, traz como título principal: “Goulart lança manifesto para afirmar que vai resistir”. O texto reproduz o manifesto na íntegra, encimado por uma breve introdução, que localiza a divulgação do texto na noite do dia 1º de abril, antes do Presidente “viajar para o Rio Grande do Sul”55 – ou seja, novamente, a confirmação de que Goulart encontrava-se em solo nacional. O texto, redigido por Tancredo Neves (Deputado Federal pelo PSD de Minas Gerais, havia sido Ministro da Justiça e Negócios Interiores de Jango em 1961), Almino Affonso (Deputado Federal pelo PTB do Amazonas, havia sido Ministro do Trabalho e Previdência Social em 1963) e Doutel de Andrade (Deputado Federal pelo PTB de Santa Catarina) foi gravado por Goulart e divulgado pelo Rádio Nacional do Distrito Federal, uma vez que a Nacional e a Mayrink Veiga, do Rio, estavam silenciadas. No texto, Goulart promete uma resistência que, àquela hora, já parecia impossível, elenca as medidas progressistas de seu governo (Lei de Remessa de Lucros, Reforma Agrária, encampação de refinarias, tabelamento de medicamentos, fixação de aluguéis), denuncia o “golpe contra as instituições democráticas” e afirma que seus adversários “mistificam com a supervalorização do perigo comunista”. Sem garantias no Rio e nem em Brasília, Jango rumava para Porto Alegre, onde Brizola o esperava, para sondar com o comandante do III Exército a possibilidade de articular uma resistência. “No entanto, era inegável que sua

54 FIGUEIREDO, Wilson. Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 6. 55 GOULART lança manifesto para afirmar que vai resistir. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 7.

109 ida para o Rio Grande do Sul, mesmo sendo uma estratégia para manter-se no poder, significava um recuo, uma derrota política” (GOMES; FERREIRA, 2014). Na mesma página em que foi publicado o manifesto de Jango está a reação de Lacerda, que se refere ao presidente como um “fantasma”: “Fantasma foi espantado mas ainda pode voltar, adverte Carlos Lacerda”56. O texto transcreve a “proclamação” do governador da Guanabara, logo no início da tarde do dia 1º, na qual destila seu estilo virulento característico e, na composição da intriga, ajuda a corroborar o desfecho da derrota de Goulart. Também na mesma página 7, uma notícia que contradiz o manifesto de Goulart: “Zona Sul festejou com lenço branco e desfile de carros queda de Goulart”. Na intriga da narrativa jornalística, vemos, então, que Goulart “vai resistir”, mas o “fantasma já foi espantado”: no Rio, a “Zona Sul já festejou sua derrota” e os “Paulistas jogam papel e cantam Hino na queda do Presidente Goulart”57. No dia 3 de abril, a narrativa encontra sua estabilização e melhoramento. No JB, a manchete é “Goulart toma rumo desconhecido e o Brasil volta à normalidade”. Em OESP, o noticiário nacional passa a ocupar a capa, com o título: “Democratas dominam toda a nação”. O “movimento” consolida-se como “revolução”. A Marcha da Família transforma-se em Marcha da Vitória. Sob esse aparente apaziguamento, outras tramas começam a se desenrolar, revelando, a partir da deposição de Goulart, novas divisões e agrupamentos nas forças políticas que vão lutar pelo poder a partir daí. São muitos os pedidos de uma “limpeza” na política, como em “Lacerda pede ao Ministro da Guerra afastamento de elementos comunistas”58. A forte onda de repressão, que já se havia manifestado nos primeiros momentos do golpe, dá nítidos sinais de que se estabeleceria de forma definitiva.

56 FANTASMA foi espantado mas ainda pode voltar, adverte Carlos Lacerda. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7. 57 PAULISTAS jogam papel e cantam Hino na queda do Presidente Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7. 58 LACERDA pede ao Ministro da Guerra afastamento de elementos comunistas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 3 abr. 1964, p. 4.

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3.1.2. Personagens

Neste tópico, centramos a análise na construção das personagens na intriga do Golpe Civil-Militar de 1964 construída pelas narrativas dos jornais brasileiros de nosso recorte. Em uma primeira abordagem, podemos afirmar que as Forças Armadas são as personagens protagonistas na narrativa do golpe de 1964 produzida pela imprensa brasileira analisada em nosso recorte. Trata-se de uma personagem incorporada por múltiplas máscaras, sendo que todas elas têm em comum a representação da salvação, da ordem, do poder normalizador, restaurador do equilíbrio. Alguns nomes em particular tiveram destaque nos jornais, como os generais Mourão Filho, Castelo Branco e Kruel, mas sem personalismos, ao gosto do grupo de militares que tomou a frente na conspiração contra o governo Goulart. Uma das marcas do governo militar brasileiro foi o rechaço ao culto da personalidade. “Castelo estabeleceu o precedente para os subsequentes governos militares: nada de caudilhos e sucessão somente por consenso militar” (SKIDMORE, 2000, p. 134). O uso de léxico coletivo para referir essa personagem fica claro na análise dos títulos dos jornais brasileiros: Clube Militar, Clube Naval, Forças Armadas, oficiais, oficialidade, Marinha, almirantado, marcha, I Exército, II Exército, tropas, militares, exército, sargentos, FAB (Força Aérea Brasileira), líderes militares, entre outros. Por outro lado, e de acordo com a teoria da narrativa que admitimos nesta tese, podemos afirmar que, na narrativa do golpe de 1964, as Forças Armadas – seja por motivo factual (conspiração), seja por ímpeto imaginário (os valores que são atribuídos à sua ação – ordem, equilíbrio, segurança, legalidade) – desempenham, simultaneamente, os papéis de narrador e de autor. “Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso” (REIS; LOPES, 2011, p. 257). Não tratamos aqui de narrativa ficcional, porém, a divisão de funções (ou sua sobreposição) citadas por Reis e Lopes (2011) servem ao mundo diegético projetado pela narrativa jornalística analisada. Carlos Castello

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Branco, colunista do JB, dá algumas pistas que corroboram essa interpretação: “Decorreram 55 horas entre a Proclamação do Governador Magalhães Pinto e o discurso de posse do Sr. Mazzilli no Palácio do Planalto, desfecho de drama cuidadosamente redigido no Estado-Maior do Exército pelo General Castelo Branco e seus assessores”59. Em nosso entendimento, o convite à imagem do drama redigido é bastante pertinente, porque, se pensarmos no golpe de 1964 como um acontecimento fruto de conspiração – ainda que autores como Fico (2004, p. 55) afirmem que a ação militar “não foi inteiramente planejada” – não podemos ignorar que a performance midiática fez parte da estratégia dos oficiais golpistas. Assim, as ações militares podem ser encaradas como enunciações simultaneamente autorais e narrativas que influenciaram a construção da narrativa da imprensa, ou seja, não podem ser encaradas como simples “citações” ou “fontes” jornalísticas, subvertendo a hierarquia da narrativa jornalística proposta por Motta (2013). Lembramos a formação de uma “Cadeia da Liberdade”, a trincheira midiática do movimento anti-Goulart: “A Cadeia da Liberdade, formada por todas as estações de rádio de Minas e São Paulo, informou esta madrugada que as tropas do II Exército estavam prontas para marchar sobre o Rio de Janeiro”60. Por meio da narrativa que analisamos, vemos que, naquele momento, o movimento das Forças Armadas vestia-se de intenções patrióticas de salvação nacional. Era uma força coesa em meio a uma situação de incertezas e que canalizou os esforços de todos aqueles que aspiravam à queda de Goulart. A questão militar foi a justificativa narrativa perfeita para o golpe de 1964, porque jogou o Presidente para a posição de antagonista, o ator “que de algum modo entrava a realização do programa narrativo do sujeito” (REIS; LOPES, 2011, p. 23), ou seja: aquele que quer provocar divisão em unidades inquebrantáveis: primeiro, a Constituição, segundo, as Forças Armadas. Nesse sentido, é importante compreendermos de que forma a imprensa de nosso recorte se relacionou com a narrativa das Forças Armadas. Em primeiro lugar, destacamos que a comunicação entre essas esferas, nos

59 BRANCO, Carlos Castello. 4 meses de “complot”, 55 horas de ação. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 3 abr. 1964, p. 4. 60 SÃO PAULO adere a Minas e anuncia marcha ao Rio contra Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º abr. 1964, p. 1.

112 momentos decisivos do golpe, parece ter sido unilateral, porque as citações que aparecem nos jornais, quando vindas de militares do movimento, são quase sempre recolhidas de manifestos ou notas oficiais. Diferente dos líderes civis, como Lacerda e Magalhães Pinto, que se dedicaram a um contato mais aproximado da imprensa, os militares foram mais cautelosos e centralizadores na comunicação. A exceção são duas matérias do JB com os Generais Olímpio Mourão Filho e Carlos Luís Guedes na edição de 2 de abril. Esta última dá a ver uma face inusitada dos acontecimentos, revelando que, ao menos para este líder militar, houve uma forte influência dos astros na determinação da data de início do movimento. “General Guedes pensou em adiar movimento em Minas para evitar lua minguante”, evoca elementos esotéricos em meio ao imaginário de racionalidade e pragmatismo que permeou a narrativa da imprensa que analisamos aqui sobre os oficiais. Os dois primeiros parágrafos do texto compõem um retrato do general como uma personagem simultaneamente sensível e forte, que une refinamento a uma estratégia militar enérgica e precisa: a notícia descreve uma cena em que, ao mesmo tempo em que cuida de seu roseiral, o general conversa com colegas de farda e compara a ação militar em curso às blitzkrieg (“guerra-relâmpago”) empreendidas pela Alemanha nazista do fim dos anos 1930:

O General Carlos Luís Guedes, Comandante da ID-45, revelou, ontem, ao contar a história do movimento revolucionário eclodido em Minas, que ele só foi deflagrado com antecipação de um dia porque era necessário pois “minha intenção era não começar nenhum movimento na lua minguante”. Durante toda a tarde, o General Carlos Luís Guedes foi visitado por oficiais solidários, confessando a eles, enquanto tratava das rosas de seu jardim, que a “operação foi semelhante às blitzs da Alemanha contra a Polônia, com a diferença de que, até o momento, não foi disparado um só tiro”.61

A entrevista com Mourão também reforça o imaginário de um movimento (o qual, ressaltamos, já aparece aqui qualificado como “revolucionário”) coeso, ordeiro, cirúrgico, a começar pelo título: “General Mourão diz que revolta é contra a desordem”. Goulart é uma personagem apresentada, como vimos, como

61 GENERAL Guedes pensou em adiar movimento em Minas para evitar lua minguante. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3.

113 antagonista. Sua fala, nos jornais brasileiros de nosso recorte, quando não simplesmente suprimida ou silenciada, é tratada com deboche, desprezo, desrespeito. Goulart é caracterizado como: caudilho, inepto, irresponsável, comunista, ilegítimo. O modelo político para enquadrá-lo também é muito variado: ditador castrista, ditador peronista, populista, herdeiro de Vargas, falso trabalhista. A charge de Edmondo Biganti62 publicada na página 4 de OESP de 1º de abril, mostra um Goulart despreocupado, alheio ao perigo que corre ao fumar um charuto (cubano?) sentado sobre um barril de pólvora.

Figura 3: Charge publicada em OESP, 1 abr. 1964, p. 4.

No editorial de 31 de março de 1964, o JB hostiliza o presidente de várias formas, inclusive em termos pessoais: “homem perdido”, “homem temperamentalmente um tanto imprevisível”, “timoneiro perdido na tormenta, cavando o túmulo da democracia e o seu próprio”, “com sua vaidade tão ferida pelas acusações de que não governa”, “devorador de Ministros e de

62 O italiano Edmondo Biganti (1918-2000) foi cartunista político de OESP entre 1956 e 1984. GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (1965-1979). Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

114 auxiliares”63. Nos editoriais de 2 de abril, refere-se ao presidente como uma doença (“extirpação do S. João Goulart”, “infecção janguista”64) e denuncia a

[...] incompatibilidade do ex-Presidente João Goulart com o regime representativo. [...] O Sr. João Goulart somente quis ser fiel às suas ambições de poder, modeladoras exclusivas das atitudes que o perderam e tornaram irrecuperável para a democracia com disciplina e liberdade. “O legado do ex-Presidente João Goulart é o mais sinistro: divide-se ele entre a estagnação e a ruína”65.

Nesta mesma edição, no espaço noticioso, JB refere-se ao “Sr. João Goulart” como “ex-presidente”. Utiliza, sobretudo, estratégias de objetivação para compor os textos que se referem a essa personagem. Na página 2, a nota sobre a saída de Jango do Rio de Janeiro enfatiza, no título, o modelo do avião – da companhia britânica A. V. Roe and Company – utilizado para a viagem: “Goulart partiu num Avro”. Dá conta, ainda, que a decolagem ocorreu às 12h45min, com destino a Brasília – novamente, confirma-se sua presença em solo nacional – e “A bagagem do ex-presidente consistia de uma mala grande de roupas e vários volumes e embrulhos que pareciam conter documentos”66 (grifo nosso). O antagonista sai de cena: a grande mala de roupas indicaria uma partida definitiva? No editorial “Passado”, de 2 de abril, o JB dedica-se a expressar, com aspirações à produção de um “sentido histórico”67, seu rechaço por aquilo que chama de “janguismo” e que considera, assim como o “getulismo”, uma vertente pervertida do trabalhismo. “As denominações indicam logo o significado personalista do trabalhismo brasileiro. Dois nomes simbolizaram uma ideia social. Personalismo e ideologia incipientes. Trabalhismo e paternalismo”68. Porém, ao mesmo tempo que critica o personalismo, o JB se apropria dessa mesma lógica para analisar as reformas conduzidas por Goulart, tomando como critério o fato de que era um latifundiário:

Ao reformista latifundiário e agrário o trabalhismo teria de ser mais instrumento de ação política e posse de Poder, do que sentimento

63 Desgoverno e ilegalidade. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 6. 64 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 5. 65 PRESENTE. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 66 GOULART partiu num Avro. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 67 PASSADO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 68 PASSADO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5.

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original e sincero de uma liderança nascida nas duras condições da sociedade industrial-urbana. O reformista-latifundiário teria de ser o trabalhista oportunista, de intuitos caudilhescos, ávido de poder e inapetente da coisa administrativa, planejada e criadora.69

Jango não nega o legado de Vargas, nem mesmo em seus momentos finais, como indica o manifesto divulgado antes do embarque em Brasília, com rumo a Porto Alegre, na qual elenca as principais medidas de seu governo: “Tais medidas e tudo o mais, consubstanciados na política autenticamente popular, decorrente de minha fidelidade ao diário de Vargas e aos compromissos de meu passado em lutas nacionalistas [...]”70. Para o JB, é importante “que não se confundam reformas com João Goulart, transformando um falso líder num mito, um agitador num salvador”71. As manifestações virulentas do maior adversário político de Goulart, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, também têm espaço: para o governador da Guanabara, Goulart é o “maior latifundiário e ladrão do Brasil”72. Vemos, assim, que entre a imprensa brasileira de nosso recorte, Goulart foi alvo de uma intensa campanha difamatória. Abordamos, até aqui, os protagonistas da intriga. A partir de agora, vamos observar outros atores, secundários nas narrativas analisadas, que aparecem afastados das manchetes e páginas principais, mas que estão diretamente envolvidos nos acontecimentos: sindicatos, trabalhadores, estudantes e o povo em geral. Os jornais brasileiros de nosso recorte dão a ler a marcada divisão política da sociedade brasileira naquele momento. OESP de 31 de março noticia a ocorrência de manifestações de tendências contrárias em Maceió; uma delas, um “comício comunista”, a outra, uma “concentração democrática”. A descrição dos fatos demonstra a forma violenta e autoritária com que as autoridades – tanto o executivo, ao proibir manifestações, quanto a polícia, ao reprimi-las com uso de força – usavam para intervir nas mobilizações sindicais:

69 PASSADO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 5. 70 GOULART lança manifesto para afirmar que vai resistir. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7. 71 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 72 FANTASMA foi espantado mas ainda pode voltar, adverte Carlos Lacerda. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7.

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Terminou em tumulto o comício comunista em favor das “reformas de base” realizado anteontem em Maceió. A reunião, à qual deveriam comparecer o governador Arraes e o cunhado do presidente da República, tinha sido proibida pelo governador do Estado, que vetara também a realização de concentração democrática marcada para o mesmo dia, em face da situação criada pelo movimento dos marinheiros. Os organizadores da concentração democrática, logo que receberam o comunicado oficial da proibição, manifestaram-se de acordo com a ordem, acatando-a plenamente. Todavia, os dirigentes dos sindicatos, orientados pelo CGT, decidiram realizar o comício comunista à revelia, na sede do Sindicato dos Trabalhadores da Petrobrás. Quando discursava o terceiro orador, a polícia interveio e dissolveu a reunião com jatos de água e gás lacrimogêneo. Houve corre-corre, algumas prisões e vários feridos.73

De Belo Horizonte, são relatadas pelo JB de 1º de abril as medidas tomadas pela Polícia e pelo Exército logo nas primeiras horas do golpe, as quais desvelam a natureza dos acontecimentos:

A Polícia Militar de Minas, cujo comando está dividido com o Exército, totalizando 18 mil homens, ocupou a Estação Rodoviária, sindicatos, prédios federais, depósitos de gasolina; prendeu líderes, um deputado, vereadores; e, para completar deslocou 100 ônibus com tropas embaladas para Juiz de Fora, dispondo, na BR-3, barreiras para controlar o tráfego. [...] Depois de tomada a Rodoviária, sucederam-se as ocupações. Pela ordem foram tomados: Sucursal do Diário Carioca, Sucursal da Última Hora, Sindicato dos Bancários, depósitos de gasolina, empresas de transporte.74

A matéria dá conta, ainda, da chamada “operação gaiola”, comandada pelo General Luís Carlos Guedes, que efetuou a prisão de líderes sindicais e estudantis e da censura (usando mesmo esta palavra) a estações de rádio, redações de jornal e central de telex dos Correios, incluindo a prisão do redator-chefe do jornal Última Hora, Ênio Fonseca. JB procurou os motivos das medidas adotadas pela Polícia Militar e recebeu a resposta de que seriam “medidas preventivas, para evitar agitações na região, vigiando os elementos que geralmente promovem tumultos e seguindo todos os seus passos” 75. Diversos episódios de violência envolvendo civis são relatados nos

73 DISSOLVIDO em Maceió comício comunista. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 4. 74 POLÍCIA e Exército ocupam Minas e rumam para fronteiras. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º de abril de 1964, p. 3. 75 POLÍCIA e Exército ocupam Minas e rumam para fronteiras. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º de abril de 1964, p. 3.

117 jornais brasileiros de nosso recorte. Demonstram, por um lado, o ambiente tenso de confronto e de forte repressão que tomava conta da sociedade brasileira naquele momento. A notícias demonstram que defensores do golpe praticantes de ilícitos graves, como a invasão, depredação e incêndio da sede do jornal Última Hora, viam a polícia como aliada. JB, ao noticiar o empastelamento sofrido por este jornal em 1/4/64, no Rio, informa que, “Em meio ao quebra-quebra, alguém gritou que a Polícia estava chegando, mas um dos líderes da invasão retrucou: – Só uma Polícia pode aparecer, a do Estado –, e esta é nossa aliada”76. Por outro lado, de acordo com o JB, uma manifestação de estudantes, que faziam um enterro simbólico do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, nas imediações da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro teve desfecho trágico, contando um morto e sete feridos77. Como era comum ao jornalismo na época, a publicação trazia detalhes como idade, profissão, estado civil e até mesmo o endereço residencial das vítimas (aqui entendidas como estratégias de objetivação). Nenhum dos feridos pelo tiroteio, promovido pela Polícia da Aeronáutica em pleno Hospital Souza Aguiar, onde muitas pessoas tentaram se refugiar após a chegada dos agentes de segurança, pertencia ao grupo de estudantes que protestava. O morto foi um menino negro (“menor de cor preta, com 12 anos presumíveis, que se encontrava no meio dos invasores do hospital. Este menor recebeu um tiro no peito e faleceu quando recebia os primeiros socorros”78). Perto dali, houve, ainda, violento confronto entre populares contrários ao golpe e oficiais do Exército em frente ao Clube Militar, na Cinelândia79. Os oficiais atiraram e, de acordo com o JB, ao menos seis pessoas ficaram feridas e uma morreu. O título da notícia, apesar da tragédia, é: “Populares tentam agredir oficiais do Exército e depredam Clube Militar”. Na página 8 desta mesma edição do JB (2 de abril) está uma seleção de fotos e, entre elas, duas

76 GRUPOS exaltados atacam jornal “Última Hora” aos gritos de “Viva Lacerda”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 2. 77 CHOQUE de estudantes com policiais resulta em um morto e sete feridos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 2. 78 CHOQUE de estudantes com policiais resulta em um morte e sete feridos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 2. 79 POPULARES tentam agredir oficiais do Exército e depredam Clube Militar. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7.

118 captadas nessa ocasião. Na primeira, os populares aparecem protestando às portas do Clube Militar, com a seguinte legenda: “De tarde, na Cinelândia, o povo não gostou do boletim que um oficial distribuiu a favor das forças rebeldes. E com gritos e pedras nas mãos, lançou-se contra o Clube Militar”. Ao lado, uma segunda imagem, agora com as pessoas correndo: “O ataque ao Clube Militar durou pouco. Mas foi só quando os soldados responderam as pedradas com tiros que o povo começou a correr”80. Na Praia do Flamengo, a sede da UNE foi incendiada, fato relatado em uma pequena nota em meio às notícias de festa na Zona Sul do Rio: “Até às 17.30 horas o Corpo de Bombeiros ainda não havia chegado ao local, onde apenas populares tentavam debelar as chamas”81. Em Recife, o JB de 2 de abril dá conta de cerca de 120 pessoas, entre membros de sindicatos, políticos e estudantes presos e transportados para Fernando de Noronha. O governador Miguel Arraes teve seu impeachment aprovado pela Câmara e deixou o Palácio do Governo sob custódia do Exército. As Forças Federais, ao dispersarem um protesto no centro da cidade, mataram dois estudantes de engenharia82. Os estudantes Jonas José de Albuquerque Barros e Ivan da Rocha Aguiar foram anistiados em 2014 (CARAVANA, 2014). A tentativa de reação da classe trabalhadora foi através da convocação de greve geral no dia 1º de abril:

A decisão da greve foi precipitada pela prisão ontem, no Sindicato dos Estivadores, de vários líderes sindicais pela Polícia Política da Guanabara. A Federação Nacional dos Marítimos, que decretou greve ontem à noite, denunciou o desaparecimento de quatro estivadores, um líder sindical de Vitória e do Sr. Antonio Pereira Filho, líder dos bancários83.

Na notícia sobre a greve, o JB abre espaço à manifestação do Partido Comunista Brasileiro. Ao contrário do que sugerem as demais menções do JB a este grupo em suas páginas, os comunistas reagem com equilíbrio,

80 À FRENTE ou na retaguarda, povo, Governo e soldados fizeram guerra. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 8. 81 ZONA Sul festejou com lenço branco e desfile de carros queda de Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7. 82 EXÉRCITO prende Arrais, Vice-Governador assume e morrem dois estudantes. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 6. 83 DEFLAGRADA greve geral no País. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º abr. 1964, p. 2.

119 responsabilizando “os grupos radicais pela precipitação da crise política”. Tacham de “imprudente a tática utilizada por líderes extremados” e, por fim, o PCB considera que “tal atitude conduzirá à união do centro com a direita, neutralizando assim a ação dos setores mais moderados da esquerda”, o que “levará à deposição do Presidente da República com lastro na opinião pública”84. Nos sindicatos, o clima descrito pelos jornais era de patrulhamento e apreensão. No JB, a nota “Sede do CGT fechou às 16h”85 informa que a sede do Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT), que havia convocado uma greve geral, fechou mais cedo que o normal e que outros sindicatos, como CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria), Sindicato dos Gráficos e Sindicato dos Bancários também esvaziaram-se cedo. A sede do CGT, ainda de acordo com o jornal, foi patrulhada diversas vezes pela polícia ao longo do dia anterior. Percebemos, mais uma vez, pelo título da nota, as estratégias de objetivação que neutralizam ou esterilizam os fatos na composição da intriga jornalística. “Ônibus hoje é de graça” informa que entre 14h e 20h do dia 2 de abril a população do Rio não pagaria passagem de ônibus, “numa colaboração dos proprietários de ônibus durante a atual crise militar” a fim de que a população carioca possa se “locomover livremente”86. Apesar do tom aparentemente festivo, o Presidente do Sindicato dos Proprietários de Ônibus do Estado da Guanabara afirma que “Todos os motoristas que não se apresentarem ao trabalho serão demitidos”87. Há, neste caso, uma contraposição entre o respeito ao direito de ir e vir e o direito de greve dos motoristas, nos quais a solução autoritária (demissão) é naturalizada. De Minas, em entrevista ao JB, o General Mourão Filho explica a relação entre o movimento militar e os trabalhadores nesse Estado, recorrendo a uma suposta coesão entre as Forças Armadas e esta classe e também mascarando, através de uma projeção da “vontade” de todos os brasileiros, uma situação de exceção baseada em métodos autoritários:

84 DEFLAGRADA greve geral no País. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1º abr. 1964, p. 2. 85 SEDE do CGT fechou às 16h. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 86 ÔNIBUS hoje é de graça. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 87 ÔNIBUS hoje é de graça. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

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Afirmou, categoricamente, que em Minas Gerais não haverá greves, enquanto perdurar a situação de emergência e que o Código Penal Militar está em vigor para tempo de guerra e quem tentar chefiar greves ou fazer sabotagem será processado e punido de acordo com a lei. Trata-se, aliás – disse o General Mourão Filho – de uma proibição desnecessária, pois o povo de Minas Gerais, unanimemente, por todas as suas classes, inclusive o operariado mineiro, está apoiando o nosso movimento, que é de todos os brasileiros.88

Na mesma página, em “Um manifesto de 100 prisões”, o JB destaca, como sugere o título, um manifesto da Secretaria do Interior e da Justiça de Minas Gerais apoiando a ação política e militar iniciada naquele Estado e também uma declaração do delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de Belo Horizonte mencionando a ocorrência de mais de 100 prisões até as 16 horas do dia 1º de abril. A notícia relata o escárnio das autoridades e o clima de revanchismo em relação aos agentes políticos ligados ao governo Goulart, como no caso da prisão do deputado Sargento Garcia89:

O Delegado do DOPS, Sr. Fabio Bandeira, informou, ontem, que até às 16 horas, 26 investigadores, circulando em 12 radiopatrulhas, já efetuaram mais de 100 prisões, entre elas as dos Deputados Sargento Garcia e Sinval Bambirra. – As prisões foram feitas visando a evitar a agitação de movimentos grevistas, capazes de agravar a crise – afirmou o Sr. Fabio Bandeira que, ao referir-se à prisão do Sargento Garcia, acrescentou: “é uma honra tê-lo como hóspede”.90

Em nota avulsa da coluna Segunda Seção, o jornalista Wilson Figueiredo destaca a participação de mulher não identificada nominalmente, “que se declarava verdadeira representante da família brasileira: ‘Quem vos fala – dizia – é uma mulher que foi expulsa da favela. Que teve um dos seus filhos na Invernada de Olaria. E outra no campo de concentração de São Cristóvão”91. Trata-se de uma das únicas passagens, entre os jornais

88 GENERAL Mourão diz que revolta é contra a desordem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3. 89 Soldados, marinheiros e sargentos eram impedidos pela constituição de 1946 de exercerem cargos de representação parlamentar. Antônio Garcia Filho concorreu a um mandato de deputado federal pela Guanabara pelo Partido Trabalhista Brasileiro em outubro de 1962. Único sargento eleito e empossado, lutou para garantir os mandatos dos demais sargentos eleitos, mas cassados pelos tribunais regionais eleitorais. Foi cassado e teve seus direitos políticos suspensos por dez anos com base no Ato Institucional nº 1 em 9 de abril de 1964. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós-1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: . Acesso em: 16 dez. 2016. 90 UM MANIFESTO e 100 prisões. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3. 91 FIGUEIREDO, Wilson. Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 6.

121 analisados, que menciona a fala de uma personagem marginalizada. Essa menção traz à tona a realidade da violência no Rio de Janeiro naqueles meados dos anos 1960. A Invernada de Olaria foi um grupo ligado ao Departamento Estadual de Segurança Pública do estado da Guanabara, criado em 1962. Leitão (2014) descreve as atividades desse grupo e evidencia os grupos políticos aos quais ela era ligada:

[...] A Invernada também possuía licença para matar. Não raro pairavam sobre ela acusações de tortura, espancamentos e assassinatos (alguns deles por afogamento nos rios Guandu e da Guarda). Em novembro de 1964, o governador Carlos Lacerda não escondia o orgulho que tinha do departamento. Com a Invernada eu sei que posso contar, declarou à imprensa.

A Invernada também “cuidava” de presos políticos. Em 1962, Clodomir Morais, advogado das Ligas Camponesas, foi preso e submetido a tortura, inclusive por meio de pau-de-arara. Em depoimento à CPI instalada para averiguar as atividades do departamento, Morais lembrou: “[Durante o interrogatório] lembrava a minha condição de advogado e jornalista e a resposta era assim: ‘Esses é que nós queremos apanhar aqui’”. Denunciados, os detetives Felipe Matias Altério e João Martinho Neto, chefe e subchefe da Invernada, foram demitidos da Polícia após o episódio. Mas logo foram reintegrados à corporação: em 1º de abril de 1964, apareceram no Palácio Guanabara para defender Carlos Lacerda, durante o golpe civil-militar. Durante a ditadura, foi criada uma extensão da Invernada no Alto da Boa Vista e seus agentes seriam colocados a serviço do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), órgão de repressão do regime militar para a detenção de presos políticos. (LEITÃO, 2014, grifos nossos).

Sobre o citado Campo de Concentração de São Cristóvão não encontramos bibliografia. Registramos aqui essa ausência na expectativa de ela que gere interesse em outros pesquisadores. Não podemos deixar de mencionar que os jornais brasileiros registram com ênfase a reação dos apoiadores do golpe: lenços brancos e bandeiras nacionais estendidas, chuva de papel picado, buzinaços, vivas à democracia, especialmente na tarde do dia 1º de abril, na Zona Sul do Rio e na Zona Central de São Paulo. Em OESP, a Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade foi “A resposta do Rio”, e manifestou o repúdio à “‘cubanização’ do Brasil e em defesa do ‘Verde e amarelo, sem foice e sem martelo’”92.

92 A RESPOSTA do Rio. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2.

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3.1.3. Ruptura e repercussões midiáticas

Os acontecimentos políticos no Brasil mobilizaram e foram mobilizados pelas repercussões midiáticas. Lembramos que, de acordo com Nora (1978, p. 186), a informação, em nosso tempo, encontra-se “esquartejada entre o real e a sua projeção espetacular”, constituindo os meios de comunicação parte da própria existência dos acontecimentos. Além da projeção espetacular, o Golpe Civil-Militar de 1964 materializou-se também nas sedes físicas de alguns meios de comunicação, palcos de diversas ações violentas. O jornal Última Hora teve sua redação – na Rua Sotero dos Reis, perto da Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro – depredada e carros incendiados ao fim da quarta-feira (1/4/1964). JB noticiou os fatos na matéria “Grupos exaltados atacam jornal ‘Última Hora’ aos gritos de ‘Viva Lacerda’”. A ação de extrema violência foi caracterizada como “exaltação”. O texto sobre o Última Hora dá conta de ressalvar que as “dezenas de pessoas, empunhando a Bandeira Nacional e acenando com lenços brancos” foram cautelosas, pois só “realizaram a invasão às dependências do jornal depois de constatarem, através da ausência de reação às suas pedradas, que ninguém trabalhava na garagem e redação”93. Percebemos que neste caso o jornal opta por uma maior subjetivação do caso – relatando, inclusive, supostos diálogos entre os vândalos sobre a possibilidade de chegada da polícia – em contraposição às estratégias de objetivação (simples arrolar das vítimas) utilizadas para tratar do caso dos populares atacados a tiros pela polícia da Aeronáutica no Hospital Souza Aguiar simplesmente porque participavam (ou passavam próximo) de uma manifestação de estudantes, como vimos no tópico anterior. Há uma notória incoerência entre ação e repercussão nos dois casos, para a qual o JB opta por não apontar, nem mesmo na veemente nota (editorial) de repúdio ao ataque ao Última Hora94. Ocorre ainda a tentativa, por parte de fuzileiros navais, de impedir a circulação da edição do Jornal do Brasil de 1º de abril. Tentativa frustrada, na

93 GRUPOS exaltados atacam jornal “Última Hora” aos gritos de “Viva Lacerda”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 94 VANDALISMO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5.

123 primeira vez, pelo atraso – o jornal já estava distribuído – e, na segunda, na tarde do mesmo dia, resolvida através do diálogo com a direção do periódico, em tratativas relatadas em tom bem-humorado na coluna de Wilson Figueiredo na edição de 2 de abril:

À tarde apareceu no jornal, com metralhadoras mais volumosas do que na primeira ocupação, sob o comando de um sargento, uma patrulha incumbida de evacuar o prédio. [...] O sargento comandante subiu à direção da empresa e não demorou muito em humanizar-se no convívio iniciado pelo cafezinho. Daí a pouco lamentava a situação e transmitia a um dirigente da empresa a aflição que o consumia. Três dias que não falava à sua mulher, por força de uma prontidão que o deixava exausto. Ao convite para que usasse o telefone, fez a ligação e falou com a mulher, avisando-a de que tinha no bolso o soldo recebido na véspera, mas estava sem poder enviar-lhe o dinheiro para as despesas da casa. A empresa fez o oferecimento e daí a pouco um funcionário do jornal, num jipe da reportagem, levava num envelope o dinheiro. Daí a pouco chegava para o fuzileiro a ordem de retirada. O sargento agradeceu os favores e deplorou todos os episódios e as interpretações políticas que não traduzem por inteiro a alma de seus companheiros de farda.95

JB dá conta, ainda, dos incidentes envolvendo a Rádio Nacional e a Rádio Mayrink Veiga. Ambas, em um primeiro momento, foram ocupadas por fuzileiros navais, numa tentativa de formação de uma “Cadeia da Legalidade” aos moldes daquela que, durante a crise de 1961, garantiu a posse de Goulart depois da renúncia de Jânio Quadros96. “A ocupação foi feita de surpresa, tendo o oficial que comandava a operação chegado a uma das emissoras quando ainda eram transmitidas notícias e apelos de resistência ao que chamavam de ‘golpe contra a legalidade’” 97. Na Rádio Nacional haveria, a partir desse momento, um intenso movimento de perseguição política que resultou em mais de uma centena de funcionários afastados ou demitidos (AZEVEDO, s/d). A Rádio Mayrink Veiga, conhecida à época por transmitir os discursos de Leonel Brizola (então deputado federal mais votado da Guanabara), foi extinta pelo presidente Castelo Branco em 1965 (SIQUEIRA, s/d).

95 FIGUEIREDO, Wilson. Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 6. 96 EXÉRCITO ocupa a Nacional que sofreu vários danos e tira a Mayrink Veiga do ar. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 97 EXÉRCITO ocupa a Nacional que sofreu vários danos e tira a Mayrink Veiga do ar. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

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Assim, o golpe de 1964 também pode ser compreendido por meio dos fatos que tiveram como palco as rádios. A rádio Roquette Pinto, administrada pelo Estado da Guanabara, por exemplo, foi utilizada por Carlos Lacerda para ler o manifesto dos generais Castelo Branco, Decio Escobar e Arthur da Costa e Silva na manhã do dia 1º/4. Pouco tempo depois, o cristal da emissora foi retirado98. Lacerda serviu-se também da TV Rio como instrumento de comunicação. A cronologia dos fatos apresentada pelo JB em 2/4 leva a crer, inclusive, que as ações do então governador da Guanabara foram, em sua maioria, mediadas ou midiáticas. Ao longo do dia 1º de abril, entrincheirado no Palácio da Guanabara, empunhando uma metralhadora, Lacerda fez diversos pronunciamentos, especialmente através da TV Rio. Foi durante um deles que recebeu a notícia de que o exército estava saindo do Palácio das Laranjeiras para apoiá-lo no Guanabara. Sobre o fechamento das rádios Nacional e Mayrink Veiga, afirmou, de acordo com o JB: “Acabaram as mentiras. A Marinha de Guerra do Brasil calou as emissoras que estavam a serviço dos comunistas” 99. A mídia como administradora da verdade social está nos relatos das páginas dos jornais, pelas quais transparece a importância da mobilização discursiva na articulação da intriga dos acontecimentos:

Uma chuva de papel picado e explosões de centenas de foguetes marcaram, ontem, na Capital de Minas, as comemorações das notícias que anunciavam a queda do Presidente João Goulart, logo após a tomada das emissoras que se mantinham fiéis ao Governo na Guanabara. Apesar de não ter havido passeatas, enormes filas de automóveis percorreram as ruas centrais de Belo Horizonte, buzinando e comemorando a vitória anunciada por todas as emissoras de rádio.100 (grifos nossos).

A coluna Segunda Seção do dia 2 de abril, assinada pelo jornalista Wilson Figueiredo, também indica a profunda conexão entre os fatos e sua mediação. Informa que, enquanto a Rádio Nacional, a Mayrink a Continental e

98 LACERDA viveu sua maior emoção quando tanques foram dar-lhe cobertura. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 99 LACERDA viveu sua maior emoção quando tanques foram dar-lhe cobertura. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2. 100 MINAS recebe com desfile de carros, foguete e chuva de papel vitória contra Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 4.

125 a Ministério da Educação mantiveram-se no ar, ainda houve condições de negociação de uma trégua entre o governo Goulart e os militares. Ao descrever o clima no Rio de Janeiro, a conexão entre as notícias e os humores da cidade fica evidente:

Houve um momento em que a fisionomia urbana do Rio sofreu grande metamorfose: foi quando a TV Rio entrou no Forte de Copacabana e passou a transmitir as imagens subsequentes a uma ação militar, a primeira que chegava ao conhecimento dos cariocas, dando-lhes a noção de que se rompia o sentimento asfixiante da situação indefinida. A partir daí, o silêncio que passou a marcar nos aparelhos de rádio o lugar ocupado pela Rádio Nacional e pela Mayrink Veiga deu relevo à certeza de que o rumo dos acontecimentos mudava. As notícias se sucediam, num atropelo que começou na avidez com que eram ouvidas e passadas adiante, para despejar nas ruas de toda A Zona Sul uma multidão que estava acuada dentro de casa, depois da madrugada indormida junto aos aparelhos de rádio e a manhã sem sol, com filas de aflição junto aos postos de gasolina e armazéns fechados pela greve. Antes de ir às ruas, a Zona Sul debruçou-se às janelas. Pedaços de papel lançados do alto e automóveis com buzinas e lenços brancos começaram a quebrar a tensão acumulada noite a dentro e mantida durante o dia pelas estações de rádio, empenhadas em convocações sindicais e estudantis. Nem todos dispõem em casa de rádios capazes de captar as estações de Minas e São Paulo: os transistores tornaram os cariocas dependentes das estações mais próximas. Na Guanabara e no Estado do Rio, as emissoras que podiam transmitir notícias estavam todas na faixa da Rede da Legalidade. As outras, censuradas. Quando foram caladas a Nacional e a Mayrink, as notícias se precipitaram atrás dos fatos, até se encontrarem afinal na constatação de que não havia nada a fazer, além da comemoração.101 (grifos nossos).

É interessante a constatação do jornalista, ao afirmar que as “as notícias se precipitaram atrás dos fatos” e, assim, só restava a comemoração. A consolidação do golpe parece ser favorecida por um jogo no hiato do tempo administrado pelos meios de comunicação e seu recorte temporal e espacial: a realidade, naquele momento, encontrava-se no cruzamento entre o silêncio eloquente da Rede da Legalidade e o barulho das buzinas dos automóveis da Zona Sul do Rio:

Assim que as rádios começaram a transmitir que o comando do I Exército decidira suspender suas manobras, surgiram nas janelas de edifícios das principais ruas de Copacabana e Leme inúmeras pessoas agitando lenços brancos e jogando papel picado. [...] Em

101 FIGUEIREDO, Wilson. Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 6.

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todos os lares, os rádios e televisões se encontravam ligados e a alegria tomou conta de todos quando a TV Rio iniciou a transmissão do manifesto do Governador Carlos Lacerda”102.

Em São Paulo,

A notícia do afastamento do Sr. João Goulart da Presidência da República foi recebida com grandes manifestações pelo povo paulista [...]. As notícias, captadas pelos paulistas através de uma cadeia de rádio e televisão, provocaram outras manifestações populares: carnaval na zona central de São Paulo, missas nos bairros e até um comício-relâmpago na Praça da República, realizado por estudantes das Universidades de Mackenzie e Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.103

A percepção da dimensão midiática do golpe ficou expressa também na edição da página 16 do JB de 1º de abril, composta por fotos e uma charge: cercada por imagens do Palácio Guanabara, onde o governador Carlos Lacerda ficou entrincheirado, e do Palácio das Laranjeiras, onde o Presidente Goulart acompanhou parte da crise antes de voar para Brasília, está uma charge que retrata o clima de apreensão pelas notícias no Rio de Janeiro: até o Cristo Redentor ficou ligado no radinho de pilha:

Figura 4: Jornal do Brasil, 1 abr. 1964, p. 16.

102 ZONA Sul festejou com lenço branco e desfile de carros queda de Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 7. 103 PAULISTAS jogam papel e cantam Hino na queda do Presidente Goulart. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7.

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Os jornais de nosso estudo demonstram-se absolutamente conscientes de sua posição privilegiada de fala, colocando-se, inclusive, no lugar de autoridade. No editorial “Presente”, de 2 de abril, o JB afirma:

Considera-se o Jornal do Brasil em condições absoluta de autoridade para pregar a estrita solução legal, depois de reiteradamente e à custa dos maiores riscos, declarara a incompatibilidade dos ex- Presidente João Goulart com o regime representativo”104.

Para além da participação direta da mídia nacional, outro aspecto interessante da face midiática do processo de ruptura institucional em 1964 no Brasil pode ser observado através da seleção e da edição das repercussões internacionais (oficiais, diplomáticas ou da imprensa) sobre o golpe de Estado. Interessaram aos jornais de nosso recorte, sobretudo, as manifestações oriundas dos Estados Unidos e da Europa. Já na edição de 31 de março, o JB informa, em nota, que o embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, foi obrigado a cancelar uma viagem a Alagoas em virtude da crise política no país. Os motivos da visita do embaixador ao estado do nordeste dão acesso à extensão da influência dos Estados Unidos no Brasil naquele momento. Gordon viajaria às cidades de Maceió e União dos Palmares. Na primeira, participaria da inauguração da Vila Presidente Kennedy; na segunda, da solenidade de abertura do programa de habitações da Aliança para o Progresso. Gordon foi substituído por Jack Kubish, diretor na Agência para o Desenvolvimento Internacional, a USAID105. Com o golpe consolidado, os jornais de nosso recorte dão conta do pronto reconhecimento do novo governo brasileiro pelo governo americano. Em mensagem a Ranieri Mazzilli, publicada na íntegra pelo JB, o presidente Johnson parabeniza a solução das dificuldades políticas e econômicas do país “dentro da democracia constitucional e sem conflito civil”. O líder americano afirma, ainda, que antecipa a “intensificação mútua de nossas cooperações nos interesses do progresso econômico e da justiça social para todos” (grifo nosso), trecho no qual o JB se inspira para compor o título: “Johnson informa a Mazzilli

104 PRESENTE. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 105 CRISE impede Gordon de ir a Alagoas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 2.

128 que vai aumentar a ajuda ao Brasil”106. OESP repercute esta mesma mensagem em “Calorosos votos de Johnson a Mazzilli; sem alteração as relações e a ajuda econômica”107. A matéria no Estado dá acesso a uma certa dubiedade nas manifestações oficiais americanas. Apesar do reconhecimento “caloroso” de Johnson, o Departamento de Estado prefere medir as palavras e afirma que as relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos continuam, “embora os funcionários [do Departamento de Estado] não estejam certos [sobre] quem é o atual presidente”:

Interrogado sobre quem os Estados Unidos consideram ser o presidente do Brasil, o secretário de Imprensa do Departamento de Estado, Robert McCloskey, respondeu: “Em virtude de incerta situação no Brasil, não desejo fazer nenhuma declaração adicional”. 108

A repercussão internacional é amplamente destacada por OESP no momento da consolidação do golpe. Na edição de 3 de abril, abre espaço na capa para um arrazoado da reverberação dos acontecimentos (a “vitória”) na imprensa estrangeira, sob o título “Repercute no Exterior a vitória”. O texto dá a ler um descontentamento com algumas coberturas – que se explicará nas páginas internas, especialmente em relação à imprensa gaulista na França – e evidencia um posicionamento de inferiorização da América Latina:

Nem sempre vista e comentada com a devida objetividade, em muitos casos por ter a notícia chegado quase de surpresa a países cujos órgãos de informação de modo geral ignoram a evolução dos acontecimentos políticos deste Hemisfério, a revolução que pacificamente afastou do Brasil o perigo comunista despertou, pelo menos, em toda parte, a intuição de que não se tratava de mais um dos já famosos “pronunciamentos” latino-americanos. (grifo nosso)109

A imagem de “república de bananas” surge como dado, já que OESP parte do pressuposto de que a informação sobre a política neste Hemisfério seria ignorada pelo mundo do Norte, apesar das repetidas notícias publicadas

106 JOHNSON informa a Mazzilli que vai aumentar a ajuda ao Brasil. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 8. 107 CALOROSOS votos de Johnson a Mazzilli; sem alteração as relações e a ajuda econômica. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2. 108 CALOROSOS votos de Johnson a Mazzilli; sem alteração as relações e a ajuda econômica. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2. 109 REPERCUTE no Exterior a vitória. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964.

129 nesse periódico dando conta de que a América Latina seria o palco principal da Guerra Fria no mundo e que a vitória dos militares brasileiros tem o “profundo significado de um movimento destinado a impedir que o comunismo internacional [...] conquistasse um ponto-chave da América Latina, do qual facilmente poderia partir para a conquista de todo o resto do Continente”110. Nesse sentido, considera que a imprensa da América Latina tem “naturalmente melhores condições para analisar com objetividade os acontecimentos dos últimos dias” e cita o Chile como exemplo. Neste ponto, destacamos dois aspectos: o primeiro, o reconhecimento da objetividade como um dos mais elevados valores do jornalismo e, por consequência, a revelação do significado desse valor na avaliação de OESP; o segundo, a natureza da seleção das publicações a repercutir em suas próprias páginas, ou seja, que tipo de reconhecimento internacional era interessante naquele momento. Do Chile, OESP destaca a cobertura do El Mercurio, o maior jornal de Santiago naquele momento, o qual caracteriza como “independente”. El Mercurio foi amplamente financiado pelo governo americano como estratégia para, desde 1963, garantir a eleição do democrata cristão Eduardo Frei Montalva como presidente do Chile e, mais tarde, em 1973, para retirar do poder através de um golpe militar o socialista Salvador Allende. De acordo com o Relatório do Select Committee to Study Governmental Operations sobre ações secretas no Chile entre 1963 e 1973111, “A mais extensa atividade de ação secreta no Chile foi a propaganda. Era relativamente barato. [...]. De longe, a maior e mais significativa instância de suporte para uma organização de mídia foi o dinheiro fornecido ao El Mercurio, o maior diário de Santiago, pressionado durante o regime de Allende” (p. 7-8, tradução nossa). Esse relatório traz detalhes (inclusive valores) sobre as relações entre a CIA e esse grupo de mídia no Chile, demonstrando um alto grau de manipulação editorial e revelando um modo de operação específico em relação à mídia. Não podemos afirmar – e nem encontramos fontes que o façam – que esse mesmo tipo de influência tenha ocorrido no Brasil em 1964.

110 REPERCUTE no Exterior a vitória. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964. 111 O documento completo está disponível no site da Inteligência do Senado americano. “The most extensive covert action activity in Chile was propaganda. It was relatively cheap. By far, the largest-and probably the most significant-instance of support for a media organization was the money provided to El Mercurio, the major Santiago daily, under pressure during the Allende regime.” Disponível em: . Acesso em: 9 dez. 2016.

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Porém, podemos sim observar que a relação de citação entre jornais nacionais e estrangeiros em eventos de ruptura institucional (aos quais é caro e, muitas vezes, definitivo o reconhecimento internacional) pode explicitar relações de poder e também indicar a partilha de determinados terrenos ideológicos entre grupos midiáticos. Sintomaticamente, na visão de El Mercurio, havia um “movimento para introduzir o comunismo no Brasil” 112. Sobre os jornais de países comunistas, OESP não cita nenhum nominalmente, mas afirma que a imprensa, controlada por seus governos, “não esconde sua desilusão perante a grande oportunidade que o comunismo perdeu no Brasil” e que oferece uma “reedição dos velhos chavões da intervenção norte-americana no País” 113. JB faz uma seleção de jornais conservadores para demonstrar a repercussão internacional dos acontecimentos no Brasil. O diário carioca, ao cobrir a repercussão da crise nos Estados Unidos, demonstra que, na dúvida, assimila a versão mais alarmista e joga com as declarações das fontes. Em “Estados Unidos mudam sua opinião e já temem que o comunismo domine o Brasil”, o jornal sobrepõe a declaração de “um alto funcionário do Departamento de Estado” americano a um relatório do próprio Departamento. A declaração e o relatório se contradizem. O funcionário afirma haver “graves preocupações quanto à sobrevivência da democracia no País” e que a “influência comunista é cada vez maior”. Já o relatório afirma que “apesar da situação crítica do Brasil, existem escassas possibilidades de que o comunismo domine o País em um futuro previsível”114. A rigor, a declaração do funcionário não indica explicitamente que o fim da democracia corresponda ao fato de que “o comunismo domine o Brasil”, mas sim supõe que a crise pode levar, de alguma forma, ao fim do regime democrático, o que efetivamente ocorreu, mas não pela via “comunista”. Ainda dos Estados Unidos, JB repercute o conservador Washington Star, o qual não tem pudores para sugerir a solução para a crise brasileira. O periódico afirma, sem meias-palavras, em trecho de editorial reproduzido pelo

112 REPERCUTE no Exterior a vitória. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 1. 113 REPERCUTE no Exterior a vitória. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 1. 114 ESTADOS Unidos mudam sua opinião e já temem que o comunismo domine o Brasil. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 4.

131 jornal brasileiro: “aqui está uma situação na qual um bom e efetivo golpe de estado, à velha maneira, por líderes militares conservadores, pode bem servir aos melhores interesses de todas as Américas”115. A 3 de abril, OESP apresenta uma seleção das avaliações de jornais norte-americanos frente à crise no Brasil. Do The New York Times, destaca, do editorial do dia anterior, a avaliação de que Goulart exercia uma influência destrutiva que levava o país ao caos, ainda que seus inimigos não pudessem comprovar que ele orientava o Brasil para o comunismo116. Para o jornal norte- americano, os eventos eram prova de que as Forças Armadas eram os árbitros da política brasileira desde o início da República, em 1889. Em trecho inicial do artigo, o qual OESP não selecionou em sua edição, está a seguinte afirmação: “João Goulart era e é um esquerdista, uma espécie de socialista cor-de-rosa de gabinete. Mas seu problema principal é sua incorrigível ineficiência”117 (tradução nossa). Da Europa, JB especula as possíveis consequências da crise na Marinha na renegociação da parte europeia da dívida externa brasileira. O então Ministro da Fazenda Nei Galvão, regressado de Genebra há poucos dias, onde participara da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), havia aberto negociações para reescalonamento da dívida. O encontro na Suíça foi o primeiro a dar espaço aos países em desenvolvimento e as discussões geradas abriram “caminho para o estabelecimento de um sistema de preferências em favor dos países em desenvolvimento sem obrigação de reciprocidade” (ALMEIDA; CHALOULT, 1999). Após o retorno do Ministro, parte da equipe do governo seguiu na Europa para tratar do caso da dívida brasileira. Na matéria, JB afirma que a crise na Marinha pode retardar as negociações, além de passar uma imagem de instabilidade política aos credores. Com esse viés, passa a analisar a repercussão do caso nos jornais parisienses. Faz uma seleção de folhas

115 “WASHINGTON Star” sugere golpe dos militares no Brasil, “à velha maneira’. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 4. 116 “João Goulart was and is a leftist, a sort of parlor‐pink Socialist. But his main trouble is his hopeless ineffectiveness.” O texto completo desse editorial está disponível nos arquivos online do jornal nova- iorquino. THE struggle for Brazil. The New York Times. Nova York, 2 abr. 1964. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2016. 117 JORNAIS dos EUA: Goulart levava o Brasil para o caos. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2.

132 conservadoras e anticomunistas que associam a reunião dos marinheiros à formação de um soviete. São interessantes, porém, os trechos destacados de jornais mais consolidados, como Le Figaro (também considerado de perfil conservador), como o seguinte: “é entre os almirantes que se recruta a fina flor do anti-comunismo militante, sendo, necessário, porém, esclarecer que o termo ‘comunismo’ no Brasil engloba aquilo que, em toda parte, recebia a designação de ‘liberal’”. O jornal francês considera, ainda, a crise da Marinha como “o mais forte esforço do Presidente João Goulart para destruir um dos mais importantes bastiões do conservadorismo brasileiro”118. O jornal estrangeiro revela as idiossincrasias da concepção de comunismo no Brasil e, talvez, por isso, OESP considere que os europeus estariam “mal informados”, como veremos a seguir. OESP demonstra contrariedade com parte da visão europeia – especialmente os diários gaulistas como La Nation – sobre os acontecimentos no Brasil, a qual considera simplista e limitada. O correspondente Gilles Lapouge acompanhava a Conferência sobre Comércio Desenvolvimento da ONU, que acontecia em Genebra quando a revolta militar estalou no Brasil, e recolheu as impressões de delegados europeus presentes no evento. O título do texto é “Mal informados os europeus sobre a situação no Brasil” e destaca, primeiramente, a análise conjuntural feita por um dos delegados entrevistados, que não tem seu nome ou nacionalidades especificados, mas faz uma declaração que relaciona os acontecimentos no Brasil com a questão do desenvolvimento:

Considerando-se atentamente os fatos, os problemas que atualmente estudamos são a causa dos acontecimentos no Brasil: inflação, política com relação aos capitais estrangeiros, reforma agrária, etc. É significativo o fato de uma grande nação em fase de desenvolvimento sofrer tais convulsões. Isso confirma que todo o destino do mundo depende da resposta à questão: saberão os países do “terceiro mundo” livrar-se na miséria? E por que meios o conseguirão?119

Lapouge buscou, ainda, avaliar “a imagem que se criou na Europa sobre a modificação ocorrida no Brasil”, especialmente nos jornais franceses e suíços. Nesse sentido, faz duas afirmações: a primeira, que a Europa estaria

118 CRISE no Brasil poderá retardar negociações para reescalonamento. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 2. 119 LAPOUGE, Gilles. Mal informados os europeus sobre a situação no Brasil. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2.

133 muito mal informada sobre os problemas do Brasil; a segunda, que “uma grande parte da opinião pública considera com inquietação o futuro do Brasil”. Dessa leitura, o correspondente descreve a visão dos europeus – contrária em diversos aspectos à da imprensa brasileira que estudamos – sobre os principais líderes civis do golpe, o Exército brasileiro e o presidente João Goulart:

Para a Europa, a crise brasileira é consubstanciada em três nomes: Magalhães Pinto, Lacerda e Adhemar de Barros. Magalhães Pinto não é conhecido, dos outros dois não se tem uma imagem muito simpática: Adhemar de Barros é descrito como um “camaleão da política” ou uma “velha raposa”. Quanto a Lacerda, é considerado um reacionário, que construiu sua carreira política sobre um fanático anticomunismo. Sempre aos olhos da opinião média, esses três homens apoiavam-se sobre duas forças principais: os grandes proprietários e o Exército. Ora, os europeus pensam, naturalmente que o Exército brasileiro é semelhante a todos os exércitos do mundo, ao da França, por exemplo, ávido de golpes de força e de ditadura, enquanto, na verdade, tanto no passado como no presente, o Exército brasileiro deu provas de seu senso cívico e de uma escrupulosa adesão à democracia. Hoje, portanto, o ex-presidente Goulart assume com frequência o papel de mártir, que não lhe cabe, aos olhos de uma opinião pública mal informada que ignora, entre outras coisas, a importância das propriedades de Goulart e que considera o Brasil dividido sumariamente em duas partes: de um lado o imenso exército dos pobres, vergonhosamente explorados, os estudantes desejosos de um mundo mais justo e, de outro, os proprietários, os privilegiados, os generais, bem como os Estados Unidos.

Neste quadro, o correspondente sugere que deve haver “uma tentativa de esclarecimento dentro do campo vitorioso, de forma que a vitória apresente seu aspecto real”. O caso aponta para o aspecto da influência do reconhecimento internacional nesse tipo de situação, que acaba por reverberar, também, em um jogo de reconhecimento entre os veículos de comunicação. Sobre a cobertura da imprensa na Itália, através do correspondente Rocco Morabito, OESP afirma que “Jornais italianos acentuam a vitória democrática no Brasil e a derrota castro-comunista”. A matéria salienta especialmente a cobertura do conservador Corriere dela Sera, o qual destaca, de acordo com OESP, que o ocorrido no Brasil não foi “um golpe militar de tipo sul-americano”, mas “uma ação essencialmente civil”. O diário milanês afirma (em transcrição do jornal paulistano) que a ação foi “essencialmente civil” e direcionada contra “a demagogia do governo federal que estava para entregar

134 o país ao comunismo e ao caos através do CGT”120. O recorte selecionado por OESP dos jornais italianos evidencia, ainda, uma visão externa sobre a América Latina e o papel do Brasil neste cenário, além de diversas interpretações a respeito do governo Goulart. Para o La Stampa, de Turim, simpático às reformas de base, Goulart era um “social-democrático à europeia”. La Nazione, de Florença, considerava que o que se passava no Brasil não era um simples confronto entre esquerda e direita, até porque nem toda a esquerda apoiava Goulart. Ainda na avaliação desse jornal, havia receio de que o governo Goulart se tornasse uma ditadura populista como a de Perón na Argentina ou a de Fidel Castro em Cuba, colocando em jogo a estabilidade de todo o continente. Il Tempo, de Roma, acentuava que “No Brasil, as forças armadas têm uma antiga tradição de fidelidade ao Estado, ao contrário do que ocorre em outros países da América Latina, mantiveram-se sempre afastadas dos partidos, jamais tentando conquistar o poder” 121. Da Espanha, JB repercute o diário Madrid, conservador e apoiador do regime franquista, o qual afirma que “os acontecimentos no Brasil produzem a impressão de que tem assombrosa semelhança com outros, já distantes, da revolução russa”122. De Portugal, o JB cita o Diário da Manhã, porta-voz da União Nacional, o partido único do Estado Novo português. No trecho destacado pelo JB, o jornal afirma que há “nítida inspiração comunista” no episódio da Marinha. Porém, mesmo o órgão oficial da ditadura portuguesa avalia que forças políticas conservadoras atuam no sentido de tornar a crise uma “prova de força”:

“é certo que alguns setores conservadores, opondo-se fervorosamente à reforma de certas estruturas ultrapassadas têm contribuído em larga escala para encaminhar a crise no sentido da prova de força, mas não é menos certo que a colisão de instâncias federais e agrupamentos comunistas vem fornecendo àqueles grupos pretextos clamorosos”123 (grifos nossos).

O JB de 2 de abril traz a repercussão na Argentina, pelo jornal La

120 JORNAIS italianos acentuam a vitória democrática no Brasil e a derrota castro-comunista. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2. 121 JORNAIS italianos acentuam a vitória democrática no Brasil e a derrota castro-comunista. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 3 abr. 1964, p. 2. 122 “MADRID” vê semelhança. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 abr. 1964, p. 4. 123 COMUNISMO é a inspiração. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 abr. 1964, p. 4.

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Nación, que mostra uma opinião bastante contundente sobre a influência do comunismo no governo brasileiro: “Goulart não é nem nunca foi comunista. Se os comunistas o apoiam não é para deixá-lo no poder e se não o apoiam o Presidente cairá por já haver perdido o apoio das demais forças políticas”. Para o jornal, ainda, a crise no país só seria superada nas próximas eleições.

3.1.4. Léxico

Analisamos neste tópico o léxico utilizado pela narrativa jornalística brasileira para referir-se ao processo de ruptura institucional ocorrido no Brasil em abril de 1964, o qual assumimos nesta tese como Golpe Civil-Militar de 1964, de acordo com Fico (2014, p. 9-10):

Os estudiosos do golpe de 1964 e do período histórico que se seguiu têm insistido em um ponto: não deveríamos usar as expressões “golpe militar” e “ditadura militar”, pois seriam mais corretas as designações golpe e ditadura “civil-militar”. A preocupação é louvável porque tem em vista justamente o fato de que houve apoio civil ao golpe e ao regime. Eu sustentaria, no entanto, um ponto de vista um pouco diferente: não é o apoio político que determina a natureza dos eventos da história, mas a efetiva participação dos agentes históricos em sua configuração. Nesse sentido, é correto designarmos o golpe de Estado de 1964 como civil-militar: além do apoio de boa parte da sociedade, ele foi efetivamente dado também por civis. Governadores, parlamentares, lideranças civis brasileiras – e até o governo dos Estados Unidos da América – foram conspiradores e deflagradores efetivos, tendo um papel ativo como estrategistas. Entretanto o regime subsequente foi eminentemente militar e muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares justamente porque punham em risco o seu mando. É verdade que houve o apoio de parte da sociedade também à ditadura posterior ao golpe – como ocorreu durante o período de grande crescimento da economia conhecido como “milagre brasileiro” –, mas, como disse antes, não me parece que apenas o apoio político defina a natureza de um acontecimento, sendo possivelmente mais acertado considerar a atuação dos sujeitos históricos em sua efetivação. Por isso, admito como correra a expressão “golpe civil-militar”, mas o que veio depois foi uma ditadura indiscutivelmente militar.

Em OESP a 31 de março, o movimento tem início com uma “prontidão rigorosa” “em defesa da Carta”: a manchete é “Minas unida em defesa da Carta; prontidão rigorosa”. Rigor e legalidade (através da referência explícita à Constituição) são assumidos, assim, como valores proeminentes na narrativa

136 dos acontecimentos. O sujeito é a unidade federativa, sugerindo coletividade e coesão por meio da representação geográfica e administrativa. JB, por sua vez, publica nesse mesmo dia a manchete “Clube Militar dá apoio ao Clube Naval”. Opta, assim, por centrar as ações na esfera militar, além de obliterar o efetivo destino do apoio, deixando em suspenso as consequências dessa expressão de solidariedade. A pergunta que fica é: a que, efetivamente, o Clube Militar expressa solidariedade? Neste primeiro momento da narrativa, a designação da ruptura é mesmo obscurecida, resultando em um léxico impreciso. No manifesto de Magalhães reproduzido pelo JB há outros exemplos dessa situação. Destacamos, abaixo, trechos que apontam para uma maior definição das ações em curso:  “[...] têm as Forças Armadas não só o direito como também o dever de pugnar pela sua própria integridade”  “Não apoiaríamos nunca qualquer movimento que viesse apenas a agravar a intranquilidade dos brasileiros [...]”  “Minas se empenhará com rodas as suas forças e todas as energias de seu povo para a restauração da ordem constitucional”

Ainda no JB do dia 31, é no espaço do colunista Carlos Castello Branco que a situação aparece mais objetivada em temos lexicais. No título da coluna, afirma: “Minas desencadeia luta contra Jango”124. Aqui, também temos a unidade federativa como sujeito. O verbo “desencadear” cumpre a função de indicar tanto o início da ação como projetar sua continuidade. E, finalmente, a expressão “luta contra Goulart” estreita a definição dos acontecimentos. A palavra “luta” evoca, simultaneamente, a dimensão da disposição da vontade e a natureza bélica da situação. “Contra Goulart” demonstra, ainda, a personificação dos problemas brasileiros naquele momento, como vimos no tópico 3.1.2 acerca da personagem do presidente João Goulart. No mesmo dia 31 de março, a palavra “golpe” aparece no JB apenas em contextos bastante específicos: na fala do CGT, em uma sugestão da imprensa norte-americana e, por fim, para designar as ações do governo Goulart. Vejamos cada uma delas em pormenor. Na nota “Supremo ignora golpe”, o uso

124 MINAS desencadeia luta contra Jango. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 4.

137 da palavra justifica-se pelo fato de que se trata de uma manifestação da Suprema corte a respeito de acusações feitas pelo CGT, entidade que, à esquerda no espectro político, denomina “golpe” o movimento civil-militar iniciado em Minas. Aqui está um exemplo de como o léxico das forças em confronto no campo político contaminam o discurso jornalístico, ainda que nossa análise aponte para o fato de que, de forma geral, as narrativas de OESP e JB não optam pela palavra “golpe” para caracterizar os acontecimentos:

O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Álvaro Ribeiro da Costa, disse ao JORNAL DO BRASIL, ontem, falando por telefone interestadual, que o STF está alheio a qualquer tentativa de golpe, e desmentiu a nota do CGT, que afirmava estar o seu Presidente indicado para assumir a Presidência da República pelas “forças reacionárias”.125 (grifo nosso)

A íntegra dessa nota do CGT foi publicada na página 13 dessa mesma edição do JB, em texto no qual a palavra “golpe” e suas derivações são usadas repetidas vezes. É importante destacar que os jornais analisados deixam entrever um tipo de narrativa – até hoje recorrente, especialmente entre militares – que afirma que o Golpe Civil-Militar de 1964 foi um contragolpe ou um golpe preventivo, ou seja, uma reação a uma suposta tentativa de golpe de Goulart ou de comunistas infiltrados no governo. Por isso, é preciso, ao ler os jornais, identificar o campo político ao qual pertencem os enunciadores para, assim, compreender que tipo de fala o jornal assume ao usar o termo “golpe”. Francamente pragmático, o jornal norte-americano Washington Star não utiliza eufemismos para sugerir a solução que considera ideal para a crise política no Brasil. Em notícia publicada na mesma página do desmentido do Supremo Tribunal Federal, acaba por corroborar a leitura dos fatos realizada pelo CGT:

O jornal Washington Star, em editorial sobre a situação no Brasil afirmou, em sua edição de ontem, que “aqui está uma situação na qual um bom e efetivo golpe-de-Estado, à velha maneira, por líderes conservadores, pode bem servir aos melhores interesses de todas as Américas”.126 (grifo nosso).

125 SUPREMO ignora golpe. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 4. 126 “WASHINGTON Star” sugere golpe dos militares no Brasil, “à velha maneira”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 4.

138

Em “Novo Secretariado mineiro reúne forças que resistem a golpe nas instituições”, a palavra refere-se às ações do governo Goulart e de forma dúbia, podendo ser interpretada tanto como operação de tomada de poder político quanto simplesmente como sinônimo de “ataque”:

O Governador Magalhães Pinto iniciou ontem, com a nomeação dos Srs. José Maria Alkmin e Milton Campos, a formação de um Secretariado suprapartidário, que agrupa todas as forças políticas dispostas a resistir a um golpe contra as instituições democráticas, “nesta hora de grandes perplexidades, de angústia e de insegurança para o País”.127 (grifo nosso).

Da mesma forma, em OESP de 31 de março a palavra “golpe” aparece relacionada às ações do governo Goulart. “Resistência pernambucana contra o golpe” repercute uma nota assinada pela Frente Popular Pernambucana e a bancada da oposição (o Estado de Pernambuco era governado por Miguel Arraes, do Partido Social Trabalhista – PST, que nas eleições de 1962 derrotou o candidato da UDN). Dizia a nota: “O golpe evidentemente está em marcha para comunizar o País e interromper o processo democrático que deve presidir, com participação de todo o povo, o progresso política, social e econômico do Brasil”128 (grifo nosso). Na mesma edição, a matéria que repercute o discurso de Goulart na sede do Automóvel Clube dá ênfase ao clima de uma iminente ruptura, mencionada na própria fala do presidente naquela noite. O título é “Goulart declara que não receia golpe”. No discurso, o Presidente cita essa palavra em três passagens: ao caracterizar os adversários de seu governo, ou seja, os “grupos que tentam impedir o progresso do País”; ao citar as reformas de base; e ao caracterizar a possibilidade de ruptura como saída para a crise. No primeiro caso, afirma que “os que hoje acusam o governo são os mesmos que ontem pregavam o golpe, ditaduras e regimes de exceção. As forças e as pessoas que provocaram o suicídio do grande e imortal presidente Vargas; as forças que foram responsáveis pela renúncia de meu antecessor”129. No

127 NOVO Secretariado mineiro reúne forças que resistem a golpe nas instituições. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 5. 128 RESISTÊNCIA pernambucana contra o golpe. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 6. 129 GOULART declara que não receia golpe. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 8. Destacamos que a cobertura de OESP apresenta uma versão mais extensa que a do JB do discurso de Jango no Automóvel Clube. Sabemos que na ocasião o Presidente falou também de improviso, o que

139 segundo, ao falar sobre as reformas de base, Jango as menciona como um contraponto ao golpe dos reacionários, mencionando, ainda, as tensões com o Congresso nacional:

“Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso fechado. Ao contrário, queremos o Congresso aberto. Queremos apenas que os congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares” (grifos nossos).130

Em uma terceira menção – aquela que inspira o título da matéria, em citação destacada no lead – Jango afirma que “Ninguém mais pode se iludir com um golpe contra o governo, contra o povo”, demonstrando que considerar essa hipótese uma ilusão, descartada no cenário brasileiro. Avaliadas as situações em que o léxico em questão é empregado, não encontramos nas declarações do Presidente alguma afirmação que sustentasse a macroposição (VAN DIJK, 2005) do título publicado por OESP, já que entendemos que essa última afirmação aponta mais para uma tentativa de desacreditar ou desqualificar os rumores golpistas do que uma demonstração de coragem frente a uma possibilidade real de golpe. Por outro lado, consideramos ousada a afirmação de Goulart de que as reformas de base seriam um golpe. Ambas as situações – o pareamento das reformas a um golpe e o título de OESP – apontam para uma naturalização do ambiente de ruptura, admitida também pela historiografia e por análises de cientistas políticos da época, como Wanderley Guilherme dos Santos, que publicou, em 1962, o livro Quem dará o golpe no Brasil?. Vemos, assim, que a palavra golpe era utilizada tanto pela oposição quanto pelo governo. Quando reportadas as reações do governo Goulart, através de comunicados oficiais ao longo do golpe, estes geralmente se referem a “sublevação”, “crise”, “movimento subversivo”, “clima geral de intranquilidade”. A nota do CGT denunciando o golpe também reverbera em OESP de 31 de março, especialmente através da resposta do governador Magalhães Pinto, e acaba expondo essa dupla dimensão do uso do léxico “golpe”:

justificaria as diferenças, tendo o JB publicado o discurso preparado com antecedência e OESP a transcrição do que efetivamente foi dito. 130 GOULART declara que não receia golpe. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 8.

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Depois de informar que a reunião de governadores marcada para Porto Alegre havia sido transferida para o dia 2 de abril e confirmar sua presença na reunião, o governador respondeu a uma pergunta sobre se achava que o presidente estaria tramando o golpe, com as seguintes palavras: “ninguém pode dar golpe. Não há condições para isso”. DESRESPEITO O Sr. Magalhães Pinto disse também que não comparecerá à concentração do dia 18 de abril, em Belo Horizonte, que contará com a presença do presidente da República e, referindo-se à nota do CGT, assinalou: “considero a nota desrespeitosa, porque não dou o direito de dizerem que estamos preparando um golpe. O máximo de que nos poderiam acusar é de estarmos defendendo os nossos mandatos.131 (grifos nossos)

Logo a seguir, nesse mesmo texto, ocorre o uso da palavra “revolução” de modo pejorativo, indicando um desenvolvimento mais grave dos acontecimentos em Minas:

REVOLUÇÃO O governador acentuou que todo seu esforço se concentra em encontrar uma saída para a crise, dentro dos quadros constitucionais e perguntado se os acontecimentos poderiam degenerar numa revolução, respondeu peremptoriamente: “Aqui em Minas não haverá. O povo está todo unido no objetivo de manter a ordem, a democracia e a liberdade.132 (grifos nossos)

A 1º de abril, as notícias passam a assumir, gradativamente, um léxico mais definido. No JB, a manchete de capa designa uma “marcha ao Rio contra Goulart”. Na página 4, um tom mais grave em “Kruel ergue II Exército contra o comunismo”. As ações militares são geralmente caracterizadas pelos jornais como uma “tomada de posição”. Os jornais relatam repetidas vezes a “prontidão” (no caso da adesão grupos das Forças Armadas) e “solidariedade” (no caso de manifestações civis) a essa “tomada de posição”. No mesmo dia 1º, a manchete de contracapa de OESP opta por caracterizar um “levante pela lei” (“São Paulo e Minas levantam-se pela lei”), em consonância as manifestações oficiais de líderes civis, como o presidente do Senado Auro de Moura Andrade, que “exorta o povo a defender o regime”133.

131 A POLÍCIA mineira está em regime de prontidão rigorosa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 9. 132 A POLÍCIA mineira está em regime de prontidão rigorosa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 9. 133 MOURA Andrade exorta o povo a defender o regime. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 01 abr. 1964, p. 8.

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Na esfera militar, o uso da palavra “revolução” aparece com maior frequência, como por exemplo na fala do General Carlos Luís Guedes, Comandante da Infantaria Divisionária-4, de Minas Gerais, ao comentar os acontecimentos, refere-se ao “movimento revolucionário eclodido em Minas”134. A expressão é incorporada pelos jornais analisados a partir da consolidação da vitória do movimento golpista: no dia 2 de abril, o JB publica uma “cronologia da revolução” e descreve o dia anterior como “o dia vitorioso da revolução pela liberdade”135.

3.1.5. Relações com o tempo

Por fim, a última categoria comparável proposta nesta tese é a das relações de tempo expressas pelas narrativas jornalísticas analisadas. Através dela, pretendemos compreender de que forma o jornalismo, como forma de conhecimento do fato ancorado na atualidade, articula-se com o passado, o presente e o futuro para narrar o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil. Ao afirmar que ainda restavam dúvidas em relação à consolidação do processo de ruptura que se desenrolava, o JB evoca o passado recente, afirmando que essa estabilização deveria ocorrer “Dentro de um quadro em que se resguardem, como em agosto de 1961, as recomendações básicas da Constituição”136. Reporta-se, assim, ao conturbado episódio da posse de Jango como presidente, após a renúncia de Jânio Quadros. Vimos, também, na composição da intriga e na caracterização das personagens, que tanto a imprensa – de modo pejorativo e acusatório – quanto o próprio Goulart – de modo positivo, como herdeiro político – invocavam a figura do ex-presidente Getúlio Vargas. Cabe aqui, assim, uma breve retomada dessas referências do passado. Skidmore (2000) revela conexões entre a conspiração de 1964 e a de 1954, que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio. Durante seu segundo

134 GENERAL Guedes pensou em adiar movimento em Minas para evitar a lua minguante. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 3. 135 CRONOLOGIA da Revolução. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 3. 136 SITUAÇÃO definida, mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

142 governo (1951-1954), conquistado através de eleições, Vargas enfrentou graves problemas econômicos, derivados da queda do preço do café no mercado internacional e do aumento da inflação. Os militares não aceitavam sua política econômica de cunho nacionalista, especialmente na ocasião do aumento do salário mínimo, na gestão de João Goulart, então ministro do Trabalho. A oposição mais conservadora reunia-se sobretudo na União Democrática Nacional (UDN), que tinha Carlos Lacerda como porta-voz de todo o tipo de ataque, pessoal ou político, a Vargas, através das páginas do vespertino Tribuna da Imprensa. Foi acusado de escândalos financeiros, corrupção, conluio com Perón, má gestão, etc. Em maio de 1954, assinou o aumento de 100% no salário mínimo, mas sua situação política já era demasiado grave. O atentado na rua Tonelero foi a gota d’água. Em 5 de agosto de 1954, Carlos Lacerda foi vítima de um atentado na frente do prédio onde morava, na rua Tonelero, em Copacabana, Rio de Janeiro. O jornalista ficou ferido no pé, mas um oficial de Força Aérea que o acompanhava foi morto. A Força Aérea criou uma comissão de inquérito que apontou o chefe da guarda do presidente, Gregório Fortunato, como mandante do crime, além de outros escândalos financeiros que municiam os inimigos de Vargas. Abreu e Lattman-Weltman (1994) demonstram que a participação da imprensa no caso, pedindo a renúncia do presidente, é decisiva. “A palavra vinha agora do Exército, sempre o árbitro final das contendas da política brasileira. Vinte e sete generais, inclusive antigetulistas e centristas, lançam um manifesto pedindo a renúncia do presidente” (SKIDMORE, 2000, p.25). A situação torna-se insustentável. Vargas suicida-se dentro do Palácio do Catete, com um tiro no coração, a 24 de agosto de 1954. A ação extrema coloca os inimigos na defensiva. Lacerda foge do país, populares apedrejam a Embaixada dos Estados Unidos, empastelam a redação da Tribuna e incendeiam caminhões de entrega do jornal O Globo. “O desenlace do governo Vargas de 1951-54 criou o contexto político e as linhas de ação para a década seguinte”, afirma Skidmore (2000). Algumas questões ficaram em aberto. No campo econômico, os rumos do nacionalismo e a relação do Brasil com o capital estrangeiro, além da equidade econômica, especialmente em relação ao salário mínimo. Também as relações trabalhistas

143 com o setor agrícola, paralisadas devido à forte representatividade dos proprietários de terras em todas as esferas governamentais. Finalmente, o futuro do sistema de partidos políticos, marcado agora pela polarização entre UDN – PTB (Partido Trabalhista Brasileiro, de Vargas), deixando o PSD (Partido Social Democrático) ao centro. Essa polarização manifesta-se novamente nas eleições seguintes, em outubro de 1955, que elegeram presidente Juscelino Kubitscheck, representante da coligação entre PSD (Partido Social Democrata), PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e outros quatro partidos. Juscelino venceu com uma pequena margem de vantagem sobre o segundo colocado, Juarez Távola, da UDN, motivo pelo qual este partido e alguns setores militares, alegando falta de maioria absoluta, tentaram impugnar o resultado da eleição. Um golpe militar “preventivo”, a 11 de novembro de 1955, garantiu a posse de Juscelino, em mais uma intervenção dos militares na vida política brasileira. O mandato transcorreu em relativa tranquilidade e em 1960 Jânio Quadros foi eleito, com ampla vantagem, pelo inexpressivo PTN (Partido Trabalhista Nacional), com apoio da UDN. Com a renúncia do excêntrico Jânio Quadros em 1961, com apenas sete meses de governo, novamente o exército intervém para impedir que o PTB, agora com o vice-presidente João Goulart, voltasse ao poder. Goulart, no momento da renúncia, encontrava-se em visita diplomática à China comunista, o que rendeu munição aos opositores: os três ministros militares aproveitaram a oportunidade para produzir um manifesto no qual afirmavam que Goulart não poderia assumir a presidência, pois, enquanto Ministro do Trabalho de Vargas, havia entregue cargos-chave nos sindicatos a “agentes do comunismo internacional”. Logo se mostra que o veto dos ministros não tinha fundamento legal, e toma forma um movimento nacional pela legalidade, encabeçado pelo governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola (cunhado e aliado político de Goulart), junto com o Terceiro Exército. O impasse coloca o país à beira de uma guerra civil e a solução encontrada foi a tomada de posse de Goulart, mas com poderes reduzidos pela instalação de um novo regime político, o parlamentarismo. Através de um plebiscito, realizado em janeiro de 1963, o povo opta pelo retorno ao presidencialismo, devolvendo o poder a Jango. Pilagallo (2002) informa que 9,5

144 milhões de eleitores, de um total de 12,7 milhões, foram a favor da mudança. Em 1964, no quadro de degradação do governo Goulart, OESP publica, em seu tradicional espaço opinativo, a página 3, artigo intitulado “Uma lição da História para o Brasil”. Depreende-se do próprio título a noção de História como lição e, nesse sentido, o artigo vem alertar que “no fim da primeira guerra mundial foram motins ocorridos nas marinhas de guerra que deram o sinal para o início das revoluções comunistas em grande escala”137. OESP incorpora à intriga, assim, elementos ainda mais longínquos no tempo histórico, no sentido de reforçar o imaginário do perigo comunista. Nesse mesmo sentido, evoca, mobilizado por seu histórico anti-Varguista, o Movimento Constitucionalista de 1932, em uma comparação entre a motivação cívica da revolta que procurou destituir Getúlio Vargas do poder com o movimento golpista contra João Goulart. No editorial “S. Paulo repete 32”, o diário afirma que a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que reuniu os setores contrários ao governo Goulart em 19 de março de 1964 em São Paulo, marca “um ciclo novo na história da nacionalidade”, reunindo aqueles que, como em 32, estavam dispostos ao último sacrifício em nome da lei e do regime”138. A partir do momento em que os jornais tomam como definitiva a queda de Goulart, tem início toda uma série de projeções de cenários no futuro imediato. Lembramos que, em termos narrativos, “Quando o impossível (o extremo da discordância) ameaça a estrutura, o verossímil se torna persuasivo na medida em que é aceitável” (MOTTA, 2013, p. 150). Ignorando a ilegalidade da destituição de Goulart (o impossível), o JB de 2 de abril de 1964 considera a “situação definida” e passa a projetar os desdobramentos, especialmente através das movimentações da cúpula do PSD (Partido Social Democrático), do então senador e ex-presidente Juscelino Kubitscheck. Como a destituição do presidente ocorreu na segunda metade do mandato, a presidência deveria ser assumida pela presidente da Câmara (Ranieri Mazzilli), que conduziria a eleição do sucessor em até 30 dias. Naquele momento, o jornal indica que a situação era de divisão entre os pessedistas: parte apoiaria uma união com a UDN de Lacerda; outra, com o PTB de João Goulart, com Juscelino

137 UMA lição da História para o Brasil. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 3. 138 S. PAULO repete 32. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 1 abr. 1964, p. 3.

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Kubitscheck como candidato. Entendemos que a projeção do futuro faz parte da atividade jornalística como mediadora da mudança. É importante destacar, contudo, que é através dela que o discurso jornalístico ajuda a constituir consenso, o que a torna uma expressão discursiva de alto valor subjetivo. Nesse sentido, é bastante significativa a composição da página editorial do JB de 2 de abril de 1964. Articulando-se com o tempo na busca de uma coerência entre os fatos e sua interpretação, o texto é dividido entre os títulos “Presente”, “Passado” e “Futuro”. Trata-se de uma página importante em nossa análise, porque ela expressa de forma muito clara a concepção do jornalismo como conhecimento do fato e atividade mediadora do tempo na modernidade. Como cabe tradicionalmente ao jornalismo, o texto começa pelo tempo presente. Aqui, finalmente, o jornal desata o impasse entre a presença do presidente em solo nacional e sua destituição por força militar: “O problema era a presença inaceitável do Sr. João Goulart no poder que não soube cumprir, nem honrar. Esse problema foi resolvido pela restauração da legalidade, na sua pureza democrática”139. De problema ou incoerência, a destituição de Goulart através de um golpe militar, pelo poder da narrativa, passa a solução: “Já não há problema, porém, quanto à continuidade da ordem legal, desde que expelido o instrumento de deformação e subversão até ontem nela enquistado”140. Em sua posição de autoridade – como vimos em tópico anterior, sobre a mediação da ruptura – cobra, ainda, o respeito às urnas: “O governo- tampão que o Congresso elegerá tem um programa à sua espera: criar condições de administração pública que o Presidente da República que vai sair das urnas livres e respeitadas de 3 de outubro de 1965”141. O texto “Passado” revela, mais uma vez, a força do jornalismo como mediador da consciência histórica. Nesse sentido, dedica-se a localizar o governo Goulart decididamente no tempo passado: “Com ou sem renúncia escrita e expressa, o Sr. João Goulart não é mais Presidente da República”142. Aplicando um falso “sentido histórico” ao presente, cria generalizações na análise dos fatos e, para tanto, opõe o trabalhismo ao que denomina

139 PRESENTE. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 140 PRESENTE. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 141 PRESENTE. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 142 PASSADO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5.

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“janguismo”: “O janguismo – este sim – é objeto do desterro político e do exame que fazemos com isenção humana e sentido histórico”143. Nas projeções para o futuro, uma das expressões mais contundentes da subjetividade na narrativa jornalística, o JB determina: “E é para o Brasil democrático que se devem voltar todos os cuidados dos brasileiros. Para isto é importante concentrar nosso trabalho naqueles pontos do organismo nacional que mais sofreram a infecção janguista”144. Na opinião do jornal, esses pontos são: o movimento sindical e as reformas. Em relação ao primeiro, sugere a libertação dos sindicatos da tutela governamental, do que chama de falso sindicalismo e do peleguismo. Sobre o segundo, considera as reformas inadiáveis e, inclusive, manifesta novamente suas pretensões de discurso mobilizador de um “sentido histórico”, como vimos no parágrafo anterior, reclamando “que não se confundam reformas com João Goulart, transformando um falso líder num mito, um agitador num salvador”145. Obcecadas pela figura de Goulart, as análises de JB e OESP, com expressas pretensões de atribuição de “sentido histórico”, falham já na partida, especialmente por ignorar uma leitura mais abrangente do presente, tempo por excelência do jornalismo. Na dimensão do presente, a narrativa dos jornais brasileiros envereda por outros caminhos, operando o que chamamos nesta tese de normalização do presente. Frente à ruptura institucional, os diários analisados alinham-se à narrativa do movimento militar na defesa de uma normalidade que corresponde, no imaginário golpista, ao valor da ordem. A mensagem do governador mineiro Magalhães Pinto à nação ao deflagrar o golpe, reproduzida na matéria de contracapa de OESP de 31 de março de 1964, afirma:

Não apoiaríamos nunca qualquer movimento que viesse apenas a agravar a intranquilidade dos brasileiros, já tão angustiados de aflições; que embaraçasse a marcha acelerada em que deve caminhar o nosso desenvolvimento social, econômico e político, que perturbasse o clima de paz de que o povo necessita para realizar os trabalhos de cada um e as tarefas do bem comum.146

143 PASSADO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 144 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 145 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5. 146 MINAS unida em defesa da Carta; prontidão rigorosa. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 31 mar. 1964, p. 46.

147

Em entrevista ao JB, o general Mourão Filho, ao explicar as motivações do golpe, afirma que “levantou-se em armas com o objetivo de fazer o Brasil voltar à normalidade constitucional que vem sendo permanentemente perturbada desde 1961”147 (grifo nosso). Um dos subtítulos da reportagem é, justamente, “Normal”. No trecho a seguir, está a descrição da normalidade de acordo com o JB e destacamos ainda, nesse sentido, a correlação estabelecida entre a atuação dos meios de comunicação e o estabelecimento da “normalidade”, dentro de um contexto de atitudes autoritárias:

Apesar do grande movimento do deslocamento das tropas, a vida em Juiz de Fora era quase normal, com o povo acompanhando o desenrolar dos acontecimentos através do noticiário das emissoras locais, do Rio e São Paulo. O tráfego de veículos motorizados estava completamente paralisado devido à falta de gasolina, com todos os postos controlados pelas tropas e era terminantemente proibida a venda do combustível, a não ser com ordem expressa do comando da 4ª Região Militar. As casas comerciais funcionavam normalmente, atendendo ao público e não havia falta de gêneros alimentícios. As escolas primárias funcionaram em regime normal, por ordem do prefeito da Cidade e só as escolas particulares suspenderam suas aulas.148 (grifos nossos)

Na consolidação do golpe, ao “cumprimentar o povo brasileiro”, de acordo com o título da matéria do JB, o general Carlos Luis Guedes envia uma mensagem tranquilizadora: “com o restabelecimento da normalidade constitucional, o povo brasileiro pode trabalhar e viver tranquilo e ver satisfeitas suas aspirações dentro do clima de fraternidade e de compreensão que sempre norteou a vida brasileira’”149 (grifo nosso). Na página editorial do dia 2 de abril, o JB condena veementemente o ataque sofrido na véspera pelo jornal Última Hora, argumentando, justamente, pelo viés da ordem: “A reação para repor o País nos quadros da legalidade democrática não foi feita para a destruição, mas para a unificação nacional que devolva ao País o clima de tranquilidade e ordem, indispensável ao progresso da Nação” (grifos nossos)150. A normalidade também é articulada na composição da intriga da

147 GENERAL Mourão diz que a revolta é contra a desordem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3. 148 GENERAL Mourão diz que a revolta é contra a desordem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3. 149 GEN. Guedes cumprimenta brasileiros. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 3. 150 VANDALISMO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5.

148 narrativa referente às lutas populares travadas naquele momento, em especial à greve geral convocada pelo CGT ainda na madrugada do dia 1º de abril: “Transporte entre Rio e Niterói pode voltar à normalidade ainda hoje”151. É possível, ainda, nas entrelinhas da leitura dos jornais, ter acesso a dados do cotidiano, como o preço da banana. Segundo o JB, várias pessoas telefonaram ou foram ao jornal para protestar contra o aumento dos gêneros de primeira necessidade nos supermercados e armazéns, “tendo moradores de Botafogo e Copacabana informado que, naqueles bairros, a dúzia de bananas foi vendida a Cr$ 500 e que o preço das verduras aumentou de 100 por cento”152,153. Os leitores relataram, ainda, que o sanduíche de queijo era vendido a Cr$ 300 e que os comerciantes faziam escárnio da situação, “dizendo cinicamente que agora a coisa mudou, os fiscais do governo não existem mais”, referindo-se à política de contenção da inflação do governo Goulart e deixando entrever que havia entre parte da população essa espécie de ânimo que torna natural a injustiça. Vemos, assim, que a forma como a narrativa jornalística articula sua relação com o tempo dá acesso a dimensões imaginárias da construção do acontecimento-intriga. A invocação de determinados eventos do passado, a aposta em desdobramentos futuros e o estabelecimento dos parâmetros da normalidade no presente são articulados nestas narrativas de ruptura institucional. Vejamos, a seguir, de que forma a imprensa portuguesa construiu sua narrativa sobre o golpe de 1964 no Brasil.

151 TRANSPORTE entre Rio e Niterói pode voltar à normalidade ainda hoje. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 7. 152 DÚZIA de bananas a Cr$ 500. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 13. 153 O salário mínimo nacional, reajustado em 100% em fevereiro de 1964, era de Cr$ 42.000,00. Fonte: Tribunal Regional do Trabalho de Minhas Gerais. Disponível em: http://www.trt3.jus.br/informe/calculos/minimo.htm. Acesso em: 9 dez. 2016.

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3.2. IMPRENSA PORTUGUESA

3.2.1. Recomposição da intriga

Os jornais portugueses de nosso recorte sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil destaca-se por enunciar – aos menos nos momentos iniciais da narrativa – um maior equilíbrio entre as forças políticas em jogo e por enquadrar os acontecimentos na dimensão de uma guerra civil. Se na imprensa brasileira analisada vimos que há um apagamento da dimensão do confronto – já que o governo Goulart é tipificado como um fora da lei e, portanto, ilegítimo como força política – o periódico República coloca uma pergunta como manchete de 1º de abril: “A guerra civil estalou no território brasileiro?” e, como linha de apoio, demonstra o governo Goulart como força política com suporte significativo: “As forças insurretas procuram destituir o presidente João Goulart que tem o apoio dos sindicatos e de Forças Armadas”. No Diário de Notícias (DN), a chamada de capa é “Golpe militar no Brasil / As tropas federais do Estado de Minas revoltaram-se contra João Goulart”. Vemos assim, que os jornais portugueses de nosso recorte, ao menos no plano da intriga, são mais enfáticos na dimensão do confronto. O DN opta por uma caracterização geopolítica dos fatos, descrevendo para seus leitores, possivelmente desconhecedores de detalhes da geografia brasileira, o local e a importância estratégica do posicionamento das tropas revoltadas. Nesse sentido, coloca na capa uma ilustração com um mapa do Brasil enquadrado na região Sudeste, com a legenda “O Estado de Minas Gerais está praticamente situado no centro do país, sendo o quinto estado brasileiro em superfície territorial”. O jornal procura, ainda, dimensionar o peso da capital Belo Horizonte como artifício militar e afirma que ela “ocupa uma posição estratégica na estrada que liga o Rio de Janeiro à Brasília”. Na página 7 desta mesma edição, oferece, ainda, dados demográficos e detalhes da história de Minas Gerais, citando a formação pela penetração dos exploradores em busca de ouro (bandeirantes), as relações com a Coroa (a cobrança do

150 quinto sobre a extração do ouro), a figura de Borga Gato e a Conjuração Mineira, chamada de “revolta do ‘Tiradentes’”154. Apesar da apresentação de um quadro de guerra, na narrativa do DN o protagonismo das ações é civil, centrado na figura do governador Magalhães Pinto, em um primeiro momento e, mais tarde, somam-se Ademar de Barros e Carlos Lacerda. A linha de apoio é enfática nesse sentido: “O governador Magalhães Pinto proclamou a separação daquele Estado, mandou redigir nova constituição e dirigiu um apelo a todas as unidades do Exército para que se coloquem a seu lado”155. A capa traz, ainda, um recorte do discurso de Goulart na sede do Automóvel Clube em destaque (“Coisa alguma poderá afastar-me da linha de conduta que tracei”) e, logo abaixo, uma chamada que identifica, assim como na imprensa brasileira, as Forças Armadas como um grupo coeso, sem lideranças personalistas: “Um marechal e setenta generais publicaram um manifesto condenando a política extremista de Goulart”. Ressaltamos que o destaque do discurso de Goulart é de trecho enérgico e que corrobora a leitura “extremista”. A matéria de capa tem continuação na página 7, na qual ganha um novo título: “A declaração de Goulart sobre a sua conduta”. Aqui, DN opta por colocar em contraponto o discurso de Goulart no Automóvel Clube e o manifesto dos oficiais e a matéria consiste, basicamente, da transcrição dessas falas. Destacamos a prática dos jornais portugueses de usar como recurso a indicação da continuação das matérias de capa no interior do jornal, revelando uma pratica jornalística que busca compor uma narrativa mais linear que a do jornalismo brasileiro analisado, o qual apresenta maior fragmentação, compondo cada página como uma unidade autônoma. Sintomas da “dentição” (LARANGEIRA, 2014) do jornalismo de cada um desses países, como vimos nas trajetórias históricas das imprensas brasileira e portuguesa. Se o DN reporta os fatos a partir de Belo Horizonte e do grupo sublevado, República, por sua vez, centra a narrativa no Rio de Janeiro e nas ações do governo. O subtítulo da manchete – diferente do DN, que aponta o protagonismo para o governador Mourão Filho – volta-se às decisões do governo Goulart: “O Ministro da Guerra general Dantas Ribeiro marcha ao

154 O ESTADO de Minas Gerais. Cerca de dez milhões de habitantes em 593 810 quilômetros quadrados. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 7. 155 GOLPE militar no Brasil. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 1.

151 encontro das tropas sublevadas”. Pode-se dizer que, ao menos nesses primeiros momentos do golpe, os jornais de nosso recorte escolhem, como narradores, diferentes lugares de fala, tanto na questão do protagonismo quanto na perspectiva geográfica. Na narrativa do República, Goulart, do Rio de Janeiro, assume protagonismo, diferente da imprensa brasileira analisada, na qual está colocado na posição de antagonista. A narrativa do DN centra-se, no dia 1º de abril, na perspectiva da guerra civil como consequência da crise na Marinha durante a Páscoa. Contrapõe, como discursos emblemáticos dos interesses em conflito, a fala de Goulart no Automóvel Clube e o manifesto lançado por Magalhães Pinto, disputando o apoio das Forças Armadas, que também ocupam o espaço público através do manifesto “Sargentos, alerta!”. O discurso do Presidente é referido, no título, como “Declaração de Goulart sobre sua conduta”, indicando que suas no episódio da revolta dos marinheiros ainda estavam sob juízo da opinião pública. A narrativa do DN destaca a influência comunista no episódio da Marinha, descrevendo em detalhes a sessão de projeção do filme O Encouraçado Potemkin, destacando as falas de protagonistas da oposição, como Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e as suspeitas e acusações de jornais contemporâneos, incluindo o JB. Compõe, assim, o quadro da degradação do governo Goulart. Do diário carioca, o DN destaca, em matéria na página 7, a citação: “Quanto mais Goulart reincidir na ilegalidade, mais a sua autoridade se enfraquecerá – escreve o Jornal do Brasil”156. O República destoa dos demais periódicos analisados nesta tese, pois opta por uma narrativa que, ao menos em 1º de abril, toma como partida o governo Goulart e trata o movimento militar a partir de Minas Gerais como “rebelde”. Assume, dessa forma, o governo federal como narrador-personagem (MOTTA, 2013) e reporta suas ações e reações, especialmente através do Ministro da Guerra, General Dantas Ribeiro, que agiria “sob as ordens diretas do Presidente Goulart”157. As mensagens do governo destacadas por este

156 OS ATOS de indisciplina a que assistimos... Diário de Notícias. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 7. 157 CARLOS Lacerda fortificado no seu palácio. República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1.

152 jornal através de citações são no sentido de apaziguamento. Da Presidência, acompanhada por uma fotografia de Goulart sorridente, ressalta trecho de comunicado: “esperamos poder anunciar dentro em breve que a ordem foi restabelecida no Estado de Minas Gerais”; e o apelo, por parte de Dantas Ribeiro, para que os rebeldes não se deixassem “enganar por falsos defensores da democracia, levando-os a uma verdadeira luta entre irmãos”. Em trecho mais enérgico, República afirma que “Dantas Ribeiro declarou que estava disposto a levar a sua missão até o fim ‘custasse o que custasse’, acrescentando que as suas tropas iam agir com a maior energia contra os rebeldes”158. Dá espaço à fala do governador de Pernambuco, Miguel Arraes, que anuncia uma posição “em apoio da legalidade, dos princípios democráticos, das liberdades do povo e das prerrogativas presidenciais” na espera de um “desfecho pacífico”159. Da oposição, destaca Amaury Kruel, Ademar de Barros e Carlos Lacerda. É a partir de declarações dos dois primeiros que explica as causas do conflito, apontando questões mais genéricas e sem mencionar o episódio da Marinha, como ocorre com os demais jornais de nosso recorte. Kruel, comandante do IIº Exército, de São Paulo, declara que o levante se tratava de “uma atitude contra o Presidente João Goulart para salvar o Brasil do ‘jugo vermelho’”. Barros, governador de São Paulo, explica que “a medida fora tomada para ‘estabilizar as tradicionais estruturas brasileiras e para defender a Constituição’”160 e que as tropas revoltadas “tinham oportunidade de eliminar o comunismo do Brasil e pôr cobro à desordem”161. Destaca, ainda, que este governador suspendera as garantias individuais e efetuara mil prisões de “elementos”. O número de presos, certamente equivocado, é creditado à agência Reuters, tendo como fonte o secretário de imprensa do governo paulista. República considera, a esta altura, o Rio de Janeiro como território “aparentemente” “sob o controle das forças lealistas”, e informa que o governador Lacerda – “um dos mais acérrimos adversários do presidente Goulart” – encontra-se “fortificado no seu palácio”162.

158 A GUERRA civil estalou no território brasileiro? República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1. 159 O RECIFE apoia Goulart. República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1. 160 A GUERRA civil estalou no território brasileiro? República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1. 161 CARLOS Lacerda fortificado no seu palácio. República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1. 162 CARLOS Lacerda fortificado no seu palácio. República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1.

153

República reporta na capa, ainda, a situação no cotidiano da população carioca, destacando o “assalto” às lojas de artigos alimentícios, a greve dos caminhos de ferro, o encerramento dos bancos e a chamada para greve pelo CGT, descrito como “organismos operários de direção comunista”163. Na contracapa do jornal, página 12, é onde continuam as matérias da capa sobre a situação no Brasil e neste espaço o jornal segue dando maior destaque às manifestações de apoio ao governo Goulart, através dos seguintes títulos:  “Manter-se-á a ordem seja por que preço for — declara o ministro da Guerra numa mensagem aos comandantes das regiões militares”  “Brasília está sob o controle das tropas governamentais”  “Os sargentos de Belo Horizonte desertaram para se juntar às tropas fiéis — anuncia a Emissora Oficial”  “Dois generais garantem a lealdade de todas as tropas do Sul”  “Os sindicatos de São Paulo reafirmam o seu apoio total ao presidente da República”

Apesar das macroproposições (VAN DIJK, 2005) – que apontam para a vantagem do Governo –, há informações nos textos que as contradizem ou mostram outros pontos de vista. Sobre as tropas do Sul do País, por exemplo, está a afirmação de que “Não se sabe ainda se o terceiro exército se pronunciou por qualquer das facções”. Diferentemente dos sindicatos de São Paulo, “os sargentos da força pública exprimem a sua ‘indignação’ perante a atitude de seus colegas do Rio de Janeiro por ocasião da homenagem prestada ao Presidente Goulart e prometem ‘o seu apoio e inteira solidariedade para com o governador de São Paulo, Ademar de Barros”164. A narrativa jornalística, fragmentada, associada aos modos de produção do jornalismo impresso, fazem com que República publique, na página 6 da mesma edição de 1 de abril, a nota “As tropas leais a Goulart teriam tomado contato com as forças da rebelião em Minas Gerais”. A fonte é “uma nota da

163 A MULTIDÃO assaltou as lojas de artigos alimentícios e os caminhos de ferro estão em greve no Rio de Janeiro. República. Lisboa, 1º abr. 1964, p. 1. 164 OS SINDICATOS de São Paulo reafirmam o seu apoio total ao presidente da República. República. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 12.

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Presidência da República” (divulgada pela agência France Presse) e as informações publicadas sugerem o breve reestabelecimento da ordem e negam confronto bélico:

RIO DE JANEIRO, 1 — Uma Nota da Presidência da República afirma que a ordem será brevemente restabelecida. As tropas leais, destacadas pelo governo, já teriam chegado à fronteira do Estado de Minas Gerais e tomado contato com as forças da rebelião. Destacamentos do Exército federal partiram durante a noite para S. Paulo, mas de parte nenhuma anunciam tiroteio ou luta. — F.P.

Vemos assim, mais uma vez, que a narrativa desse jornal investe no controle da situação por parte do governo federal, além de projetar a solução pacífica do conflito. Na capa de 2 de abril, sob a cartola “A situação política no Brasil”, República apresenta o seguinte título: “Rainieri Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República”. Opta, assim, por não explorar, ao menos no título, a personagem de Goulart, tão central na narrativa do dia anterior. O “problema” da permanência de Goulart em solo nacional aparece no corpo do texto:

Fontes governamentais disseram em Brasília que o presidente Goulart se deve ter demitido verbalmente. Porém, este, ao chegar a Brasília vindo do Rio, tinha declarado: “Não me demitirei nem darei um tiro no coração”. O congresso reuniu-se em sessão especial e resolveu que a Presidência seria declarada vaga em virtude de Goulart ter se mantido afastado durante muito tempo da sede do governo, durante uma altura de crise.165

O jornal contemporiza, reportando, ao mesmo tempo, indícios da demissão e da permanência de Goulart. Nesse sentido, a ação midiática de Lacerda não é ignorada:

Ontem à noite, o governador Carlos Lacerda do Estado da Guanabara apareceu na televisão no Rio de Janeiro para anunciar que Goulart apresentara sua demissão ao Congresso, após “se esconder durante todo o dia” e, depois, partir de avião para Brasília.166

165 RANIERI Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 166 RANIERI Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República. República. Lisboa, 2 abr. 1964, pp. 1 e 12.

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Confronta a informação – provinda de uma rádio do Uruguai – de que Goulart estaria ainda em Brasília com a mulher e os filhos, com a de fontes diplomáticas de Washington, as quais garantiam que o Presidente havia voado para Porto Alegre. Do governo da Argentina vem a comunicação das autoridades de que Goulart não havia pedido asilo político neste país; por outro lado, avolumam-se fatos determinantes na evolução dos acontecimentos, como a adesão do marechal Âncora aos insurrectos, o pedido de demissão do Ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro (um dos personagens principais da narrativa do República na edição de 1º de abril), a retirada da guarda dos edifícios federais no Rio de Janeiro e o silenciamento das emissoras da “cadeia da legalidade”, favorável ao governo. É apenas aqui que República cita o incidente dos marinheiros durante a Páscoa como causa da crise, nos seguintes termos: “A revolta foi provocada pela decisão de João Goulart de permitir que ficasse impune uma rebelião de marinheiros e de fuzileiros navais durante a Páscoa”167. A 2 de abril, a manchete do DN é “Goulart abandonou Brasília”. Como linhas de apoio, apresenta: “O Rio de Janeiro decidiu a evolução dos acontecimentos / O 1º Exército recusou-se a cumprir as ordens do governo e aderiu às forças rebeldes / O presidente tomou um avião rumo ao sul do País”. Trata-se da manchete principal de capa, revelando a importante atenção destinada ao Brasil pela imprensa portuguesa. Na matéria, são destacados, ainda, abaixo do título e das linhas de apoio, três tópicos:

- Na sua última entrevista, Goulart disse contar com o 3º Exército (Porto Alegre) para se manter no poder - Em poucas horas correu por várias vezes o boato de que Goulart se demitira e abandonara o país - Os dez mais poderosos Estados ao lado dos rebeldes

Observamos que, em relação ao título – para Van Dijk (2005), os títulos e leads são macroproposições, representações de nível global de temas que denotam fatos – o DN coloca Goulart como ator principal e opta pelo verbo “abandonar” para caracterizar sua partida para o Sul. O Presidente, assim, deixa a capital para trás, ação que, tanto na leitura midiática, como vimos na

167 A SITUAÇÃO do Brasil. República. Lisboa, 2 abr. 1964, pp. 1 e 12.

156 imprensa brasileira, como em significativa parte da historiografia (FERREIRA; GOMES, 2014), marca sua derrota política, apesar da intenção, ao menos de parte de seus apoiadores, de resistir ao golpe a partir do Sul. No corpo do texto, porém, o DN informa que “João Goulart não abandonou a chefia”168, ao contrário do que a manchete sugere. O texto dá conta, ainda, da confusão entre fatos e notícias no decorrer daquele dia, como vimos na cobertura da imprensa brasileira:

Os acontecimentos no Brasil evoluíram extraordinariamente nas últimas 24 horas, a ponto de se anunciar, por várias vezes, a demissão do presidente Goulart, a qual foi comunicada pelo governador Carlos Lacerda e festejada pela população do Rio de Janeiro e mais tarde desmentida. Só a meio da noite se esclareceu a situação: João Goulart não abandonou a chefia – segundo informa o chefe da casa civil do presidente – e assume, normalmente, todas as responsabilidades do poder169.

Neste ponto da narrativa, os governadores de Minas e da Guanabara ganham destaque e são personagem que assinalam, na narrativa, o volume do apoio arrecadado pelo movimento revoltoso. Na capa do DN de 2 de abril, a chamada secundária de capa é: “Carlos Lacerda eletrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos”, assinalando o impacto das ações midiáticas do governador da Guanabara, no cenário das barricadas montadas em seu palácio e despachando, de metralhadora em punho, através de entrevistas, discursos, declarações e manifestos. Em uma citação, acompanhada de um pequeno retrato, afirma: “A nossa luta não é contra vós mas sim contra o comunismo – declarou o governador aos fuzileiros navais”170. Abaixo, em outro texto, está em destaque a manifestação pública de Ademar de Barros, governador de São Paulo, a qual reforça, mais uma vez, a questão da “infiltração comunista” no governo Goulart: “Não queremos infiltração de Moscovo, de Pequim ou de Havana”171. A capa desta edição do DN é totalmente dedicada aos acontecimentos no Brasil e finaliza-se com repercussões populares: na porção esquerda inferior

168 GOULART abandonou Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 169 GOULART abandonou Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 170 CARLOS Lacerda electrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 171 ADEMAR de Barros numa proclamação pela rádio. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

157 está uma foto da multidão presente à da Marcha da Família com Deus e pela Liberdade em São Paulo, caracterizada como “a primeira reação” ao comício da Centra do Brasil, ocorrido no dia 13 de março no Rio de Janeiro. À direita da página, a chamada é “Delírio em Copacabana para celebrar ‘a vitória da democracia’”. É apenas na continuação do texto da matéria principal de capa (“Goulart abandonou Brasília”), na página 7 da edição de 2 de abril, que está uma declaração do presidente Goulart, a qual contraria, em parte, a própria manchete: “Em Brasília, e antes de partir, Goulart anunciou pela própria rádio governamental que não renunciaria nem abandonaria o país, ao contrário de notícias postas a correr”172. Porém, ao lado, na continuação da matéria de capa sobre o governador da Guanabara, o título sentencia: “Lacerda decidiu a situação”. Essa decisão deu-se, na narrativa do DN, de forma eminentemente midiática, como veremos no tópico 3.2.3, quando Lacerda fez, através de rádio e televisão, o falso anúncio do abandono do governo por Goulart. O movimento revoltoso torna-se cada vez mais coeso e numeroso: novos estados da Federação, tanto através de suas lideranças civis quanto militares, unem-se a Minas Gerais (o DN conta, àquela altura, 10 estados sublevados – Minas Gerais, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso, São Paulo, Bahia, Sergipe e Guanabara). O Supremo Tribunal Federal também manifesta apoio ao movimento: “A emissora de rádio de Belo Horizonte revelou que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Lafaiete Andrade Silva, se congratulou com a iniciativa do governador Magalhães Pinto, opondo-se à comunização do Brasil”173. Por outro lado, o apoio ao governo parece minguar: “A [sic] CGT deu ordem de greve geral mas São Paulo e Belo Horizonte não obedeceram”, afirma o título da notícia na página 7. O DN oferece aos leitores uma análise informativa e contextual dos acontecimentos, em um tom didático, ao destacar as “Origens dos acontecimentos” e as “Figuras de relevo no atual momento político do Brasil’”. No primeiro caso, o jornal aponta três principais tópicos que teriam motivado a revolta militar no Brasil: “Reformas de fundo no domínio agrário; Revisão

172 GOULART saiu de Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 173 GOULART saiu de Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

158 constitucional num sentido popular; Viragem à esquerda na orientação do governo Goulart”174. O texto, que cita como fonte a agência France Presse, reforça a difundida tese que culpa o próprio presidente pelo golpe, afirmando que este teria sido uma resposta ao endurecimento da retórica e das ações de Goulart no sentido de levar a cabo o seu programa de reformas, lidas como uma “viragem à esquerda”. Entre as “figuras de relevo do atual momento político do Brasil” são citados o governador de Minas Gerais Magalhães Pinto; o general Olímpio Mourão Filho, comandante do Exército desse mesmo Estado; o general Amaury Kruel, comandante da região militar de São Paulo e o governador Paulista Ademar de Barros. Ganha destaque com uma foto, mas sem texto, o ex-presidente Kubitscheck de Oliveira. A viagem de Goulart do Rio a Brasília é interpretada tal como caracterizada na manchete, ou seja, um abandono:

Seja como for, a maneira como o Presidente Goulart deixou o palácio governamental das Laranjeiras, dá à partida um aspecto de abandono. Esta impressão é confirmada pela retirada rápida das forças que guardavam o palácio, imediatamente a seguir à partida do presidente.175

Na seção de “Últimas Notícias”, na página 5 da edição de 2 de abril, está a confirmação de que Goulart voou de Brasília a Porto Alegre, “reduto de Brizola”. Curiosamente, essa informação vem de Washington, através da agência Reuters: “Fontes diplomáticas dessa capital afirmaram que o presidente João Goulart partira de Brasília para Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, o Estado mais ao Sul do Brasil, que confina com as fronteiras da Argentina e do Uruguai”176. Porém, logo ao lado, duas notas favorecem a leitura da queda de Goulart: “O governador do Rio Grande do Sul aderiu aos rebeldes” e “Caíram os mais fortes baluartes da defesa de Goulart”. Nesta última notícia, o DN informa o silenciamento da Rádio Mayrink Veiga, favorável ao governo, e a prisão do governador de Pernambuco, Miguel Arraes. Destacamos, ainda nesta página, a publicação de dois textos, ambos com fonte na agência France Presse, que se mostram mais equilibrados na

174 ORIGENS dos acontecimentos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 175 GOULART saiu de Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 176 CONFIRMA-SE a partida de Goulart para Porto Alegre. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5.

159 narrativa dos acontecimentos. O primeiro, “Os efetivos militares em presença nos dois campos”, procura identificar e dimensionar o volume de tropas arregimentadas por “governamentais” e “constitucionalistas”. Essa nota dá conta de um aparente equilíbrio entre as forças em disputa pelo poder e é honesta em relação à dificuldade em definir os apoios em meio à confusão e desinformação naquele 1º de abril:

Os observadores estão reduzidos a suposições, mas têm a impressão de que até agora a relação das forças é mais ou menos equilibrada. Sublinham, no entanto, que é impossível saber quando o chefe duma grande unidade aderiu a um ou a outro campo e se é inteiramente obedecido pelos seus homens. As recentes manifestações de sargentos na origem da crise, fazem com efeito planar dúvidas sérias quanto à disciplina que reina nas forças armadas.177

Da mesma forma, “De Laranjeiras ao Guanabara – A distância que separa o Brasil de uma guerra civil”, utiliza a imagem da proximidade física entre as sedes do governo estadual da Guanabara (Palácio Guanabara) e do governo Federal no Rio (Palácio das Laranjeiras) – menos de um quilômetro – para ilustrar a situação de tensão:

Há, portanto, uma situação de expectativa, de resto perfeitamente exemplificada pela “coexistência armada”, no Rio de Janeiro, do Presidente Goulart e do governador Lacerda. O presidente e o governador transformaram os respectivos palácios em praças-fortes, como dois estrategas que aguardam a “hora do destino”. A distância que entre os dois medeia, do Laranjeiras ao Guanabara, não é muita: apenas algumas centenas de metros. Simbolicamente, porém, são estes centos de metros que separam o Brasil da guerra civil.178

Mesmo dando espaço a esse tipo de leitura dos fatos – de que haveria muitas dúvidas e confusão naquele momento e ao menos um equilíbrio maior entre as forças políticas e militares em jogo –, vemos que no DN predomina a narrativa que assinala na partida de Goulart de Brasília uma derrota política e que esta acarreta, consequentemente, sua retirada do poder, ainda que de forma inconstitucional.

177 OS EFECTIVOS militares em presença nos dois campos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5. 178 DE LARANJEIRAS ao Guanabara – A distância que separa o Brasil de uma guerra civil. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5.

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No dia 3 de abril, o DN completa a sequência narrativa de degradação- reparação-melhoramento de forma bastante semelhante à imprensa brasileira no que diz respeito ao apelo ao retorno da “normalidade”. A manchete principal da capa é dedicada aos acontecimentos no Brasil: “Calma volta ao Brasil / Anunciada no Rio de Janeiro a vitória das Forças Armadas”. Ressaltamos aqui dois aspectos da manchete: o primeiro, a ênfase no “anúncio”. Essa questão é relevante porque, como discutiremos com maior ênfase na síntese comparativa (subtítulo 3.3), grande parte da efetivação do golpe de Estado no Brasil aconteceu através de uma guerra de informação (ou desinformação), na qual os meios de comunicação foram usados pelas autoridades e pelos próprios meios de comunicação como instrumentos de ação política, no primeiro caso, e como fontes fidedignas de informação, no segundo. Sendo assim, é emblemático que o DN enfatize a consumação do golpe em um “anúncio”. O segundo aspecto que destacamos é a “vitória das Forças Armadas”, porque a afirmação reforça a unidade e coesão como características marcantes desse grupo, tópico que percebemos na análise da narrativa jornalística selecionada nesta tese, apesar da historiografia (FICO, 2014) e da própria imprensa analisada registrar – de forma indireta, através da caracterização do conflito – que havia divisão nas Forças Armadas entre grupos pró e anti-Goulart. A foto e a legenda que acompanham a manchete reforçam a face midiática do golpe: trata-se de uma imagem de Carlos Lacerda sendo cumprimentado em meio a uma multidão. A legenda afirma: “O governador Carlos Lacerda, pouco depois de anunciar, pela rádio e televisão, ontem, no Rio, que o Presidente Goulart fugira perante a rebelião constitucionalista, deixa a emissora envolvido por civis e militares”. O jornal refere-se ao discurso proferido por Lacerda ao final do dia 1º de abril, o mesmo que a edição do DN do dia anterior informava ter sido desmentido pela flagrante presença do Presidente Goulart em solo nacional. Muito provavelmente, o jornal informa erroneamente o local da captura da imagem, uma vez que Lacerda proferiu o discurso de dentro do palácio Guanabara e não se deslocou à sede da TV Rio. Nesse sentido, o DN confere a Lacerda o protagonismo no estabelecimento midiático do golpe: a chamada secundária, abaixo da foto, afirma que “O Governador Carlos Lacerda anunciou do seu palácio entrincheirado a vitória

161 final da revolução: “O Brasil dobrou uma esquina da história”. Trata-se de uma “crônica telefônica” do correspondente do Diário de Notícias no Brasil, o jornalista André Massil. O diário faz questão de publicar na capa uma nota de agradecimento à CTT (empresa de Correios, Telégrafos e Telefones de Portugal) pela colaboração na publicação da crônica, a qual foi telefonada do Rio de Janeiro na noite de 2 de abril, possibilitando ao leitor do DN ter acesso às informações mais recentes sobre os acontecimentos. O texto descreve a festa nas ruas do Rio de Janeiro em comemoração à queda de Goulart e à vitória frente ao “comunismo”. A situação das ruas e a reação popular são a tônica desses dois textos principais da capa de 3 de abril do DN. A capa é composta, ainda, por um texto que explica a ação do Congresso Nacional (a posse de Mazzilli) e, finalmente, o destino de Goulart, compondo, em uma mesma página, uma narrativa completa: o passado (Goulart), o presente (a festa popular) e o futuro (o Congresso). No Congresso, o DN aposta em uma estratégia de objetivação (comum, como vimos, à imprensa brasileira): “Em oito minutos o Brasil mudou de presidente / O Congresso Federal depôs Goulart e investiu interinamente Ranieri Mazzilli”. A linha de apoio complementa as informações, satisfazendo prontamente as projeções para o futuro, os “Três possíveis candidatos à presidência até 1965: Ademar, Amaury e Magalhães”. Sobre o Presidente, a explicação do jornal é que “Goulart reconheceu a derrota / Abandonou o país, saindo em avião de Porto Alegre para o Uruguai acompanhado de seu cunhado, Lionel Brizola, e de 15 generais”. Neste texto, o jornal admite a permanência do presidente em solo nacional durante a posse de Mazzilli, o que lhe garantiria legitimidade constitucional como chefe do Executivo, mas reconhece e caracteriza sua derrota política:

PORTO ALEGRE, 2. — Após dois dias de crise, João Goulart perdeu a partida e abandonou o país. A rebelião, nascida anteontem em Minas Gerais, vingou e o país celebra hoje a vitória da democracia. [...] Posto perante os factos, e após as sucessivas adesões dos dirigentes militares à rebelião, tanto mais que de Brasília se anunciava a tomada de posse do novo presidente interino, Goulart reconheceu a derrota. No entanto, esta manhã, ainda em Porto Alegre, o presidente afirmara que não se demitiria, resistindo a todas as diligências para o afastarem do poder. “Tenho a intenção de resistir — disse — pois

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estou persuadido de que o povo brasileiro não concordará com a solução que foi dada para a crise”. Acrescentou que não abandonaria o Brasil e que ficara surpreendido com a decisão do Congresso, ao entregar a Presidência da República a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Ao fim do dia, anunciando a partida de Goulart, o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, fez uma declaração na qual indicou que, depois de ter ponderado as suas responsabilidades, o presidente Goulart concluíra pela impossibilidade de exigir o sacrifício dos cidadãos de seu estado.179

A notícia tem continuação no interior do jornal, na página 7, onde são oferecidos detalhes da “Saída de Goulart do Brasil”. Aqui, um trecho importante está ao pé da página, com fonte na agência France Presse, e o subtítulo: “O Brasil chegou a ter dois presidentes?”. O texto expõe o problema da legitimidade da posse de Mazzilli frente à não-resignação e à permanência em solo nacional de Goulart. Sugere, ainda, que reação a partir do Sul, em termos de força militar, seria uma possibilidade real:

PARIS, 2. — Durante algumas horas, pelo menos, o Brasil teve dois presidentes: João Goulart, que não resignara de suas funções, e Ranieri Mazzilli, designado por Auro de Moura Andrade como presidente interino. A designação de Mazzilli [sic] supõe que o Presidente Goulart teria resignado ou sido exonerado, mas a verdade é que Darci Ribeiro, chefe da casa civil de Goulart, enviou ao Parlamento uma mensagem em que o Presidente Goulart declarava ser obrigado a abandonar Brasília, mas que continuava a assumir as responsabilidades do Poder. O senador Moura Andrade não teria tomado conhecimento dessa mensagem a tempo. Por isso, os círculos parlamentares mostraram-se reservados quanto à legalidade dos meios utilizados para declarar Goulart impedido de exercer a magistratura suprema. Esboçou-se uma divisão em dois campos: os que aceitavam como legal a designação de Mazzilli e os que consideravam Goulart como o único presidente legítimo. O problema revestia tanto mais importância quanto Goulart se encontrava em Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. O exército ali estacionado é o mais forte do Brasil e nessas condições a organização de uma resistência “legalista” não estava de forma alguma excluída. Essa atitude era de resto coerente com a mensagem de Goulart antes de partir de Brasília, onde manifestava a sua intenção de afrontar as forças que o queriam apear. – (F. P.)180

Agora contando com tempo para estabelecer alguma perspectiva sobre os fatos, o DN trata de analisar com mais detalhes as causas da crise no Brasil. Para o jornal, “Goulart assinou os a ‘sentença de morte’ ao sancionar os atos

179 GOULART reconheceu a derrota. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 180 A SAÍDA de Goulart do Brasil. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7.

163 de desobediência do Sindicato dos Metalúrgicos”. Atribui a queda de Goulart à quebra da disciplina dos marinheiros e à manifestação de “estilo bolchevista” do discurso proferido pelo Presidente no Automóvel Clube. Frente à possibilidade de guerra civil despertada pela iniciativa de Magalhães Pinto, a manutenção da unidade do Exército brasileiro foi, de acordo com o DN, decisiva:

Posto perante a ameaça de guerra civil, o Exército brasileiro colocou a salvaguarda de sua unidade acima de quaisquer outras considerações. Anticomunista mesmo quando é nacionalista, o Exército procurou um denominador comum: Foi a morte do presidente.181

Na mesma página, é publicada uma foto dos fuzileiros navais reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos, acompanhada pela legenda: “Foi aqui o princípio que deu causa ao golpe militar brasileiro: os fuzileiros navais revoltados no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio por infiltração comunista — repare-se nos punhos erguidos — foram cercados e dominados pela polícia militar”. Na foto aparecem, ao fundo, três punhos erguidos – sinal de resistência associado às esquerdas – e também uma pessoa com os dois braços erguidos, em sinal de rendição. No República, a conclusão da narrativa é composta de forma diversa, apesar de utilizar, da mesma forma que outros jornais analisados nessa tese, o expediente da projeção do futuro. É o único que não cita diretamente a “normalização” da situação em um sentido cotidiano, mas aponta para os desafios políticos a serem enfrentados dali para a frente. Abaixo da cartola “A situação no Brasil”, está o título: “Nos círculos parlamentares diz-se que a tarefa mais difícil é conciliar os interesses divergentes”. Nesse sentido, destacamos que República não reporta coesão nos grupos em confronto, nem mesmo entre as forças armadas, apesar de ver que, ao menos no plano interno, a situação – que chama de “caso Goulart” – está consolidada:

BRASÍLIA, 3 – O “caso Goulart” é tido desde já por arrumado nos círculos parlamentares locais, onde o maior empenho, agora consiste em encontrar o sucessor do Chefe de Estado deposto, para os dois anos que restam para o fim do mandato presidencial legal. A tarefa

181 GOULART assinou a sentença de morte [...]. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7.

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não é fácil, porque haverá que conciliar muitos interesses divergentes para conseguir uma maioria relativamente estável.

O jornal já considera frustrada a possibilidade de que alguns dos “vencedores do 1º de Abril”, Magalhães Pinto ou Ademar de Barros, viesse a ocupar a presidência. O marechal Lott e o general Dutra aparecem entre as possibilidades aventadas pela reportagem jornal, assim como o deputado Gustavo Capanema. Destaca, ainda, uma declaração perturbadoramente sincera do ex-ministro de Minas e Energia do governo Jânio Quadros, deputado João Agripino, o qual afirmava que:

[...] o Brasil acabava de viver uma revolução autêntica. “Quando há revolução, prosseguiu, os vencidos nunca têm razão”. Depois de tomar conhecimento da mensagem do secretário de Estado para o interior do Rio Grande do Sul, Mario Montini, anunciando que Goulart havia deixado o Brasil, Agripino acrescentou: “A retirada do Presidente acaba de nos dar razão”. 182

República tensiona, ainda, as circunstâncias do reconhecimento do novo governo brasileiro por parte dos Estados Unidos. Caracterizando o que o jornal chamou de “garantias sólidas de apoio dos Estados Unidos à causa rebelde”, a carta de Johnson foi considerada “amigável” e “não habitual”. Nesse sentido, República compõe uma narrativa mais aberta e crítica, inserindo, no acontecimento-intriga, elementos que destoam das demais narrativas analisadas até aqui.

3.2.2. Personagens

Em relação aos personagens, vemos que as narrativas dos jornais portugueses apresentam maiores diferenças entre si do que os brasileiros. O DN opta por um foco maior nas personagens civis, como os govenadores Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros. Nesse sentido, são emblemáticas a capa e a página 7 da edição de 2 de abril, nas quais fica demonstrado que, apesar da definição militar dos acontecimentos (a adesão do

182 A SITUAÇÃO política no Brasil. República. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 12.

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Exército aos rebeldes), as repercussões, os comentários e projeções são articulados na fala dos líderes civis. Na capa, Lacerda e Ademar são destacados, especialmente em falas anticomunistas: “Nossa luta não é contra vós mas sim contra o comunismo”, diz Lacerda; e “Não queremos infiltração de Moscou, Pequim ou Havana”, de Ademar. Ao longo do golpe, as Forças Armadas aparecem mencionadas de forma institucional, em relação a números, posição geográfica e adesão ou não ao movimento golpista. A reprodução de manifestos e comunicados das Forças Armadas também ocorre, e esses textos são marcados pelo tom de “união nacional”. Na representação feita pelos líderes civis, como, por exemplo, na visão de Carlos Lacerda, o exército é exaltado como uma força coesa e eficaz, capaz de efetivar a recuperação dos “valores fundamentais da nossa civilização” através da “resistência constitucional”. O título de matéria publicada no dia 3 de abril no DN traz trecho de uma citação de Lacerda que remete, ao mesmo tempo, para as ideias de internacionalização do comunismo e do Exército brasileiro como representante de uma certa natureza pacífica dos brasileiros (destacada, também, pelas vozes internacionais que reforçam essa visão, como já destacamos aqui: imprensa e autoridades): “Sem guerra o exército venceu – comentou Carlos Lacerda”. Na linha de apoio: “’O comunismo estava a conquistar o Brasil sem guerra e sem guerra o Exército venceu-o’ – declarou à imprensa o governador Calos Lacerda”183. O exército é caracterizado, ainda como uma força pacífica e que não usou da violência para consumar o golpe, como por exemplo na matéria “O Forte de Copacabana foi tomado sem um tiro por unidades hostis ao governo”184. A 3 de abril, quando o golpe está consumado e os generais se manifestam, o exército é caracterizado como uma força desinteressada da política, formada por homens dedicados e incansáveis, como aparece na fala do general Olímpio Mourão Filho:

183 SEM GUERRA o Exército venceu. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 5. 184 O FORTE de Copacabana foi tomado sem um tiro por unidades hostis ao governo. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5.

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O general Olímpio Mourão Filho entrou hoje no Rio de Janeiro à frente das tropas rebeldes de Minas Gerais, que são consideradas as principais triunfadoras da revolução. Com a barba por fazer e o uniforme coberto de pó, o general Mourão disse aos jornalistas que nunca houve qualquer185 hesitação quanto à entrega dos poderes aos civis. “As Forças Armadas brasileiras têm uma tradição que nunca foi quebrada. O Exército existe para servir — declarou.186

No República, como vimos na composição da intriga, o protagonismo e a narração pertencem ao governo Goulart, sendo destacadas as personagens relacionadas a esse grupo: especialmente o próprio presidente e o Ministro da Guerra, General Dantas Ribeiro. Os líderes civis golpistas, como Lacerda e Ademar de Barros, têm seus retratos publicados na contracapa da edição de 1º de abril. O foco nas personagens ligadas ao governo Goulart é tão marcado no República que na capa da edição de 3 de abril um box noticia que “Não há notícias de Leonel Brizola”. Brizola, nome sequer citado pelos jornais brasileiros (que a ele se referem como “o cunhado”) é lembrado pelo República junto com outro nome, o do deputado Francisco Julião:

Até a hora de encerrarmos a edição, as agências telegráficas não transmitiam qualquer notícia acerca do paradeiro de Leonel Brizola, cunhado de João Goulart e governador do Rio Grande do Sul [sic]187. Por outro lado, também ainda não se obteve confirmação a respeito da notícia posta a circular de que o deputado Francisco Julião teria sido assassinado. 188

No DN, a personagem João Goulart é enquadrada, nos primeiros momentos do golpe, como um “extremista”. Nesse sentido, na capa de 1º de abril, o trecho destacado da fala no Automóvel Clube é “Coisa alguma poderá afastar-me da linha de conduta que tracei”. É preciso ressaltar que a imprensa portuguesa demonstra mais respeito ao presidente do que a brasileira. Mesmo o conservador DN repercute em suas páginas a virulência dos editoriais do Jornal do Brasil (estilo de extrema violência”) e do Correio da Manhã (“ainda mais violento”)189. Trabalhadores, sindicatos, estudantes e as manifestações populares

185 A CALMA volta ao Brasil. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 186 AS MANIFESTAÇÕES no Rio de Janeiro. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7. 187 Brizola, àquela altura, era deputado federal eleito pelo PTB da Guanabara. 188 NÃO HÁ notícias de Leonel Brizola. República. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 189 GOULART acusado de proceder à “comunização” do país [...]. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

167 também aparecem nos jornais portugueses. A 1º de abril, República destaca, na capa, aspectos da vida popular cotidiana alterados pelos acontecimentos políticos. De acordo com o jornal, a população tomou de “assalto” as lojas de gêneros alimentícios, os bancos estavam encerrados, o transporte público paralisado. Na contracapa, destaca, ainda, que os “Os sindicatos de São Paulo reafirmam seu apoio total ao presidente da República”190. República destaca episódios de repressão, como as supostas mil prisões efetuadas pelo governo de Ademar de Barros. Sobre as manifestações populares festejando a vitória do golpe, restringe-se a comentar que a partida de Goulart do Rio para Brasília, “foi festejada como vitória sobre o comunismo pela população dos bairros ricos do Rio de Janeiro”191. Na capa de 2 de abril de 1964, o DN erra nos números relativos à Marcha da Família com Deus e pela Liberdade de São Paulo, tanto ao afirmar que ela teria ocorrido no dia 29 de março (a data correta é dez dias antes, 19 de março de 1964), quanto ao estimar o público em um milhão de pessoas (contagem que, mesmo nas estimativas midiáticas mais otimistas, como de OESP192 e do JB193, não passa de 500 mil pessoas). O jornal, que publica foto da multidão em São Paulo, procura estabelecer uma relação muito próxima (tanto temporalmente quanto em relação à movimentação política) entre a marcha e o Golpe Civil-Militar. A imagem não tem a autoria creditada. De acordo com o DN, a passeata foi uma resposta ao Comício da Central do Brasil (ocorrido no Rio de Janeiro a 13 de março) e a marca do começo da reação de repúdio ao comunismo que levou ao golpe, como fica explícito na legenda:

Dia 29 de março [sic]! Nas ruas da cidade de S. Paplo [sic] não se pode romper. Uma multidão compacta – um milhão de pessoas – manifesta seu repúdio ao comunismo, respondendo assim ao comício do dia 13, realizado no Rio de Janeiro. Assim começou a reação que havia de levar ao 1º de abril.194

190 OS SINDICATOS de São Paulo reafirmam seu apoio total ao presidente da República. República. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 12. 191 A SITUAÇÃO política no Brasil. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 12. 192 ENQUANTO há liberdade. O Estado de São Paulo. São Paulo, 20 mar. 1964, p. 1. 193 PASSEATA de 500 mil em São Paulo defende o regime. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20 mar. 1964, p.1. 194 A PRIMEIRA reação. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

168

Nessa mesma página, o DN reporta a reação popular festiva na zona Sul do Rio de Janeiro:

Na praia de Copacabana a multidão recebeu com grandes manifestações de alegria a comunicação feita pelo governador [Carlos Lacerda, sobre o então suposto pedido de demissão de Goulart] e podiam ver-se inúmeras pessoas dançando nas areias douradas da famosa praia e lançando papelinhos para as ruas do alto dos arranha-céus. Para celebrar “a vitória da democracia” os automobilistas fizeram funcionar as buzinas. Algumas pessoas foram às igrejas dar graças a Deus “por ter salvo o Brasil do comunismo”. Está a decorrer um verdadeiro carnaval nas ruas do bairro de Copacabana.195

Dentro do espaço da notícia sobre o “delírio em Copacabana”, está nota a respeito do incêndio no prédio da UNE, na qual o DN – indicando como fonte “informações obtidas no local” e a agência France Presse – destaca tratar-se de uma “associação de esquerda” e acusa os próprios estudantes de atearem fogo ao prédio:

Em chamas a sede da União Nacional dos Estudantes Brasileiros RIO DE JANEIRO, 1. — Está a arder o edifício da União Nacional dos Estudantes Brasileiros, associação de esquerda. Segundo informações obtidas no local, foram os próprios estudantes membros da união que incendiaram o edifício. Os bombeiros chegaram ao local escoltados pela Polícia do estado da Guanabara. – (F.P.).

O DN dedica pouco espaço às reações dos movimentos sindicais. A 2 de abril, menciona a chamada do CGT para a greve geral, mas afirma, no título, que esta não foi obedecida em São Paulo e Belo Horizonte. O jornal ressalta, ainda, que a greve foi proclamada pelos “comunistas” e cita os efeitos da paralização no Rio: “Em consequência da greve proclamada pelos comunistas, deixaram de circular no Rio os comboios, os elétricos e a maior parte dos autocarros, mas a greve não teve qualquer efeito em Belo Horizonte e São Paulo, os dois baluartes da revolta”196. Assim como ocorre nos jornais brasileiros de nosso recorte, o DN dá conta de uma aparente normalidade nas

195 DELÍRIO em Copacabana para celebrar “a vitória da democracia”. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 196 A CGT deu ordem de greve geral mas S. Paulo e Belo Horizonte não obedeceram. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

169 ruas do Rio de Janeiro, destacando apenas os boatos, o encerramento dos bancos e a corrida às mercearias:

A despeito da intensidade da guerra das notícias falsas, os nervos da população resistiram afora uma corrida às mercearias. Com efeito, as donas de casa, sempre de pé atrás, quiseram fazer certas reservas de víveres e a consequência é que alguns produtos alimentares começaram a faltar.197

Na capa do dia 3 de abril do DN, a linha de apoio da manchete dá ênfase ao caráter religioso e anticomunista da reação popular a essa vitória: “Um milhão de cariocas desfilou desde a catedral da Candelária ao centro da cidade, cantando e rezado, numa manifestação impressionante que designaram de alegria e ação de graças por o Brasil ter sido salvo dos perigos do comunismo”198. O texto principal de capa, que noticia a consumação do golpe de Estado no Brasil, credita como fonte a agência France Presse e traz indicativos importantes sobre a organização midiática dos fatos na visão deste diário. Se o movimento militar começa em Minas Gerais e a consumação civil da burocracia relativa ao cargo ocorre em Brasília, é no centro e na zona sul do Rio que o golpe se consuma simbolicamente, especialmente na consolidação da já agendada “marcha da família”, que se transforma em “marcha da vitória”:

RIO DE JANEIRO, 2. — A antiga capital do Brasil, um dos baluartes da democracia e do movimento militar que anteontem teve seu início em Belo Horizonte, recebeu hoje, com verdadeiro delírio, a notícia da vitória das forças armadas e da saída de Goulart do país. Todos os habitantes do bairro de Copacabana se reuniram para tomar parte na “marcha da família com Deus e pela liberdade”, organizada pelas associações católicas e patrióticas do Rio de janeiro, sob o patrocínio do governador Carlos Lacerda. A manifestação transformou-se, devido aos acontecimentos, numa procissão de ação de graças para agradecer a Deus por ter salvo o Brasil do comunismo. Centenas de milhares de pessoas (um milhão segundo os organizadores) desfilaram da catedral da Candelária até a esplanada do castelo, no centro da antiga capital. Desde o meio-dia, um cortejo ininterrupto de automóveis as levara de Copacabana. À frente marchavam o marechal Dutra, antigo presidente da república, e numerosos parlamentares. As mulheres de todas as idades eram numerosas, milhares delas com um rosário nas mãos, enquanto as mais jovens, de blusas azuis, riam cantavam e dançavam.

197 GOULART saiu de Brasília. ”. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 198 A CALMA volta ao Brasil. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1.

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Coloridos “confetti” caíam dos arranha-céus sobre os manifestantes, dando à marcha aspectos de verdadeiro carnaval.199

A menção ao uso da cor azul nas blusas das mulheres chama atenção. Acreditamos que esse fato está relacionado a uma homenagem ao exército brasileiro que, em missões de paz, utiliza a emblemática boina azul. Seria mais um indício que aponta para a caracterização das Forças Armadas como uma força coesa e acima de interesses particulares ou personalistas. Ainda sobre a reação nas ruas, o relato do correspondente André Massil é ainda mais adjetivado e enfatiza a participação popular de pessoas “de todas as classes”:

RIO DE JANEIRO, 2. – Quando a população carioca pôde compreender que as forças armadas, que tomaram a seu cargo a defesa da Constituição, estavam vitoriosas, explodiu no Rio de Janeiro a mais impressionante, a mais radiante e a mais espetacular manifestação de alegria que nos foi dado até agora presenciar. As janelas escancararam-se, nos modernos arranha-céus do Leblon e da Avenida Rio Branco e nas residências senhoriais das artérias que circundam a enseada do Botafogo, e encheram-se da gente que acenava com lenços, e mesmo com toalhas e lençóis, e uma chuva de pedaços de papel, recordação do carnaval carioca, caiu do espaço, sobre a multidão. As ruas e avenidas ficaram, num instante, repletas de automóveis que buzinavam. Dos morros desciam populares, manifestando ruidosamente a sua alegria, e em breve pessoas de todas as classes apinhavam os passeios, gritavam o seu regozijo — todos aclamando a vitória, numa euforia delirante. E foi assim no parque do Tiradentes, nas artérias labirínticas que descem dos morros, no quilómetro e meio da Avenida Rio Branco, nas areias doiradas da Avenida Beira-Mar, nas praias de Copacabana, do Leme e do Ipanema, em todo o Rio de Janeiro.200

A narrativa do DN transparece, desde os primeiros momentos do golpe, uma naturalização da repressão:

Sabe-se que a polícia de Carlos Lacerda tem plenos poderes para reprimir “as atividades subversivas”, tendo feito inúmeras prisões nos meios sindicalistas do Rio de Janeiro. Por outro lado, um deputado, o sargento Garcia Filho, um dos instigadores do recente pronunciamento de sargentos, foi preso em Belo Horizonte. Finalmente, Osvino Ferreira Alves, diretor da “Petrobras”, foi preso também.201

199 A CALMA volta ao Brasil. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 200 O GOVERNADOR Carlos Lacerda anunciou do seu palácio entrincheirado a vitória final da revolução. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 201 AS MANIFESTAÇÕES no Rio de Janeiro. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1.

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O clima de caça às bruxas instalou-se imediatamente: “Ademar e Amaury pedem a Mazzilli a depuração dos ‘vermelhos’ e dos ‘cor-de-rosa’” informa a nota do DN sobre a comunicação entre o governador e o comandante do IIº exército e o presidente recém-empossado:

Neste telegrama, os dois homens declaram que consideram seu dever “dizer lealmente que de nenhuma maneira se poderia admitir a transigência com os responsáveis pelas desgraças que se abateram sobre o Brasil”. O governador Ademar de Barros e o general Kruel declaram, por outro lado, que o perigo do atual movimento do Exército será “reconstruir o Brasil em bases falsas”. O telegrama termina com a afirmação de que é preciso exigir a “depuração dos vermelhos e dos cor-de-rosa, cuja adesão deve ser repelida energicamente.202

Ao analisar a situação no Brasil na edição de 3 de abril, o DN aponta a escassa manifestação das forças de apoio a Goulart. Mesmo com Mazzilli empossado, o jornal informa que “a luta política não terminará assim. As forças – sindicatos e escalões inferiores das forças armadas em que o Presidente se apoiava, ainda se manifestaram escassamente nesta crise”203. Na mesma página 7, pequenas notas dão indícios da situação da oposição: “Francisco Julião foi assassinado?” noticia os boatos (mais tarde provados falsos) do assassinato do deputado líder do Movimento das Ligas Camponesas; “Preso em S. Paulo um dirigente dos trabalhadores” dá conta da prisão de Osvaldo Pacheco, integrante da direção do Comando-Geral dos Trabalhadores. De acordo com o jornal, Pacheco deveria “responder, junto com seus camaradas da C.G.T., por atentado à lei de segurança nacional” e encerra a nota lembrando: “São Paulo teve hoje uma atividade normal”204. Da análise dos jornais portugueses de nosso recorte, vemos que, em relação aos personagens, República mostrou uma configuração narrativa diferenciada, colocando o governo Goulart como narrador-personagem (MOTTA, 2013) e protagonista. A narrativa do DN, por sua vez, foi mais aproximada da imprensa brasileira.

202 POSSÍVEIS candidatos à presidência do Brasil até 1965: Ademar, Amaury e Magalhães. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 7. 203 GOULART assinou a “sentença de morte”. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7. 204 A MUDANÇA do governo brasileiro. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7.

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3.2.3. Ruptura e repercussões midiáticas

Os jornais portugueses repercutem a imprensa brasileira em suas próprias coberturas e, com disso, assumem a face midiática do golpe. O DN de 1º abril afirma:

O Brasil está hoje entregue a uma verdadeira guerra psicológica. Combate-se a golpes de manifestos, comunicados, editoriais e, mais ainda, de notícias falsas. No discurso que pronunciou, a noite passada, Goulart tomou com clareza sem precedentes uma “atitude de esquerda”, pensam os observadores. Com exceção de “Última Hora”, órgão trabalhista, todos os jornais condenam hoje a atitude de Goulart.205

O DN, como órgão alinhado ao Estado Novo, repercute informações da imprensa brasileira relativa às relações internacionais entre os dois países. Revê episódios do passado recente para compor a intriga da narrativa dos acontecimentos em 1964, como é exemplo a matéria “A versatilidade política de Álvaro Lins descrita por um jornalista na ‘Tribuna da Imprensa’”206. Temos, neste caso, a apropriação do discurso do virulento e difamatório do periódico de propriedade do udenista Carlos Lacerda, adversário político de Goulart. No texto, Lins (1912-1970) – advogado, jornalista, crítico literário e embaixador brasileiro em Lisboa entre 1956 e 1959 – é descrito como “embaixador comuno-carreirista” cujas ações recentes indicariam a iminência de um golpe de Estado – comunista, neste caso – no Brasil. O texto, baseado em “queixas” e falas informais, traz a descrição de uma trajetória política contraditória e movida por interesses pessoais, culminando com uma aderência ao comunismo. A seguir, trecho da Tribuna transcrito pelo DN:

“Foi dito também que o Sr. Álvaro Lins foi forçado a aderir ao comunismo porque qualquer das duas opções do eleitorado nas próximas eleições (a vitória de Carlos Lacerda, que combate os ‘comuno-carreiristas’ ou a Kubitscheck de Oliveira, que lhe vota o maior horror pessoal), significará para ele mais cinco anos de

205 OS ATOS de indisciplina a que assistimos constituem grave ameaça ao futuro das instituições democráticas. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 7. 206 A VERSATILIDADE política de Álvaro Lins descrita por um jornalista na “Tribuna da Imprensa”. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 7.

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ostracismo. Daí, só um golpe de Estado solucionaria e sua melindrosa situação pessoal”.207

O trecho revela não apenas a construção narrativa de um ambiente conspiratório como também as projeções políticas de então para as eleições de 1965, frustradas pelo Ato Institucional n. 2, baixado pelos militares em 27 de outubro de 1965. Tal quadro se revela através da exploração de uma personagem secundária, mas de forte impacto nas relações entre Brasil e Portugal. Lins, quando embaixador durante o governo de Juscelino Kubitscheck, envolveu-se em um episódio de grande repercussão: a concessão de asilo político a Humberto Delgado (1906-1965), general da Força Aérea portuguesa que fez oposição ao regime salazarista na fraudulenta eleição presidencial de 1958 – da qual saiu derrotado. Ficou refugiado por três meses, a partir de janeiro de 1959, na embaixada brasileira em Lisboa, período no qual se estabeleceu acirrado debate entre as autoridades sobre a possibilidade de concessão de um salvo-conduto que permitisse a condução de Delgado ao aeroporto para que embarcasse rumo ao Brasil. No debate público neste País, setores à esquerda eram favoráveis ao asilo; à direita, era defendida a posição do governo português (BARBOSA, s/d). O episódio explicitou as discordâncias entre Lins e o Estado Novo e ajudou a provocar, ainda, seu rompimento pessoal e profissional com o Presidente Kubitscheck. Lins foi exonerado da embaixada em 1959 (ÁLVARO, 2001) e passou a dedicar-se à cátedra e crítica literária. Vemos, neste exemplo, assim como vimos nos jornais brasileiros de nosso recorte, que a seleção de periódicos estrangeiros como fonte de informação entre os jornais analisados indica a encampação de determinados posicionamentos no espectro político, relevando, assim, aspectos da metanarrativa jornalística. Neste caso, o DN traz à cena, através da Tribuna da Imprensa, uma personagem brasileira conhecida do público português para compor uma narrativa que aposta na iminência de um golpe comunista no Brasil. A 2 de abril, a cobertura do DN sobre os fatos no Brasil é em sua maior parte baseada em manifestos e informações transmitidas pelas rádios,

207 A VERSATILIDADE política de Álvaro Lins descrita por um jornalista na “Tribuna da Imprensa”. Diário de Notícias. Lisboa, 1 abr. 1964, p. 7.

174 especialmente aquelas da “Cadeia da Democracia” ou “Cadeia da Liberdade”, ou seja, ligadas ao movimento contrário ao governo Goulart. As ações de Lacerda, tal qual descritas pelo DN, demonstram a articulação midiática dessa personagem, do Rio, com o movimento iniciado em Belo Horizonte. Suas expressões contundentes e virulentas eram divulgadas pelas ondas do rádio e, ao mesmo tempo que encontravam eco em Minas e São Paulo, serviam como fonte para as imprensas nacional e estrangeira, além das agências de notícias. Não é à toa que, nas palavras do DN, Lacerda “eletrizou o Brasil”:

Numa exortação, o governador disse: “Cristãos do Brasil, levantai-vos e expulsai os comunistas”. A declaração de Lacerda, divulgada sob a forma de entrevista telefônica concedida à Rádio de Belo Horizonte, eletrizou o país. A cidade do Rio de Janeiro continua a ser, para todos os efeitos práticos, a capital do Brasil. [...] A Rádio de Belo Horizonte apoiou Lacerda, declarando: “Estamos consigo e vamos protegê-lo; e o Rio, contra os comunistas”.208

Nesta matéria, o DN descreve uma verdadeira performance midiática dessa personagem e afirma, na continuação do texto da capa da edição de 2 de abril, na página 7, que “Carlos Lacerda decidiu a situação”. Para Reis e Lopes (2001, p. 15), a ação, em termos semionarrativos, “deve ser entendida como um processo de desenvolvimento de eventos singulares, podendo ou conduzir ou não a um desenlace irreversível”, e é a isso que temos acesso através da narrativa do DN:

Carlos Lacerda também utilizou o mesmo emissor de ondas curtas para se conservar em contato com o quartel-general rebelde em São Paulo, depois de as linhas telefônicas do Rio de Janeiro terem sido cortadas pelas autoridades federais. Um “mal-entendido” levou ao cerco do palácio do governador [subtítulo] Pelo seu lado, Carlos Lacerda falou também, pela rádio, aos fuzileiros navais que disparavam contra o palácio:209 “Fuzileiros, ide-vos embora. A nossa luta não é contra vós, mas sim contra o comunismo”.

208 CARLOS Lacerda eletrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 209 CARLOS Lacerda eletrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

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O palácio estava defendido por cerca de 500 homens da Polícia Militar (força estadual), bem armados. Dispunham de munições para seis horas de fogo nutrido. O ataque dos fuzileiros navais contra o Palácio da Guanabara, de onde o governador Calos Lacerda discursava à multidão depois da partida do presidente Goulart, só durou um breve instante e foi atribuída a um “mal-entendido”. No bairro residencial de Copacabana, considera-se o triunfo de Lacerda como um facto. Nos outros bairros da cidade reina a calma, mas a Polícia Militar federal tomou posição, em formação de combate, no centro. Julga-se que se trata de prevenir eventuais manifestações dos partidários do presidente Goulart.210

As entrevistas, comunicados e proclamações de autoridades abertamente apoiadoras do Golpe Civil-Militar parecem suficientes como fonte de informação para o DN, dando a ler a dimensão do fator midiático no Golpe Civil-Militar no Brasil. Essa ação foi eminentemente executada pelos líderes civis do movimento golpista, e incorporadas à cobertura do DN com status de fala autorizada, circunstância evidenciada até mesmo na escolha dos títulos dos textos, como “Ademar de Barros numa proclamação pela rádio: “Não queremos infiltração de Moscovo, de Pequim ou de Havana”. Essa matéria revela parte do funcionamento da dimensão midiática do golpe:

SÃO PAULO, 1. — Onze estados estão agora unidos na defesa da democracia que Minas Gerais e São Paulo iniciaram, afirmou esta tarde Ademar de Barros, governador do Estado de São Paulo, numa alocução radiodifundida pela cadeia da “Democrática”. Esta cadeia, formada por todas as estações da capital econômica do Brasil e primitivamente nomeada “Cadeia da Liberdade”, limitou-se a difundir, até agora, música militar e uma declaração do Secretário de Segurança pública local, anunciando a sua formação. Opõe-se agora à Cadeia da Legalidade”, controlada pelo Governo Federal. Depois de anunciar que as forças que operam no Rio Grande do Sul se sublevaram “perante a voz da razão e da ponderação que presidiu aos actos revolucionários”, o governador de são Paulo declarou que “dentro de algumas horas, talvez dentro de poucos dias”, poderia anunciar no mesmo microfone a “vitória da Democracia” [...] Ademar de Barros declarou, além disso, que todas as estações de rádio do Estado da Guanabara estão ocupadas pela extrema esquerda, enquanto os habitantes do Rio de Janeiro são maltratados em consequência da ausência total de liberdade”.211

Nesse sentido, as reações populares noticiadas (aquelas ocorridas na zona Sul do Rio de Janeiro e em áreas centrais de São Paulo) são precedidas e motivadas por desinformação. Ao noticiar o “delírio em Copacabana”, o DN

210 CARLOS Lacerda definiu a situação. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 211 ADEMAR de Barros em uma proclamação pela rádio. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

176 indica a motivação: “O governador Calos Lacerda anunciou pela rádio que Goulart havia se demitido e saído do país. Na praia de Copacabana a multidão recebeu com grandes manifestações de alegria a comunicação feita pelo governador [...]”.212 O DN repercute a imprensa brasileira frente aos acontecimentos em seu próprio território. Cita como fonte principal um dos jornais de nosso recorte, o Jornal do Brasil, ao qual atribui um “estilo de extrema violência” na notícia “Goulart acusado de proceder à ‘comunização’ do país, a pretexto de executar reformas de base – escreve o ‘Jornal do Brasil’”, a qual repercute o editorial publicado por este jornal no dia 1º de abril, intitulado “Fora da Lei”:

RIO DE JANEIRO, 1. — O Presidente João Goulart é “um fora da lei” – escreve o fundista do “Jornal do Brasil”, acrescentando: “Desde ontem, a verdadeira legalidade é representada pelo movimento do Exército do Estado de Minas Gerais”. Em estilo de extrema violência, o jornal acusa o presidente da república de tentar proceder à “comunização” do país, a pretexto de executar reformas de base. “Há que expulsar Goulart do Governo. Há que escorraçá-los do Estado da Guanabara. Há que derrotá-lo aqui mesmo, na antiga capital federal, escreve o mesmo diário, considerando que os verdadeiros democráticos têm o direito a “pegar em armas contra um governo que deixou de governar” e cumpre ao Congresso Federal “nomear o seu sucessor”.213

DN afirma que o Correio da Manhã é ainda mais violento em seus comentários e que “os governamentais ‘Última Hora’ e ‘Diário Carioca’ reproduzem na primeira página notas do Ministério de Guerra e do Presidente da República” e destaca, ainda, que O Globo e Tribuna da Imprensa haviam sido impedidos de circular no dia 1º de abril, tendo suas rotativas bloqueadas por comandos de infantaria. O DN serve-se também das repercussões internacionais sobre a situação do Brasil para compor sua narrativa. De Washington, noticia, do presidente Johnson, “os votos de felicidade ao novo presidente do Brasil, Mazzilli, e ao povo brasileiro pela forma como soube solucionar os seus

212 CARLOS Lacerda eletrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 213 GOULART acusado de proceder à “comunização” do país, a pretexto de executar reformas de base – escreve o “Jornal do Brasil”. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

177 problemas sem derramamento de sangue”214. Repercute, ainda, a imprensa inglesa. Do Daily Telegraph, destaca a afirmação de que a intervenção das Forças Armadas se destinará à garantia de “retorno às formas constitucionais do Governo” e que “o Brasil terá de enfrentar um período doloroso de perturbações políticas”. Do Times, reproduz um trecho mais longo, no qual o diário londrino faz críticas ao governo Goulart, como: incapacidade de “elaborar uma política construtiva”, aptidão para “reforçar seu poder para conservá-lo” e busca de apoio em elementos nacionalistas ao acusar “as companhias petrolíferas estrangeiras de se encontrarem na origem do descontentamento atual”. The Times destaca, ainda, a “natureza pacífica” do Brasil, afirmando, em trecho noticiado pelo DN, que “Seria uma tragédia para toda a América Latina se o Brasil, que alcançou a independência, aboliu a monarquia e pôs cobro à escravatura sem efusões de sangue, viesse a sucumbir agora, por incapacidade de enfrentar as exigências sociais do século XX” 215. Vemos, assim, que este trecho usa características locais e o contexto global para explicar a queda de Goulart, dando acesso a um imaginário sobre o Brasil no contexto geopolítico daquele momento. Da Cidade do México e de Miami, em tom sensacionalista, levanta a suspeita de que o deputado Leonel Brizola, cunhado de Goulart, estivesse em conversação com Raul Castro, que ofereceria aviões e homens a fim de organizar uma resistência ao golpe. No título, pergunta: “Seria a voz de Brizola?” e cita parte do trecho supostamente escutado através de ondas curtas de rádio: “Estamos dispostos a morrer lutando”. Grupos anticastristas sediados em Miami também se pronunciam e ganham espaço no DN, afirmando que, de acordo com o Conselho Revolucionário Cubano de Miami, “os acontecimentos do Brasil serão incentivo para extirpar o comunismo de Cuba”216. Da Argentina, reporta o apenas reforço da guarda na fronteira com o Brasil. O República, assim como os demais jornais analisados nesta tese, cita como fonte as rádios que transmitiam informações e pronunciamentos das forças em conflito. A informação do rádio aparece, assim, como legitimadora

214 JOHNSON felicitou Mazzilli. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7. 215 A INFLUÊNCIA das forças armadas [...]. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7. 216 SERIA a voz de Brizola? Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 7.

178 dos acontecimentos, como é o caso da posse de Mazzilli sem a renúncia de Goulart e com a permanência do Presidente em território nacional. Sobre esse caso, o República afirma: “Rainieri Mazzilli, presidente do Congresso Brasileiro, prestou juramento como presidente da República em sucessão de João Goulart e afirmou pela rádio que reinava a calma em todo o país”217. Cita também que a “’Rádio Liberdade’, emissora oficial do novo regime, disse que o general Kruel tinha sido nomeado comandante das ‘forças democratas’”. Até mesmo uma rádio da cidade de Colônia, no Uruguai, parece como fonte de informação sobre um provável deslocamento do 2º Exército para Brasília. Vemos, assim, que a imprensa portuguesa serviu-se fartamente da própria mídia para compor sua narrativa, revelando a relevância determinante dos meios de comunicação nesse evento de ruptura institucional.

3.2.4. Léxico

Menos comprometida diretamente com os acontecimentos, a imprensa portuguesa faz escolhas lexicais próprias para referir ao golpe de Estado no Brasil. O conservador DN é categórico e não se constrange ao utilizar a expressão “golpe militar” em suas manchetes. A seleção do léxico neste jornal também parece ter sido condicionada pela acentuação, na construção da intriga narrativa, da dimensão de guerra civil. Nesse sentido, o DN se caracterizou pela adoção do léxico “governamentais” X “constitucionalistas”, como aparece na descrição da imagem de oposição de forças nos palácios do Rio de Janeiro:

De Laranjeiras ao Guanabara – a distância que separa o Brasil da guerra civil RIO DE JANEIRO, 1. — Hoje de manhã não tinha havido choque entre forças governamentais e constitucionalistas. Ambas, segundo dizem os comunicados dos dois lados, estão em movimento.218

A mesma construção aparece na caracterização do começo do movimento: “os chefes militares das tropas federais de São Paulo, Rio de

217 RANIERI Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 218 DE LARANJEIRAS ao Guanabara – a distância que separa o Brasil da guerra civil. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5.

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Janeiro e Belo Horizonte – que foram os primeiros a erguer o pendão da rebelião constitucionalista, reuniram-se em Resende, entre o Rio de Janeiro e São Paulo”219 (grifo nosso). Ao opor “governistas” e “constitucionalistas”, o DN imprime em sua narrativa uma expressão subjetiva favorável aos golpistas, caracterizados pela defesa da Lei, uma poderosa metanarrativa de fundo moral (MOTTA, 2013). A palavra “revolução” aparece neste jornal apenas na edição do dia 3, quando a situação estava consolidada a favor dos golpistas: “Os generais que lançaram a revolução agora triunfante tiveram ontem à noite uma reunião secreta – afirma-se em círculos informadores” 220 (grifo nosso). O República de 1º de abril não fala em golpe, mas aventa a possibilidade de guerra civil. Diferente do DN, caracteriza o movimento oposto ao governo Goulart como uma “revolta” levada a cabo por “forças insurrectas”, em uma “atitude contra o presidente João Goulart”. A defesa de Goulart é chamada de “forças lealistas” ou “tropas fiéis”: “Aparentemente, o Rio de Janeiro estava sob o controle das forças lealistas”, escreve no texto da capa de 1º de abril. Vemos, assim, que as escolhas lexicais de República são mais imparciais e que a subjetivação desse diário se revela de forma mais contundente na dimensão dos narradores-personagens, como vimos no tópico 3.2.2.

3.2.5. Relações com o tempo

As relações entre passado, presente e futuro também aparecem nas narrativas da imprensa portuguesa, ainda que em uma dimensão bem menos aprofundada do que aquela que observamos na imprensa brasileira. Mesmo nessa configuração mais enxuta, é possível perceber, novamente, a articulação entre passado, presente e futuro realizada na construção do acontecimento- intriga no jornalismo. Entendemos que, também por questões de espaço, o República se dedica menos a recuperar o passado ou projetar o futuro. Nesse sentido, o DN mobiliza o passado recente – a crise de 1961, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros – conectando esse episódio aos

219 GOULART saiu de Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7. 220 POSSÍVEIS candidatos à presidência do Brasil até 1965. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

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“termos” em que os adversários de Goulart colocam o problema político do país, ou seja, a polarização entre “comunismo” e “democracia”:

Efetivamente, pela segunda vez em quatro anos o Brasil encontra-se “tecnicamente” em estado de guerra civil. Em 1961 foi a crise da dramática demissão do presidente Jânio Quadros, a qual atingiu seu apogeu com o veto posto pelos chefes militares desse tempo à investidura do presidente João Goulart, acusando-o de “conluio com o comunismo internacional”. A situação de hoje tem em comum com a de 1961 o fato de os adversários de Goulart porem o problema em termos de “democracia contra comunismo”.221

A capa de 3 de abril do DN traz a projeção do futuro, citando os prováveis sucessores de Goulart na presidência (Ademar, Amaury e Magalhães). Através dessa projeção, vemos que a continuidade militar já se apresenta como uma possiblidade – assim como a realização das eleições de 1965. Na página 7, pequena nota afirma que “O exército prefere um general, talvez Amaury Kruel”. A fonte da informação é a ANI, que cita “círculos informadores”222:

BRASÍLIA, 2. — Os generais que lançaram a revolução agora triunfante tiveram ontem à noite uma reunião secreta – afirma-se em círculos informadores. Na reunião foi decidido propor ao Congresso que nomeie um general – possivelmente Amaury Kruel – para ocupar a presidência nos 21 meses que vão até a posse do presidente que saia das próximas eleições.

O DN apresenta, já na capa da edição de 2 de abril, uma fotografia que sintetiza a expressão de normalização do presente que identificamos na narrativa jornalística da imprensa brasileira sobre o Golpe Civil-Militar de 1964. A imagem mostra uma cena em frente ao Palácio das Laranjeiras: à esquerda, um entregador de leite com seu carrinho, à direita, um tanque e soldados. A legenda que acompanha a foto é a seguinte:

Frente ao Palácio das Laranjeiras, residência de Goulart no Rio de Janeiro, as tropas federais ainda ontem de manhã mantinham guarda quando o presidente ali se encontrava. Os civis, porém, continuavam

221 DE LARANJEIRAS ao Guanabara – a distância que separa o Brasil da Guerra Civil. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5. 222 POSSÍVEIS candidatos à presidência do Brasil até 1965. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 7.

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a sua vida normal: à esquerda, o típico leiteiro brasileiro e seu carrinho de mão.223

Para o DN, “os civis continuavam sua vida normal”, mas ao caracterizar a “calma” que “volta ao Brasil”, como afirma na manchete de 3 de abril, o DN trata do cotidiano da cidade com a presença de patrulhas e o ataque ao jornal Última Hora:

Na cidade do Rio, onde ainda circulam algumas patrulhas, os comerciantes abriram as portas e os transportes coletivos principiaram a funcionar. Na indústria petrolífera a situação, por enquanto, mantém-se confusa e as refinarias são guardadas por destacamentos do Exército. Os jornais apareceram normalmente esta manhã, exceto o trabalhista a “Última Hora”, saqueado por elementos hostis a Goulart.

Ressaltamos que é interessante observar que o jornal Última Hora é considerado, neste trecho, trabalhista e não comunista, como pesavam as recorrentes críticas a Goulart e seus aliados. No República, a dimensão do futuro, apesar de apostar na realização das eleições em 1965, opta pela cautela ao compor a manchete de capa de 3 de abril: “a tarefa mais difícil é conciliar os interesses divergentes”, afirma, citando os “círculos parlamentares”. O diário caracteriza-se, ainda, por preocupar-se com o futuro político de Goulart, especulando sobre seu paradeiro.

3.3. SÍNTESE COMPARATIVA

Realizamos, aqui, uma síntese interpretativa das análises produzidas sobre as narrativas dos jornais brasileiros e portugueses de nosso recorte sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil. Para tanto, retomamos, de acordo com nosso referencial teórico-metodológico, as categorias comparáveis estudadas em cada uma dessas narrativas. Começamos com a composição da intriga, movimento inicial da análise crítica da narrativa proposta por Motta (2013).

223 Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

182

Em relação aos jornais brasileiros, vimos que, com poucas nuances entre si, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil apresentam um cenário mundial marcado pela Guerra Fria e compreendido, assim, como dividido entre “o comunismo” e “o mundo livre”. Essa divisão está também manifesta nos jornais portugueses; no DN, há forte expressão anticomunista; no República, ganham espaço os movimentos sindicais e de trabalhadores pelo mundo. Em OESP há, ainda, a leitura agravante da situação da América Latina como palco privilegiado da Guerra Fria, no qual o Brasil desempenharia um papel decisivo. Da Argentina vem o exemplo do Peronismo, regime personalista e de controle governamental dos sindicatos, rechaçado com veemência pelos jornais brasileiros. No plano interno, a tensão torna-se crescente e insustentável com o episódio da Marinha, no qual JB, OESP e DN veem provas incontestáveis da comunização do País e da inserção de Goulart no campo da ilegalidade e dos interesses autoritários, o que lhe deslegitima como presidente da República. O tema das reformas é comum a todas as narrativas analisadas. Elas as admitem como necessárias ao País, porém, prevalece, no Brasil, a leitura de uma discordância em relação aos métodos de Goulart para leva-las a cabo: seriam fora da lei e abririam caminho para medidas autoritárias, por conta das propostas de reformas constitucionais. A oposição, apesar das duras críticas, não apresenta uma alternativa. Para o JB, como vimos, tratava-se de “comunização disfarçada de reformismo”. De acordo com as narrativas jornalísticas analisadas, o que se propõe são reformas “dentro da lei”, sem especificar uma proposta concreta. Configura-se um ambiente de aglutinação de forças contrárias ao governo Goulart: militares, políticos, classe média, setores da Igreja, empresariado e setores à esquerda (estes últimos consideravam as reformas propostas por Goulart muito amenas). Os jornais brasileiros de nosso recorte apresentam-se declaradamente como parte das forças de oposição ao governo Goulart. Isso acontece através de diferentes expedientes narrativos, como veremos em maior detalhe a seguir, na análise das categorias. Essa configuração narrativa privilegia o grupo rebelde como narrador-personagem (MOTTA, 2013) e enfraquece a dimensão de confronto entre forças políticas divergentes, ao contrário da imprensa

183 portuguesa, que narra os acontecimentos através de um enquadramento de guerra civil, ou seja, reconhecendo – ainda que não tenha acontecido uma guerra de fato – a disputa das forças em campo e a possibilidade de derramamento de sangue àquela altura. Em qualquer um dos casos, fica demonstrado o ambiente de extrema hostilidade e da reconhecida impossibilidade de diálogo político em termos republicanos, ou seja: a situação era de tudo ou nada, sintetizada pela manchete do República: “Deu-se o inevitável... A guerra civil estalou no território brasileiro?”. Em nosso entendimento, o enquadramento narrativo da imprensa portuguesa pode ser explicado tanto porque se trata de um olhar externo e, portanto, não engajado diretamente na causa em questão, como pela naturalização de um olhar sobre a América Latina como uma região propensa a “quarteladas”, expressão que aparece através da repercussão nos próprios jornais analisados. Sob essa ótica, os militares aparecem de forma recorrente como uma força definitiva nas crises políticas nessa região do globo; por outro lado, na imprensa brasileira, há um esforço em afastar o movimento militar no Brasil desse tipo de visão, seja pela caracterização das Forças Armadas como um grupo acima dos interesses políticos, seja através da projeção do futuro próximo: as eleições diretas em 1965, frustradas pelos militares. Demonstra-se, àquela época, tanto no Brasil quanto em Portugal, a prática de um jornalismo marcadamente declaratório, apresentando como estratégia de objetivação longas reproduções de falas de autoridades ou a transcrição na íntegra de discursos. Nesse sentido, as páginas dos jornais do começo da crise que levou ao golpe dividem-se, basicamente, entre trechos do discurso de Goulart no Automóvel Clube e os manifestos de Magalhães Pinto e dos Oficiais. No auge da crise, especialmente ao longo dos dias 31 de março e 1º de abril (edições de 1º e 2 de abril) o que vemos é uma verdadeira guerra a golpes de declarações, manifestos, proclamações, na qual os narradores- personagem, especialmente civis e militares golpistas, assumem a narrativa. Nos jornais brasileiros, manifesta-se a dimensão discursiva nos termos “nós versus eles”, caracterizada por Van Dijk (2005), expressa especialmente nos espaços editoriais. Nos jornais portugueses, a manifestação não é de engajamento, mas, ainda assim, é possível identificar a adoção de pontos de

184 vista diferentes entre DN e República. DN constrói em sua narrativa com base em forte argumentação anticomunista e apoia a maior parte da narrativa nas falas dos rebeldes, colocando Goulart como uma personagem de postura duvidosa e, portanto, sob suspeita e sob julgamento público. República, por sua vez, concede poder de voz aos representantes do governo Goulart, especialmente o Ministro da Guerra, General Dantas Ribeiro, apostando, em suas páginas, na condução narrativa do grupo governista. Três episódios são emblemáticos na narrativa do golpe de 1964 do ponto de vista midiático: 1) a revolta a partir de Minas e a adesão da oficialidade a esse movimento rebelde; 2) o anúncio da queda de Goulart por parte de Carlos Lacerda em cadeira de rádio e TV no final da tarde de 1º de abril, somada ao silenciamento das emissoras da “Cadeia da Legalidade”, estopim da reação das ruas na zona Sul do Rio de Janeiro e no centro de São Paulo e marcos midiáticos do triunfo do Golpe Civil-Militar; e 3) o impasse (nem sempre assim compreendido) da posse de Mazzilli sem que Goulart houvesse renunciado ou deixado o País. Em primeiro lugar, destacamos que, apesar da crise da Marinha e seus desdobramentos, a “gota d’água” para o início da rebelião contra o governo Goulart – desde há algum tempo planejada, mas ainda não levada a cabo, de acordo com Fico (2014) – define-se a partir de uma atitude discursiva: a fala de Goulart na reunião dos Sargentos no Automóvel Clube. Considerada “extremista” e “radical”, essas palavras reinvestem de significado o episódio da Marinha e, consequentemente, as ações do governo como um todo. Apesar do discurso de Goulart não trazer nenhum fato novo em termos políticos ou das ações que já vinham sendo tomadas pelo governo federal, sua reafirmação é compreendida como subversão, provocação, deboche – no título do editorial do JB, “reincidência”. No quadro de degradação extrema, a notícia é o aparecimento de uma narrativa alternativa: uma tomada de posição em Minas, acompanhada de uma onda de solidariedade entre autoridades civis e militares. Nesse sentido, afirmamos que a narrativa jornalística analisada opera uma diferença na repetição (SILVA, 2010): A “reincidência” de Goulart, apesar de, factualmente, não promover nada de “novo” – e a novidade é matéria-prima do jornalismo –, provoca uma diferença, a reação civil-militar. Assim, explicam-

185 se as manchetes de OESP e JB em 31 de março e 1º de abril, apresentadas a seguir, na Tabela 1:

O Estado de S. Paulo Jornal do Brasil 31/03/64 Minas unida em defesa da Carta; Clube Militar dá apoio ao Clube Naval prontidão rigorosa 01/04/1964 São Paulo e Minas levantam-se S. Paulo adere a Minas e anuncia pela Lei marcha ao Rio contra Goulart Tabela 1 – Manchetes dos jornais brasileiros sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 31 de março e 1º de abril

OESP assume a lente do movimento rebelde ao adotar a narrativa da reparação, ou seja, a “defesa da Carta” ou o levante “pela Lei”. O JB, depois de corroborar a coesão do movimento (“Clube Militar dá apoio ao Clube Naval”) opta, na manchete de 1º de abril, por definir o objeto de repúdio da “marcha” ou “levante” resultante do “apoio”: trata-se de um movimento contra Goulart. Pode parecer uma obviedade, mas a opção de OESP em não designar na manchete a vocação final do movimento iniciado em Minas (derrubar Goulart) é uma forma de apagamento da mais flagrante contradição dos acontecimentos em 1964: a retirada ilegal, pela força das armas e “em defesa da Lei’, de um presidente legitimamente eleito. É dessa mesma forma que, mais tarde, a imprensa brasileira analisada dá destaque ao fato de que Ranieri Mazzilli tomou posse como presidente, mas não oferece muitas explicações sobre a deposição de Goulart além da caracterização do abandono do poder, ocorrida depois da posse de Mazzilli. Além da notória hierarquização das notícias, com os destaques voltados ao movimento rebelde, esse ponto de vista é endossado mesmo através das estratégias de objetivação, como, por exemplo, a nota do JB que informa que a partida de Jango do Rio de Janeiro, rumo a Brasília, ocorreu um avião da fabricante inglesa Avro, portando uma mala grande e embrulhos que pareciam conter documentos. Todos os detalhes informados sobre o voo, apesar de corretos, tornam-se relevantes porque assumem na intriga a caracterização de uma fuga ou abandono, apesar dessa leitura não corresponder a uma compreensão mais completa sobre a situação (a articulação de resistência ainda era uma possibilidade). Relembramos, na Tabela 2, a seguir, os títulos dos jornais portugueses sobre a revolta das tropas em Minas:

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Diário de Notícias República 31/03/64 Apoio do Exército na exigência João Goulart exprime sua confiança para que os marinheiros nas Forças Armadas para levar a cabo comunistas recebam castigo por o seu plano de reformas indisciplina 01/04/1964 Golpe militar no Brasil: as tropas A guerra civil estalou no território federais do estado de Minas brasileiro? As forças insurrectas revoltaram-se contra João Goulart procuram destituir o presidente João Goulart que tem o apoio dos sindicatos e forças armadas* Tabela 2 – Títulos dos jornais portugueses sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 31 de março e 1º de abril

Vemos que os jornais portugueses são muito mais específicos ao compor os acontecimentos-intriga em relação às motivações e discordâncias entre os grupos em conflito. Diferente da imprensa brasileira analisada, que recorre a designações genéricas (“a Carta”, “a Lei”, “apoio”, “contra Goulart”), o DN fala de exigência, por parte do Exército, para que marinheiros comunistas recebam castigo por indisciplina. Trata-se de uma enunciação – ainda que generalize ao chamar os marinheiros de comunistas – muito mais específica do que um “levante pela lei”, ainda que seja correto considerar a exigência de punição aos marinheiros como um pedido de aplicação da lei. Já em 1º de abril, o DN é ainda bastante específico ao usar a expressão “golpe militar no Brasil” para referir o levante de tropas federais contra o presidente Goulart. Percebemos que, mesmo em uma concepção abertamente anticomunista dos acontecimentos, o DN compõe títulos que conferem uma leitura mais completa da situação política no Brasil. República, por sua vez, centra a narrativa nas ações de Goulart, que, de acordo com o jornal, exprime sua confiança nas Forças Amadas para levar a cabo o seu plano de reformas. Essa enunciação, além de diferenciar-se por eleger o governo Goulart como narrador- personagem, expõe a disputa política em torno das reformas de base e dos acontecimentos relativos à Marinha (apoio das Forças Armadas). Em 1º de abril, República fala em “guerra civil”, apostando em um confronto (Goulart com o apoio de setores importantes) e evidenciando a intenção dos “insurrectos”: destituir o presidente João Goulart. O segundo episódio é a performance midiática de Carlos Lacerda, governador da Guanabara, entrincheirado no Palácio Guanabara, de

187 metralhadora em punho. Em termos narrativos, Lacerda traz o conflito ao centro simbólico e midiático do poder político, o Rio de Janeiro. Os Palácios Laranjeiras e Guanabara fortificados, a menos de um quilômetro de distância um do outro, provocaram o imaginário de forma muito mais contundente do que a notícia da marcha de tropas em Minas Gerais: Lacerda e Goulart, adversários declarados, frente a frente. Como assinalou o DN, essa era “A distância que separa o Brasil de uma guerra civil”. Diante das forças em conflito, a expectativa é de uma ação que ofereça um desenlace, ou seja, que traga uma transformação (REIS; LOPES, 2011, p. 15). “O presidente e o governador transformaram os respectivos palácios em praças-fortes, como dois estrategas que aguardam a hora do destino’”224, afirmou o DN, com sensibilidade literária. A medida de forças acontecia também através das rádios. A Rede da Legalidade, favorável ao governo, dominou a faixa de notícias no Rio de Janeiro, através das emissoras Nacional e Mayrink Veiga. Não é à toa que o jornalista Wilson Figueiredo, colunista do JB, atribuiu ao seu silenciamento a definição de uma mudança de rumo nos acontecimentos: a derrota de Goulart. As comemorações populares do centro do país, reportadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais estimuladas pelo anúncio (ainda que falso) de Lacerda ajudam a configurar o triunfo do golpe. Nas palavras do mesmo jornalista, “Quando foram caladas a Nacional e a Mayrink, as notícias se precipitaram atrás dos fatos, até se encontrarem afinal na constatação de que não havia nada a fazer, além da comemoração”225. Nesta citação, o jornalista indica que a perda do poder de voz na narrativa foi decisiva para a queda do governo Goulart e que aconteceu aí um hiato entre o tempo dos fatos e das notícias. A falta de notícias (ou de fatos) do lado governamental constituiu o referente das comemorações. São elas que acertam novamente o compasso do tempo midiático e passam ser referente das notícias sobre o “carnaval” animado pela queda de Goulart. De acordo com o DN, Lacerda “electrizou o Brasil” 226 e destaca que, na festa da vitória, “pessoas de todas as classes

224 DE LARANJEIRAS ao Guanabara – A distância que separa o Brasil de uma guerra civil. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 5. 225 FIGUEIREDO, Wilson. Diálogo de Jair e Goulart ao telefone precipitou decisão no Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 02 abr. 1964, p. 6. 226 CARLOS Lacerda electrizou o Brasil ao unir-se aos revoltosos. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

188 apinhavam os passeios” 227. Para o República, Lacerda era “um dos mais acérrimos adversários do presidente Goulart” e estava “fortificado em seu palácio”. Sobre a comemoração, ressalva que a festa se deu nos “bairros ricos do Rio de Janeiro” 228. Voltamos aos títulos e manchetes para tratar do terceiro episódio destacado em nossa análise, sobre o impasse entre a permanência em solo nacional e a não-resignação de Goulart e a posse de Mazzilli. Em meio às declarações oficiais reproduzidas em profusão pelos jornais, os títulos assumem grande importância em nossa análise, pois são espaços privilegiados da narração do veículo. O episódio está colocado, principalmente, nas manchetes de 2 e 3 de abril, uma vez que declaração de vacância e a posse aconteceram logo nas primeiras horas do dia 2. Nos jornais de nosso recorte, as manchetes desses dias estão expressas nas Tabelas 3 e 4, a seguir:

O Estado de S. Paulo Jornal do Brasil 02/04/1964 Vitorioso o movimento Goulart resiste no Sul e o congresso democrático empossa Mazzilli 03/04/1964 Democratas dominam toda a Goulart toma rumo desconhecido e o nação Brasil volta à normalidade Tabela 3 – Manchetes dos jornais brasileiros sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 2 e 3 de abril de 1964.

Diário de Notícias República 02/04/1964 Goulart abandonou Brasília* Rainieri Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República 03/04/1964 A calma volta ao Brasil / Nos círculos parlamentares diz-se que Anunciada no Rio de Janeiro a a tarefa mais difícil é conservar vitória das Forças Armadas* interesses divergentes* Tabela 4 – Títulos dos jornais portugueses sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil nos dias 2 e 3 de abril de 1964. *Manchete principal de capa.

OESP segue, como nas edições anteriormente analisadas, apostando na mobilização de generalidades, o que reforça a perspectiva de coesão sobre o movimento civil-militar, ou, nas palavras desse jornal, “democrático”. Lembramos que OESP é, em nosso recorte, o jornal que mais aproxima os fatos da intriga da Guerra Fria e, nesse sentido, a escolha das manchetes mobiliza o imaginário da vitória do “mundo livre” sobre o “totalitarismo”

227 O GOVERNADOR Carlos Lacerda anunciou do seu palácio entrincheirado a vitória final da revolução. Diário de Notícias. Lisboa, 3 abr. 1964, p. 1. 228 A SITUAÇÃO política no Brasil. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 12.

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(comunismo) e joga, ao mesmo tempo, o governo Goulart e seus apoiadores para esse segundo campo do espectro político. Ressaltamos que OESP ignora, em suas manchetes, o tema da permanência de Goulart em solo nacional e o fato de que não se demitiu. Pragmático, resolve a questão através da transcrição de trechos da constituição que indicam, na falta de um vice- presidente, a posse do Presidente da Câmara dos Deputados em caso de “impedimento” do Sr. João Goulart229. Na página 3 – tradicional espaço de opinião – da edição do dia 2 de abril, chega a explorar o caso com maior detalhe, mas, nesse sentido, a confusão das informações parece ser conveniente. Na dúvida, João Goulart está “impedido”. Na edição do dia 3, a partida de Goulart para “destino ignorado” está consumada e legitima, a posteriori, a posse de Mazzilli, apesar de que “ainda pela manhã [do dia 2 de abril], o sr. Goulart afirmou à imprensa que não havia renunciado. Disse ainda que considerava a posse do sr. Ranieri Mazzilli na Presidência como uma ‘mistificação do Congresso’, pois que ele não havia abandonado o território nacional”. JB, por sua vez, opta por manchetes mais específicas e corretas do ponto de vista factual: a 2 de abril: “Goulart resiste no Sul e o congresso empossa Mazzilli”. Apesar de conterem uma flagrante contradição, ambas as afirmações são verdadeiras. A contradição é explorada em espaço opinativo, em texto que, já no título, indica a leitura do jornal sobre os fatos: “Situação definida, mas ainda não consolidada” (grifos nossos), pois restam “algumas dúvidas quanto à sua consolidação dentro de um quadro em que se resguardem, como em agosto de 1961, as recomendações básicas da Constituição”. Mais uma vez, assim como OESP: na dúvida, Goulart está definitivamente deposto. A aposta é que mais tarde os fatos se ajustarão à lei: “É possível que já nesta manhã, quando o JORNAL DO BRASIL estiver circulando, essas dúvidas sejam esclarecidas”230. Em Portugal, DN também é correto factualmente, mas faz uma escolha lexical e um recorte que leva ao entendimento da derrota política de Goulart: “Goulart abandona Brasília”. No corpo do texto, porém, o DN informa que “João

229 SUSBTITUTO do Presidente da República. O Estado de São Paulo. São Paulo, 2 abr. 1964, p. 38. 230 SITUAÇÃO definida mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

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Goulart não abandonou a chefia”231, ao contrário do que a manchete afirma. Publica, ainda, texto que coloca em questão: “O Brasil chegou a ter dois presidentes?” Na dúvida, Goulart não é mais presidente. Na guerra de informação midiática, não surpreende que DN opte, no dia 3 de abril, em manchete, por relacionar a vitória do movimento civil-militar ao seu anúncio no Rio de Janeiro, palco escolhido por esse jornal como o principal de sua narrativa: “A calma volta ao Brasil / Anunciada no Rio de Janeiro a vitória das Forças Armadas”. Finalmente, República volta-se também ao específico e factual, sem explorar a personagem Goulart, central em sua narrativa até então: “Rainieri Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República”. Trata-se de uma escolha pela informação correta e mais confiável, no sentido de que possui referência factual incontestável e que constitui uma ação legitimada que, narrativamente, opera uma transformação na narrativa, tendo em vista o desencontro de informações sobre os movimentos de Goulart. No corpo do texto, o jornal explica que “O congresso reuniu-se em sessão especial e resolveu que a Presidência seria declarada vaga em virtude de Goulart ter se mantido afastado durante muito tempo da sede do governo, durante uma altura de crise”232. Desacreditado mesmo em declarações dramáticas, a narrativa do República indica a perda da voz de Goulart como narrador, sendo substituído pelas suposições e boatos que corriam ao longo da crise: “Fontes governamentais disseram em Brasília que o presidente Goulart se deve ter demitido verbalmente. Porém, este, ao chegar a Brasília vindo do Rio, tinha declarado: “Não me demitirei nem darei um tiro no coração” 233 (grifo nosso). Vemos assim, que o único jornal a expor nos títulos, ao menos factualmente, a contradição entre a posse de Mazzilli e não-resignação e permanência de Goulart em solo nacional foi o JB. Mesmo assim, a narrativa do jornal induz o entendimento de que essa situação significa a queda de

231 GOULART abandonou Brasília. Diário de Notícias. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 232 RANIERI Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1. 233 RANIERI Mazzilli, presidente do Congresso, prestou juramento como Presidente da República. República. Lisboa, 2 abr. 1964, p. 1.

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Goulart e não a ilegalidade do movimento civil-militar. O episódio mostra que, na imprensa de nosso recorte, na dúvida, Goulart está fora. Mas como um presidente poderia perder o poder de voz sobre a narrativa que coloca em jogo sua própria permanência no poder? Entendemos que esse fato pode ser explicado, ao menos em parte, pela análise das personagens. Goulart é, na imprensa brasileira analisada, objeto de execração. É jogado à condição de antagonista, ou seja, o oponente, o rival, aquele que impede a estabilização da narrativa pelos protagonistas (as Forças Armadas). Reunimos aqui algumas expressões que aparecem relacionadas a Goulart apenas nas quatro principais edições analisadas dos jornais brasileiros: golpista, autoritário, caudilho, desordem, caos, ilegalidade, reformas falsas, dúbio, não confiável, volúvel, indisciplina, isolamento, comunismo, despotismo, insincero, demagógico, desgoverno, inepto, latifundiário, corrupto, não governa e não tem plano. Das leituras dos jornais de nosso recorte, somadas às repercussões da imprensa mundial à qual tivemos acesso através de suas páginas, vimos que os modelos políticos para enquadrar Goulart eram muito variados: de social-democrata à moda europeia e socialista cor-de-rosa de gabinete, passando por trabalhista, getulista, populista, até ditador peronista e ditador castrista. Ainda na imprensa brasileira, as Forças Armadas, por sua vez, são as protagonistas: representam a única força capaz de colocar o País em “ordem”, estão acima dos interesses políticos, são coesas, confiáveis, pacíficas e precisas, como inspira a imagem do general Carlos Luís Guedes ao cuidar de seu roseiral e citar a aplicação da tática alemã de blitzkrieg “sem disparar um só tiro”. As Forças Armadas encabeçam o movimento pela “liberdade” e “democracia”. Para combater o radicalismo de Goulart, a proposta é o pacifismo radical de um golpe de Estado. As lideranças civis assumem a linha de frente narrativa, invocando a uma onisciência narrativa ao colocarem-se como conhecedoras e administradoras do imaginário sobre a “real natureza” do povo brasileiro. O manifesto do govenador Magalhães Pinto afirma: “As radicalizações ideológicas, sobretudo quando a ideologia inspiradora é

192 incompatível com o que há de mais entranhado na formação do povo brasileiro, só podem contribuir para embaraçar ou retardar as reformas democráticas”234. Desinteressadas do poder, avessas às quarteladas latino-americanas, de acordo com a imprensa analisada, era evidente que as Forças Armadas restaurariam a ordem e devolveriam o poder aos civis. Essa é a projeção para o futuro dos jornais brasileiros analisados. Em Portugal, a caracterização de Goulart é mais comedida. DN destaca na capa de 1º de abril um trecho do discurso no Automóvel Clube que corrobora a leitura de uma virada à esquerda e postura extremada: “Coisa alguma poderá afastar-me da linha de conduta que tracei” e, logo abaixo, uma chamada que identifica, assim como na imprensa brasileira, as Forças Armadas como um grupo coeso: “Um marechal e setenta generais publicaram um manifesto condenando a política extremista de Goulart”. No DN, aparece mais uma leitura de que Goulart é objeto de desconfiança e que, no máximo, dialoga com o comunismo, o que, àquela altura, já era um ato condenável e que justificaria um golpe. República, por sua vez, assume Goulart no controle da narrativa, o que o coloca na posição de governante legítimo. O “extremismo” do discurso do Automóvel Clube é visto como uma manobra política legítima, tentativa de garantir apoio político entre os sindicatos e Forças Armadas. Como uma espécie de “blindagem política” das Forças Armadas, são as lideranças civis que assumem o discurso mais inflamado contra Goulart e a linha de frente midiática, através de manifestos, proclamações e até mesmo a performance de Lacerda, entrincheirado no Guanabara, de metralhadora em punho. Magalhães Pinto, Ademar de Barros e Carlos Lacerda são os personagens principais nessa “trincheira”, tanto no Brasil quanto em Portugal. A respeito das movimentações das forças políticas contrárias ao golpe, principalmente entre militares, sindicatos e movimento estudantil, os jornais podem ser divididos em três posturas básicas: minimizar, deslegitimar e ignorar, como fazem OESP e DN; reportar, mas não conectar com a intriga de forma relevante, como o JB; ou destacar, como o República. Vimos que em OESP e no DN, a chamada para a greve geral do CGT é tratada em pequenas

234 MAGALHÃES exige que a disciplina militar seja mantida. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 mar. 1964, p. 2.

193 notas, deslegitimada (no caos do primeiro, a chamada do CGT repete “chavões totalitários”) e minimizada (no segundo, o destaque está no fato de que São Paulo e Minas não aderiram). JB reporta com mais equilíbrio a situação da greve no Rio de Janeiro, dedicando espaço ao tema na capa da edição de 1º de abril. A abordagem da greve no como transtorno do cotidiano, porém, reforça metanarrativa da busca da “normalidade”. República dedica-se a elencar as manifestações de apoio Goulart, entre sindicatos, estudantes e mesmo nas Forças Armadas. A leitura atenta dos jornais dá acesso a informações preocupantes acerca de flagrantes arbitrariedades cometidas contra sindicatos, estudantes e até mesmo a população em geral. Longe do roseiral dos generais, houve tiros, prisões, incêndios, feridos graves e mortes, incluindo a de uma criança, desde os primeiros momentos do golpe. Esses fatos, porém, são apenas noticiados, muitas vezes em pequenas notas, sem destaque algum, e não inseridos no acontecimento-intriga. Se relessem os próprios jornais, os jornalistas seriam capazes de ver que, dedicados ao apoio aos golpistas e à “solução final” – a retirada de Goulart do poder – negligenciaram deliberadamente fatos de extrema gravidade. Ocorre, ainda, a grave defesa de uma “limpeza” da cena política, com a utilização, inclusive, de léxico importado da área médica: a cura da “infecção janguista” nos sindicatos, como afirma editorial do JB235. Em muitos casos, os dados do cotidiano – a fila nos armazéns e postos de gasolina, a greve dos transportes públicos, o incêndio do prédio da UNE, ente outros fatos noticiados naqueles dias – são jogados na teia dos fait-divers (BARTHES, 1971), a informação sensacionalista, retirada da intriga política e acomodada na fatalidade. Não é por acaso que o carnaval nas ruas de Copacabana é o desfecho midiático preferido de OESP, JB e DN: o anúncio, ainda que falso, proferido por uma fonte reconhecidamente duvidosa (Lacerda) ocasiona a explosão do imaginário sobre a “real natureza” do brasileiro: pacífico, cordato, festivo, desafeito a radicalismos. As notícias se precipitam atrás dos fatos. Ao República, restou indicar que se tratou de uma manifestação dos bairros ricos e que a declarada unidade e coesão de forças não era uma verdade absoluta,

235 FUTURO. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 5.

194 projetando que, no futuro próximo, “a tarefa mais difícil é conservar interesses divergentes”. A respeito do léxico do Golpe Civil-Militar, vimos que, na imprensa brasileira, a palavra “golpe” aparece restrita à fala de terceiros, ou seja, quando a voz de um terceiro narrador, ou narrador-personagem (MOTTA, 2013), a admite. Isso ocorre, basicamente, em três casos: na fala do CGT, estudantes e outros grupo alinhados ao governo Goulart, para referir aos acontecimentos naquele momento no Brasil (um golpe dos setores conservadores); na sugestão do pragmático Washington Star, o qual recomenda, sem meias- palavras, em trecho de editorial reproduzido pelo JB, que “aqui está uma situação na qual um bom e efetivo golpe de estado, à velha maneira, por líderes militares conservadores, pode bem servir aos melhores interesses de todas as Américas”236; e, em algumas ocasiões, para referir às ações de João Goulart, na sugestão de que o presidente planejaria um golpe, o que reforça as famosas teses de ‘contragolpe”. A imprensa brasileira analisada opta por outras palavras ou expressões: movimento, levante em defesa da pátria, defesa da Constituição, levante pela Lei, defesa da Carta, ação contra a subversão (ou contra o comunismo), defesa do regime, defesa das instituições, movimento contra a ação de Goulart, movimento democrático, movimento libertador, movimento pela liberdade, movimento pela legalidade, movimento constitucional, vitória democrática, luta contra Jango, restauração da ordem constitucional, prontidão, tomada de posição. Consolidado o golpe, o “movimento” ganha status de “revolução”. Em Portugal, o DN destaca-se por usar com naturalidade a expressão “golpe militar”, possivelmente no mesmo sentido que o Washington Star: por realmente acreditar que o governo Goulart deveria ser deposto, mesmo com o uso de forças armadas (o que não seria incomum na América Latina). República sugere guerra civil, caracterizando uma leitura que via um maior equilíbrio entre as forças políticas em jogo e deixa transparecer, através das vozes que privilegia (apoiadoras de Goulart) o uso da expressão “golpe” e

236 “WASHINGTON Star” sugere golpe dos militares no Brasil, “à velha maneira’. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 4.

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“golpistas”. De forma geral, como narrador-veículo, República opta por “forças inssurectas”, “atitude contra o presidente Goulart” contra as “forças lealistas”. Destacamos, ainda, em termos de léxico, que foi feita uma tentativa de reanimar a “Cadeia da Legalidade”, rede de comunicação por rádio consagrada por Brizola para garantir a posse de Goulart em 1961. Em 1964, o tema da legalidade já havia sido “sequestrado” pela oposição – JB caracteriza Goulart como um “fora da lei” e OESP anuncia o movimento em defesa “da Carta” ou “pela lei”. Como a “legalidade” era historicamente ligada ao léxico da defesa de Goulart, a cadeia de informação dos golpistas articulou-se em torno de outros valores, intitulando-se “Cadeia da Democracia” ou “Cadeia da Liberdade”, ainda que a defesa da Constituição fosse um dos pilares da caracterização do movimento. Por fim, destacamos um dado interessante para a leitura contemporânea do golpe, que é a produção da memória sobre esse acontecimento nos meios de comunicação. Como sabemos, muitos jornais brasileiros que cobriram o golpe estão ainda em circulação, o que os confronta com situação de, eventualmente, referir esse episódio. Meneses (2012), em artigo que toma como objeto o jornal Folha de São Paulo, mostra como o Golpe Civil-Militar de 1964 é tratado nos manuais de redação desse veículo e as implicações dessas escolhas no sentido de submeter o acontecimento a um “trabalho de despolitização que tenta retirar-lhe o potencial de divergência e tensão” (p. 55), apelando para uma qualificação “objetiva”. O manual da Folha analisado por Meneses sugere em verbete: “Movimento militar – O de 1964 no Brasil, deve ser designado por essa expressão, e não por ditadura ou Revolução” (MANUAL DA FOLHA DE S. PAULO apud MENESES, 2012, p. 55). Vemos assim, que a opção midiática pelo léxico “movimento” foi a eleita em 1964 e continua a mesma. Em 1974, com o endurecimento do regime militar, como veremos no próximo capítulo, consolida-se o termo “revolução”. Vimos também que as repercussões midiáticas nacionais e internacionais foram elementos importantes nesse momento de ruptura institucional. Os jornais analisados dedicaram espaço significativo para as manifestações de nações estrangeiras e também às análises de outros jornais sobre os acontecimentos no Brasil. Além do decisivo reconhecimento do

196 governo norte-americano à posse de Mazzilli, através de carta com os cumprimentos do presidente Lyndon Johnson, a leitura desses trechos revela uma complexa rede de referencialidade midiática. A charge do Cristo ouvindo rádio e o testemunho de Wilson Figueiredo, ambos publicados no JB, e também a matéria do correspondente do DN são exemplares nesse sentido. A potência midiática como tecnologia do imaginário foi catalisada naquele momento de instabilidade. O República, nesse sentido, diferencia-se por procurar fontes alternativas de informação, como, por exemplo, rádios do Uruguai. Analisamos também a seleção dos jornais do exterior repercutidos na imprensa brasileira e vimos estes eram, em grande parte, veículos de reconhecida tendência conservadora em seus países. Destacamos a análise de OESP, através de texto do correspondente Gilles Lapouge, sobre a imprensa europeia, considerada “mal informada” a respeito dos problemas do Brasil, especialmente ao enxergar em Goulart um “mártir”. Sobre a imprensa e sua articulação com o tempo, vimos que, neste momento de ruptura institucional, a imprensa brasileira analisada comporta-se como “grande ordenadora do acontecimento”, tomando de empréstimo a expressão de Nora (1979, p. 181) a respeito do historiador positivista. Tanto OESP quanto JB apresentam em suas narrativas as noções de passado, presente e futuro. O passado, ou a história, é mobilizada como lição. Esses jornais articulam, em sentido histórico, os governos Vargas, a revolução constitucionalista de 1932 em São Paulo, a posse de JK, a renúncia de Jânio Quadros e até mesmo a Revolução Russa para compor o acontecimento-intriga do Golpe Civil-Militar de 1964. Nesse sentido, a página editorial do JB de 2 de abril de 1964 é emblemática, expressando de forma muito clara a concepção do jornalismo como conhecimento do fato e atividade mediadora do tempo na modernidade. Com a força narrativa do presente, o JB empurra, definitivamente, o governo Goulart para o passado. Percebemos, também, que é especialmente através das projeções para o futuro que o jornalismo manifesta subjetividades, legitimando movimentos determinantes para o sucesso do Golpe Civil-Militar, como a posse de Mazzilli. Nos jornais portugueses, destacam-se as tentativas de contextualizar a informação para os

197 leitores, seja através de fotografias e da apresentação das personagens e mesmo através de mapas detalhando a geografia do Brasil. A retomada da história como lição aconteceu no DN, em especial na leitura anticomunista dos fatos, como vimos no caso da retomada da trajetória do ex-embaixador do Brasil em Lisboa Álvaro Lins. A notícia sobre o voo de Goulart em uma aeronave da fabricante britânica Avro ilustra também a forma como o jornalismo pode servir-se dos anacronismos próprios de sua narrativa para provocar efeitos de sentido: ao referir-se a João Goulart como ex-presidente no episódio em que embarcava do Rio para Brasília, JB realiza uma prolepse (REIS; LOPES, 2011): distorção da ordem temporal da narrativa no sentido de antecipar, pelo discurso, eventos posteriores ao presente da ação descrita. No momento do embarque, Goulart ainda era presidente. No tempo da escrita do jornalista e no da leitura, já não era mais considerado assim. O mesmo acontece com as comemorações no Rio e com a posse de Mazzilli, que demonstram que o apelo à correção factual nem sempre produz a narrativa mais completa e verdadeira dos acontecimentos. Ainda em relação ao tempo presente, vimos que as narrativas jornalísticas analisadas, ao encerrarem a narrativa sobre a ruptura institucional em 1964 no “retorno à normalidade” (melhoramento), contribuem para a estabilização de significados em torno da concepção do que é “normal” na atualidade, subvertendo a natureza jornalística como um relato do extraordinário.

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4. A REVOLUÇÃO DE 25 DE ABRIL DE 1974 EM PORTUGAL

Passamos, neste capítulo, à análise das narrativas dos jornais selecionados em nossa tese sobre a Revolução de 25 de abril de 1974 em Portugal. Assim como fizemos no caso do Brasil, no capítulo anterior, iniciamos, pelo movimento de compreensão da recomposição da intriga, procurando, dentro da fragmentação da narrativa jornalística, compreender a intriga como síntese do heterogêneo, com início, meio e fim (MOTTA, 2013). A partir dessa compreensão, selecionamos categorias do plano da intriga e do plano da expressão que se destacaram na narrativa apresentada por esses jornais. A primeira delas é a caracterização das personagens (Forças Armadas, lideranças civis e manifestações populares, sindicais e estudantis). A segunda, a compreensão das formas como as relações internacionais e a repercussão midiática fora de Portugal impactaram esta narrativa, ou seja, procuramos compreender de que forma os jornais realizam a mediação das visões externas sobre os fatos ocorridos em Portugal naquele momento. A terceira, está no plano da expressão, analisa o léxico empregado para referir a Revolução237 de 25 de abril de 1974. A quarta trata da relação das narrativas jornalísticas analisadas com o tempo, ou seja, de que forma passado, presente e futuro são articulados na composição do conhecimento do fato. Essas categorias são os comparáveis que nos ajudam a compreender os eventos de ruptura institucional estudados nesta tese. Assim como começamos o capítulo anterior com a narrativa da imprensa endógena, iniciamos este com a análise dos jornais portugueses. A seguir, passamos para os jornais brasileiros e, por fim, realizamos uma síntese comparativa entre as imprensas dos dois países.

237 Admitimos, nesta tese, a expressão “revolução” para definir o 25 de abril de 1974 em Portugal, baseados no levantamento historiográfico apresentado por Rezola (2008), o qual aponta um relativo consenso em relação à natureza do 25 de abril: um golpe militar que, com a adesão popular, virou no mesmo dia uma revolução que modificou as estruturas da nação portuguesa.

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4.1. IMPRENSA PORTUGUESA

4.1.1. Recomposição da intriga

Aos 25 minutos do dia 25 de abril de 1974, a canção Grândola, Vila Morena, de José Afonso, toca na Rádio Renascença, em Portugal. A música, que fala do sentimento de fraternidade entre o povo da vila alentejana de Grândola, era a senha para que tivesse início a revolução encabeçada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) para derrubar a ditadura que dominava o país desde 1926. Portugal estava mergulhado há quase 50238 anos em um regime totalitário personalista, nacionalista, centralizador, apoiado em forte aparato repressivo e ideológico. No campo econômico, o governo estimulava uma industrialização dependente do mercado externo, em uma “estrutura econômica que assentava na sobre-exploração dos trabalhadores na metrópole e na espoliação dos povos das colônias” (LOUÇÃ, 1984, p. 12). A saturação desse modelo, junto com as guerras coloniais, foram alguns dos principais motivos do fim do salazarismo. António de Oliveira Salazar (1889-1970) participou da ditadura desde o seu início, com a Revolução de 28 de maio de 1926. Primeiro, teve uma rápida participação (13 dias) como Ministro de Finanças. Retornou à função em 1928, impondo uma política de forte austeridade. A partir da Constituição de 1933, passou a ocupar o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, permanecendo na função até 1968, quando se afasta por motivos de saúde. Líder de educação católica, foi uma das figuras políticas mais marcantes do século XX. De personalidade peculiar, era considerado uma pessoa fria, pouco afeita ao contato com outras pessoas. Não casou, não teve filhos nem frequentava amigos. “[...] Sob este ângulo, é uma espécie de fenômeno, um ditador contranaturo” (GEORGEL, 1985, p. 44). Salazar entra em cena em um país de estado industrial medíocre, paralisado internamente pelas conquistas ultramarinas que marcaram sua história. O líder não vê aí um problema, ao contrário, “deseja evitar o

238 Foram 48 anos de ditadura de ponta a ponta, de 1926 a 1974. Nesse percurso estão a Ditadura Militar (1926 a 1933), o Estado Novo Salazarista (1933 a 1968) e o Estado Novo Marcelista (de 1968 a 1974, período no qual Marcello Caetano assume a presidência do Conselho de Ministros após o afastamento, por motivos de saúde, de António Salazar) (ROSAS, 2013).

200 desenvolvimento a fim de conservar a tranquilidade e não desenvolver o proletariado para evitar as crises” (GEORGEL, 1985, p. 108). Nos anos 1960, começam as guerras de independência das colônias africanas: Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Angola, e sua contenção exige muito dos cofres públicos e dos portugueses. Quando Salazar se retira, sendo sucedido por Marcello Caetano, em 1968, o país vive das exportações, do dinheiro enviado pelos emigrantes e do turismo (GEORGEL, 1985). Os anos do Estado Novo também não são bons para índices sociais, como educação e saúde. Apenas na década de 1960 o governo passa a dar alguma atenção à questão da alfabetização e, com uma campanha intensa, faz o número de iletrados baixar para 40% da população. Faltam médicos e hospitais: em 1970, 46% dos partos são realizados em casa, sem assistência médica. Os partidos políticos e sindicatos são suprimidos, sendo a União Nacional a única organização partidária legalmente reconhecida (GEORGEL, 1985). Georgel (1985) caracteriza o salazarismo como uma “ditadura estática”, que “não tem necessidade do povo para atingir seus objetivos” (p. 115). Os instrumentos utilizados para guiar o Estado são baseados no medo e na obediência, desacreditando qualquer tipo de capacidade autônoma dos indivíduos ou das massas. O regime fechado se traveste de democracia através de instrumentos legais: a Constituição de 1933 tratou de “permitir, ao abrigo de uma fachada democrática constituída por uma assembleia, a governação do país por um executivo todo-poderoso” (p. 128). Ferreira (2006) analisa o papel das eleições durante o Estado Novo português e afirma que este, apesar de ser uma ditadura, preocupava-se em realizar eleições presidenciais, legislativas e para as Juntas de Freguesia, a fim de consagrar sua legitimidade tanto em nível interno quanto externo. As eleições eram uma fachada democrática, uma vez que os resultados eram controlados e, muitas vezes, fraudados a fim de garantir a vitória da União Nacional. No campo da força repressiva, a ditadura atuava em duas frentes: a polícia política e o exército. A primeira estabeleceu-se na Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), que contava com um número elevado de colaboradores – entre dez e doze mil – e produziu fichamentos de pelo menos

201 metade (três milhões) da população de Portugal à época. “O Portugal salazarista não era mais do que um imenso quadrilátero de espionagem, onde alguns milhões de pessoas viviam com medo de alguns milhares” (GEORGEL, 1985, p. 230). A relação de Salazar com o outro braço da força, o Exército, é singular. O ditador era um civil e, ao contrário de outros déspotas na Europa, como Franco, Mussolini ou Hitler, não foi gestado politicamente entre as Forças Armadas. A ditadura em Portugal sempre esteve à mercê do Exército e isso fica claro no 25 de Abril, quando o regime cai praticamente sem resistência. Foi através das Forças Armadas que a ditadura sucumbiu e um dos fatores preponderantes para que isso acontecesse foi o descontentamento dessa instituição, especialmente por causa das guerras de independência nas colônias africanas. “O epicentro do abalo não era a metrópole, mas a África” (SECCO, 2004, p. 7). Rosas (2013) caracteriza o salazarismo como um regime político que dominou a “arte de saber durar”. Essa concepção tensiona a generalização sobre um “regime estático”, já que se adaptou e sobreviveu a muitos abalos, como a derrota do nazi-fascismo, as novas configurações mundiais da Guerra Fria e o conturbado começo dos anos 1960, colocado à frente dos desafios da Europa no pós-guerra: “a democratização política, o desenvolvimento econômico, a justiça social, a construção europeia e a descolonização” (ROSAS, 2013, p. 185-186). O autor aponta cinco fatores principais que explicam a durabilidade do regime: a violência (preventiva e repressiva), o controle das Forças Armadas, a cumplicidade política e ideológica da Igreja Católica, o corporativismo e o investimento no projeto totalitário do “homem novo” salazarista: “O velho desígnio estratégico do ditador visando mudar a mentalidade dos portugueses, corrigir-lhes os ‘defeitos’, moldá-los, bem como às suas almas, de acordo com os valores ideológicos da ‘nova ordem’ [...]” (ROSAS, 2013, p. 188). Este último aspecto nos leva a compreender que o Estado Novo português foi muito mais que um Estado forte e repressivo. O regime foi também sustentado por um imaginário poderoso, espalhado por todas as áreas da vida dos portugueses, da política e economia à educação e divertimentos.

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Martins (1992), ao estudar os manuais escolares durante o Estado Novo, procura encarar esses textos como “um sistema cultural, um sistema de símbolos em interação, o que quer dizer, como uma rede ou uma teia de significações que se entrecruzam”, como “valores que exprimem crenças e sonhos” que integram um “corpo simbólico, que ao mesmo tempo age sobre a vida real e a reflete” (p. 194). O autor expõe o imaginário salazarista em seu simbolismo – a saudade e o sebastianismo, o passado e o futuro – que projeta a imagem de um país antigo, tradicional e humilde, mas com aspirações de grande Império. “Por um lado, pois, o desejado medievalismo, bucólico e cordato, figurado pelo tema 'boa dona de casa'. Por outro, a ambição do Império, ousada e épica, figurada pelas caravelas” (MARTINS, 1992, p. 198). A vocação imperial, fortemente arraigada ao imaginário português, explica o impacto da questão colonial na desestabilização do regime, tema central nas narrativas jornalísticas analisadas nesta tese. Uma das imagens que ilustra de forma contundente esse imaginário é a da projeção, sobre o mapa da Europa, dos territórios portugueses na África, demonstrando que “Portugal não é um país pequeno” e sim “uno, multirracial e pluricontinental”. “Este mapa seria utilizado durante 40 anos como lição de história” (MARTINS; OLIVEIRA; BANDEIRA, 2012, p. 266). A luta pela independência das colônias confronta-se fortemente com esse imaginário e, enquanto foram capazes, tanto o salazarismo quanto o marcelismo esforçaram-se em contornar sua incompatibilidade com a realidade da independência, autonomia e autodeterminação desses territórios. Em 1961, estoura a revolução em Angola. Em 1963, é a vez de Moçambique e Guiné-Bissau. O esforço militar português para reprimir as revoltas nas colônias contraria todo um movimento europeu de descolonização, além da pressão de Estados Unidos e União Soviética, em plena Guerra Fria. Também implica somas colossais para um país de economia estagnada e cada vez mais isolado. O orçamento militar devora 9% do PIB em 1970 e quase 200 mil soldados – 10% da população economicamente ativa do país – está deslocado para os fronts. A guerra contra as colônias mostra-se injusta, infundada e dispendiosa, tanto em esforço financeiro quanto humano. O afastamento de Salazar em 1968, por motivos de saúde, dá início a

203 um período que ficou conhecido como “primavera marcelista”, em referência a Marcelo Caetano, que o sucedeu na presidência do Conselho de Ministros. Caetano tenta articular algumas modificações liberalizantes, promovendo a aproximação da União Nacional com setores mais liberais. Modifica a lei da censura e o nome do PIDE, que passa a se chamar Direção-Geral de Segurança (DGS). Mesmo assim, as guerras coloniais e a ditadura continuam a oprimir o povo português, provocando descontentamento entre as Forças Armadas, que passam a organizar-se no Movimento dos Capitães. Cresce o entendimento de que a solução para as questões ultramarinas é política e não militar. Essa ideia ganha reforço com a publicação do livro Portugal e o futuro, a 22 de fevereiro de 1974, de autoria do general António de Spínola. Líder de grande destaque nas guerras coloniais em África e ex-governador da Guiné- Bissau, Spínola ocupa, na ocasião, o cargo de vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Na obra, propõe uma solução federalista para a questão colonial. A 5 de março, o Movimento dos Capitães se reúne em Cascais para aprovação das bases de seu programa, no documento intitulado “O Movimento, as Forças Armadas e a Nação”, e passa a se chamar Movimento das Forças Armadas (MFA). No dia 14 desse mesmo mês, o general Spínola não comparece a uma reunião de oficiais generais com o presidente do Conselho, na qual foi reafirmado o apoio desses oficiais à política ultramarina do governo. Como consequência, é exonerado de seu cargo. Este fato leva à uma tentativa de antecipação do golpe, o Levantamento das Caldas, que fracassa e leva à prisão cerca de 200 militares. O MFA volta a se articular, contando com a participação do general Spínola na composição de seu Programa. Consegue efetivar o golpe, finalmente, a 25 de abril de 1974. “Quando saíram às ruas, os militares queriam somente três coisas: pôr fim à ditadura, regatar o prestígio das forças armadas; e terminar com a Guerra Colonial em África que já estava virtualmente ganha pelos inimigos” (SECCO, 2004, p. 7). A ditadura cai oferecendo pouquíssima resistência. A população ignora as orientações para não sair às ruas e Lisboa é tomada pelos populares, que apoiam o movimento. Ao final do dia 25 de abril, Caetano é preso no Quartel do Carmo pelo capitão Salgueiro Maia e levado para a Ilha da Madeira.

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Nas negociações que levam à sua rendição, o acordo é que a presidência seja entregue ao general Spínola, integrante da Junta de Salvação Nacional (JSN), um grupo de militares designados para sustentar o governo português até a realização de eleições diretas e livres e a formação de um governo civil. Libertos da ditadura, os portugueses têm de encarar problemas gestados na longa duração: “o país vivera nos últimos séculos a condição de um império ultramarino acostumado a ver-se com lentes dilatadas e não tal qual um pequeno retângulo na ponta extremada do Velho Mundo” (SECCO, 2004, p. 7). Inicia-se então um processo de intenso debate e disputa política conhecido que culmina com a aprovação da Constituição Portuguesa de Abril de 1976 e consolida a democracia no país. Após a intervenção militar, começam a despontar as lideranças civis que viriam a disputar o poder após a Revolução, grande parte delas organizadas à esquerda, como Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista Português (PCP) e Mário Soares, do Partido Socialista (PS): “[...] do dia para a noite, explodiu o chamado poder popular. Comissões de mulheres aguerridas tomaram as creches, trabalhadores controlaram fábricas, bancos, fazendas. Soldados se organizaram, oficiais defenderam grevistas” (SECCO, 2004, p. 11). A perspectiva de uma guinada à esquerda – da qual é emblemático o Verão Quente de 1975 –, coloca as forças conservadoras, incluindo os Estados Unidos, em alvoroço. Um novo golpe militar, a 25 de novembro de 1975, põe fim à influência da extrema esquerda. Na análise de Secco (2004), o grande trunfo da Revolução dos Cravos foi o primado da fraternidade, já que o 25 de abril derrubou uma ditadura fascista de forma quase totalmente pacífica, sem guerra civil. No Brasil, a ditadura completava 10 anos de existência em 1974. Poucos dias antes da revolução portuguesa, a 15 de março, o general Ernesto Geisel era o quarto militar a assumir a presidência da República desde 1964. Em um momento de grande repressão, no qual sofria com a censura, prisões, torturas e assassinatos, a oposição aos militares festejou o sucesso do golpe e articulação das esquerdas em Portugal, na esperança de que sinalizassem alguma possibilidade de abertura no quadro político brasileiro. Curiosamente, a ditadura logo reconheceu o governo revolucionário português e, ao mesmo

205 tempo, ofereceu asilo a Marcelo Caetano e Américo Tomás. O inusitado posicionamento tem a ver, de acordo com Martinho (2007), com a questão colonial, especialmente com as guerras de independência de Angola, Moçambique e Guiné, já que o Brasil tinha interesse em herdar de Portugal a influência cultural e comercial sobre as colônias. Os movimentos nesse sentido provocaram, no desenrolar dos fatos, estranhamentos entre as diplomacias brasileira e portuguesa. Entre essas situações, destacam-se o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau (julho de 1974) sem consulta aos portugueses, e o apoio diplomático do Brasil ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em novembro do mesmo ano, contrariando, inclusive, aspirações norte-americanas (MARTINHO, 2007). Os acontecimentos de 25 de abril de 1974 foram acompanhados, ao mesmo tempo, com esperança, ceticismo e incredulidade, no mundo todo. Àquela altura, poderia parecer mais um golpe militar que encobria intenções despóticas na armadilha das libertações, mas também um revigorante sopro de liberdade e um sério aviso às ditaduras de Espanha, Grécia, Chile e Brasil. Vemos, assim, que o 25 de abril traz à tona uma série de disputas de poder e expõe a complexidade das relações políticas naquele momento histórico, relatadas e interpretadas pela imprensa da época (MARTINHO, 2007). O debate sobre o livro Portugal e o Futuro, do general António de Spínola, lançado no final de fevereiro de 1974, se dá também através das páginas dos jornais portugueses. Isso ocorre com relativa tranquilidade, mesmo com a censura prévia, uma vez que o autor era ninguém menos que o vice- chefe do Estado Maior General das Forças Armadas portuguesas. República publica, a 11 de março de 1974, uma carta aberta endereçada ao general e assinada por Artur Portela Filho. Nela, em um texto de estilo direto e contundente, com frases curtas e afirmativas, o jornalista destaca que não é apenas o conteúdo do livro que chama a atenção – cujo teor não considera uma novidade – mas a circunstância de quem o escreve:

No fenômeno que “Portugal e o Futuro” é, há a distinguir duas coisas – o livro ele próprio e V. Exª. Isto porque o que o livro diz é muito menos original do que o fato de ser V. Exª a dizê-lo. V. Exª e a sua circunstância.

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De resto, mais a circunstância de V. Exª do que V. Exª. Definindo a África como o problema mais agudo da nossa geração, e propondo a criação de um Comunidade Lusíada, clara e insofismavelmente referendada, V. Exª não põe, ao País, uma opção nova – põe, ao País, a novidade que é ser V. Exª a pô-la. “Portugal e o futuro” não é uma proposta. V. Exª é.239

Em resumo, a carta, que terá outros detalhes explorados ainda nos tópicos 4.1.2, 4.1.4 e 4.1.5 desta análise, afirma que a proposta de Spínola carece de uma maior na clareza na dimensão sócio-política e que a tomada da palavra pelo general coloca, no espectro político, a Direita com a iniciativa, na frente da Esquerda. Brasil e Portugal estão em destaque no noticiário nesses meados de março de 1974. No dia 14, o enviado especial do DN Carlos Pinto Coelho está em Brasília para a posse do general Ernesto Geisel na presidência do Brasil. De acordo com o jornalista, a capital brasileira é, por essa ocasião, “cenário de trepidantes contatos políticos”. O texto da coluna, escrita em primeira pessoa, tem como cenário a piscina do Hotel Nacional, no qual o correspondente está hospedado, ambiente em que desfruta de uma dose de uísque e de uma “refrescante” água mineral. Reporta o grande aparato de segurança que envolve o evento, dado o conjunto de presidentes e ministros estrangeiros que estarão presentes na cerimônia. “Há de resto uma aguda expectativa em redor do chefe de Estado Chileno, Pinochet, que abandona Santiago pela primeira vez desde que assumiu a chefia da Junta Militar [...]”240. A cerimônia, na descrição do correspondente, dá a medida da importância do Brasil no cenário internacional naquele momento, especialmente pela posição de abertura à África adotada pela diplomacia brasileira:

De qualquer maneira, a pompa, o cerimonial rebuscado e quase gongórico com que se desenrolarão amanhã as cerimônias do Senado e no Palácio do Planalto revelam (ou escondem) a importância do Brasil hoje em dia, no contexto político internacional. É difícil minimizá-lo, sobretudo quando se está nesta capital esmagadora de imponência, concebida para funcionar administrativamente sim, mas predominantemente nas esferas do político. É impossível esquecê-lo, no maior país sul-americano, prestes a receber Patrícia Nixon (significativamente a grande

239 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, Lisboa, 11 mar. 1974, p. 3. 240 COELHO, Carlos Pinto. Brasília: cenário de trepidantes contatos políticos. Diário de Notícias, Lisboa, 14 mar. 1974, pp. 1 e 9.

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“enviada” de Washington) e onde têm número de telefone os embaixadores da União Soviética e do Ghana, da Polônia e do Senegal, da China e da Costa do Marfim, da Nigéria e da Hungria.241

Dividindo a capa desta mesma edição, ao lado do relato de correspondente – que reúne um conjunto de estereótipos que configuram um imaginário sobre o Brasil: quente, liberal, multirracial, local onde é possível refrescar-se à beira da piscina ao lado de brasileiras que “abandonam os corpos a um sol aconchegador” – estão notícias sobre a recente reestruturação ministerial no governo de Marcelo Caetano e sobre a chegada do Ministro português dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, ao Brasil. No dia seguinte, 15 de março, os jornais de nosso recorte reportam a exoneração dos generais Costa Gomes e António de Spínola da chefia do Estado-Maior General. República opta por compor a capa, assim como vimos em OESP em 1964, dando preferência ao noticiário internacional e destina a página 24 aos assuntos da política interna. Em sua edição, República usa o título “Os Generais Costa Gomes e António de Spínola exonerados da chefia do Estado-Maior General”. O corpo do texto é protocolar. Anuncia o despacho, o nome do sucessor de Costa Gomes (Joaquim Luz Cunha) e traz um breve perfil de cada um dos evolvidos na notícia, informando, no caso de Spínola, que “Recentemente, na sequência de outras obras dedicadas à problemática ultramarina, publicou, na Editora Arcádia, o volume ‘Portugal e o Futuro’”242. Abaixo, nesta mesma página, estão as repercussões da cerimônia ocorrida no dia anterior no Palácio de São Bento. República usa, no título, uma citação do general Paiva Brandão: “As Forças Armadas não fazem política”. No corpo do texto, este jornal, ao reproduzir a fala de Marcelo Caetano na mesma cerimônia, em resposta ao general Paiva Brandão, comete a supressão de um “não” que altera completamente o sentido das intenções do Presidente do Conselho e que, não fora um erro tipográfico, poderia ser um retrato do que estava por vir:

241 COELHO, Carlos Pinto. Brasília: cenário de trepidantes contatos políticos. Diário de Notícias, Lisboa, 14 mar. 1974, pp. 1 e 9. 242 OS GENERAIS Costa Gomes e António de Spínola exonerados da chefia do Estado-Maior General. República, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 24.

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“O Chefe do Governo – disse – “escuta e aceita a vossa afirmação de que as Forças Armadas não só podem ter outra política que não seja a definida pelos poderes constituídos da República, como estão, e têm de estar, com essa política quando ela é a da defesa da integridade nacional. Não precisava eu de ver reiterada a afirmação desses princípios, porque sei que são os vossos. Mas é necessário que o País o saiba também” (grifo nosso)243.

O DN, por sua vez, dedica a capa da edição de 15 de março à cerimônia. Também destaca uma fala na manchete, mas esta é de Caetano: “O País está seguro de que conta com as suas Forças Armadas”. Abaixo de uma foto do momento em que o Chefe do Governo discursava, reproduz o mesmo trecho destacado pelo República, mas agora com a adição de um “não” que faz toda a diferença e que certamente corresponde ao sentido original desejado:

O Chefe do Governo escuta e aceita a vossa afirmação de lealdade e disciplina. A vossa afirmação de que as Forças Armadas não só não podem ter outra política que não seja a definida pelos poderes constituídos da República, como estão, e têm de estar, com essa política quando ela é a da defesa da integridade nacional. Não precisava eu de ver reiterada a afirmação desses princípios, porque sei que são os vossos. Mas é necessário que o País o saiba também” (grifo nosso)244.

A fala de Caetano, destacada pelos dois jornais de nosso recorte, sinaliza que a cerimônia para confirmação das relações de alinhamento e lealdade entre o governo e as Forças Armadas constitui uma fala direcionada à opinião pública. Para tratar do caso da exoneração dos generais, o DN aposta não no fato da exoneração em si, mas sim na posse do novo chefe. A notícia que dá conta desse acontecimento é “O chefe do Estado-Maior das Forças Armadas é o general Joaquim Luz da Cunha”245. Apenas no corpo do texto é que o DN menciona a exoneração de Costa Gomes e Spínola. Confirmando o interesse midiático mútuo entre Brasil e Portugal – e a diferença de linha editorial dos jornais portugueses de nosso recorte – a capa do DN de 15 de março dá destaque à posse de Geisel: “Presta hoje juramento o novo presidente do Brasil”. República refere-se ao mesmo acontecimento nas páginas internas (p. 10), da seguinte forma: “Especulações de que o Brasil

243 “AS FORÇAS armadas não fazem política. República, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 24. 244 “AS FORÇAS armadas não fazem política. República, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 24. 245 O CHEFE do Estado-Maior das Forças Armadas é o general Joaquim Luz da Cunha. Diário de Notícias, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 1.

209 procura alinhar (com o Uruguai, Chile e Bolívia) num ‘bloco anti-marxista’”. Para o DN, “O primeiro dia de trabalho do presidente Geisel foi dedicado à amizade com a Bolívia, Chile e Uruguai”246. Outro indício dessa conexão é a reprodução, na integra, de uma entrevista do JB – qualificado pelo DN como “um dos diários mais importantes do Rio de Janeiro” – com Rui Patrício, ministro português dos Negócios Estrangeiros. Na entrevista, Patrício defende a política ultramarina do governo português: “Portugal nunca fez e nunca fará nem independências brancas nem independências pretas”247. No dia 16 de março, República destaca na sua capa a demissão do editor Paradela de Abreu, da Arcádia, responsável pelo lançamento do livro Portugal e o Futuro.

Considerado um best-seller excepcional para o mercado português, encontrando-se praticamente esgotada a primeira edição, o livro do general Spínola é objeto de interesse crescente no Brasil, concretizado no pedido de 50 000 exemplares, o que, junto aos pedidos formulados pelos livreiros portugueses, eleva a sua procura a cerca de 180 000 exemplares.248

A 17 de março, o DN noticia o Levante das Caldas: “Renderam-se sem resistência vários oficiais que se tinham insubordinado no regimento de infantaria 5 nas Caldas da Rainha e que haviam tomado a direção de Lisboa”. Em box destacado: “Não tiveram êxito as tentativas realizadas para sublevar outras unidades. Reina a ordem em todo o País”. O corpo do texto reproduz, na íntegra, o comunicado oficial da Secretaria de Estado de Informação e descreve o clima de tensão, com a presença da imprensa internacional em chegando a Lisboa em número fora do normal:

O País despertara ontem sob a vaga dos boatos mais desencontrados e alarmantes. Uma parte da população da capital surpreendera manhã cedo, um certo movimento de tropas e de efetivos da G. N. R., que, de harmonia com os dispositivos tomados, ocuparam pontos estratégicos ás portas de Lisboa. À Redação do nosso Jornal tinham começado a chegar, ao fim da madrugada, as primeiras notícias, de que algo insólito e grave se

246 O PRIMEIRO dia de trabalho do presidente Geisel foi dedicado à amizade com a Bolívia, Chile e Uruguai. Diário de Notícias, Lisboa, 17 mar. 1974, p. 1. 247 PORTUGAL nunca fez e nunca fará nem independências brancas nem independências pretas. Diário de Notícias, Lisboa, 16 mar. 1974, p. 1. 248 EDITOR demitido. República, Lisboa, 16 mar. 1974, p. 1.

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estava a passar. Importante reunião, em alto nível (estariam presentes os ministros das pastas militares e o do Interior), foi o primeiro sinal daquilo que o comunicado oficial acima transcrito veio a revelar. A reunião prolongou-se o resto da noite e ao longo da manhã. O Governo declara, a propósito, que já tinha conhecimento de que se preparava um movimento de características e finalidades mal definidas. Que algo andava no ar atesta-o, para lá da onda de boatos esparsos de norte a sul do País, a presença em Lisboa de numerosos elementos da Imprensa e Televisão estrangeiros, desejosos de registras o que viria a perturbar o ritmo normal da nossa vida coletiva.249

No República, apenas uma pequena nota dá conta dos acontecimentos, na página 16 da edição de 19 de março:

Uma nota da Direção-Geral da Informação A Direção-Geral da Informação distribuiu ontem, no início da noite, a seguinte nota: “Noticiaram alguns jornais estrangeiros terem sido presos cerca de 200 oficiais implicados na insubordinação verificada no Regimento de Infantaria 5. A este propósito esclareceu um informador oficial do Departamento da Defesa Nacional, que esse número não corresponde à realidade, visto terem sido apenas detidos 33 oficiais cujas responsabilidades estão a ser averiguadas pelas autoridades militares competentes.”250 (grifos do original).

A situação é contornada pelo governo: ao que tudo indica, uma vitória, ainda que parcial, e um período de relativo silêncio nas movimentações políticas. A 25 de abril, tudo mudou. O República de 25 de abril de 1974251 é uma verdadeira explosão da palavra pública. A manchete, grafada em vermelho, ocupa toda a largura da página: “As Forças Armadas tomaram o poder”. Abaixo, duas fotos, lado a lado, uma do General Costa Gomes e outra do General Spínola, seguidas do texto principal da capa, que podemos conceber como a mensagem editorial do jornal ao novo poder que se consolida, composta com a tipografia narrow (estreita) característica do espaço de opinião desse diário, com o título: “Pelo povo e pelas suas liberdades”, no qual defende que as Forças Armadas estejam à serviço do Povo português:

249 RENDERAM-SE sem resistência [...]. Diário de Notícias, Lisboa, 17 mar. 1974, p. 1. 250 UMA NOTA da Direção-Geral da Informação. República. Lisboa, 19 mar. 1974, p. 16. 251 As edições a que tivemos acesso, através da digitalização da Biblioteca Pública de Braga e da hemeroteca de Lisboa, são a segunda e a terceira do dia 25 de abril.

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As Forças Armadas assumiram perante o País a maior das responsabilidades ao tomarem conta do poder. O ato de força só será útil e terá a sua justificação na medida em que contribua para dar a todos os portugueses participação efetiva no Governo da Nação. Não pode de forma nenhuma substituir um autoritarismo por outro: muito menos pode representar a continuação de um sistema autocrático iniciado com o golpe militar de 28 de maio de 1926. A ditadura militar então instaurada teve continuidade no regime censório e policial que até hoje tem governado sem nos ouvir. As liberdades fundamentais do homem não têm sido respeitadas e os destinos do País têm sido traçados sem que os portugueses tenham sido ouvidos. Nem sequer os direitos consignados na Constituição têm sido respeitados, duramente limitados por leis de autêntico arbítrio. Imposto o silêncio aos que se não dispuseram a ser elementos dóceis do poder, privados da liberdade muitos cidadãos, atirados outros para o exílio, o País está profundamente dividido, numa das horas mais graves de sua história e quando mais seria necessária uma solidariedade autêntica dos portugueses. As forças armadas intervêm, mais uma vez, na vida pública portuguesa. Não pode ser para se imporem como uma classe; mas tem de ser para fazerem valer os direitos dos cidadãos a disporem do país que é de todos. Só dessa forma a sua intervenção se justifica: pôr a termo ao Governo de um setor para instaurar um Governo do Povo e para todo o Povo, restituindo a este os direitos que nunca lhe deveriam ter sido arrebatados. A braços com uma longa e mortífera guerra cujas responsabilidades cabem fundamentalmente ao regime autocrático que há quase meio século foi imposto à Nação e que nunca foi intérprete da vontade das populações, nem da metrópole nem do Ultramar, temos antes de mais de clarificar a situação presente e respeitar os direitos de todos para a todos exigir os deveres de cidadania. As Forças Armadas têm de se integrar ao contexto da Nação e não sobrepor-se a ela. Só podem servir aos interesses do povo e não pôr- se ao serviço de um só partido ou de uma classe. Na medida em que as Forças Armadas sejam intérpretes do sentir do Povo Português e procurem restabelecer as liberdades fundamentais do cidadão, primeiras das quais consideramos o direito à vida e à expressão, trabalharão por Portugal.252

No rodapé, cercado por um box de linhas vermelhas, em letras maiúsculas, o triunfo: “ESTE JORNAL NÃO FOI VISADO POR QUALQUER COMISSÃO DE CENSURA”. Compõem a capa, ainda, os títulos: “O governo rendeu-se às cinco da tarde e as tropas do movimento entraram no Carmo” e “Os generais Spínola e Costa Gomes devem vir a formar uma Junta Militar”. O primeiro descreve o episódio que sinalizou a definitiva queda do regime: a rendição do quartel do Carmo. No momento da redação da notícia ainda não havia ocorrido, contudo, a passagem do poder de Caetano a Spínola: “Sabe-se que o prof. Marcelo Caetano escolhera o quartel do Carmo como último refúgio e ali se encontrava quando as Forças Armadas forçaram a entrada. No

252 PELO Povo e pelas suas liberdades. República, Lisboa, 25 abr. 1974, pp. 1 e 9.

212 momento em que redigimos esta notícia espera-se a chegada àquele aquartelamento do general António de Spínola”253. Na confusão e fragmentação do jornalismo “a quente”, está, logo abaixo, a informação em corpo destacado: “Precisamente às 18 horas, o general António de Spínola entrou no quartel do Carmo aclamado delirantemente por uma enorme multidão”254. Na capa, “Os generais Spínola e Costa Gomes devem vir a formar uma Junta Militar” encabeça uma cronologia do movimento, de sua deflagração nos primeiros minutos de 25 de abril até as primeiras horas da tarde desse mesmo dia, contando com a transcrição dos comunicados do MFA, transmitidos pelo Rádio Clube Português. O primeiro deles revela a grande preocupação do movimento com a decorrência pacífica dos acontecimentos:

Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de se recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma. Esperamos sinceramente que a gravidade da hora que vivemos não seja tristemente assinalada por qualquer acidente pessoal, para o que apelamos para o bom senso dos comandos das forças militarizadas, no sentido de serem evitados quaisquer confrontos com as Forças Armadas. Tal confronto, além de desnecessário, só poderia conduzir a sérios prejuízos individuais que enlutariam e criariam divisões entre os portugueses, o que há que evitar a todo o custo. Não obstante a expressa preocupação de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português, apelamos para o espírito cívico e profissional da classe médica, esperando a sua acorrência aos hospitais, a fim de prestar a eventual colaboração, que se deseja, sinceramente, desnecessária.255

No conjunto da edição, o jornal deixa transparecer essa produção atabalhoada, atropelada pelos fatos, composta por fragmentos recolhidos ao longo do dia. Há marcada tendência ao uso das estratégias de objetivação, especialmente em relação à indicação dos horários em que ocorreram os fatos. Nessa profusão noticiosa, a leitura do jornal completo apresenta informações contraditórias entre si e destaca-se por realizar, de forma ainda mais marcada que no jornalismo cotidiano, uma composição de tempos diversos: o do real- histórico, o da narração, o da composição e impressão e, ainda, o resgate de produções passadas, como a entrevista com o general Spínola, produzida

253 A RENDIÇÃO do quartel do Carmo. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 12. 254 O GENERAL Spínola no quartel do Carmo. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 12. 255 OS GENERAIS Spínola e Costa Gomes devem vir a formar uma Junta Militar. República, Lisboa, 25 abr. 1974, pp. 1-2.

213 originalmente em 1972, mas não publicada pelo veto da censura, os editoriais também censurados em março e abril de 1974 e um artigo de Mario Soares publicado pouco tempo antes, do exílio em Paris, no periódico francês L’Unité, com o título “O fascismo português ferido de morte”. Soares referia-se à publicação do livro de Spínola e ao Levante das Caldas e, frente à Revolução, o artigo se reveste de novos significados. Através do República, vê-se que o MFA tomou para a si não apenas a dianteira das ações, mas também, junto ao povo, a condução narrativa dos acontecimentos. O jornal, por sua vez, incorpora a narrativa da Revolução e toma parte direta nisso, não apenas no sentido tradicional que já apontamos da projeção do futuro, mas através mesmo subversão da referência factual, da mesma forma que vimos no Brasil em 1964, mas nesta vez em favor da destituição de Goulart: Na ocasião da primeira edição do dia 25 de abril, “A manchete categórica — “As Forças Armadas tomaram o poder” — não era ainda, à hora de publicação do vespertino, factual, relevando mais do desejo e da necessidade de mobilizar os meios populares: a rendição do Carmo só ocorreria horas mais tarde” (MESQUITA, 2014). O artigo “Tempo de dúvida e perplexidade”, de Mario Mesquita, traz uma leitura contemporânea dos acontecimentos, projetando a importância das decisões tomadas dali para frente e aponta para incoerências entre o programa apresentado pelo então Movimento dos Oficiais (como o MFA chamava-se no Levante das Caldas) e as propostas de Spínola em Portugal e o Futuro, especialmente na questão das liberdades políticas e nos territórios de ultramar (as propostas de Spínola são mais “prudentes” e conservadoras do que as do Movimento). A tomada de posição icônica do República contrasta, primeiro, com o silêncio e, depois, a sobriedade do DN. O matutino, a 25 de abril, veio a público em primeira edição com o noticiário regular e a manchete de capa dedicada ao ultramar, na contramão dos acontecimentos: “Revelou o secretário provincial de planejamento e Finanças / O Milagre de Angola / O Exercício de 1973 fechou com um saldo de quase 600 mil contos”. Nesta primeira edição de 25 de abril, não há sequer uma nota sobre os acontecimentos da madrugada. Uma segunda tiragem, distribuída por volta das 13h de 25 de abril, aparece com a

214 capa totalmente dedicada ao movimento em curso e a manchete: “Às primeiras horas da madrugada de hoje / Eclodiu um movimento militar / Através do Rádio Clube Português o “Comando do movimento das Forças Armadas” tem divulgado o seu objetivo: / A substituição do atual regime”. O jornal, aparentemente composto ainda pela manhã, afirmava desconhecer, às 10 horas, o padeiro do presidente e do Chefe do Conselho. Como observador externo, buscando esclarecimentos sobre a situação, afirma: “Quanto à identidade dos inspiradores do movimento, citaram-se diversos nomes, mas a verdade é que algumas das pessoas citadas não só ignoravam a eclosão do mesmo como também negavam qualquer participação nele”256. O DN destaca, ainda, as “Primeiras repercussões no estrangeiro”, citando a BBC de Londres, que registrava, de acordo com o diário português, “grandes movimentos de tropas em Lisboa”. O jornal relata uma tentativa de contato com Spínola:

Procuramos, esta manhã, entrar em contato telefônico com o general António de Spínola. Atendeu-nos a senhora de Spínola que tomara conhecimento do movimento militar através dos comunicados do Rádio Clube Português. Solicitamos permissão para um redator do “Diário de Notícias” se deslocar à residência e ouvir o general Spínola a propósito do movimento militar. O general mandou dizer que não era o momento oportuno.257

Nas edições de 26 de abril, vemos duas abordagens distintas nas capas de nosso recorte de jornais portugueses: República aposta no programa do Movimento, editando, em tópicos, seus principais aspectos e, no mais, assumindo, integralmente, a reprodução do programa. Os tópicos destacados foram:

 Extinção imediata da DGS, Legião e ANP  Anistia imediata para os presos políticos  Abolição da censura e exame prévio  Reorganização e saneamento das Forças Armadas  Combate eficaz contra a corrupção  Permitida a formação de “associações políticas”  Luta contra a inflação e a alta do custo de vida258

256 O CHEFE do Estado e o governo. Diário de Notícias, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 1. 257 O general Spínola não achou oportuno falar ao “Diário de Notícias”. Diário de Notícias, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 1. 258 O PROGRAMA do Movimento. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1.

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De acordo com Rezola (2008), a divulgação na imprensa do programa do MFA – e a publicação na íntegra no República – é sintoma de disputas entre a Junta e o MFA. Segundo a autora, Spínola não queria a divulgação, no que era apoiado pela JSN. O MFA, porém, mostra-se totalmente contrário à ideia:

O debate é inconclusivo, o que nos leva a concluir que sua apresentação à imprensa, na manhã de 26 de Abril, constitui um manobra dos Capitães. Segundo Martins Guerreiro, ele próprio se encarregou de entregar uma versão integral do Programa a Álvaro Guerra para ser publicado no República, movido pela preocupação de impedir que o Movimento fosse manipulado pela direita militar. Uma estratégia bem sucedida mas que não consegue impedir o fim das polêmicas. O programa era o compromisso possível, polêmico, cheio de ambiguidades e nascido contra a vontade de muitos. Um programa para ser esquecido ou, pelo menos rapidamente revisto. (REZOLA, 2007, p. 62).

Outra abordagem é a que aparece no DN de 26 de abril. A Revolução, agora consolidada, é apresentada ao leitor com um viés informativo. A manchete é: “Golpe de Estado às primeiras horas de ontem / O Movimento das Forças Armadas triunfou e anuncia a entrega do governo a uma Junta de Salvação Nacional presidida pelo general António de Spínola”. Assim como República, o DN apresenta seus destaques em tópicos, logo abaixo da manchete:

 Ignora-se ainda o destino do almirante Américo Tomás  Marcelo Caetano rendeu-se no quartel do Carmo  Grave incidente com a DGS (3 mortos e 45 feridos)  No resto do país, tudo corre normalmente259

A capa do República é composta, ainda, por uma foto que mostra, em meio à confusão de soldados e populares, a capa deste jornal no dia anterior. Abaixo, um pequeno parágrafo exalta a conquista da publicação de um primeiro jornal sem censura e o “furo” do fim do regime, depois de mais de quarenta anos de cerceamento e apesar da insistência do Exame Prévio:

O nosso jornal saiu ontem pela primeira vez desde há mais de quarenta anos, sem ir à Censura. Podemos informar os nossos leitores que da Secretaria de Estado da Informação e Turismo nos telefonaram para enviarmos provas ao Exame Prévio. Do Exame

259 O MOVIMENTO das Forças Armadas triunfou [...]. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1.

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Prévio insistiram diversas vezes pedindo provas. Mas os nossos leitores tiveram um jornal, como saiu dos trabalhadores que o fazem. Assinalemos também que foi “República” o primeiro jornal a anunciar o fim do regime que dominou a Nação duramente 48 anos. Como se vê da insistência do Exame Prévio, não saíram a bem os homens que pela força obtiveram o poder e que só à força o abandonaram.260

República, ainda na capa, repete o box do dia anterior sobre a censura (“Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”), destaca a rendição da PIDE-DGS na manhã de 26 e relembra, em texto emocionado, “Os que não viram o dia de ontem”, prestando uma homenagem àqueles que morreram, se exilaram, foram presos, demitidos, perseguidos, aposentados compulsivamente ou simplesmente não viveram para ver o fim do regime, embora o tivessem combatido em vida. “O rol dos perseguidos deste último meio século pode bem ombrear com o dos tempos do Absolutismo; e autêntico absolutismo foi o que ora findou”261. A página 3, tradicional espaço de opinião, é preenchida com textos que exaltam a liberdade de expressão, revelando um certo estupor diante da súbita liberdade. O jornalista Vitor Direito, na coluna “De vez em quando”, descreve sua experiência particular na Revolução e afirma que depois de 22 anos amarrado à censura, sente-se “um principiante”262. Reproduz, novamente, assim como fez no dia 25, diálogos entre os comandos da GNR que mostram, de acordo com título escolhido por República, “O estrebuchar da GNR”. Na mesma página, Vasco da Gama Fernandes critica de forma dura o isolacionismo da política externa portuguesa, sintetizada na expressão “orgulhosamente só”: “Toda a política salazarista e toda a política salazarenta de Marcelo Caetano orientou-se, no plano externo no sentido de isolar Portugal da convivência internacional, em nome dum nacionalismo de tipo fascista para o qual só interessava a sobrevivência interna”263. Nas páginas centrais, República descreve os momentos de negociação da rendição do governo no Carmo: “O dia mais longo dos últimos 50 anos da vida portuguesa”. O vespertino tira proveito de seu tempo de produção e

260 O NOSSO jornal saiu ontem [...]. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1. 261 OS QUE não viram o dia 25. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1 e 15. 262 DIREITO, Vitor. De vez em quando. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 3. 263 FERNANDES, Vasco da Gama. O isolamento. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 10.

217 circulação para noticiar, ainda na edição de 26, a primeira conferência de imprensa concedida pela Junta de Salvação Nacional à imprensa nacional e estrangeira, ocorrida na manhã de 26 de abril. De algumas das respostas de Spínola publicadas, o jornal escolhe, como título, a seguinte fala: “A imprensa tem um alto dever de esclarecimento do povo”. Destacamos, o seguinte conjunto de pergunta e resposta: “– Podemos saber o nome do leader do movimento?”. Spínola responde: “Aí está uma pergunta de resposta muito difícil. Não sei. É o movimento coletivo das Forças Armadas”. Esta edição noticia, ainda, o começo da libertação dos presos políticos e os mortos e feridos no episódio do ataque de metralhadora dos agentes da GNR. Salientamos, por fim, que o República de 26 de abril ainda não abre espaço às repercussões internacionais, sejam diplomáticas ou noticiosas. Retomando a cobertura do DN, este periódico define como “Momento Histórico” a passagem de poder de Caetano a Spínola. Descreve em pormenores a operação de buscar o general em casa, a pedido do Presidente do Conselho, “para que o poder não caia na rua”264 e a verdadeira comoção popular que tomou conta dos arredores do quartel do Carmo, enquanto o capitão José Salgueiro Maia buscava informar e conter a multidão. A 27 de abril, “Normalização e liberalização da vida política nacional – Pontos essenciais de um vasto programa comunicado à imprensa pelo general Spínola” é a manchete do DN. Destaca, ainda, em itens, a rendição da DGS e a liberdade aos presos de Caxias e Peniche. A “normalização”, segundo texto editorial publicado na capa, impõe novos desafios aos portugueses, intimados pelo DN a mostrarem maturidade para merecer a liberdade:

Dentro dos princípios enunciados pelos promotores do movimento, com os deveres e direitos que a nova situação impõe, o povo português atinge, pode-se dizer, a sua maioridade. Elevando deste modo o País ao nível dos estados mais progressivos, o novo regime promete, pois, promover o acesso de Portugal ao lugar que lhe compete na comunidade internacional, reforçando-lhe a estima dos aliados e amigos e o respeito dos adversários. [...] O que os portugueses não devem entretanto perder de vista é que para se ter liberdade é preciso merecê-la. Cada um de nós tem de provar por si que é digno dela, adquirindo hábitos de tolerância e

264 UM MOMENTO histórico na residência do general Spínola. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 2.

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respeito pelo próximo que andam muito esquecidos. Só por esse modo poderemos triunfalmente refutar o argumento dos que negam ao povo português a maturidade necessária para ser livre.265

À figura de Spínola são devotados crédito e confiança: “glorioso militar e grande administrador”. “Não duvidamos de que o clima de liberdade que sob a sua égide se está a instaurar no nosso País favorecerá a expressão da inteligência e do caráter nacionais, inaugurando uma etapa brilhante na longa história de Portugal” 266. O DN apresenta detalhes sobre os desdobramentos da Revolução em outras cidades portuguesas além de Lisboa, como no Porto e Coimbra. Consolidam-se, nas páginas do jornal de 27 de abril, os símbolos da revolução: “E Depois do Adeus e Grândola, Vila Morena foram os sinais combinados para o início do movimento das forças armadas” (p. 6) e “Com um cravo vermelho na mão milhares de pessoas saudaram os libertados da cadeia de Caxias” (p. 7). No República de 27 de abril, a ênfase também é na “normalidade”. A manchete principal de capa é: “Normalidade em todo o País / A vitória consolida-se após a evacuação dos agentes da PIDE presos na sede”. O jornal afirma que “normalidade é a palavra que melhor se aplica à presente situação do País”267, e os indícios mais contundentes dessa “tranquilidade” são a desativação da PIDE-DGS e a prisão de muitos de seus agentes e a libertação dos presos políticos. Nas ruas da baixa lisboeta, “o comércio reabre e o movimento nas ruas é o habitual” 268. A fotografia em destaque na capa mostra o sorriso e os braços abertos de Hermínio da Palma Inácio, combatente do Estado Novo, recém-liberto da prisão de Caxias. Na legenda, mais uma afirmação que relaciona o cotidiano e a “normalidade” almejada e festejada pelo jornal: “Agora, quando nos baterem à porta de madrugada, tenhamos esperança de que é com certeza o leiteiro!”269. Ao mesmo tempo, a leitura do República indica sintomas da luta política que começa a se configurar. Ainda na capa de 17 de abril, uma

265 Diário de Notícias, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1. 266 Diário de Notícias, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1. 267 NORMALIDADE em todo o país. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1. 268 NORMALIDADE em todo o país. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1. 269 República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1.

219 declaração de Mario Soares, secretário-geral do Partido Socialista, dá título à matéria que anuncia seu retorno a Portugal: “Quanto mais tarde se efetuarem negociações com os movimentos de libertação pior será para Portugal”270. Vemos, assim, que imediatamente começam a aparecer as disputas políticas em torno do (quente) futuro político português. Ambos os jornais de nosso recorte publicam, nesse dia 27, apelos à “ordem e ao civismo”, destacando, entre elogios à maturidade política do povo português, ações incompatíveis com essa conduta, como o ataque à sede do jornal Época. O povo português, a partir do 25 de Abril, finalmente voltaria a ter voz na definição de seu destino político.

4.1.2. Personagens

Antes mesmo da revolução, especialmente por ocasião da publicação do livro Portugal e o Futuro, a personagem Spínola era destacada como protagonista na narrativa midiática. Na imprensa portuguesa analisada em nossa tese, o general é explorado com mais ambiguidade do que na brasileira, como veremos adiante, no tópico 4.2.2. Ainda assim, parecia impossível não reconhecer a projeção do general naquele cenário político. Na Carta Aberta ao General Spínola, redigida por Arthur Portela Filho e publicada no República, fica claro que essa personagem assume o que o autor chama “vantagem da iniciativa”, projetando um “enorme vulto”:

“Portugal e o Futuro não é uma proposta nova. V. Exª é. Daí que, se há alguma coisa de decisivo neste livro, é, muito simplesmente, — o autógrafo de V. Exª. O que, não provando a debilidade do livro, prova a força de V. Exª. Ou, talvez melhor, a força que V. Exª é. Ou, talvez ainda melhor, a força que V. Exª está.

Uma coisa é certa: V. Exª é, neste momento, politicamente, a iniciativa. V. Exª é neste momento, historicamente, a iniciativa. Personifica e iniciativa. E isso, sabe-o V. Exª muito melhor do que eu, dá, a quem a assume, a vantagem. E, automaticamente, a quem não a assume, a desvantagem.

270 QUANTO mais tarde se efetuarem negociações com os movimentos de libertação pior será para Portugal. República, Lisboa, 27 abr. 1974.

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Ora a Esquerda tem, por vezes, para a debilidade, o álibi da habilidade. O enorme vulto que V. Exª, irrecusavelmente, é projeta, no chão, uma sombra que dá para quase toda a gente. Sobretudo para aqueles que são excitáveis pela ressonância encantatória das suas palavras, pelo planetarismo da sua perspectiva, pelo degaullismo do seu perfil.271

Outro artigo publicado no República, este assinado por Mário Sottomayor Cardia, assinala que o livro Portugal e o Futuro marca a passagem dessa personagem, já reconhecida no campo da ação militar e administrativa, para o status de “pensador político da direita portuguesa”:

O nome do general Spínola corre de boca em boca e de boato em boato. É simultaneamente a pessoa de quem mais se fala e o político que mais variadas linguagens fala. Sendo basicamente um homem de ação e um cabo de guerra, o seu nome tornou-se, em condições que talvez um dia se esclareçam o de um pensador político – o único pensador político original da direita portuguesa de há muitos anos a esta parte.272

O destaque e brilhantismo da figura de Spínola fica patente no República de 25 de abril, tanto através da recuperada entrevista com o general, realizada na Guiné em 1972, quando o militar era governador do território, como pelo perfil apresentado na página 8 (“António de Spínola – uma carreira brilhante de homem e de militar”) e pelo próprio noticiário (a sua presença no Carmo para a rendição de Caetano). O texto do jornalista Vitor Direito, que introduz a entrevista, organizada no formato “pingue-pongue” (perguntas e respostas), conta detalhes da viagem até a Guiné e suas impressões pessoais, entre elas, sobre o primeiro impacto – expresso em verdadeiro encanto – ao conhecer pessoalmente o governador:

A segunda surpresa, confesso-o lealmente, tive-a logo que me avistei com o general António de Spínola no seu gabinete de governador. A imagem que dele idealizava, e corresponde, certamente, à de muitos de meus leitores, cai por terra ao primeiro contato. Não se adivinha, num só dos seus gestos, numa única atitude, como depois das palavras e no convívio, a menor característica do militar rígido, de corpo hirto e espírito inflexível. Pelo contrário: a farda veste-a tão à- vontade como qualquer gente usa o “smoking”; o sorriso franco sublinha constantemente a palavra fácil e ágil; o próprio monóculo, em vez de lhe endurecer a figura, dá ao rosto arredondado um toque

271 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, Lisboa, 11 mar. 1974, p. 3. 272 CARDIA, Mário Sottomayor. Portugal e o futuro. República, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 3.

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sutil da mais pura linha romântica. É este “homem novo” para mim quem me recebe afavelmente e com o qual mantenho conversa chá e despida de preconceitos ao longo de mais de quinze horas repartidas por quatro encontros verificados durante a minha curta estada na Guiné. A surpreendente revelação – a troca de um símbolo nazi pela imagem de um homem coerente – sinto-a confirmada no que ouço e vejo em escassos sete dias.273

Fica expresso nesses recortes que Spínola, apesar de visto com desconfiança porque era um “homem do regime”, conseguiu, através de sua ação e reflexão, provocar sobre si um imaginário que tornou possível o desfecho da Revolução, ambíguo e sofisticado o suficiente para dialogar entre as partes de uma nação dividida. Sabemos, porém, que o 25 de abril só aconteceu pela mobilização, especialmente entre as patentes mais baixas, das Forças Armadas. O enquadramento da narrativa midiática não teve condições de compreender, ao menos nos primeiros momentos da Revolução, a horizontalidade do Movimento das Forças Armadas. Assim, nas edições de 25 de abril, temos, em uma pequena nota, o nome de uma personagem que amalgamou muitas outras, e que só perdurariam na duração. A notícia dá pistas sobre o temperamento e posição moral deste cidadão e capitão das Forças Armadas, Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992):

OS QUE VÃO SER JULGADOS Às 18 e 5, de uma das janelas do quartel do Carmo, o capitão Maia, através de um megafone e ante imensas pessoas que gritavam “assassinos, assassinos...”, disse que: ‘As pessoas estão aqui por amor à liberdade. Entretanto, não se deve atentar contra a liberdade de outros que vão ser julgados”.274

Salgueiro Maia aparece nas páginas centrais no República de 26 de abril. Numa fotografia, está em pé sobre um veículo, megafone em punho, falando à multidão. Os oficiais no comando estão “firmemente decididos a vencer”275. A multidão, apesar dos pedidos para que ficassem em casa, não cessa de chegar ao Carmo, apesar do ambiente de nítida tensão. “O momento mais desejado” é descrito pelo República:

273 “Será este o preço justo que a juventude portuguesa tem de pagar pelos erros de seus antepassados? República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 7. 274 OS QUE vão ser julgados. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p.12 275 O DIA mais longo dos últimos 50 anos da vida portuguesa. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 12.

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Às 17h30, o capitão Maia, que desempenhou um papel importante durante todo o cerco ao quartel da GNR e foi da maior amabilidade em relação ao povo que se concentrava na praça e ainda em relação aos magotes de jornalistas e repórteres presentes, anunciava, através de um megafone, do alto de um dos blindados, que iria chegar em breve ao aquartelamento o general António de Spínola.276

O capitão também aparece no DN de 26 de abril, em retrato na página 5, conversando com o redator do matutino. Descrito como aquele que “comandava a força no Largo do Carmo”, “um oficial com larga experiência nas campanhas de África – o capitão Salgueiro Maia, 29 anos, duas missões cumpridas no ultramar, na 9ª Companhia de Comandos, em Moçambique e na Guiné”277. Ao jornalista, Maia faz uma afirmação que demonstra que Spínola e o MFA não são necessariamente alinhados: “Este movimento nasceu antes da publicação do livro do General Spínola. Simplesmente chegamos às mesmas conclusões do General. Agora cumpro ordens...”278. No República, a relação de identificação e irmanação entre o povo e as Forças Armadas cria um novo protagonismo na narrativa, fora das figuras oficiais. O editorial-manifesto do jornal, não por acaso, intitula-se “Pelo povo e pelas suas liberdades”, indicando o profundo compromisso cívico assumido pelo MFA e encampado por este jornal. Texto e fotografias mostram a participação de populares que “assaltam” os blindados e têm de ser “diplomaticamente” convencidos a afastar-se. Em comunicado das 18h20, reproduzido no República, o MFA “agradece à população civil todo o carinho e apoio que tem prestado aos seus soldados, insistindo na necessidade de ser mantido o seu valor cívico ao mais alto grau”279. Álvaro Guerra, na página 3 do República de 26 de abril, relata, em “O Exército e o povo”, uma das muitas manifestações da profunda conexão solidária que se estabeleceu entre a população e os soldados:

Nove horas da noite, numa transversal à Rua Sampaio Pina, muito perto do Rádio Clube Português. Diálogo de três soldados de

276 O DIA mais longo dos últimos 50 anos da vida portuguesa. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 12. 277 AS OPERAÇÕES do Largo do Carmo descritas pelo oficial que as comandou. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 5. 278 AS OPERAÇÕES do Largo do Carmo descritas pelo oficial que as comandou. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 5. 279 “O EX-GOVERNO rendeu-se em o uso da força. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 9.

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Caçadores 5 com um casal de meia idade instalado à janela de um primeiro andar. A voz feminina: “Subam no elevador e toquem para o primeiro esquerdo. A sopa já está quentinha”. Um dos soldados: “Muito obrigada, minha senhora. Tem que ir um de cada vez porque estamos de serviço”. Este foi apenas um dos muitos episódios do que aconteceu entre o Exército e o povo em Lisboa. Que o exemplo de ontem frutifique. Hoje e sempre.280

O DN descreveu o delírio da população no Largo do Carmo, palco da rendição de Caetano e efetiva queda do regime:

Ninguém arredava pé do Largo do Carmo. Faltava um minuto para as 18 horas quando um automóvel preto apareceu no topo do largo. A multidão, que entrou verdadeiramente em delírio, impossibilitava a marcha do veículo. Rompendo a custo, o carro foi-se abeirando da entrada do quartel. Dentro, fardado, o general António de Spínola. Sereno, acenava com a mão direita. A seu lado, sorrindo, o tenente- coronel Dias de Lima. O “Peugeot” preto em que viajava o general quase foi levantado pela multidão. Uma massa enlouquecida manifestava a sua alegria gritava pelo nome do general. Quase entrou agarrada ao automóvel, no quartel.281

Dos defensores do governo salazarista, “Os poucos polícias, praças, oficiais da GNR. que se viam pelas ruas da cidade mostravam-se alheados e apáticos perante o movimento que se gerara. Os oficiais e praças que ocupavam posições estratégicas na cidade estavam autoconfiantes e seguros de si”282. Esses personagens têm espaço reduzido na narrativa jornalística analisada, e, no República, apenas no sentido de confirmar sua derrota. O vespertino transcreve um diálogo interceptado das conversações de rádio dos “comandos adversos”. Nele, os interlocutores informam o domínio do MFA e discutem “os meios para prosseguir a ação”. A resposta nega a possibilidade de reação no Carmo e entrevê a participação popular: “Não vejo possibilidade porque está tudo atravancado e aqui há muita população metida no meio, que não nos hostiliza porque julga que estamos do outro lado. De forma que não vejo bem que os meios aéreos possam limpar aquilo. Não acredito que tenha qualquer possibilidade de fazer qualquer ação ali”283.

280 GUERRA, Álvaro. O exército e o povo. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 3. 281 UM MOMENTO histórico na residência do General Spínola. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 2. 282 A CRONOLOGIA do Movimento. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 2. 283 UM DIÁLOGO. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 4

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Sobre o chefe do governo e o presidente, são tratados com respeito e silêncio protocolar. São vistos mais como representantes de um regime sobre os quais calhou a oportunidade histórica da queda inevitável. Preso, Caetano é tratado por “Professor”. Tanto DN quanto República tratam com cautela o destino de Marcelo Caetano e Américo Tomás. Tratam de descrever suas transferências para o Funchal, evitando caracterizar uma prisão. O DN classifica de “viajar para o exílio” e trata Caetano como “professor” e “antigo Chefe do Governo”284. Spínola, na conferência de imprensa na manhã do dia 26 de abril, afirma que “o almirante Américo Tomás e o prof. Marcelo Caetano haviam partido, cerca das 6.30, de avião, para o Funchal”285 (grifos nossos). Ainda sobre Caetano, República reproduz fala de Mário Soares em entrevista concedida em 1972: “A experiência de Caetano esgotou-se: o Presidente do Conselho cada vez mais repetirá Salazar! Como professor, tenho de Marcelo Caetano boas recordações. Sem qualquer dúvida, considero-o muito melhor professor do que político”286. Havemos de destacar, ainda, uma personagem que permeia a metanarrativa (MOTTA, 2013), o pano de fundo moral sobre o qual se desempenha a Revolução: Salazar, o antagonista. A queda que ocorre é a da ditadura “salazarista” e “salazarenta”, com toda a carga imaginária carregada por essa atribuição.

4.1.3. Léxico

São muitas as expressões utilizadas para referir a Revolução de 25 de abril. Alguns aspectos podem ser destacados da análise do léxico empregado, entre elas: não parece haver resistência em qualificar os acontecimentos como “golpe de estado” ou ‘golpe militar”, ainda que se resguarde a carga imaginária sobre uma ruptura institucional encabeçada pelos militares, as quais sugerem, por “lição” histórica, um endurecimento dos regimes políticos e não sua distensão. Outro aspecto interessante é que própria nomenclatura do grupo

284 MARCELO Caetano seguiu para a Madeira. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1. 285 NORMALIZAÇÃO e liberalização da vida política [...]. Diário de Notícias, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 1. 286 SOU pela descolonização [...]. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 12.

225 das Forças Armadas que idealizou e realizou a revolução tomou para si a palavra “movimento”, léxico através do qual os acontecimentos acabaram sendo mais amplamente reconhecidos e referidos, mais ameno do que “golpe de Estado” ou “golpe militar”. Assim, a expressão “o Movimento das Forças Armadas” referia, ao mesmo tempo, o coletivo e a ação, escolha que reflete muito do caráter coletivista e horizontalizado do grupo de militares e que acabou por proporcionar grande força narrativa à Revolução. Assim, as primeiras manchetes de nosso recorte sugerem diferentes abordagens do léxico: no República: “As Forças Armadas tomaram o poder”. Já o DN, simpatizante do regime, opta por: “Golpe de Estado às primeiras horas de ontem / O Movimento das Forças Armadas triunfou e anuncia a entrega do governo a uma junta de Salvação Nacional presidida pelo general António de Spínola”. República apropria-se dos termos do MFA para compor o título “O Ex- governo rendeu-se sem o uso da força”. O comunicado do MFA das 18h20 de 25 de abril, emitido logo após a transferência do poder de Caetano a Spínola informa que “conseguiu forçar a entrada no quartel da Guarda Nacional Republicana, situada no Largo do Carmo, onde se encontrava o ex-presidente do Conselho e outros membros do seu ex-governo” 287 (grifos nossos). Trata-se de uma passagem importante de afirmação do léxico relacionado à vitória revolucionária. O “espectro” de Salazar manifesta-se também nas escolhas lexicais, como já vimos em relação às personagens. Nos últimos momentos antes da rendição final, “O Quartel do Carmo significava, simultaneamente, a resistência da GNR e a última tentativa do agonizante Governo salazarista evolucionado na continuidade por Marcelo Caetano”288 (grifo nosso). Vasco da Gama Fernandes, em artigo no República, critica de forma dura o isolacionismo da política externa portuguesa, sintetizada na expressão “orgulhosamente só” e na adjetivação “salazarento”: “Toda a política salazarista e toda a política salazarenta de Marcelo Caetano orientou-se, no plano externo no sentido de isolar Portugal da convivência internacional, em nome dum

287 “O EX-GOVERNO rendeu-se sem o uso da força. República, Lisboa, 25 abr 1974, p.9 288 O DIA mais longo dos últimos 50 anos da vida portuguesa. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 12.

226 nacionalismo de tipo fascista para o qual só interessava a sobrevivência interna”289. República refere-se, ainda a “sistema autocrático”, “regime censitório e policial”290, “ditadura” e governo fascista”291.

4.1.4. Ruptura e repercussões midiáticas

Já comentamos, na composição da intriga, que os jornais de nosso recorte assumem, cada um à sua maneira, um papel ativo na narrativa sobre o 25 de abril, especialmente ao colocarem os acontecimentos em uma perspectiva “histórica”, no sentido de que presenciavam momentos decisivos da política portuguesa. Nesse sentido, o fim da censura e a repercussão na África são as questões que mais se destacam no recorte analisado. O papel de agente “histórico” foi construído aos poucos, junto com os fatos que sinalizavam o fim do regime – como a publicação do livro de Spínola – e que exigiam daqueles que encaravam a informação como um compromisso de cidadania, o dever de posicionar-se. Exemplo disso é o trecho da Carta Aberta a Spínola, de Arthur Portela Filho, publicada no República:

E não é absurdo supor que a Esquerda, ela própria, encare V. Exª como uma perspectiva. As citações históricas seriam, aqui, numerosas. Quase tão numerosas como os desenganos da Esquerda. É sobretudo por isso que importa exercer, neste jornal, sobre este livro, a nossa coerência e nosso rigor. 292 (grifo nosso)

República foi além da crítica. Implicado na preparação do 25 de abril e considerado o “mais influente diário oposicionista nacional não clandestino” (MESQUITA, 2014), publicou no dia 24 de abril uma pequena nota que destacava o programa radiofônico Limite, da Rádio Renascença. O jornalista Carlos Albino, que integrava a redação, era um dos responsáveis pelo programa que emitiu a senha definitiva do começo das operações, às 00h20 do dia 25: a leitura da primeira estrofe da canção Grândola, Vila Morena, de José

289 FERNANDES, Vasco da Gama. O isolamento. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 10. 290 PELO Povo e pelas suas liberdades. República, Lisboa, 25 abr. 1974, pp. 1 e 9. 291 REPERCUSSÕES em África. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 18. 292 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República. Lisboa, 11 mar. 1974, p. 3.

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Afonso, seguida da execução da música293. No dia 25, depois de o seu diretor se recusar de a enviar provas ao Exame Prévio, o República saiu à rua com a impactante tarja em rodapé: “Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”. Era a marca, icônica, do renascimento da palavra pública em Portugal. No República são várias as referências à censura. Além do box da capa, a página 3, tradicional espaço opinativo, o jornal publica três textos vetados pela censura entre março e abril de 1974, todos eles com referência à situação das Forças Armadas e ao ganho de força da alternativa política à guerra no ultramar. Ocorre, ainda, a publicação de entrevista com Spínola, realizada em 1972, quando este era o governador da Guiné e que fora proibida pela censura:

Em Outubro de 1972, a convite do general Spínola, então governador geral da Guiné, deslocou-se a Bissau o nosso chefe de redação Vítor Direito. O convite, dirigido a “República” foi aceite com uma só condição: o nosso enviado especial entrevistaria o anfitrião e escreveria um primeiro artigo cuja publicação só se faria se a Censura não fizesse se quer um corte parcial. As provas da entrevista e do artigo estiveram retidas na Comissão de Exame Prévio cerca de trinta dias e acabaram por vir com o carimbo de “Proibido”. Ainda que, dado o afastamento no tempo, tanto a entrevista como o artigo tenham hoje apensar um relativo interesse, não queremos deixar de dar este trabalho a estampar, na certeza de que muitos dos nossos leitores encontrarão nele algo aproveitável, como achega para o momento que vivemos nos últimos dois anos.294

A matéria dava conta, ainda, da surpresa do jornalista com a liberdade de expressão na Guiné:

Procuro refúgio no diálogo. E devo dizer que a capacidade de dialogar que venho encontrar na Guiné é a primeira e talvez a maior surpresa da minha apressada visita a esta parcela da África. Não há aqui reticências, nem temores. Fala-se abertamente de tudo, sem um único tabu, nem tão pouco com a preocupação de saber quem é e como é o dono das orelhas postadas junto a nós. Avalia-se pois a reação do metropolitano recém-chegado. 295

293 A Fundação Mario Soares disponibilizou, on-line, a gravação dessa transmissão. No dia 25 de Abril de 2001, com a presença do Presidente da Assembleia da República, o jornalista Carlos Albino e o realizador de televisão Manuel Tomás fizeram entrega à Fundação, na pessoa do Dr. Mário Soares, da fita magnética com a gravação original da "senha" do 25 de Abril de 1974 (designadamente, a canção de José Afonso, Grândola Vila Morena.). Disponível em: < https://goo.gl/oueJdY>. Acesso em: 02 dez. 2016. 294 SERÁ este o preço justo que a juventude portuguesa [...]. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 6. 295 SERÁ este o preço justo que a juventude portuguesa [...]. República, Lisboa, 25 abr. 1974, p. 7.

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Não podemos ignorar a participação e a crítica à TV na Revolução portuguesa. A tomada da RTP nas primeiras horas de 25 de abril e, ao fim do dia, a apresentação da Junta de Salvação Nacional ao País são momentos centrais. Para Correia da Fonseca, da coluna “TVer e Contar”, do República, “nasceu outra RTP”:

Por isso não pode haver hoje, naturalmente, comentário à emissão. O tempo é de olhos abertos de pasmo, de expectativa, de esperança. Tempo de ver, muito mais que tempo de contar. Tempo de registrar, em todo o caso, que ontem, como nunca antes, os telespectadores portugueses estiveram atentos ao que a TV iria trazer-lhes. Não para descobrir, por detrás do que vissem e ouvissem, os autênticos contornos da realidade. Não para se apoiaram [sic] durante algumas horas. Não para evitarem pensar nos problemas. Ontem, os telespectadores estiveram à espera de que televisão lhes trouxesse a verdade. Que a RTP transmitisse, não a reportagem de secundaríssimas cerimônias convencionais, mas os fatos fundamentais em termos de veracidade. Ontem, os telespectadores, pela primeira vez, acreditaram que a televisão serve para informar.296

Sobre a repercussão internacional, DN dedica-se mais a essa dimensão e, já no dia 26 de abril, publica uma página sobre esse aspecto. “África, Europa e Estados Unidos atentos ao que se passa em Lisboa” faz um apanhado das primeiras reações à Revolução pelo mundo. Neste momento, a reação é, em geral, de cautela, porque parece não haver clareza sobre o programa político dos revolucionários. As primeiras reações de apreensão vêm da África Austral, África do Sul e Rodésia, por conta do fato de que os governos segregacionistas dessas duas nações eram aliados da política colonialista do governo português. Manifestam-se também especulações sobre a possibilidade de que os portugueses nos territórios ultramarinos tentassem tomar o poder através de “revoluções brancas de estilo rodesiano”297. Através da ANI, o governo-geral de Angola afirma que ainda não se conhecem as características do movimento que toma o poder na metrópole, que as comunicações são difíceis e que, por enquanto, a situação em Luanda é de absoluta calma298. Do Brasil, a notícia é que o governo aguarda um comunicado oficial

296 CORREIA DA FONSECA. Televisão, dia 1. República, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 5. 297 ÁFRICA, Europa e Estados Unidos atentos ao que se passa em Lisboa. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 4. 298 POSIÇÃO do governo-geral de Angola. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 4.

229 para se pronunciar. Manifesta-se, ainda, o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, que afirma à UPI (United Press Internacional) que “o ocorrido em Portugal era fácil de prever por qualquer pessoa que tivesse lido o livro do general António de Spínola ‘Portugal e o Futuro’”. Ao seu estilo, tece comentários, faz projeções e até dá recomendações aos revolucionários:

No referido livro – observou Lacerda – o general Spínola <

De Londres, os jornais citados são Times e Daily Mail, que antecipam grande impacto das mudanças políticas em Portugal na África Austral. Dos Estados Unidos, a informação é que o governo acompanha com atenção os acontecimentos, preferindo não se manifestar. República, que até então não havia dedicado espaço às repercussões internacionais dos acontecimentos, noticia, em 27 de abril, falas de exilados políticos no Brasil. Entre eles, estão o capitão João Sarmento Pimentel, lembrado como “talvez o mais antigo exilado português no Brasil e que conta atualmente 88 anos”300 e o professor Rui Gomes, que foi candidato à presidência em 1951. Ambos expressam satisfação pelos fatos ocorridos em

299 ÁFRICA, Europa e Estados Unidos atentos ao que se passa em Lisboa. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 4. 300 “O GOLPE militar em Portugal trará liberdade para o povo”. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 9.

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Lisboa. Neste mesmo espaço, República repercute a cobertura do Jornal do Brasil dedicada aos acontecimentos em Portugal:

O “Jornal do Brasil” publica hoje diversas telefotos dos acontecimentos de ontem em Lisboa, apresentando a toda a largura da primeira página o seguinte título: “Junta controla Portugal e anuncia Constituinte”. A segunda página é encabeçada pela frase “Militares acabam salazarismo”, dedicando o jornal quatro páginas ao movimento das Forças Amadas portuguesas. O seu principal editorial, intitulado “Brasil-Portugal” advoga o pronto reconhecimento do novo Governo, afirmando que “o movimento militar e político que encerrou, em Portugal, o Governo do primeiro- ministro Marcelo Caetano, foi o reconhecimento, de fato, de que a opinião pública portuguesa exigirá caminhos novos para o país, que há treze anos se exauria numa guerra inglória”. A terminar o editorialista escreve que o movimento foi rápido e praticamente incruento, o que é a marca das ações que surgem apoiadas no consenso popular.301

Nesta edição, o jornal abre espaço, ainda, à repercussão na África, considerando que “são de fundamental importância todas as informações provenientes dos territórios africanos, nomeadamente quanto às repercussões que, até ao momento, ali houve do movimento que depôs o governo fascista”302. Credita, como fontes, a ANI e Lusitânia. De Angola, reporta a substituição, pela Junta de Salvação Nacional, do governador-geral nomeado por Marcelo Caetano e também reações por parte da imprensa. De Moçambique, foram noticiadas manifestações populares de apoio à JSN e, em Bissau, entusiasmo e também a substituição do governador-geral.

4.1.5. Relações com o tempo

A Revolução de 25 de Abril traz em si uma profunda relação com o tempo. A leitura midiática do evento dá acesso ao que parece ser um momento em que o passado (a ditadura salazarista e “salazarenta”) é ultrapassado pelo futuro, materializado na proposta do livro de Spínola, o qual não por acaso, acreditamos, foi intitulado Portugal e o Futuro. Nesse sentido, a carta Aberta ao general Spínola, de Arthur Portela Filho e publicada no República, nos parece novamente uma porta de acesso ao imaginário mobilizado pelo livro:

301 “O GOLPE militar em Portugal trará liberdade para o povo”. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 9. 302 REPERCUSSÕES em África. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 18.

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Uma coisa é certa: V. Exª é, neste momento, politicamente, a iniciativa. V. Exª é neste momento, historicamente, a iniciativa. Personifica e iniciativa. E isso, sabe-o V. Exª muito melhor do que eu, dá, a quem a assume, a vantagem. E, automaticamente, a quem não a assume, a desvantagem.303

A carta aberta também articula os tempos, mas coloca especialmente no futuro, e de forma bastante precisa, a carga ideológica, a potência de futuro que as ações tomadas a partir dessa nova mobilização narrativa da realidade carregavam:

“Portugal e o Futuro” não é, predominantemente, um livro político. É, predominantemente, um livro geo-político. Isto porque “Portugal e o Futuro” não propõe uma ideologia, propõe uma geografia. Dedicando toda a sua atenção à estruturação física e à nomenclatura institucional da Comunidade Lusíada, V. Exª deixa de lado uma coisa ainda assim considerável. Essa coisa chama-se – o essencial. E o essencial é — a ideologia que essa Comunidade deve assumir. O tipo de sociedade que escolhe ser. A linha de futuro que pretende alcançar. O homem moral que quer construir. [...] Deverá, no entanto, V. Exª não esquecer que o referendo que está propondo para todo o espaço português só será eficaz, só será justo, se dermos a escolher, aos vinte e cinco milhões de europeus, africanos e asiáticos que refere, não apenas entre o estatuto geopolítico A e o estatuto geopolítico B, mas também entre o estatuto sócio-político a e o estatuto sócio-político B. Ou C, claro. 304 [...] O silêncio que V. Exª faz sobre as opções sócio-políticas e sócio- econômicas ou a forma excessivamente generalizadora que as refere permite-nos recear que a corrente de opinião personificada por V. Exª é capaz de avançar uma geografia estimulante, mas não é capaz de avançar um futuro estimulante.305 [...] A Esquerda será, se quiserem, por vezes, a imagem viva da falta de audácia, de criatividade de capacidade de resposta. Acontece que isso não é uma inevitabilidade, é uma incoerência. A incoerência da Direita é a iniciativa. A coerência da Esquerda é a iniciativa. A Esquerda é, ela própria, historicamente, a iniciativa. O futuro português que importa criar não poderá ser consequência de uma alteração geopolítica, exigida pela expansão econômica de uma estrutura social. O futuro português que importa criar terá de ser consequência da vontade de inaugurar uma sociedade verdadeiramente democrática, livre e próspera.

303 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, 11 mar. 1974, p. 3. 304 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, 11 mar. 1974, p. 3. 305 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, 11 mar. 1974, p. 4.

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“Portugal e o Futuro” surge como “o livro esperado”. E possível, mas por quem? Pela nossa parte, o livro a escrever não é este – é outro. E será uma obra coletiva.306

Podemos afirmar que os jornais analisados tinham consciência da dimensão histórica dos momentos que acompanhavam e agiram midiaticamente também mobilizados por esse entendimento. Isso fica claro em diversas passagens, como, por exemplo, na capa do DN de 26 de abril. Um dos textos de capa, que descreve o momento em que, no Carmo, negociou-se a rendição do Primeiro-Ministro Marcelo Caetano, traz como título “Momento Histórico”. O próprio editorial publicado nesta mesma página transparece essa consciência e a do papel do jornal como agente político:

Todo o povo português, sobretudo o da capital, viveu ontem momentos de compreensível ansiedade por motivo dos acontecimentos registrados a partir da madrugada e de que o “Diário de Notícias” procurou dar, em edição especial, um relato tão completo e objetivo quanto lhe foi possível, tendo em vista, acima de tudo, o direito que a população tem de ser informada sobre o que afeta de forma tão vital o destino coletivo. Conforme o leitor poderá julgar pela leitura dos comunicados do Movimento das Forças Armadas, ocorreram fatos que se devem classificar de históricos, na medida em que prenunciam uma significativa mudança de rumo político.307

Da mesma forma, a publicação da íntegra do programa do MFA pelo República, como vimos na recomposição da intriga, mostra a imprensa como agente comprometido com o processo revolucionário. Narrativamente, o jornalismo português analisado está mergulhado no presente. Desaparecem as grandes retomadas de antecedentes históricos (no máximo, retrocedem ao Levantamento das Caldas, em março daquele mesmo ano). Multiplicam-se as cronologias, hora a hora, minuto a minuto, da Revolução. O salazarismo, a ditadura, a repressão, o jornalismo parece querer deixar para trás. A 27 de abril, como vimos na composição da intriga, a “normalização” ganha espaço. Em seu sentido popular e cotidiano, é descrita da seguinte forma pelo DN:

306 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, 11 mar. 1974, p. 4. 307 Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 1.

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Em Lisboa, a esmagadora maioria da população manteve a maior serenidade e retomou as suas atividades normais, com o regresso ao trabalho interrompido na quinta-feira. Só alguns elementos ensombraram o dia, cometendo vários distúrbios, que adiante relatamos, os quais obrigaram as Forças Armadas a intervir, para restabelecer a ordem. [...] Nas ruas, ainda vigiados por militares, sobretudo nos pontos estratégicos anteontem ocupados, a população continuou a confraternizar com os soldados, oferecendo-lhes flores, comida e bebidas.

Nada seria como antes. A narrativa da vida política portuguesa ganharia novos narradores-autores.

4.2. IMPRENSA BRASILEIRA

4.2.1. Recomposição da intriga

A Revolução de 25 de abril de 1974 e o Processo Revolucionário em Curso (PREC) ao qual ela deu início mexeram com o ânimo da imprensa de todo o mundo: “Portugal era olhado como o palco de um confronto definidor entre esquerda e direita e terá sido essa uma das razões pelas quais a sua agitação tanto apaixonou a opinião pública mundial” (VIEIRA; MONICO, 2014, p. 337). O incomum golpe de Estado perpetrado por militares que, entre idas e vindas, levou efetivamente a um processo democrático foi acompanhado pelo mundo com olhos incrédulos e esperançosos. A essa altura, como vimos no Capítulo 1, a imprensa brasileira estava sob censura. De acordo com Fico (2012), a prática existiu desde do começo do regime militar, mas acentuou-se após dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5. A partir daí, a censura “sistematizou-se, tornou-se rotineira e passou a obedecer instruções especificamente emanadas dos altos escalões do poder” (p. 87). A forma mais grave era a censura prévia, mas a mais comum eram as “proibições determinadas”, transmitidas às redações através de “bilhetinhos” ou por telefone (FICO, 2012). Matutino e diário, O Estado de S. Paulo contribuiu ativamente para a efetivação do Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil. Depois do golpe, a relação entre o jornal e os militares torna-se cada vez mais tensa, e atinge o auge em

234 dezembro de 1968, após a edição do Ato Institucional número 5, com a publicação do editorial “Instituições em frangalhos”. A edição do jornal foi apreendida e instituiu-se a censura prévia sobre a redação, que seria suspensa apenas em janeiro de 1975 (SOARES, 1989). Em termos contextuais, o mundo enfrenta a grave crise do Petróleo. A Guerra Fria continua, agora com foco no Oriente Médio. No Brasil, o quarto presidente militar, Ernesto Geisel, toma posse em 15 de março de 1974, ocasião em que, de acordo com OESP, “faz apelo pela unidade”308, indicando que o apelo à coesão das Forças Armadas continua impregnado no imaginário nacional. Na edição deste mesmo dia, o jornal repercute o que chama de recrudescimento da “crise político-militar em Portugal”309, reportando o cercamento da Academia Militar pela Guarda Republicana por conta de uma reunião de oficiais que lá se encontravam para “debater problemas militares nacionais”, voltando a vigorar o estado de alerta nos quartéis. A matéria repercute a tensão entre as Forças Armadas portuguesas e cita a questão da demissão de Spínola e Costa Gomes ocorrida na quarta-feira, 14 de março de 1974, provocada pela discordância entre os militares e o governo na condução da guerra na África:

Segundo rumores que corriam nas últimas horas, eclodiram movimentos em favor dos generais António de Spínola e Francisco da Costa Gomes, em três regimentos da capital: o 5º de Caçadores, o 7º da Cavalaria e um outro com sede em Viseu, ao Norte do País. Os dois generais haviam sido afastados quinta-feira última da subchefia e chefia do Estado-Maior das Forças Armadas, em consequência de uma controvérsia sobre a condução da guerra nos territórios africanos310.

Na página 2, mais espaço é dedicado aos acontecimentos em Portugal. A coluna do correspondente Santana Mota, porém, contraria a matéria de capa, afirmando, no título, que “Em Portugal, a situação agora é menos confusa”. De acordo com o colunista, oficiais de altas patentes manifestaram apoio ao governo em sua política ultramarina. O texto se dedica, ainda, a analisar em pormenor a conduta de Spínola e a repercussão da publicação do livro Portugal

308 GEISEL faz apelo pela unidade. O Estado de São Paulo. São Paulo, 16 mar. 1974, p. 1. 309 RECRUDESCE em Portugal a crise político-militar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 16 mar. 1974, p.1. 310 RECRUDESCE em Portugal a crise político-militar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 16 mar. 1974, p.1.

235 e o Futuro, que veio a público em fevereiro de 1974 e provocou grande interesse, especialmente no exterior, por indicar que a solução para a guerra em territórios africanos não seria apenas militar, mas, também, política. Mota informa que Spínola é considerado um militar leal e disciplinado e que a publicação do livro só se deu com a anuência de seus superiores e do governo. O episódio de sua demissão também é minimizado e interpretado “como o processo mais sensato de acabar com as especulações e as tentativas de aliciamento que certamente não deixariam de ser feitas sobre o general por todos os insatisfeitos civis e militares, enquanto ele permanecesse no exercício de um cargo de tanta projeção”311. Afirma, ainda, que o fato de que Portugal vinha enfrentando problemas econômicos favoreceu o interesse pelo livro. Ao lado da matéria do correspondente está uma charge de Bigatti: em um requintado gabinete, figura um retrato de Marcelo Caetano e, dentro do cesto de lixo, está um exemplar do livro Portugal e o Futuro (Figura 3). Complementada pela leitura do texto, a charge parece remeter ao triunfo do governo frente as críticas de Spínola. Ou, em uma interpretação mais livre, pode indicar que Portugal e o futuro, sob o regime de Caetano, estão no lixo.

Figura 5: Charge publicada em OESP em 16 mar. 1974, p. 2.

311 MOTA, Santana. Em Portugal, a situação agora é menos confusa. O Estado de São Paulo. São Paulo, 16 mar. 1974, p. 2.

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Cabe aqui uma rápida digressão. Portugal e o Futuro foi publicado no Brasil pela editora Nova Fronteira, de propriedade de Carlos Lacerda, que assinou também o prefácio da edição. Nas páginas de OESP está, inclusive, um reclame do livro (Figura 4), que anuncia: “O livro que abalou uma nação”. O JB de 27 de abril noticia que o livro esgotou em Niterói e no Recife e que em poucos dias vendeu mais de 50 mil exemplares em São Paulo312. Lacerda – que teve os direitos políticos suspensos por 10 anos em 1968, após a tentativa de articular uma Frente Ampla ao lado de João Goulart, no exílio, e do ex- presidente Juscelino Kubitscheck – dedica-se agora ao jornalismo e a atividades empresariais nos ramos da construção e da edição. Colaborador de OESP, assina um texto na edição de 9 de abril intitulado “Portugal acha a solução”. Nele, Lacerda classifica de “irrefutável” a análise e a proposta de solução de Spínola para a situação portuguesa, na qual enfatiza a dimensão da democratização de Portugal:

Após uma análise irrefutável, sobre a qual ninguém em Portugal sequer tentou dar resposta válida da situação portuguesa interna e mundial, o general Spínola propõe uma solução: a federação portuguesa com os estados do ultramar e a democratização de Portugal. Podem as resistências ser mais maiores à segunda proposição do que que à primeira. A democratização que o general propõe, pode repugnar ainda mais a alguns do que a federação que ele também propõe. Só alguns comunistas portugueses não se apercebem daquilo que o governo português compreendeu muito bem: a solução do problema ultramarino é inseparável da solução do problema metropolitano. A permanência de Portugal na África só é possível com a instauração da democracia em Portugal.313

Lacerda afirma, ainda, que “há um movimento em marcha em Portugal” e que a mudança acontecerá inevitavelmente. Invoca a experiência própria para advertir: “Na medida em que posso alegar uma experiência na matéria, digo que o atraso de uma solução tornará inevitável a ascensão direta das Forças Armadas ao poder”314. Abaixo do texto de Lacerda, está a reprodução de um canto de Luiz de Camões, o que indica que ali deveria aparecer um texto que foi vetado pela censura.

312 LIVRO se esgota em duas cidades. Jornal do Brasil, Rio de janeiro, 27 abr. 1974, p. 9. 313 LACERDA, Carlos. Portugal acha a solução. O Estado de São Paulo. São Paulo, 09 abr. 1974, p. 5. 314 LACERDA, Carlos. Portugal acha a solução. O Estado de São Paulo. São Paulo, 09 abr. 1974, p. 5.

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Figura 6: Anúncio do livro Portugal e o Futuro, publicado em OESP em 7 abr. 1974, p. 26.

Em 17 de março, a manchete principal de capa de OESP confirma a persistência da crise frente à demissão de Spínola. A marcha do V Regimento de Infantaria de Caldas da Rainha foi contida, mas o clima de tensão crescente é caracterizado por OESP através de vários aspectos: a prisão de mais de 100 oficiais, restabelecimento da prontidão rigorosa em todo o país, distribuição de panfletos nas ruas de Lisboa criticando o tratamento dispensado pelo governo aos territórios africanos e defendendo a solução política das questões do ultramar, o bloqueio das entradas e saídas de Lisboa, o reforço da guarda do presidente Américo Tomás e do primeiro-ministro Marcelo Caetano. A matéria atribui a crise à publicação do livro de Spínola: “O paradeiro do General

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Spínola – autor do livro Portugal e o Futuro, cuja publicação levou à atual crise político-militar – é desconhecido e ignorado até mesmo por sua mulher” (grifo no original). São publicados trechos da nota oficial do governo descrevendo os fatos e afirmando que “a ordem e a calma reinam em todo o país”. Parte das fontes das informações não é explicitada, citando “rumores” e “observadores” para descrever um momento grave: “Segundo observadores, trata-se da mais grave crise que se registra nos últimos 40 anos em Portugal”. Para OESP, ainda, Caetano encontra-se pressionado, por um lado, pelos partidários da tese de Spínola e, por outro, pelos apoiadores da “linha dura” de Américo Tomás, “favoráveis à preservação dos territórios africanos por todos os meios” 315, enquanto abre-se a possibilidade de espaço na Comunidade Europeia:

EQUILIBRISMO Marcelo Caetano está, atualmente, empenhado em difícil número de equilibrismo político. Separou-se de Spínola e Costa Gomes, aos quais esteve ligado, deixando-se dominar pelos ultramarinos. Mas, de qualquer modo, abriu-se o debate em Portugal, inclusive nas Forças Armadas. E é exatamente o debate que Caetano ardilosamente desejava – o da opção entre um agonizante império na África e um lugar ao sol na Comunidade Europeia. E isso ocorre na hora em que a ONU reconhece a Guiné-Bissau dos nacionalistas negros como nação independente, na hora em que o Brasil não quer solidarizar-se com a política colonial de Portugal e na hora em que, na Inglaterra, – tão importante para todos os portugueses – os trabalhistas estão, mal ou bem, no poder.316

O governo português ainda demonstra controle da situação e isso se reflete, inclusive, nas relações com o Brasil. Ainda na capa de 17 de março, ao lado da matéria principal, está uma matéria secundária que informa que o chanceler português Rui Patrício “refutou energicamente a denominação de Comunidade Afro-Luso-Brasileira” a um “sistema de relações econômicas entre Brasília, Lisboa e colônias na África. Para Patrício, a expressão deve limitar-se a Comunidade Luso-Brasileira”317. O chanceler, à altura do levante das Caldas, encontrava-se em Brasília, onde concedeu entrevista à imprensa. A matéria sugere, ao narrar os questionamentos que apareceram no encontro, que teria havido uma mudança na política brasileira da tradicional apoio a Lisboa na

315 LISBOA sufoca revolta mas crise se agrava. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 1. 316 ALVES, Hermano. Vitória provisória? O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 14. Lembramos que a 4 de março de 1974 assumia o cargo de primeiro-ministro do Reino Unido o trabalhista James Harold Wilson. 317 PATRÍCIO rejeita alteração. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 1.

239 política colonial. As declarações de Patrício sobre a política colonial na África trazem indícios do panorama de Guerra Fria naquele momento:

Em termos de autodeterminação, constou o raciocínio da ONU em favor dos movimentos de libertação. Ele acha que seria absurdo considerar um movimento de libertação financiado pelo exterior (com recursos e pessoas de países socialistas) como um grupo político com direito ao governo e ao mesmo tempo considerar Portugal como o invasor.318

Mesmo assim, a tensão aumenta, Spínola desponta como liderança, e o controle da revolta de Caldas da Rainha não é considerado uma vitória definitiva. OESP dedica-se a traçar um perfil de Spínola (texto intitulado “Os feitos de Spínola o destacam como líder”319), no qual é caracterizado como um militar e administrador público de alta capacidade, demonstrada especialmente no período em que foi governador e comandante da Guiné, gozando de respeito e a estima entre os soldados. A 28 de março OESP publica notícia que revela que “A sublevação em Portugal fazia parte de conspiração”. Dá espaço, ainda, à resposta, por parte da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), à proposta, feita por Spínola em seu livro, de um autogoverno limitado para as colônias portuguesas na África. A FRELIMO rejeitava a proposta e afirmava considerar Spínola “um filósofo fascista”320. Nos jornais brasileiros analisados nesta tese, a primeira referência ao movimento militar em Portugal aparece no JB de 25 de abril de 1974. Em notícia na página 14, indicando o 2º clichê da página nesta edição, o jornal informa que “Tropa rebelada marcha em direção à [sic] Lisboa”: “Tropas do 5º Regimento de Caçadores ocuparam, na madrugada de hoje, a Rádio Clube de Portugal, que passou a transmitir comunicados em que os militares pedem ‘a todas as forças do Exército e da polícia a máxima cautela para evitar qualquer choque’”321. O jornal transcreve na íntegra o primeiro comunicado do que chama de “um” Movimento das Forças Armadas, que assinava um documento

318 PATRÍCIO repele inclusão da África. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 33. 319 OS FEITOS de Spínola o destacam como líder O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 14. 320 FRELIMO rejeita a proposta. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 mar. 1974, p. 2. 321 TROPA rebelada marcha em direção à Lisboa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 abr. 1974, p. 14 [2º clichê].

240 que circulava clandestinamente “no qual se pedia uma reavaliação das políticas seguidas por Portugal em suas guerras na África”. No terceiro clichê da edição de 25 de abril, ainda foi possível publicar mais detalhes. O título torna-se “Rebeldes tentam evitar choque armado em Lisboa”. Refere-se a um “levante militar”, de acordo com a ANI (Agência Noticiosa de Informação), de proporção e natureza ainda desconhecidas. Ressaltamos que o JB procura a agência oficial do governo português (mas cita, ainda, AGP e UPI como fontes) para confirmar a existência do movimento. Suas intenções ainda não estão claras, já que em suas transmissões “o Movimento das Forças Armadas não esclarece o que pretende, quem lidera, se é legalista ou parte do movimento contra o governo”322. Porém, esclarece que “tudo indica tratar-se de uma continuação do movimento de capitães que em março último tentou um golpe contra o governo”. A 26 de abril de 1974, toda a capa de OESP é dedicada a Portugal. O diário paulistano opta pela manchete: “Golpe militar derruba o governo português”. No lead, vemos que o Estado centra os acontecimentos nos oficiais de mais alto escalão, nomeando, inclusive, todos os militares da Junta de Salvação Nacional:

LISBOA – Lideradas por uma junta militar presidida pelo general António Spínola, as Forças Armadas portuguesas depuseram ontem o primeiro-ministro Marcello Caetano e assumiram o poder, prometendo restaurar a democracia, convocar uma Assembleia Constituinte e garantir eleições gerais e livres. Com Spínola, integram a junta os generais Francisco da Costa Gomes e Diego Neto, o brigadeiro Jaime Silveiro Matos, o capitão-de-mar-e-guerra José Batista Pinheiro Azevedo, o capitão-de-fragata Carlos Galvão de Melo. Caetano e o presidente Américo Thomaz, assim como seus principais auxiliares, foram detidos e enviados, sob guarda, para a Ilha da Madeira.323

Além das lideranças militares, OESP destaca, ainda, as promessas de restauração da democracia, de convocação de uma Assembleia Constituinte e de eleições gerais e livres. A dimensão popular também aparece na capa, destacada em texto secundário intitulado “O novo regime é aclamado nas ruas de Lisboa”. São relatos de detalhes do cotidiano, do clima festivo das ruas que

322 REBELDES tentam evitar choque armado em Lisboa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 abr. 1974, p. 14 [3º clichê]. 323 GOLPE militar derruba o governo português. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 1.

241 demonstram o entusiasmo popular com os acontecimentos. Outros dois títulos utilizam como recurso o uso de sinais de precisão e exatidão (neste caso, o horário) como síntese dos textos: “Apenas 12 horas” e “Às 4 da tarde, o final de uma era”. O primeiro refere-se ao tempo decorrido entre as primeiras movimentações de tanques em Santarém, às 4 horas da manhã, e a entrada de Spínola no Quartel do Carmo, às 18h, sintetizando e precisando uma cronologia dos fatos. Em “Às 4 da tarde, o final de uma era”, o correspondente Santana Mota contraria a cronologia proposta pelo jornal e faz uma análise dos fatos incorporando a dimensão coletiva do movimento:

Aparentemente, toda a oficialidade que participou do golpe é constituída de jovens, a maioria com patentes inferiores a de major. Em declarações pelo rádio, esses oficiais disseram que pretendem não apenas abolir o regime, mas também realizar imediatamente eleições livres, com plena liberdade de expressão e reunião.324

OESP destaca em sua capa de 26 de abril, ainda, a definição política do MFA e a promessa de Spínola de realizar eleições diretas e livres, através da reprodução das proclamações divulgadas pelo Movimento e por Spínola, ambos garantindo constituinte e eleições livre. Os dois últimos textos da capa, localizados ao pé da página, tratam de projeções e desdobramentos dos acontecimentos, selecionadas pelo veículo como relevantes. Neste caso, OESP procura analisar os reflexos do golpe em Portugal no Brasil e nas colônias portuguesas na África. “Itamaraty não foi surpreendido”, texto assinado pela sucursal de Brasília, informa que o Itamaraty, desde a publicação do livro Portugal e o Futuro, entendia que mudanças na política portuguesa eram inevitáveis e, por isso, não se surpreendeu, talvez em uma tentativa de minimizar a magnitude dos acontecimentos em Portugal e seus possíveis reflexos na oposição ao regime militar no Brasil. O texto traz como informação a “confidência” de um diplomata a um jornalista, afirmando que “o Brasil se encontrava numa situação delicada, pois pretendia aproximar-se dos árabes e africanos e Portugal representava um empecilho”325. Àquela altura, as autoridades ainda guardavam silêncio (caso do

324 MOTA, Santana. Às 4 da tarde, o final de uma era. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 1 325 ITAMARATY não foi surpreendido. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974 p. 1

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Itamaraty e do presidente Geisel) ou davam respostas evasivas (embaixador de Portugal no Brasil). Dos territórios africanos, a “notícia” até então era o silêncio. Em editorial, OESP interpreta os acontecimentos em Portugal à luz da geopolítica, da Guerra Fria e do esgotamento do salazarismo frente aos problemas do País. Compara o movimento de 25 de abril com o começo da ditadura portuguesa em 1926, afirmando que as mesmas “classes armadas [...] repetem o gesto de há quase meio século e constituem uma junta revolucionária, igualmente intitulada de salvação nacional, sobre os escombros do governo Marcelo Caetano”326. Adepto das soluções autoritárias, sugere que se realize, antes das eleições, um “processo de reeducação das massas, para que aprendam a fazer uso da liberdade inebriante de pensamento, de reunião, de associação, de expressão e de voto”327. A cobertura de OESP estende-se por mais 4 páginas completas, nas quais procura contextualizar as informações ao público brasileiro, apresentando os protagonistas dos acontecimentos em Portugal, a questão colonial e a repercussão no Brasil e no mundo. Em relação às personagens protagonistas, OESP elege o general Spínola, o presidente Américo Tomás e o primeiro- ministro Marcelo Caetano, além do próprio Salazar. De forma muito semelhante ao tratamento dado ao Golpe Civil-Militar no Brasil pelo DN, em 1974 OESP procura contextualizar os fatos didaticamente, através de mapas e informações demográficas sobre as agora “províncias” na África, do perfil de personagens, de dados sobre as Forças Armadas e de textos de resgate histórico sobre o Salazarismo. Sobre a repercussão internacional, OESP elege Londres e Paris como pontos de vista. Quase com o mesmo estatuto de Nação, está a repercussão da opinião de Carlos Lacerda, indicando que essa personagem segue, apesar de agora desafeita dos militares brasileiros, no centro do palco midiático. Carlos Chagas, jornalista e ex-assessor de imprensa da presidência da República em 1969, sob o governo de Costa e Silva, também assina coluna. Afora as colunas assinadas e opiniões individuais, o texto noticioso afirma que

326 A QUEDA do regime português. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 3. 327 A QUEDA do regime português. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 3.

243 o “Mundo aguarda desfecho da crise” e reúne a reação, caracterizada, em termos gerais, como de cautela e apreensão, em Londres, Madrid e Vaticano. Satisfação é a manifestação de diversos delegados da ONU, instituição que havia, no ano anterior, reconhecido a independência da Guiné. Na Rodésia e África do Sul, tradicionais apoiadoras da política ultramarina, “a situação portuguesa era acompanhada ontem com grande interesse”328. Washington afirma não ter “‘nenhuma informação significativa’ além das notícias da imprensa” 329. A agência soviética TASS é a única a sugerir, nesse momento, uma eventual separação entre o MFA e os generais Francisco da Costa Gomes e António de Spínola, que, de acordo com essa fonte, teriam sido convidados pelos líderes da insurreição para unirem-se a eles. De outro modo, a leitura que se tem nos jornais analisados é sempre a de que esses generais já eram os líderes do movimento das Forças Armadas, e não de que se uniram no 25 de Abril. De Paris, onde vivia exilado, aparece Mario Soares, do Partido Socialista Português. Soares demonstra total confiança no exército, diferenciando-o do exemplo das Forças Armadas do Chile que, no ano anterior, haviam deposto o socialista Salvador Allende e implantado uma ditadura liderada pelo general Augusto Pinochet: “O Exército português não é o exército chileno. Não temos motivo para colocar em dúvida a intenção de nosso Exército de acabar com a ditadura”330. Na mesma matéria que fala de Soares, apesar do título não indicar (“Mário Soares oferece apoio”), está a repercussão dos acontecimentos entre líderes das revoltas nos territórios africanos. De Londres, é enviada nota da Comissão para Libertação da Guiné e Moçambique. De Ottawa, Canadá, Agostinho Neto, representante do Movimento para a Libertação de Angola – MPLA, afirma que o golpe de Estado não significa a independência e que seria preciso aguardar para “verificar quais foram os verdadeiros motivos do golpe”331. De Londres, o correspondente Hermano Alves reporta uma avaliação que aponta menor indiferença dos “meios oficiais e oficiosos da Inglaterra”, que

328 MUNDO aguarda o desfecho da crise. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 329 MUNDO aguarda o desfecho da crise. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 330 MARIO Soares oferece apoio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 331 MARIO Soares oferece apoio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9.

244 não esconderiam o recebimento com “indisfarçável simpatia e até mesmo com entusiasmo”332 a queda do governo de Marcelo Caetano. A reação da Inglaterra é de grande relevância, uma vez que a Aliança Anglo-Portuguesa é a mais antiga aliança diplomática do mundo (ainda em vigor) e também porque este país, que havia recentemente eleito um primeiro-ministro trabalhista, tinha grande interesse comercial nas colônias e no golpe que uma possível “composição com os nacionalistas africanos” poderia significar no apartheid da África do Sul e na supremacia branca da Rodésia. Segundo o correspondente de OESP, os jornais britânicos Guardian e The Times haviam noticiado, recentemente, a incursão de tropas da Rodésia em Moçambique. Gilles Lapouge, correspondente na França, afirma que, apesar da falta de reações oficiais das autoridades e candidatos (a França estava em pleno período de campanha eleitoral), os acontecimentos em Portugal dominaram o noticiário em Paris. O jornalista afirma ter procurado conversar “com vários operários portugueses nas obras dos subúrbios de Paris. Poucos quiseram das declarações. Os que falaram, disseram que não esperavam qualquer mudança importante na situação de seu país”333. Afirma, ainda, que o que mais surpreendeu a França foram os objetivos democráticos da revolta, inusitados quando partidos das esferas militares: “Se os militares franceses decidissem dar um golpe durante a Guerra da Argélia, seu fim seria instalar em Paris um regime forte e conservar o domínio francês sobre o território africano”334. O texto considera, ainda, a dimensão popular da revolução, até agora muito pouco explorada pela narrativa jornalística:

De qualquer maneira, a notícia foi recebida com alegria pela maior parte da população francesa. A presença de milhões de operários portugueses neste país não poderia deixar de sensibilizar a opinião pública para o problema de um povo sem direitos, perseguido por uma violenta polícia-política, levado à pobreza e ao desencanto por um regime arcaico.335

332 ALVES, Hermano. Na Inglaterra, simpatias são mal disfarçadas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 333 LAPOUGE, Gilles. Por momentos, a França esquece a campanha eleitoral. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 334 LAPOUGE, Gilles. Por momentos, a França esquece a campanha eleitoral. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 335 LAPOUGE, Gilles. Por momentos, a França esquece a campanha eleitoral. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9.

245

Neste sentido, o artigo assinado pelo jornalista Carlos Chagas afirma que “Fim do regime apenas traduz a vontade popular” (grifo nosso).

Pode-se dizer, com pouca margem de erro, que a revolução de agora teve bases estritamente populares, ainda que conduzida pelos militares portugueses. A eles coube, tão somente, acordar para a realidade e contestá-la, já que detinham os meios para tanto. Faltava uma unidade ou um denominador comum, e este surgiu com o livro do general António de Spínola, transpondo para o papel não apenas a reação de todos, mas apontando uma solução clara e precisa para o impasse.336

Ao mesmo tempo, o jornalista imputa os acontecimentos à falta de competência e de sensibilidade dos governantes portugueses – uma leitura que é recorrente em nossa análise – e afirma que “algumas revoluções se fazem por falta de pão, outras por falta de ordem [...]. [...] Pode-se concluir que o movimento de ontem se fez por falta de inteligência”337. Há no texto, ainda, a evocação de um imaginário ligado ao contexto brasileiro, mobilizado repetidamente, como vimos em 1964, pelos discursos mais conservadores: o getulismo. Chagas compara a ação da ditadura salazarista para conter as insatisfações com os métodos de Vargas:

Enquanto as críticas permaneciam nos limites ideológicos e da intelectualidade, não surtiam efeito. De um lado, a repressão as tornava um perigo, de outro funcionava a política um tanto getuliana do primeiro-ministro, capaz de atrair pessoas e sufocar ideias com oferecimentos de postos, cargos ou situações.338

A página 9 de OESP de 26 de abril completa-se com a repercussão na opinião de Carlos Lacerda. A composição da página dá à fala do ex-governador na Guanabara o estatuto de nação ou autoridade. Os demais textos demonstram uma certa cautela nessas esferas, o que se traduz em dificuldade para os jornalistas em conseguir declarações oficiais. Mesmo com os direitos políticos cassados, Lacerda não apresenta esse problema, opinando livremente, o que demonstra a relevância desta personagem, ainda, na cena

336 CHAGAS, Carlos. Fim do regime apenas traduz a vontade popular. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 337 CHAGAS, Carlos. Fim do regime apenas traduz a vontade popular. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 338 CHAGAS, Carlos. Fim do regime apenas traduz a vontade popular. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9.

246 pública brasileira. O título é “Para Lacerda, era previsível o que aconteceu” e, na matéria, “De roupa esporte, muito alegre e recebendo telefonemas a todo o instante”, Lacerda imputava a previsibilidade do evento à publicação do livro de Spínola (do qual, lembramos, a edição brasileira foi publicada pela editora Nova Fronteira, de propriedade do ex-governador). Com histórico de “derrubador de presidentes”, a reportagem questiona se ele teria colaborado de alguma forma com a queda da ditadura portuguesa, pergunta a qual “respondeu, sério: — Infelizmente, não tive a honra de participar de nada”339. “Foi um grande dia para o ex-governador, que começou manifestando sua emoção e suas esperanças, que devem ser as mesmas de todos os que defendem a liberdade dos povos: — Todos estamos de parabéns, repetiu várias vezes”340. O comunismo segue sendo rechaçado no discurso de Lacerda, e é mencionado como sinônimo de anarquia. Afirma que “o que se deve fazer lá é formar uma verdadeira democracia, dissociada do comunismo”. Assim como Chagas, Lacerda atribui à incompetência política de Marcelo Caetano o fato de o governo não ter percebido o que se passava, especialmente entre as Forças Armadas. O JB a 26 de abril opta pela manchete “Junta controla Portugal e anuncia Constituinte”. A protagonista das ações, pela narrativa deste jornal, é a Junta de Salvação Nacional, que contaria com a “chancela do Movimento das Forças Armadas, denominação adotada pelos rebeldes desde o início de sua ação”. O destaque são as medidas imediatas anunciadas, como a eleição de uma Assembleia Constituinte pelo voto direto. Na página 2, “Militares acabam Salazarismo e prometem eleição” informa que o anúncio oficial da Junta aconteceu imediatamente depois da rendição de Caetano, mas não esclarece qual a exata relação entre ela e o MFA. Destaca os objetivos do movimento, divulgados pelo próprio através de manifesto televisionado do General Spínola e, através da fonte “observadores diplomáticos em Lisboa”, enfatiza que “os novos detentores do poder, no período de transição até a convocação de eleições gerais, se dedicarão à tarefa de eliminar da vida pública todos os

339 PARA LACERDA, era previsível o que aconteceu. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9. 340 PARA LACERDA, era previsível o que aconteceu. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 9.

247 elementos vinculados ao Salazarismo”341, incluindo a possibilidade de um expurgo nas Forças Armadas. Em uma cronologia da revolução (“Como foi o movimento rebelde”), JB repercute a edição do jornal República, agora livre de censura e caracterizado como “liberal’: “‘As Forças Armadas tomam o poder’. Sob uma manchete em cor vermelha, o jornal liberal República divulgou ontem um amplo relato do movimento que culminou com a queda do Primeiro-Ministro Marcelo Caetano e anunciou aos seus leitores que pela primeira vez saía às ruas sem censura’”342. Nesta cronologia, ao contrário do que era informado na capa, a Junta provisória de sete nomes teria sido organizada ainda em Santarém, logo que a primeira Proclamação fora difundida. A narrativa do JB dá indícios da confusão em relação às lideranças do movimento. De acordo com a cronologia apresentada, já ao final da manhã, com Lisboa tomada pelo MFA, especialmente na Praça das Carmelitas, em frente ao quartel do Carmo, onde Caetano estava refugiado, faltava ainda, para a imprensa, uma informação importante:

Apenas não se conheciam, ainda, os nomes dos dirigentes do movimento. Apesar do General António de Spínola ser citado permanentemente, sua mulher, ao atender o telefonema de um jornalista estrangeiro, limitou-se a dizer: “Meu marido está em casa mas não quer falar. Não sabe o que está acontecendo e não participará de nada”.343

A narrativa do JB exalta o protagonismo de Spínola: a rendição de Caetano teria sido apresada por sua presença no local. Após a retirada do primeiro-ministro, preso, “saía o carro do General Spínola. Este, trajando seu uniforme com todas as condecorações, foi aclamado pela multidão aos gritos de “Viva Spínola. Abaixo o Fascismo. Viva Portugal”344. O episódio de violência na sede da polícia política, quando os policiais atiraram contra a população, também é salientado, afirmando que teriam sido mortas ao menos 6 pessoas e 10, feridas. Dos territórios na África, as notícias são muito parecidas com as de OESP (dada a fonte comum em agências): tranquilidade e expectativa e uma maior apreensão na África do Sul.

341 MILITARES acabam salazarismo e prometem eleição. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 2. 342 COMO FOI o movimento rebelde. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 2. 343 COMO FOI o movimento rebelde. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 2. 344 COMO FOI o movimento rebelde. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 2.

248

A coluna do jornalista José Silveira, “Rebelião, o fim de 10 anos de crise”, relaciona a questão das guerras na África com a crise que levou à Revolução, alimentada pelo “sangue novo nas Forças Armadas”, pela a proximidade com a “Europa desenvolvida”, “o vaivém dos imigrantes” e a “rapidez das comunicações”345. Diferente da abordagem pedagógica de OESP, mostrando com mapas e dados demográficos dos territórios africanos, o JB opta por retomar o que chama de “Documentos da crise”. Nesta página 3 da edição de 26 de abril, reúne a íntegra de cinco manifestos. Três deles são do MFA: o primeiro, de janeiro de 1974, é uma declaração de princípios e uma análise da política portuguesa na África; os outros dois, os manifestos divulgados após o Levante das Caldas, em março. Completam a página o primeiro comunicado oficial do MFA em 25 de abril, transmitido pelo Rádio Clube Portugal, e o discurso televisionado do General Spínola346, na noite desse mesmo dia. Na Coluna do Castello – persiste em 1974 o espaço, que também analisamos em 1964, do jornalista Carlos Castello Branco –, está a leitura de que, entre o peso da guerra e o ânimo das novas gerações está Spínola, ou seja:

a inspiração de um general dotado de visão política e coragem cívica, o qual, depois de governar a Guiné e comandar as forças repressoras, propôs em livro de larga repercussão o fim da ditadura interna em Portugal como pressuposto de sobrevivência da sua pátria e da continuidade da influência de Portugal no mundo português.347

Marcelo Caetano, a quem se refere como professor, é também considerado culpado, por Castello, pela incapacidade do governo de Portugal de superar o conservantismo da sociedade herdada de Salazar e por fazer o país seguir mergulhado no isolacionismo. Procura explorar o papel do Brasil frente a nova situação em “nossa fronteira d’além mar”. Para Castello, o Brasil deve ter interesse no mundo português e não exclusivamente em Portugal, “a cuja política oferecemos o sacrifício continuado do nosso prestígio nas

345 SILVEIRA, José. Rebelião, o fim de 10 anos de crise. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 2. 346 Disponível em: . Acesso em: 2 dez. 2016. 347 CASTELLO BRANCO, Carlos. A libertação de Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 4.

249 organizações internacionais”348. Vê, ainda, um papel central do Brasil na preservação de “um sistema multinacional”:

Não se trata de aspirar a uma participação nos despojos do mundo colonial português mas de contribuir, ao lado de Portugal, para encontrar fórmulas de organização de uma comunidade que encontrará base física e cultural em três ou quatro continentes.349

No espaço noticioso, ainda não há uma posição oficial do governo brasileiro, que aguarda uma manifestação de “um novo governo que se constitua e exerça, de fato, sua autoridade política sobre Portugal”350. Porém, na seção de notas curtas “Informe JB” está a sentença: “Portugal – O Brasil reconhecerá o novo Governo português, imediatamente”351. A opinião de Carlos Lacerda também tem espaço no JB, na matéria “Lacerda diz que Spínola democratizará Portugal”, na qual o ex-governador analisa o quadro atual e, principalmente, faz projeções para o futuro desse País. Apesar da matéria do JB ser menos dedicada à figura de Lacerda, na seção “Informe JB” encontramos mais um indício que a fama dessa personagem segue inabalável: “Caiu mais um inimigo político do Sr. Carlos Lacerda: o síndico do seu edifício”352. Em editorial, JB dedica-se a analisar o papel do Brasil frente à nova configuração política portuguesa. Utiliza, assim como em 1964, a fórmula “passado-presente-futuro” para desenvolver seus argumentos. Reforça a tese de que as mudanças nesse país eram previsíveis e que refletiam a vontade popular:

O previsível movimento militar e político que encerrou, em Portugal, o governo do Primeiro-Ministro Marcelo Caetano, foi o reconhecimento, de fato, de que a opinião pública portuguesa exigia caminhos novos para o país, que há 13 anos se exauria numa guerra inglória em suas colônias da África. O movimento foi rápido e praticamente incruento, que é a marca das ações que já surgem apoiadas no consenso popular.353

348 CASTELLO BRANCO, Carlos. A libertação de Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 4. 349 CASTELLO BRANCO, Carlos. A libertação de Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 4. 350 BRASIL aguarda em silêncio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 4. 351 INFORME JB. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 10. 352 INFORME JB. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 10. 353 BRASIL-PORTUGAL. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 6

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Como autoridade no espaço público, JB exige atitudes do poder público, sugerindo o imediato reconhecimento do novo governo: “[...] o Brasil, reconhecendo imediatamente o Governo que assumiu o poder, deve pôr-se a serviço da comunidade de língua portuguesa, na antiga metrópole e nas ex- colônias”. Para o jornal, Brasília já estava “suficientemente afastada” do governo português e, com as mudanças que despontam no horizonte político desse país “é imperativo não protelar esse encontro dos três mundos de cultura portuguesa: o lusitano, o africano, o brasileiro” 354. JB utiliza, ainda, seu espaço de cultura, o famoso Caderno B, para publicar um artigo que aprofunda a análise da situação de Portugal anterior ao golpe de Estado. O título define a tese defendida no artigo: “Portugal: A instabilidade na estabilidade” e, após um resgate da história republicana de Portugal a partir de 1910, centra-se, da metade em diante, no período marcelista. Apresenta dados que demonstram a debilidade da economia portuguesa quando comparada à Europa Ocidental, somada aos anseios de uma nova geração nas Forças Armadas, exausta de uma guerra considerada ultrapassada. Mais uma vez, as “concessões” de Caetano aos setores mais conservadores, incluindo uma aparente ‘vitória” do governo frente à crise provocada pela demissão dos Generais Costa Gomes e Spínola, são vistas como um falso sinal positivo, que “impeça os salazaristas duros de se convencerem de que o abrandamento é a única tábula de salvação”355. Salientamos que, nesse artigo, as fontes para falar do passado recente são também artigos da imprensa. Neste caso específico, as fontes citadas são artigos de Richard Edler, no The New York Times, e Ernesto Garcia Herrera, no Journal de Genéve. A dimensão popular na narrativa do JB está em “Povo sai às ruas da Capital em festa”. São as mesmas histórias relatadas em OESP, com as mesmas citações, provavelmente pela origem em comum – a agência AFP. Também são praticamente idênticas as matérias sobre a até então possível volta de Mario Soares a Portugal. Em “Portugal à margem do mundo” está um resgate, assinado pelo

354 BRASIL-PORTUGAL. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 6 355 PORTUGAL: a instabilidade na estabilidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974. Caderno B, p.1.

251 selo “Pesquisa JB”, da turbulenta trajetória recente deste país em relação aos organismos internacionais, como ONU, UNESCO, Organização Internacional do Trabalho e até mesmo divergências com a Igreja, amealhando diversos sinais de que se posicionava, realmente, “à margem do mundo”356. A 27 de abril, o JB destina a foto e manchete principais de capa a Portugal: “Portugal anuncia Governo civil e eleição em um ano”. Os destaques, além dos indicados no próprio título e que constituem as primeiras medidas anunciadas pela Junta de Salvação Nacional, são a libertação dos presos políticos da prisão de Caxias e algumas repercussões internacionais: a intenção de pronto reconhecimento do novo Governo pela Espanha, a cautela dos norte-americanos e a saudação, pela “imprensa europeia” do fim do salazarismo. Em sua coluna, Castello pega o exemplo recente do fim da censura em Portugal para falar sobre este tema no Brasil, como veremos com mais detalhe no tópico 4.2.4. A cobertura no dia 27 se divide entre os acontecimentos em Lisboa e a repercussão mundial. Na primeira abordagem, está “Junta dissolve polícia e Partido salazaristas”. Entre as primeiras medidas do novo governo, anunciadas por Spínola em entrevista à imprensa no quartel da Engenharia II, no bairro de Pontinha, em Lisboa, está a destruição das instituições do passado salazarista: “Menos de um dia depois da vitória do movimento armado, o salazarismo começou a desparecer da vida portuguesa. A obra de reconstrução, segundo disse Spínola, começa com a destruição do que já ‘não nos serve mais’”357. Na destruição, está a dissolução do gabinete, da Assembleia Nacional, da Câmara Corporativa, do Conselho de Estado, da Polícia Política (a não ser nos territórios) e dos tribunais especiais, da Legião Portuguesa (organização fascista) e da Ação Nacional Popular (o partido único), além da destituição de todos os Governadores dos territórios africanos. JB, na página 8 da edição de 27 de abril, traça um breve perfil de cada uma dessas instituições. Na entrevista, Spínola reitera, ainda, as principais políticas em relação à África e confirma a rendição de Marcelo Caetano e Américo Tomás, hospedados no Hotel Ritz de Funchal, capital da Ilha da Madeira, “um

356 PORTUGAL à margem do mundo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 4. 357 JUNTA dissolve polícia e Partido salazaristas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 8.

252 dos mais elegantes daquela cidade”358. Um dos episódios com maior destaque é a questão dos presos políticos na prisão de Caxias, em Lisboa. Por um lado, nas palavras da Junta, a liberação de “todos os presos políticos não comprometidos com outros tipos de crimes”359, incluindo os militares presos no Levante das Caldas, por outro, a detenção, neste mesmo centro, dos agentes da polícia política que resistiram na sede da DGS (Departamento Geral de Segurança, a antiga PIDE). Segundo o JB, uma multidão de 2 mil pessoas esperava pela libertação dos presos políticos. O título da matéria destinada a esse tópico centraliza, mais uma vez, as ações revolucionárias na figura do general: ‘Spínola solta presos políticos”. De acordo com o jornal, Lisboa começou a manhã de 26 de abril “aparentando calma total”: comércio e bancos abertos. Porém, alguns sinais do cotidiano sinalizavam as mudanças em andamento:

Indícios do movimento militar, apenas tanques estacionados em pontos estratégicos, papel picado ainda nas ruas e, sinal mais evidente, os jornais “sem censura”, a noticiar tudo e comentar tudo. Outro sinal, segundo os observadores, as ausências numerosas ao trabalho. Para alguns, a vontade de continuar a comemorar, de participar dos acontecimentos que ainda se iriam desenrolar durante o dia. Para outros, aqueles que muito se comprometeram com o regime deposto, o “medo do que poderia acontecer”, como disse um observador. 360

Algumas ocorrências violentas indicavam a perseguição e ataque a agentes da polícia, especialmente na frente da sede da DGS, onde grupos esperavam saída dos policiais que haviam resistido dentro do prédio, “com intenções evidentes de linchar” 361. Há diversos relatos, na imprensa analisada, de perseguição aos “pides”. A liberdade política recém-conquistada explode nas ruas. Já no dia 26 de abril, de acordo com o JB, milhares de pessoas participaram de um comício na Praça do Rossio, “o primeiro em quase 50 anos, convocado pela Comissão Democrática Eleitoral, uma organização que reúne os Partidos que se opunham ao regime salazarista”362. A 27 de abril, OESP destaca em manchete de capa “Spínola liberta

358 JUNTA dissolve polícia e Partido salazaristas. J Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 8. 359 SPÍNOLA solta presos políticos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 8. 360 SPÍNOLA solta presos políticos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 8. 361 SPÍNOLA solta presos políticos. Jornal do Brasil, 27 abr. 1974, p. 8. 362 PRIMEIRO comício tem bandeiras. Jornal do Brasil, 26 abr. 1974, p. 8.

253 presos políticos”. Assim como no JB, os destaques de capa são as primeiras medidas da Junta de Salvação Nacional em seu “programa de pacificação nacional, progresso e justiça”363, a supressão das ultrapassadas estruturas do salazarismo e a “cautela” de Spínola em relação ao “problema do ultramar”364. OESP destaca em capa, ainda as repercussões internacionais, opondo a “cautela” nos EUA e o “elogio” em Moscou365. Da África, as notícias são as mesmas do JB: apreensão na África do Sul e Rodésia, contentamento pelo fim da ditadura, mas garantia da continuação da luta dos movimentos de independência em Guiné, Angola e Moçambique. OESP manifesta seu posicionamento editorial na página 3, especialmente através de um ponto de partida que é a falta de experiência e estrutura democrática em Portugal após 48 anos de ditadura. Pelo ponto de vista da política externa brasileira, o entendimento é que as mudanças inevitáveis nas relações entre Portugal e territórios africanos trazem certo alívio e ampliam a possibilidade de diálogo entre as nações, já que os sinais de desajuste entre Brasil e Portugal nesse tema era crescente, sendo “possível supor o próprio rompimento”366. Nas páginas internas (6, 7 e 8 da edição de 27 de abril são dedicadas aos acontecimentos em Portugal), os tópicos sintetizados na capa são aprofundados, com ênfase na das liberdades democráticas, na reação popular (“O clima é de festa em Lisboa”) e nas repercussões na África e na Europa. Os textos noticiosos e citações de jornais e fontes, especialmente dos EUA, Europa e África são muitas vezes idênticos ao JB, indicando o uso das fontes de agências noticiosas. A diferença nas coberturas manifesta-se, assim, nos textos dos correspondentes. Santana Mota, de Lisboa, destaca os primeiros passos da Junta de Salvação Nacional e descreve pormenores do episódio da passagem do poder das mãos de Marcelo Caetano para o general Spínola que indicam que este último não era chefe do MFA até ser chamado a negociar a passagem do poder com o Primeiro-Ministro:

363 Spinola liberta presos políticos. O Estado de São Paulo, 27 abr. 1974, p. 1. 364 UM NOVO país. O Estado de São Paulo, 27 abr. 1974, p. 1. 365 CAUTELA nos EUA e elogio em Moscou. O Estado de São Paulo, 27 abr. 1974, p. 1. 366 PORTUGAL e a diplomacia. O Estado de São Paulo, 27 abr. 1974, p. 1.

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Muitas horas se passaram desde o início do movimento sem que qualquer comunicado de seus organizadores fornecesse à opinião pública indícios inequívocos de que a situação estava sob controle. O chefe do governo e alguns ministros estavam refugiados no quartel da Guarda Nacional Republicana e essa corporação mantinha-se ao seu lado com o regimento de Lanceiros II. Forçar a rendição implicava troca de tiros que de um e outro lado se pretendia evitar. Caetano, porém, não desejava entregar seu cargo a quem não lhe oferecesse garantias suficientes de que possuía capacidade para assumi-lo. Foi então que delegou a um emissário a missão de entrar em contato com o general Spínola para informa-lo de sua disposição de só entregar a ele o comando das tropas e a chefia do governo. Como, no momento, o general não exercia qualquer função de comendo no golpe, resolveu-se consultar a direção do movimento, que prontamente concordou em entregar a chefia a Spínola. Foi, pois, já como chefe do movimento que o general Spínola se dirigiu ao quartel do Carmo para receber a rendição do chefe do governo.367

O episódio também ocupa uma coluna na página 6 do espaço noticioso, sob o título “O último gesto de Caetano”368. O texto adiciona alguns detalhes ao relato do correspondente Santana Mota, entre eles, a afirmação de Caetano de que desejava transmitir-lhe o poder “para que este não caísse nas mãos da gentalha” e que a transmissão teria sido realizada “com exemplar dignidade”369. De Londres, o correspondente Hermano Alves analisa a conjuntura sob o ponto de vista da Organização do Tratado do Atlântico Norte: “A NATO sairá favorecida”. Nessa leitura, a ditadura em Portugal era vista como um empecilho para esse grupo. “Um regime democrático em Portugal abre o caminho para o que país participe – como membro – da Comunidade Econômica Europeia. E pode ter grande influência no futuro político da Espanha e também da Grécia [...]”370. Confirma-se ainda, que, na África, as propostas da Junta são consideradas, à esquerda (movimentos de independência africanos) e à direita (comunidade portuguesa nesses territórios), “muito liberais”371. Gilles Lapouge, de Paris, afirma que “Na França, há simpatia geral”, opinião embasada nas repercussões da imprensa neste país, à esquerda e à direita: Do ultraconservador L’Aurore ao comunista L’Humanité, os jornais franceses dedicaram ontem páginas inteiras aos acontecimentos

367 MOTA, Santana. Junta inicia sua missão. O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 abr. 1974, p. 7. 368 O ÚLTIMO gesto de Caetano. O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 abr. 1974, p. 6. 369 O ÚLTIMO gesto de Caetano. O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 abr. 1974, p. 6. 370 ALVES, Hermano. A NATO sairá favorecida. O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 abr. 1974, p. 7. 371 ALVES, Hermano. A NATO sairá favorecida. O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 abr. 1974, p. 7.

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portugueses. Mesmo L’Aurore, que em algumas ocasiões apoiou atitudes de Salazar e de Caetano, admitiu, num artigo de Roland Faure, que o golpe foi justificado. L’Humanité, por sua vez, publicou um raro elogio a um golpe militar.372

Lapouge conseguiu, naquele momento, uma entrevista com Mário Soares em Paris, que afirmou que “Para a oposição portuguesa, há apenas uma solução: pôr fim à guerra e reconhecer a personalidade das colônias”373. Note-se que Soares não fala expressamente em independência total. A posição de cautela da Junta em relação às questões africanas é corroborada pela leitura da imprensa, somada à análise do passado de Spínola, voluntário na Guerra Civil Espanhola ao lado de Franco e, até pouco tempo atrás, colaborador do regime salazarista. O correspondente de OESP apoia-se na análise de um jornalista francês:

Algumas horas depois da entrevista, havia sinais, em Lisboa, de que o novo governo não pretende iniciar os contatos com os líderes guerrilheiros. Pelo menos é a opinião do jornalista Antonio Diez, da revista L’Express, que declarou ao Estado: “Creio que Spínola não irá tão longe na liberalização como se creditava. Na minha opinião, a vida democrática será revitalizada, mas dentro de um regime autoritário”. 374

Finalmente, a 28 de abril, está a notícia de que o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo regime de Portugal, simplesmente através da troca de comunicados entre os dois países. Em OESP, a manchete principal de capa é: “Brasil reconhece junta portuguesa”. Na capa estão, ainda, novas informações sobre as manifestações populares (“Após quase 50 anos, um dia de euforia em Lisboa”) e as preocupações iniciais de Spínola (“Spínola teme o uso indevido da liberdade”). A capa é composta com uma foto com a legenda “estudantes desmantelam carro de um agente da antiga polícia-secreta”. Das ruas de Lisboa, os correspondentes Clóvis Rossi e Ewaldo Dantas reportam os comícios e manifestações políticas, especialmente de grupos de esquerda (entre eles, o Partido Comunista Português – PCP e o Movimento

372 LAPOUGE, Gilles. Na França, há simpatia geral. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 7. 373 LAPOUGE, Gilles. Na França, há simpatia geral. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 7. 374 LAPOUGE, Gilles. Na França, há simpatia geral. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 7.

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Reorganizativo do Partido do Proletariado – MRPP) e as expressões de ódio à PIDE, que levaram a alguns atos mais extremos, como o desmantelamento do automóvel e a perseguição a um policial identificado e acossado pela multidão dentro de um banco, de onde foi retirado e levado preso pelos soldados. Prédios e ônibus amanheceram marcados em tinta spray encarnada, com o slogan: “O primeiro de maio é vermelho”. Outros slogans eram: “Guerra do povo à guerra colonial”, “Pão, paz, liberdade, democracia e independência nacional”. Os militantes mais jovens já pediam “Abaixo Spínola”. Os jornalistas recolheram, ainda, o depoimento de presos políticos recém-libertados, os quais relataram as torturas nas prisões portuguesas, incluindo privação do sono, do contato com a família e espancamentos. Curiosamente, os jornalistas insistiam em perguntar aos presos se a polícia lhes havia “tirado sangue”, o que estes entrevistados negaram. Não compreendemos o porquê dessa pergunta e a diferença que esse detalhe provocaria na narrativa. Ainda na capa, estão as manifestações de Spínola, que, frente à euforia popular, declara: “É natural que o povo dê vazão à sua alegria. Mas não devemos nos esquecer que se trata de um povo que há meio século não tem consciência do uso das liberdades”. A ideia de que a privação da ditadura desabilitou o povo para o exercício da liberdade e da política, de vertente autoritária, é recorrente, tanto entre as autoridades quanto na opinião de jornais como OESP, como já vimos. Ao descrever as manifestações comemorativas à liberdade nas ruas de Lisboa, OESP afirma: “a agitação popular provocada pelo golpe reflete o que os observadores julgam ser o maior perigo enfrentado pelo novo governo: a liberdade total após 42 anos [sic] de ditadura pode gerar incidentes e dificultar a adoção das medidas democráticas prometidas pela Junta”375. É apenas nas notícias publicadas nesse dia 28 de abril que OESP atenta para a constituição básica do MFA: um movimento da oficialidade jovem. Hamilton de Souza, enviado especial de OESP a Lisboa, escreve:

Mas, nos meios jornalísticos comenta-se que a maioria das medidas anunciadas pela Junta de Salvação Nacional – com exceção da questão das províncias – não reflete o pensamento de Spínola. As

375 LIBERALIZAÇÃO ainda é festejada em Lisboa. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 2.

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mesmas fontes dizem que tais medidas foram impostas pela oficialidade jovem das Forças Armadas.376

O correspondente descreve, ainda, a adesão popular ao inusitado golpe de Estado, corroborando a visão de que o 25 de Abril contrariou todas as expectativas em relação a um movimento desse tipo:

[...] Lisboa não parece ter sido palco de um golpe de Estado. A não ser nas proximidades dos quartéis e postos-chave ocupados pelas tropas do general António de Spínola, não há nenhuma movimentação militar ou indícios de repressão policial. [...] A adesão ao novo governo é quase total, e a cada momento são transmitidos, pelas emissoras de rádio, já em programação normal – os comunicados de apoio procedentes de diversos setores de atividades. Os jornais, livres da censura, dedicam quase todo o espaço aos recentes acontecimentos, realçando sempre a libertação dos presos políticos, a normalização da vida política e as manifestações de apoio à junta. A incrível rapidez com que o povo aderiu ao movimento das Forças Armadas leva a crer que a ansiedade pela mudança do regime, mantido durante 48 anos, estava decididamente arraigada na mente de todos os cidadãos portugueses.377

O editorial de 28 de abril de OESP reflete sobre os acontecimentos em Portugal, revelando, mais uma vez, o conservadorismo e anticomunismo do diário paulistano. Ao comentar a euforia sobre as perspectivas de redemocratização em Portugal, afirma que, de forma “realista”, a democracia tem “condicionantes morfológicas” e que é conquistada pelo “amadurecimento”. Sendo assim, para OESP, o povo português não estaria preparado para a democracia, já que a educação popular para essa forma de governo não era “prioridade do programa do governo salazarista” e que “outros totalitários, desta vez da esquerda sob influência exógena” poderiam beneficiar-se do caos e da desordem:

Os realistas, no entanto, os que procuram analisar fria e objetivamente os acontecimentos, esses sabem que a democracia – a mais perfeita forma da organização política – tem suas condicionantes morfológicas (geográficas e demográficas) e que não é um prêmio que se recebe gratuitamente (digamos, por um decreto militar), mas sim um sistema de vida que se conquista duramente pela ação consciente de muitas gerações. A democracia é,

376 SOUZA, Hamilton de. Oficialidade jovem parece controlar a Junta. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 7. 377 SOUZA, Hamilton de. Oficialidade jovem parece controlar a Junta. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 7.

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realmente, um dom que um povo conquista pelo seu amadurecimento sócio-político durante a vida de muitas gerações. [...] Ora, há quase cinquenta anos, Salazar estabeleceu sua ditadura para remediar o caos e a desordem em que a desintegração política precipitara o país. Esse quase meio século de ditadura, por sua vez, afastou totalmente o povo das práticas democráticas, já que a educação popular para a democracia não foi uma das prioridades do programa do governo salazarista, preocupado principalmente com a necessidade de reorganizar, consolidar e disciplinar a administração pública e assegurar bases financeiras para a produção. Assim sendo, não há como negar que a democratização deve ser progressiva [...] para que o povo português, não preparado e amadurecido para assumir as responsabilidades culturais e morais do autogoverno, vendo-se surpreendido pela obtenção dos direitos advindos da liberdade, esqueça-se dos deveres a ela inerentes e passe a interpretá-la e a exercê-la no sentido da libertinagem. A libertinagem, todos o sabemos, leva ao caos e à desordem, dos quais irão beneficiar-se outros totalitários, desta vez da esquerda sob influência exógena. O caos e desordem geram o clima de que se aproveitam e se beneficiam os grupos radicais extremistas.378

Enquanto isso, o povo português dava demonstrações de ordem, civismo e de vontade imensa de viver a vida política e desfrutar da liberdade com responsabilidade, como vimos nas repercussões das manifestações populares. A 28 de abril, a manchete do JB é bastante similar à de OESP, trocando, apenas, “junta portuguesa” por “novo governo de Portugal”: “Brasil reconhece novo governo de Portugal”. Assim como o diário paulistano, a ênfase é no fato de o Brasil ser o primeiro país a realizar esse reconhecimento e nas promessas de Spínola de autodeterminação e independência progressivas nos territórios na África. O jornal transcreve a troca de mensagens entre a Junta e o Ministério das Relações Exteriores. Também repercute o editorial do inglês The Guardian. Diferente de OESP, a ênfase em alguns detalhes do 25 de abril e que seriam perpetuados como símbolos do imaginário desse acontecimento: a senha para o golpe foi a música, proibida pela censura, “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso. JB reproduz a letra da canção em box. O enviado especial do JB, José Silveira, destaca que as prisões portuguesas apresentam “novos hóspedes”, com a liberação dos presos políticos e com aquilo que chama “operação-limpeza envolvendo todo o território nacional para a detenção de todos os agentes da já dissolvida

378 OS CAMINHOS dos militares portugueses. O Estado de São Paulo. São Paulo, 28 abr. 1974, p. 3.

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Direção-Geral de Segurança”. Dá espaço também a outro elemento que marcaria o imaginário sobre a Revolução, os cravos vermelhos: “Soldados do Exército e Fuzileiros Navais, em uniformes de campanha, portam fuzis automáticos leves. Muitos deles trazem cravos vermelhos nos canos das armas, oferecidos pela população”379. Ao tratar da questão africana, JB dá destaque aos rumores de que colonos portugueses em Moçambique “estariam preparando um plano para libertar o ex-presidente Marcelo Caetano de seu atual confinamento na Ilha da Madeira e confiar-lhe o Governo de Moçambique, que se declararia independente de Portugal”. O título “Colonos de Moçambique querem libertar Caetano” é a macroproposição de sumariza as notícias sobre a questão africana, apesar de ser um rumor considerado ‘totalmente inexequível” pela Junta, tanto pela prisão de Caetano quanto pela adesão dos militares portugueses em Moçambique à Revolução380. Para explorar com mais profundidade a questão, JB publica artigo de página inteira de autoria de Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), jurista, jornalista e político brasileiro que esteve à frente do Itamaraty nos governos de Jânio Quadros e João Goulart. Ele faz uma análise de cunho histórico das relações entre Portugal, Brasil e África, remontando ao século XVIII. Ao comentar os acontecimentos mais recentes e dos quais foi personagem influente, Arinos afirma que “A partir dos anos 1960 começa a guerra de libertação das colônias africanas, principalmente em Angola. Em 1964 a Revolução brasileira, tendo tomado a princípio caráter extremamente ideológico, passou a apoiar francamente a posição portuguesa” 381 (grifo nosso). Lembramos que Arinos, udenista, foi ativo na política externa independente do Brasil, e encontra no artigo em questão a oportunidade de esclarecer pontos da sua trajetória, entre eles, sua atuação no sentido de que o Brasil se libertasse da tutela portuguesa em assuntos diplomáticos, aproximando nosso país da África. Afirma que, após conversa com Salazar em 1961, colocou em seu relatório que “achava que o Estado Novo português acabaria caindo por causa das províncias ultramarinas” e que o ditador

379 SILVEIRA, José. Novos hóspedes nas prisões. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 abr. 1974, p. 3. 380 COLONOS de Moçambique querem libertar Caetano. Jornal do Brasil. 28 abr. 1974, p. 19. 381 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Portugal-Brasil-África. Jornal do Brasil. 28 abr. 1974, p. 22.

260 português manifestou violento ataque aos Estados Unidos: “disse que eles desejavam, na África, ‘trocar a História pelo dólar’”382. É interessante a analogia feita pelo ditador e interpretada por Arinos, que exploraremos com maior atenção no tópico 4.2.5, “Relações com o tempo”. A narrativa sobre a Revolução de 25 de Abril termina, em nosso recorte, de forma aberta. Para onde o golpe de Estado efetuado pelos militares em Portugal conduziria este País? As forças armadas entregariam o poder aos civis? A democracia conseguiria se estabelecer? Naquele momento, as cartas estavam na mesa e o jogo tinha de ser jogado. No Brasil, 10 anos de ditadura militar cerceavam a vida política e as liberdades individuais. Os ventos do além-mar poderiam ser um bom presságio. A charge de Ziraldo, publicada no JB, sintetiza bem essa expectativa, ao invocar a letra do Hino da Independência do Brasil:

Figura 7: Jornal do Brasil, 28 abr. 1974, p. 6.

382 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Portugal-Brasil-África. Jornal do Brasil. 28 abr. 1974, p. 22.

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4.2.2. Personagens

Para Van Dijk (2005, p. 66), “Muitas das implicações ideológicas decorrem não só do fato de se dizer pouco, mas também do fato de serem ditas demasiadas coisas irrelevantes sobre os atores das notícias”. Spínola é, sem dúvida, a personagem protagonista na narrativa do 25 de abril de 1974. A exaltação da figura militar de alta patente não pode ser minimizada neste momento da vida política do Brasil, que já a essa altura acumulava o quarto general na presidência em 10 anos de ditadura. Em OESP, a construção mítica de Spínola aparece antes mesmo da Revolução, ainda nas repercussões do lançamento de seu livro e é descrita como “aura popular”, adquirida nos sertões de Angola, de acordo com a coluna do correspondente Santana Mota:

Conta-se, por exemplo, que nas deslocações das tropas sob seu comando, ele ia na viatura da frente, sempre de pé e sem camisa. Aqueles que lhe observavam o risco a que se expunha, o então tenente-coronel António Spínola dizia que marchava na frente porque “não desejava apanhar pó”. A verdadeira explicação, porém, era outra. Começara a circular entre os guerrilheiros a crendice de que o corpo daquele oficial era invulnerável às balas e de que a viatura em que viajava detectava todas as minas anticarros. Esta crendice surgiu e cresceu depois de uma emboscada da qual Spínola escapou milagrosamente.383

JB no dia 26 de abril apresenta um elenco, sob o título “Os personagens da História”. Ao utilizar “História”, com H maiúsculo, o jornal sugere a referência à disciplina “História” e incorpora, aqui, a perspectiva do passado. Os personagens, na leitura do JB, são “a raiz da crise”: Américo Tomás, Marcelo Caetano e o General António de Spínola.

Na raiz da crise, três nomes: Américo Tomás, Marcelo Caetano e General António de Spínola. Os dois primeiros, herdeiros do sistema salazarista, intransigentes defensores da política colonial, caíram com o regime. Spínola, o militar que soube compreender e oferecer uma solução para a crise nacional, surge como novo líder dos portugueses.384

JB demonstra, assim, uma visão da História com a leitura dos

383 LIVRO de Spínola do Brasil O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 mar. 1974, p. 2. 384 OS PERSONAGENS da História. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9.

262 protagonistas oficiais, os líderes, as personagens midiáticas, demonstrando uma certa dificuldade em compreender na intriga os movimentos históricos em uma perspectiva mais ampla, que envolva mais o cotidiano e menos as intrigas palacianas. O primeiro-ministro deposto, Marcelo Caetano, é descrito como “carente de vontade e de ação, sem espírito de decisão e assaltado pela dúvida”385. Além disso, é apresentado como um liberal apenas em “aparência” e que, na verdade, era ligado aos radicais: “Sempre se pretendeu que Caetano, professor de direito, era um liberal que tinha de ceder ante a pressão dos grupos da linha dura em torno do Presidente Américo Tomás. Na realidade, por sua origem familiar e sua formação universitária, era um homem de direita muito próximo dos radicais, denominados ultra. Inclusive esteve ligado a Salazar durante quase 40 anos”. De acordo com o jornal, sobre o agora ex- presidente Américo Tomás não pairavam dúvidas, era um defensor ferrenho do regime salazarista. Da trajetória de Spínola, o JB o caracteriza como homem de múltiplas habilidades, políticas e militares, desde a equitação, passando pela Guerra Civil Espanhol e II Guerra Mundial, até administração da Guiné. Apesar de ter servido ao salazarismo durante toda a vida, o impacto de seu livro promove um apagamento desse fato: “Em fevereiro último, a publicação de seu livro Portugal e o Futuro o situa em posição de contestador aberto da política do governo português”386. A fala de Lacerda é também recortada na caracterização da figura de Spínola, e, de acordo com o título, “Lacerda diz que Spínola democratizará Portugal”. Para falar do general português, o ex-governador demonstra sua própria “teoria do acontecimento” e, ao mesmo tempo, manda um recado para a ditadura brasileira que lhe cassou os direitos políticos:

– O conformismo e a falta de imaginação – diz Lacerda – são características da ditadura e os políticos são feitos para intervir nos acontecimentos e não para se dobrar debaixo deles. Spínola teve a bravura física e a coragem intelectual de propor uma saída para Portugal e esse é seu grande mérito. Ele chegou a uma síntese que o distancia, ao mesmo tempo, dos guerrilheiros comunistas e da extrema direita e acredita que esgotará as divergências através do voto, mesmo correndo, conscientemente, o risco de ser engolido.387

385 OS PERSONAGENS da História. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9. 386 OS PERSONAGENS da História. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9. 387 LACERDA diz que Spínola democratizará Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9.

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Nesse sentido, a narrativa dos jornais brasileiros estudados nesta tese não confere protagonismo aos capitães, que ficam apagados sob a sombra de Spínola. Apesar disso, a participação popular foi destacada como adesão. Isso fica expresso especialmente no texto “O novo regime é aclamado nas ruas de Lisboa”, que descreve a aglomeração no Rossio e pelos bares e cafés. Nos primeiros momentos, as informações ainda são incertas e Lisboa é descrita como um cenário de guerra:

Tanques e blindados dos Regimentos de Ajuda e 24 de julho cortavam a Avenida da Liberdade em direção à praça do Terreiro do Paço, onde ocuparam os Ministérios da Defesa, Interior e Exército. Tiros e explosões foram ouvidos no centro da capital, quando os rebeldes começaram a eliminar bolsões de resistência das forças leais ao governo. Informações não confirmadas indicam que várias pessoas morreram ou foram feridas durante os tiroteios.388

A rebelião durou 12 horas e não há informações sobre mortos ou feridos, embora se afirme que várias pessoas morreram durante incidentes isolados registrados na capital. 389

A liberdade política recém-conquistada explode nas ruas. Já no dia 26 de abril, de acordo com o JB, milhares de pessoas participaram de um comício na Praça do Rossio, “o primeiro em quase 50 anos, convocado pela Comissão Democrática Eleitoral, uma organização que reúne os Partidos que se opunham ao regime salazarista”390. Chama a atenção o título da matéria sobre o evento político: “Primeiro comício tem bandeiras”, provavelmente destacadas no título porque eram vermelhas:

Divididos em dois blocos, os manifestantes empunhavam bandeiras vermelhas, distribuíam volantes ao povo convocando para um “1º de maio vermelho” e presenteavam com cravos vermelhos aos que assistiam à manifestação, que durou quase duas horas sem qualquer incidente. 391

A notícias dão conta, ainda, de um ataque ao jornal O Século: “No jornal O Século, conservador e pró-salazarista, manifestou-se um incêndio de origem não apurada quando uma pequena multidão tentava invadi-lo para

388 APENAS 12 horas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 1. 389 APENAS 12 horas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 26 abr. 1974, p. 1. 390 PRIMEIRO comício tem bandeiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 8. 391 PRIMEIRO comício tem bandeiras. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 8.

264 castigar seu diretor. Os soldados impediram que os manifestantes atingissem seu objetivo”392. Na verdade, a tentativa de ataque foi contra o jornal A Época, órgão oficial da União Nacional. OESP destaca o fim de medidas restritivas aplicadas nos centros de educação superior e demonstra a adesão dos estudantes, professores e meios universitários em geral à revolução:

Uma delas [das medidas democráticas prometidas pela Junta], anunciada à nação pela manhã em meios aos acordes da canção “Grândola Vila Morena”, de Zé Afonso – compositor detido inúmeras vezes pela polícia política, por suas ideias contrárias ao regime de Marcelo Caetano – se refere ao levantamento das medidas restritivas aplicadas nos centros de ensino superior. As cantinas, fechadas há mais de um ano, foram reabertas e os estudantes agora estão autorizados a se reunir para o debate dos problemas do ensino e da política do governo. Em troca, a Junta pediu aos jovens “confiança e compreensão” e um alto grau de civismo, que lhes permita levar adiante sua obra. Mais tarde, um grupo de médicos jovens ocupou a sede do Colégio de Médicos de Lisboa e anunciou a expulsão do decano, segunda eles, “notório curandeiro fascista”. Foram pregados nas paredes do prédio inúmeros cartazes, anunciando a transformação do Colégio em “sindicato livre” e dizendo que, de agora em diante, a saúde não será mais um privilégio de classe, mas sim um direito de cada cidadão. [...] Pela primeira vez, “A Internacional” foi cantada publicamente numa reunião de estudantes realizada numa das faculdades locais, sem que houvesse a interferência das autoridades ou da polícia.393

É icônica, ainda, a troca de lugar nas prisões. O enviado especial do JB, José Silveira, traz essas notícias de Lisboa. Destaca a questão da prisão dos agentes da PIDE, que trocaram de lugar com agora os ex-presos políticos. Nos primeiros momentos de liberdade, de acordo com o relato desse jornalista, os alvos da ira popular foram a polícia política, as vitrines dos bancos, a sede do jornal A Época e uma repartição da censura. No mais, trânsito engarrafado no centro da cidade e milhares de pessoas reunidas. “Não há oradores, mas há farta distribuição de panfletos”394.

Os portugueses compram avidamente as sucessivas edições dos jornais que, pela primeira vez em 40 anos, saem à rua sem seus textos passarem pela censura. O comércio funcionou normalmente e

392 SPÍNOLA solta presos políticos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 8. 393 LIBERALIZAÇÃO ainda é festejada em Lisboa. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 abr. 1974, p. 2. 394 SILVEIRA, José. Novos hóspedes nas prisões. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 abr. 1974, p. 3

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fechou ao meio-dia. À tarde, permaneceram abertos bares e restaurantes. Os bancos reabrem segunda-feira. O aeroporto de Lisboa já está em funcionamento. Ao meio-dia de ontem, chegou o primeiro trem de Madrid, totalmente lotado de passageiros em sua maioria portugueses. Aliás, o bar do Expresso Lusitano esgotou todo seu estoque de bebidas, consumidas pelos que comemoravam a vitória.395

A grande ausência notada na narrativa dos jornais brasileiros é a dos capitães. Apesar das sugestões, especialmente através dos colunistas, de que a ação tinha uma forte base popular, o jornalismo analisado tendeu ao enquadramento da Revolução em moldes de um golpe de Estado tradicional, focado em grandes figuras, sem trazer para a sua narrativa o protagonismo dos capitães.

4.2.3. Léxico

Na imprensa brasileira, o léxico para referir a Revolução é bastante variado. Destacamos, na manchete de OESP de 26 de abril, a opção por “golpe militar” para designar a ação dos capitães e “governo português” para referir a ditadura. JB, por sua vez, opta por expressões menos específicas: “Junta controla Portugal e anuncia constituinte” (26 de abril) e “Portugal anuncia Governo civil e eleição em um ano” (27 de abril), grifos nossos. Há, contudo, transcrições de comunicados do próprio Movimento das Forças Armadas, o qual opta por descrever “uma série de ações destinadas a libertar o país do regime que há tanto tempo o domina”396 (grifo nosso). De qualquer forma, destacamos que, tanto em OESP quanto no JB, o novo governo português é logo reconhecido. Vejamos, apenas a título de ilustração, as manchetes de outros dois importantes diários, de impacto mundial, a 26 de abril de 1974. No francês Le Monde: “Entre as aclamações da multidão, um movimento das forças armadas toma o poder em Portugal” (VIEIRA; MONICO, 2014, p. 23). O norte-americano The New York Times destaca: “Exército de Portugal toma o controle e proclama

395 SILVEIRA, José. Novos hóspedes nas prisões. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 abr. 1974, p. 3 396 APENAS 12 horas. O Estado de São Paulo, 26 abr. p. 1.

266 objetivo democrático/ Rendição de Caetano anunciada”397. Vemos que, de forma geral, esses títulos, além de mais extensos, optam, cautelosamente, por caracterizar o movimento dos capitães como uma “tomada de poder” ou “tomada de controle”. Nessas manchetes, a figura de Spínola não aparece. Não esqueçamos que o protagonismo do general foi resultado das negociações levadas a cabo pelo MFA no contexto da rendição de Caetano, que não queria que o poder “caísse na rua”. Observamos, também, que nenhum dos jornais brasileiros analisados aqui destaca no título principal a dimensão da participação popular ou atribui aos oficiais de patentes mais baixas, os capitães, o protagonismo na condução dos acontecimentos. A imprensa brasileira não adere, no recorte analisado, ao termo “revolução”. Contudo, esta expressão aparece para referir ao regime militar brasileiro.

4.2.4. Ruptura e repercussões midiáticas

Diferente da imprensa portuguesa, tomada pela explosão da palavra pública e mais preocupada com seus assuntos internos, a imprensa do Brasil dá grande destaque às repercussões internacionais (e no próprio Brasil) relativas aos acontecimentos em Portugal. Do Brasil, OESP noticia o silêncio do Itamaraty, que ainda aguarda um comunicado da Junta militar que governa Portugal. A expectativa tem a ver, sobretudo, com a questão colonial, que vinha, como já vimos, minando as relações diplomáticas entre os dois países. O diário paulista repercute, ainda, a manifestação de três deputados: Marcos Freire e Fernando Lyra (MDB/PE) e Lysâneas Maciel (MDB/RJ), todas saudando a queda da ditadura portuguesa. O primeiro, defendendo a realização de uma assembleia constituinte no Brasil para a realização de eleições gerais, afirmava que “a queda do regime português tem significação universal, porque representa a intervenção das forças armadas daquele país para restituir ao povo a sua soberania”398. Um dos pontos mais repercutidos pela imprensa brasileira, com certa

397 “Portugal's army seizes control and proclaims democratic goal; Caetano's surrender announced” (tradução nossa). Disponível em: https://goo.gl/Rkg1dr. Acesso em: 24 jul. 2014. 398 O BRASIL aguarda os acontecimentos. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27 abr., p. 8.

267 nostalgia, é o da liberdade de expressão. Com a euforia popular e a súbita liberdade de expressão, Spínola afirma que o objetivo é “criar uma imprensa mais responsável: ‘Todos os jornais devem transformar-se em instrumentos válidos. Não podemos permitir que se crie um clima de irresponsabilidade’”399. O mesmo temor em relação ao “uso indevido da liberdade” é direcionado às colônias, caso no qual Spínola vê que há confusão entre autodeterminação (postura que defende) e independência, e também ao cotidiano dos cidadãos portugueses, há tanto tempo privados da liberdade e da vida política. Vemos, assim, que a atuação da mídia é, nesse sentido, profundamente conectada com o exercício da cidadania e tem responsabilidade, portanto, nos rumos da nação. A Charge de Ziraldo, publicada no JB, volta-se também ao tema da liberdade e sugere que o povo português anda “esquecido”:

Figura 8: Jornal do Brasil, 27 abr. 1974, p. 6.

OESP destaca as manifestações de liberdade de expressão, entre elas, o fato de que “o jornal República anunciou em manchete que finalmente, estava saindo livre de censura”400. A foto na capa de OESP de 26 de abril

399 SPÍNOLA teme o uso indevido da liberdade. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 abr., p. 1. 400 O NOVO regime é aclamado nas ruas de Lisboa. O Estado de São Paulo, 26 abr. 1974, p. 1.

268 mostra, com a legenda “Após 40 anos, jornais sem censura”, um cidadão lendo jornal nas ruas de Lisboa. Antes da Revolução, OESP havia noticiado, citando o República como fonte de informação, uma nota que dava a perceber o cerceamento à livre expressão em Portugal. Tratava-se da demissão do editor do livro Portugal e o Futuro:

“O jornal República informou ontem que Parodela [sic] de Abreu, editor do livro do general Spínola, afastou-se de seu cargo, na Editora Arcádia. A notícia foi divulgada sob o título “Editor afastado”. A primeira edição de Portugal e o Futuro esgotou-se rapidamente e segunda, ao que se anunciou, deveria ter chegado às livrarias na última segunda-feira, mas isso não aconteceu e nada se soube sobre o motivo”401

OESP repercute a reação da imprensa portuguesa, afetada pela súbita liberdade e o fim da censura. De acordo com o jornal paulistano, esses fatos forma comemorados “com grande estardalhaço pelos jornais que se opunham ao antigo regime e com mais discrição por aqueles considerados pró- governamentais, como o Diário de Notícias [...]”402. Por outro lado, o “Jornal da República [sic], de oposição, colocou no rodapé uma faixa com estes dizeres: ‘Este número foi impresso sem ter sido submetido a comissão de censura alguma’”403 Há, ainda, a dimensão da participação efetiva dos meios de comunicação na ação do Movimento das Forças Armadas. Santana Mota, correspondente do diário paulistano, destaca que “as primeiras posições ocupadas foram as emissoras de televisão e rádio oficiais e particulares, cujas transmissões o comando revolucionário passou imediatamente a controlar, a partir das primeiras horas da manhã”404, o que demonstra a posição estratégica que os meios de comunicação ocupam, não apenas em sentido militar. JB de 27 de abril informa, sobre as rádios que operavam na capital – Nacional e Rádio Clube –, que o cantor mais ouvido é José Afonso, compositor e intérprete da canção Grândola, Vila Morena, que se tornaria um hino do 25 de Abril. Afonso teve suas músicas proibidas pelo regime anterior. Da

401 PERSISTE a intranquilidade. O Estado de São Paulo. São Paulo, 17 mar. 1974, p. 14. 402 LIBERALIZAÇÃO ainda é festejada em Lisboa. O Estado de São Paulo, 28 abr. 1974, p. 2. 403 A frase exata, publicada no República, é “Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”. 404 MOTA, Santana. Às 4 da tarde, o final de uma era. O Estado de São Paulo, 26 abr., p.1

269 imprensa, o Diário de Notícias é descrito pelo JB como “o [diário] mais importante de Lisboa e até então o mais favorável ao governo” 405. JB opta, ainda por repercutir Época, jornal da Ação Nacional Popular, partido único da ditadura. Em duas páginas dedicadas à repercussão internacional – uma só a África e outra e outros pontos do globo –, JB procura em Brasília, embaixadores africanos para repercutir os acontecimentos. O resultado é, ao sabor do contexto, dividido entre a apreensão na África do Sul e Rodésia e o otimismo na “África negra”, cujos representantes demonstram confiança na proposta de Spínola. O governador de Moçambique fora prontamente substituído pela Junta de Salvação Nacional e, pela importância desse território para a África do Sul e Rodésia, governados por minorias brancas, os títulos principais da página dedicada ao continente remetem a essa questão: “Coronel substitui Governador em Moçambique”, “Situação portuguesa preocupa África do Sul” e “Rodésia não muda suas relações”. Nesse sentido, a atuação de Spínola como líder da Junta parecia, a princípio, tranquilizadora para esses países, mas, para os movimentos de independência, era um indicativo de que não haveria mudanças substanciais na situação dos territórios e as manifestações desses grupos afirma a continuidade da luta. Lúcio Lara, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), afirma, em citação direta reproduzida pelo JB: “No fundo, a política colonialista de Portugal continua igual. Este golpe dos generais só tende à exploração do povo de Angola sob novas formas”406. Nesse mesmo sentido, o jornal reporta manifestações do Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC) em transmissões radiofônicas captadas em Dacar, no Senegal, nas quais congratulam os soldados portugueses, mas afirmam que suas ações não vão cessar. Entre esses grupos, a Revolução em Portugal parece ser, também, a admissão de que o país europeu perdeu a partida na África. Apesar das notícias de calma aparente nos territórios, há tensão entre os brancos, tanto em relação a um possível êxodo dessa população, como em relação à emergência de outros regimes controlados por minorias, como na África do Sul

405 SPÍNOLA solta presos políticos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 8. 406 MOVIMENTOS continuam a luta. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 9.

270 e Rodésia. Utilizando novamente a cartola “Pesquisa JB”, o diário traz uma retomada de fatos dos últimos dez anos da guerra colonial (“O estopim que veio de longe”), citando como fonte (quando citada) a própria imprensa, neste caso, a revista inglesa The Economist. Esclarece, neste artigo, o ponto de vista conceitual da ditadura portuguesa sobre a questão africana:

Para o Governo de Marcelo Caetano, não existiam “colônias” e sim “extensões africanas do território português”, sendo portanto um despropósito falar em independência. “Sobretudo” — dizia o Primeiro- Ministro – “é importante manter a unidade multi-racial dos territórios”. Nem que seja à força – acrescentavam os críticos do seu programa de mobilizar 142 mil soldados para combater os movimentos de libertação”.407

No Brasil, diversos exilados portugueses comentam a situação em sua terra natal. De São Paulo, a Unidade Democrática Portuguesa, entidade representativa da oposição à ditadura salazarista, manifesta suas expectativas em relação ao golpe, que incluem “o reconhecimento de direitos civis, a extinção da censura e da polícia política e negociação imediata com os movimentos de libertação africanos”408. A entidade afirma, ainda, que o 1º de maio, dia do trabalhador, será o primeiro grande teste para a Junta Militar. Daqui aparece mais uma voz de questionamento em relação a Spínola. Para a UND, resta “dúvida se o General Spínola é, na realidade, um representante da Oposição em Portugal, principalmente pelas soluções que apresenta para o problema do colonialismo” 409. Em rara manifestação de políticos brasileiros reportada nos jornais de nossa análise, uma pequena nota dá conta da reação do senador Franco Montoro, do MDB-SP, o qual, ao falar dos acontecimentos em Portugal, parece “mandar recado” para a ditadura brasileira. Ele afirma:

Saudar no movimento “a esperança do nascimento de uma nova democracia na política mundial, certo de que os regimes de exceção são sempre transitórios e que a democracia é o caminho normal capaz de assegurar o respeito aos direitos do homem”.

407 O ESTOPIM que veio de longe. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p.9. 408 1º DE MAIO pode ser teste. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p.9. 409 1º DE MAIO pode ser teste. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p.9.

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“A anunciada realização de eleições gerais e livres e a convocação de uma Assembleia constituinte”, acrescentou o senador, “são os primeiros sintomas de que Portugal caminha para o regime comum dos povos cultos e civilizados.”410

Carlos Lacerda também opina sobre o papel do Brasil nessa nova conjuntura, em citação direta do JB:

Chegou a hora de o Brasil mostrar que é amigo de Portugal. A poiar a posição do antigo Governo estava resultando num desgaste insustentável para o nosso país. Acho que foi muito bom para nós que teremos, agora, a oportunidade de formar uma comunidade afro- luso-brasileira que, em termos nacionais e internacionais, trará benefícios incalculáveis. A opinião pública brasileira deve mostrar nesse momento que tem maturidade para não exigir de Spínola coisas impossíveis.411

JB reproduz editorial do The New York Times, que sintetiza os acontecimentos da seguinte forma, sob o título “Pela justiça e liberdade”:

Oficiais idealistas do Exército português, decididos a restaurar a democracia no país e a paz nos territórios africanos, tiveram êxito – em sua segunda tentativa em cinco semanas – em derrubar o Governo autoritário do Primeiro-Ministro Marcelo Caetano. A Junta Nacional de Salvação, como a força rebelde se intitula, promete governar o país somente até a realização de eleições para uma assembleia que elaborará um nova Constituição democrática.412

O jornal norte-americano também aposta na narrativa do desgaste da ditadura com a guerra, somado à nova perspectiva política marcada pelo livro de Spínola, como causas da revolução. Afirma, ainda, que a queda da ditadura traz alívio para a NATO – Organização do Tratado do Atlântico Norte, “constantemente embaraçada por um Governo-membro que praticava a repressão internamente e se envolvia em guerras coloniais na África” 413. Mesmo assim, as notícias dão conta que a posição do governo norte- americano é de cautela, aguardando a definição do novo governo sobre “a renovação do tratado sobre a permanência de bases militares dos Estados

410 BRASIL aguarda uma definição. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p.9. 411 LACERDA diz que Spínola democratizará Portugal. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9. 412 PELA justiça e liberdade – Editorial do The New York Times. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9. 413 PELA justiça e liberdade – Editorial do The New York Times. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 abr. 1974, p. 9.

272

Unidos na Ilha dos Açores”414. De forma geral, em termos de repercussão internacional, o fim do salazarismo é celebrado, porém, o ceticismo em relação aos próximos passos da Junta é reportado em setores à esquerda no espectro político. Na Grã- Bretanha, por exemplo, a expectativa é de reconhecimento do novo governo, mas, “segundo observadores, o Governo britânico se acha diante de um problema, já que o reconhecimento poderá ser criticado pela ala esquerda do Partido Trabalhista que, em princípio, é contrária a regimes militares”415. Na Europa, o destaque do JB é para a posição da Espanha franquista (“Espanha vai reconhecer novo Governo português”), que sinaliza o reconhecimento com aparente neutralidade, baseada na “Doutrina Estrada”, de acordo com a qual “um Estado não tem por que julgar as mudanças ocorridas em outros, que dispensa qualquer declaração de reconhecimento, disse um porta-voz oficial”416. Deste país, JB destaca a repercussão no Informaciones – diário de origem filonazista, mas que nos anos anteriores à morte de Franco (1975) foi considerado o periódico precursor da transição (INFORMACIONES) – o qual estampou em sua capa a manchete “Eleições e Liberdade Política”: “embora encabeçasse um simples resumo, a manchete teve um significado especial para muitos espanhóis que vêm exigindo maiores liberdades nos últimos tempos” 417. Ainda neste país, de acordo com o JB, jornais marcadamente ligados ao franquismo e ao conservadorismo, como Ya, Arriba e ABC mostram- se favoráveis aos acontecimentos em Portugal. Da Itália, o Messagero, caracterizado pelo JB como de “centro- esquerda”, diz que “a mudança ocorrida em Portugal convém aos Estados Unidos. ‘Pode-se acreditar que esse golpe não teria sido possível se contrariasse os interesses norte-americanos. Quanto às modificações reais, o exemplo das repetidas as jamais cumpridas promessas de liberdade da Grécia não é encorajador’”418, reafirmando o ceticismo reportado em parte da esquerda pelo mundo.

414 EUA aguardam definição da Junta sobre Açores. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 11. 415 EUA aguardam definição da Junta sobre Açores. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 11. 416 ESPANHA vai reconhecer novo Governo português. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 11. 417 ESPANHA vai reconhecer novo Governo português. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 11. 418 IMPRENSA europeia é cautelosa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr. 1974, p. 11.

273

OESP traduz editorial do The Guardian que faz referências ao Brasil. De acordo com o diário londrino, na tradução de OESP, “nenhum outro país deve observar tão atentamente os acontecimentos em Portugal como o Brasil, ex-colônia portuguesa que se vê como modelo de uma sociedade independente e multirracial, cujas pegadas deveriam ser seguidas pelas colônias portuguesas da África”419. O jornal inglês aponta, também, o movimento de distanciamento do Brasil em relação a Portugal em termos de política internacional, mas aponta, também, razões internas para essas mudanças de posição da chancelaria brasileira: “A política brasileira de desenvolvimento confere tanta importância à exportação que já não pode permitir que a ideologia lhe aponte os amigos. Totalmente anticomunista, está preparado para vender açúcar à URSS e à China”420. JB reproduz, em 28 de abril, um texto do The New York Times, assinado por Brendan Jones, intitulado “As riquezas das colônias”. Nele, são elencadas as enormes riquezas dos territórios africanos e afirma que “ironicamente, Portugal corre o risco de perder essas possessões justamente quando estavam começando a pagar dividendos”421. O artigo fala das riquezas de Angola: petróleo (a empresa Gulf Oil Company é caracterizada como “a única companhia norte-americana com operação importante na África portuguesa), café, diamantes, minério de ferro.

4.2.5. Relações com o tempo

A revolução em Portugal em 1974 e o golpe no Brasil dez anos antes foram rupturas que surpreenderam pela rapidez com que se efetivaram. Nesse sentido, percebemos a utilização de estratégias de objetivação, especificamente referências de exatidão temporal, para criar o efeito narrativo de contraste: “Às 4 da tarde, o final de uma era”, o título da coluna do correspondente Santana Mota, projeta uma relação específica com o tempo, ao sepultar, usando as palavras do próprio MFA, “o regime que há tantos anos

419 ‘GUARDIAN’ comenta situação e faz referências ao Brasil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 abr. 1974, p. 2. 420 ‘GUARDIAN’ comenta situação e faz referências ao Brasil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 abr. 1974, p. 2. 421 AS RIQUEZAS das colônias. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 abr. 1974, p. 19.

274 oprimia a nação”. Ao usar os recursos narrativos de expressão de objetividade “às 4 da tarde”, expõe a força do presente, tempo no qual está ancorada a narrativa jornalística, frente ao passado, por mais pesado e poderoso que seja (os quase 50 anos de regime fechado em Portugal). Nas projeções para o futuro, está “Spínola promete realizar eleições livres e diretas”422. É possível perceber, ainda, a utilização de sinais de exatidão a fim de conferir ao texto referenciais de realidade, recurso característico do discurso jornalístico: o golpe teria “eclodido às 3 horas da madrugada, durou exatamente 15 horas e marcou o fim de 48 anos de regime salazarista” (grifos nossos). Ao descrever detalhes da ação em 25 de abril, já na edição de 28 de abril de1974 o JB assume a perspectiva histórica do acontecimento:

Na 5ª divisão de Infantaria e na 7ª Cavalaria da Capital, na Escola de Lamego, na região Nordeste, os oficiais da Infantaria em Afra e em muitos outros pontos os militares rebeldes tomaram conta da situação em seus quartéis e, animados pelos acordes de Grândola, Vila Morena, partiram para o cumprimento de sua missão histórica.423

O relato de Afonso Arinos no JB é emblemático das relações entre mídia e tempo, não apenas porque o artigo em si se desenvolve como uma análise dos eventos do passado, mas porque coloca os personagens na perspectiva histórica e o próprio narrador como testemunha (Arinos foi Ministro das Relações Exteriores no governo de Jânio Quadros):

No meu relatório disse que achava que o Estado Novo Português acabaria caindo, por causa das Províncias Ultramarinas. Está escrito. Apenas eu pensava que seria mais cedo. Mas a História, que às vezes demora, acaba sempre por chegar. Salazar, que na sua longa conversa comigo, atacara violentamente os Estados Unidos, disse que eles desejavam, na África, “trocar a História pelo dólar”. Ele próprio estava com a História de Duarte Pacheco, de João de Barros, do grande Camões. Não com a História mutável e viva. Por isso sua obra morreu.424

A imagem da história “mutável e viva” em oposição à situação do regime português aparece com recorrência na narrativa brasileira sobre os

422 SPÍNOLA promete realizar eleições livres e diretas. O Estado de São Paulo. 26 abr. 1974, p. 1. 423 CANÇÃO proibida, senha para o golpe. Jornal do Brasil. 28 abr. 1974, p. 18. 424 FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Portugal-Brasil-África. JB, 28 abr. 1974, p. 22.

275 acontecimentos em Portugal, seja pelas análises do livro de Spínola, pelos posicionamentos do Itamaraty ou através das retomadas históricas que os jornais realizaram (o JB, especialmente, com a cartola “Pesquisa JB”). Na narrativa da imprensa analisada, o regime português parecia situar-se em um outro tempo, numa metanarrativa anacrônica, parecendo que foi realmente, em apenas um dia, que Portugal saltou para o futuro.

4.3. SÍNTESE COMPARATIVA

Realizamos, aqui, a síntese interpretativa das análises produzidas sobre as narrativas dos jornais brasileiros e portugueses de nosso recorte sobre a Revolução de 25 de abril de 1974 em Portugal. Para tanto, retomamos, de acordo com nosso referencial teórico-metodológico, as categorias comparáveis estudadas em cada uma dessas narrativas, procurando compreendê-las em um viés comparativo. Começamos com a recomposição da intriga, movimento inicial da Análise Crítica da Narrativa proposta por Motta (2013). Vimos que a narrativa das imprensas analisadas segue a sequência- tipo degradação-reparação-melhoramento: a publicação do livro de Spínola e o levante das Caldas sugerem, ao mesmo tempo, a profunda degradação e a possibilidade de reparação do conflito, especialmente ao atrelar, à questão colonial, a situação interna de Portugal, sugerindo uma saída política e não militar para esse problema. Na imprensa portuguesa, essa primeira parte da narrativa, devido à censura, é mais apagada, e se dá, preferencialmente, através da repercussão do livro de Spínola e, sobretudo, nas páginas do República. A Revolução, com seu sentido fraterno e popular, com o protagonismo de Spínola, é o ápice da reparação e deixa a narrativa em aberto para o melhoramento, que começa a se manifestar em um processo de “normalização” associado ao usufruto das liberdades individuais e coletivas, representadas através da ênfase ao fim da censura, da libertação dos presos políticos e da promessa de eleições livres. Em termos conjunturais, vemos que há, ainda, a metanarrativa da Guerra Fria, mas que esta se manifesta de forma mais contundente na crise do

276 petróleo do Oriente Médio e que, sendo assim, não chega a ser determinante no enquadramento narrativo dos acontecimentos em Portugal. Na imprensa brasileira aparecem algumas esparsas menções à possibilidade de uma virada à esquerda nesse País (na fala de Lacerda, por exemplo), mas, dada a credibilidade do General Spínola, esta não é a tônica do acontecimento-intriga no momento da ruptura institucional. Esse quadro muda no decorrer do PREC, no qual o comunismo aparece em Portugal como uma real possibilidade, mas esse período não faz parte do recorte de nossa tese. O grande pano de fundo conjuntural, na imprensa analisada, é a questão da persistência do colonialismo português na África e seus desdobramentos, especialmente em relação à Comunidade Econômica Europeia. No plano interno, a grande questão é a insatisfação popular e entre as Forças Armadas frente ao desgaste de uma ditadura anacrônica e altamente repressiva e da guerra no ultramar, violenta e dispendiosa. Nesse sentido, o lançamento do livro Portugal e o Futuro, do general Spínola, é aparecimento oportuno de uma narrativa alternativa, progressista, para a solução desses conflitos. A imprensa brasileira, especialmente OESP, dedica grande espaço ao livro, ao Levantamento das Caldas e à exoneração de Spínola, em uma narrativa que conduz ao entendimento de que a queda do regime em Portugal é inevitável e acontecerá a qualquer momento. Esses acontecimentos coincidem com outros, de grande importância, no Brasil, que completa 10 anos sob ditadura e emenda o quarto presidente militar. A posse de Geisel repercute também em Portugal, dando a ver um olhar em perspectiva sobre o golpe de 10 anos atrás, agora consolidado como revolução. Ao noticiar a posse de Geisel, o DN afirma que o general “Será o quarto governante militar do Brasil desde o golpe de 1964, quando foi derrotado o governo de João Goulart, inclinado decididamente à esquerda marxista, e que criara um clima de imoralidade, corrupção e subversão”425 (grifo nosso). Em seu discurso, o militar afirmou seu compromisso com a “continuação da obra da revolução de 1964”426 (grifo nosso). Com a posse, novas medidas econômicas foram anunciadas e as notícias a que temos

425 A POSSE do Presidente Geisel. Diário de Notícias, Lisboa, 15 mar. 1974, p. 9. 426 O GENERAL Geisel prestou juramento como novo presidente do Brasil. Diário de Notícias, Lisboa, 16 mar. 1974, p. 1.

277 acesso ao ler os jornais durante a Revolução portuguesa expõem um Brasil que ainda lutava contra a inflação. A coluna do Castello no JB de 28 de abril de 1974 afirmava que “os acontecimentos em Portugal atenuaram substancialmente a repercussão do comunicado conjunto dos Ministros da Fazenda e do Planejamento no qual realizam a crítica da situação com que se defrontou o novo governo e em que se anunciam as medidas que definem a nova política de contenção inflacionária”. A análise desse cenário pelo colunista dá acesso à forma como a se encaravam os acontecimentos de ruptura institucional ocorridos há dez anos, no Brasil: “Como há uma continuidade administrativa e política na Revolução e como um Governo decorre do outros Governo, numa relação quase que de pai para filho, não se deve atribuir choque no primeiro escalão, ou seja, no escalão presidencial”427 (grifo nosso). “Continuidade administrativa e política na Revolução”, leia-se, ditadura. A narrativa da imprensa brasileira enquadra o contexto da guerra na África e seu impacto econômico sobre Portugal, mas não se dedica a retratar o cotidiano da população portuguesa. Da África, alguns líderes de movimentos de independência têm espaço, através de informações de agências de notícias, que acabam por tornar essa parte do noticiário repetitiva. Mesmo depois da leitura de todos os jornais de nosso recorte, a África permanece um mistério, assim como a situação da metrópole do ponto de vista dos populares. Assim, a narrativa sobre a Revolução de 1974 apresenta ao menos 3 episódios centrais: 1) a publicação do livro de Spínola; 2) o levante das Forças Armadas, ensaiado em 15 de março nas Caldas da Rainha e efetuado de forma completa, finalmente, a 25 de Abril de 1974; e 3) O sítio e a rendição de Marcelo Caetano no Quartel do Carmo, símbolo da queda definitiva do regime e da irmanação entre o MFA e a população. O livro de Spínola é considerado “a gota d´água” para a queda do regime. Do seio da própria ditadura é que brota a alternativa narrativa, a potência interpretativa mobilizadora da reação das Forças Armadas e do povo português. Como já afirmamos, a repercussão do livro na imprensa brasileira foi bastante significativa, especialmente pelo engajamento de Carlos Lacerda, como editor do livro, notório “derrubador de regimes” e defensor ferrenho da

427 CASTELO BRANCO, Carlos. Denúncias e silêncios. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 abr. 1974, p.4.

278 tese spinolista de saída política para a guerra na África. Na imprensa portuguesa, por conta da censura, a repercussão do livro não teve o mesmo impacto na narrativa midiática, mas provocou uma brecha para reações contundentes, como a Carta Aberta ao General Spínola, de Artur Portela Filho:

No fenômeno que “Portugal e o Futuro” é, há a distinguir duas coisas – o livro ele próprio e V. Exª. Isto porque o que o livro diz é muito menos original do que o fato de ser V. Exª a dizê-lo. V. Exª e a sua circunstância. De resto, mais a circunstância de V. Exª do que V. Exª. Definindo a África como o problema mais agudo da nossa geração, e propondo a criação de um Comunidade Lusíada, clara e insofismavelmente referendada, V. Exª não põe, ao País, uma opção nova – põe, ao País, a novidade que é ser V. Exª a pô-la. “Portugal e o Futuro” não é uma proposta. V. Exª é.428

A publicação do livro consegue articular discurso e agente – ao inflar a figura de Spínola como protagonista e alternativa política – sendo este um agente brotado da própria ditatura, marcada, narrativamente, como a antagonista “salazarenta”. Nesse sentido, o segundo episódio, apesar de explorado e revelado pela historiografia, é minimizado e incompreendido pelo discurso midiático no momento da ruptura, especialmente no Brasil. A profunda divisão do País e a proposta de emenda do Movimento das Forças Armadas não recebem a atenção nem a proporção que mereciam. O retrato midiático é o de um líder (Spínola) e seus comandados quando, na verdade, o MAF tinha uma organização independente dessa liderança, como fica expresso na fala de Salgueiro Maia ao DN: “Este movimento nasceu antes da publicação do livro do General Spínola. Simplesmente chegamos às mesmas conclusões do General. Agora cumpro ordens...”429. Essa dimensão da Revolução fica apagada mesmo no engajado República. A rendição de Caetano catalisa em um mesmo episódio todas as forças mobilizadoras da Revolução de 25 de Abril: a ditadura anacrônica e moribunda, o MFA, a população em delírio e a chegada triunfante de Spínola. Nas

428 PORTELA FILHO, Arthur. 2ª Carta Aberta ao General Spínola. República, Lisboa, 11 mar. 1974, p. 3. 429 AS OPERAÇÕES do Largo do Carmo descritas pelo oficial que as comandou. Diário de Notícias, Lisboa, 26 abr. 1974, p. 5.

279 narrativas analisadas, este foi o episódio mais explorado e que mais conectou a narrativa midiática com a população e o MFA, ainda que, de nosso ponto de vista, de forma parcial, porque colocou, na intriga, esses personagens como coadjuvantes. Vejamos, nas Tabelas 5 e 6, a seguir, o recorte das manchetes produzidas pelas imprensas de Brasil e Portugal:

Data OESP JB 26/4 Golpe militar derruba o governo Junta controla Portugal e anuncia português constituinte 27/4 Spínola liberta presos políticos Portugal anuncia Governo civil e eleição em um ano 28/4 Brasil reconhece novo governo de Brasil reconhece junta portuguesa Portugal Tabela 5: Manchetes dos jornais brasileiros sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal

Data República DN 25/4 As Forças Armadas tomaram o poder Revelou o secretário provincial de planejamento e Finanças / O Milagre de Angola / O Exercício de 1973 fechou com um saldo de quase 600 mil contos (1ª edição)

Às primeiras horas da madrugada de hoje / Eclodiu um movimento militar / Através do Rádio Clube Português o “Comando do Movimento das Forças Armadas” tem divulgado o seu objetivo: / A substituição do atual regime (2ª edição) 26/4 O Programa do Movimento Golpe de Estado às primeiras horas de ontem / O Movimento das Forças armadas triunfou e anuncia a entrega do governo a uma junta de Salvação Nacional presidida pelo general António de Spínola 27/4 Normalidade em todo o País / A vitória Normalização e liberalização da vida consolida-se após a evacuação dos política nacional – pontos essenciais de agentes da PIDE presos na sede um vasto programa comunicado à imprensa pelo General Spínola Tabela 6: Manchetes dos jornais portugueses sobre a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal

Vemos que, em relação às manchetes, a imprensa brasileira é correta do ponto de vista factual. JB apresenta uma abordagem que aposta nas projeções para futuro, ou seja, no programa do MFA e nas ações da Junta de Salvação Nacional. OESP, em uma tendência mais conservadora, caracteriza a revolução como “golpe militar” (o que não é incorreto, mas trata-se de uma

280 escolha que, como sabemos, implica um enquadramento que tende a conduzir a projeção dos acontecimentos para um fechamento do quadro político) e não implica o futuro em suas manchetes. Ao final, ambos optam pelo enquadramento narrativo que envolve a perspectiva interna, ou seja, o reconhecimento, pelo Brasil, do novo governo português. Podemos afirmar que a grande imprensa brasileira analisada neste recorte noticiou a Revolução de 25 de Abril com grande interesse e destaque. Em suas primeiras páginas, OESP e JB mostram características comuns, como a atribuição do protagonismo às lideranças tradicionais (Spínola), colocando em segundo plano a ação decisiva do MFA e a participação popular, essencial para a efetiva queda da ditadura, apresentadas como pano de fundo dos acontecimentos. A fragmentação e a formatação hierárquica das informações, características do jornalismo que a Análise Crítica da Narrativa dedica-se a analisar, contribuem para essas implicações. Ambos os jornais expõem de forma clara as manifestações de comprometimento do novo governo com a democracia, as eleições livres, as liberdades civis, incluindo o fim da censura (destacado, inclusive, com uma foto no Estado), temas “espinhosos” e que iam de encontro à realidade política brasileira daquele momento. Em Portugal, os jornais de nosso recorte se diferenciam de forma mais nítida. Há, da parte do República, um engajamento nos acontecimentos e uma tomada de posição. O jornal, como vimos, incorpora a narrativa da Revolução e toma parte direta nisso, não apenas no sentido tradicional que já apontamos da projeção do futuro, mas através mesmo subversão da referência factual: na ocasião da primeira edição do dia 25 de abril, “A manchete categórica — “As Forças Armadas tomaram o poder” — não era ainda, à hora de publicação do vespertino, factual, relevando mais do desejo e da necessidade de mobilizar os meios populares: a rendição do Carmo só ocorreria horas mais tarde” (MESQUITA, 2014). O DN, por sua vez, é correto em suas manchetes do ponto de vista factual. Apesar da trajetória de engajamento em relação ao regime salazarista e do viés conservador, faz uma cobertura correta e objetiva. Sobre as personagens, vemos que, no Brasil, por uma questão de contextualização dos acontecimentos para os leitores, as personagens mobilizadas são os protagonistas tradicionais, representantes do poder e da

281 liderança que despontava já no início da narrativa: Marcelo Caetano, Américo Tomás e, acima de todos, Spínola, retratado como um líder hábil, administrador competente e ideólogo político. O Movimento das Forças Armadas e a população aparecem destacados, porém, como apoiadores desse líder e não como reais mobilizadores da narrativa. Caetano é caracterizado como um político inábil, que não soube conduzir Portugal para os novos tempos e que sucumbe carregando o peso do salazarismo representado pelos extremados que insistiam na guerra em África. Em Portugal, essa situação é mais complexa, porque as teses de Spínola e sua trajetória são contextualizadas em relação ao salazarismo e às outras opções políticas para a questão africana que já começam a despontar no horizonte político português, através das manifestações dos comunistas e dos socialistas (especialmente, neste último caso, Mario Soares). Além disso, outros personagens aparecem, como Salgueiro Maia, do MFA. Essa relação entre as personagens é tão complexa que, em charge no República, o desenhista brinca com a proximidade quase “familiar” entre o governo sitiado e as Forças Armadas, sinalizando certa desconfiança:

Figura 9: República, 27 de abr. 1974, p. 11.

282

Em relação ao léxico, não foi possível verificar, de forma tão marcada quanto no caso de 1964, expressões características de determinados campos políticos. Nesse sentido, destacamos que própria nomenclatura do grupo das Forças Armadas que idealizou e realizou a Revolução tomou para si a identificação como “movimento”, léxico através do qual os acontecimentos acabaram sendo mais amplamente reconhecidos e referidos, mais ameno do que “golpe de Estado” ou “golpe militar”. Assim, a expressão “o Movimento das Forças Armadas” referia, ao mesmo tempo, o coletivo e a ação, escolha que reflete o caráter coletivista e horizontalizado do grupo de militares e que acabou por proporcionar grande força narrativa à revolução. A caracterização dos representantes do governo ora derrubado, quando com intenções pejorativas, era associada à figura de Salazar, gerando um novo adjetivo, “salazarento”. Em geral, o tratamento aos líderes depostos era respeitoso, como se vê o pelo tratamento do professor Marcelo Caetano. Em termos de ruptura e repercussões midiáticas, vimos que o debate sobre a censura e a liberdade expressão foi evidenciado na narrativa do 25 de Abril. Em Portugal, República comemorou a liberdade e fez questão de transparecer isso nas suas páginas, através da publicação de textos vetados, da recusa em enviar provas ao exame prévio e no icônico box de linhas vermelhas, ao rodapé da capa, com letras garrafais: “ESTE JORNAL NÃO FOI VISADO POR QUALQUER COMISSÃO DE CENSURA”. Este aviso ganha ainda maior significado se pensarmos nas edições estudadas de 1964, quando o jornal, pela lei de imprensa da época, era obrigado a publicar um outro aviso, este afirmativo (Figuras 10 e 11):

Figura 10: Aviso, em 1964, de que o República havia passado pelo visto da censura.

Figura 11: Em 1974, a censura acabou.

283

No Brasil, em 1974, os jornais passavam por censura – de métodos diferentes daquela praticada em Portugal – e pudemos perceber, entre as edições analisadas, os trechos censurados de OESP, cujo espaço era preenchido com trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões, obra clássica da literatura portuguesa. A imprensa brasileira dá grande destaque ao tema da liberdade de expressão em Portugal, incluindo o fim da censura. Verificamos que houve citação entre os jornais de nosso recorte, o que reafirma sua relevância. O interesse mútuo entre Brasil e Portugal aparece também na coluna de Gladstone Chaves de Melo, correspondente do DN no Brasil, que assinava a Crônica do Brasil, semanalmente. A 17 de março, comemorando um ano do seu espaço no jornal, seu texto dá acesso ao imaginário de brasileiros e portugueses:

Estes dois povos sentem que estreitíssimos laços entre eles se estabeleceram, que uma raiz comum os prende à mesma terra, à mesma pátria espiritual: mas realmente ainda se desconhecem muito. Sem querer situar-me num passado mais remoto, e atendo-me aos últimos cinquenta anos, a imagem que o brasileiro comum faz do português é a do beirão ou minhoto, homem do campo, mais ou menos rude, trabalhador, poupado, tenaz, áspero nos modos, terno na convivência, duro e sentimental, mandão e chorão, que transita fácil da cólera às lágrimas, “torcedor” (adepto) do Vasco da Gama, no Rio de Janeiro, dono de botequim, de padaria e de mercearia, outrora motorista de táxi, a guiar um <> preto 1940, sempre novo, sempre impecável no desempenho, bebedor de elixir da longa vida e não da gasolina. O português de Lisboa ou de Coimbra, o homem da rua, vê no brasileiro um irmão, que fala a mesma língua, descansado e arrastado, com uns temos diferentes para designar coisas corriqueiras, sujeito desinibido, meio selvagem, sem maneiras, mas simpático e agradável, piadista, irreverente, tipo que, com uma boa engraxadela, poderia melhorar bastante, porque, afinal, é aberto, cordial, assimilador. Claro que, havendo muito mais portugueses no Brasil do que brasileiros aqui, é lá generalizada e concreta a imagem, e cá mais abstrato e informativo o conhecimento. Hoje vai-se modificando a situação, porque cada dia aumenta o número de brasileiros que visitam Portugal, contemplam seus monumentos, percorrem algumas de suas cidades e vilas, conversam com as pessoas, assistem a espetáculos, leem jornais e revistas, enfim, respiram por uns dias os ares do país. Por outro lado, esse poderoso difusor e comunicador que é a televisão, encarrega-se de mostrar, de norte a sul, artistas, desportistas, eventualmente escritores brasileiros, quando não cenas e paisagens do Rio, de S. Paulo, de Belo Horizonte, de Brasília ou de Recife. Verdade é que nem sempre boa é a escolha.430

430 CHAVES DE MELO, Gladstone. Panorama visto da Ponte. Diário de Notícias, Lisboa, 17 mar. 1974, p. 16.

284

Como vimos na perspectiva de Martinho (2007) e nas afirmações do próprio Itamaraty, era grande o interesse do Brasil sobre as colônias portuguesas na África, a ponto de já haver estremecimentos nas relações internacionais entre os países. A guerra na África é o grande catalisador dos eventos, fonte que alimentou a Revolução, porém, as manifestações sobre a situação nesses territórios a que tivemos acesso foi sempre mediada por agências e pelas falas oficiosas. Os jornais brasileiros buscam mais a repercussão internacional do que os portugueses, ao menos no momento inicial da Revolução compreendido por nosso recorte, o que é compreensível dado o volume de notícias e o espaço limitado dos jornais, ocupados com a demanda interna. São recolhidas as manifestações da imprensa e/ou de autoridades dos Estados Unidos, Espanha, Itália, União Soviética, Moçambique, Uganda, Angola, África do Sul e outros. Do Brasil, a repercussão para o próprio país é interessante, justificando as manchetes dos jornais de nosso recorte no dia 28 de abril. Primeiro, OESP noticia o silêncio do Itamaraty, que ainda aguarda um comunicado da Junta militar que governava Portugal. A expectativa tem a ver, sobretudo, com a questão colonial, que vinha, como já vimos, minando as relações diplomáticas entre os dois países. O diário paulista repercute, ainda, a manifestação de três deputados: Marcos Freire e Fernando Lyra (MDB/PE) e Lysâneas Maciel (MDB/RJ), todas saudando a queda da ditadura portuguesa. O primeiro, defendendo a realização de uma assembleia constituinte no Brasil para a realização de eleições gerais, afirmava que “a queda do regime português tem significação universal, porque representa a intervenção das forças armadas daquele país para restituir ao povo a sua soberania”431. Exilados portugueses no Brasil também falam à imprensa dos dois países. Carlos Lacerda emite suas opiniões e aparece como fonte privilegiada no JB, OESP e DN. Destacamos que, em Portugal, por ocasião da posse de Geisel, República e DN publicam, com abordagens diferentes, matérias que implicam o Brasil em um “estreitamento de relações” do governo brasileiro com as ditaduras do Chile, Bolívia e Uruguai. Nas relações com o tempo, percebemos que a cobertura da Revolução

431 O BRASIL aguarda os acontecimentos. OESP 27 abr. P. 8.

285 de 25 de Abril de 1974 em Portugal foi imbuída de sentido histórico. Os jornais sabiam que, naquele momento, participavam de algo extraordinário. Essa vocação se manifestou através da participação (a missão cidadã dos meios de comunicação, destacada, inclusive, por Spínola na primeira entrevista concedida pela Junta); também através da informação (como são exemplares os esforços pedagógicos de OESP e a sessão “Pesquisa JB”) ou pelo engajamento, como foi o caso do República. A Revolução em Portugal em 1974 e o Golpe Civil-Militar no Brasil dez anos antes foram rupturas que surpreenderam pela rapidez com que se efetivaram. Nesse sentido, percebemos a utilização de estratégias de objetivação, especificamente referências de exatidão temporal, para criar o efeito narrativo de contraste: “Às 4 da tarde, o final de uma era”, o título da coluna do correspondente Santana Mota, projeta uma relação específica com o tempo, ao sepultar, usando as palavras do próprio MFA, “o regime que há tantos anos oprimia a nação”. Ao usar os recursos narrativos de expressão de objetividade como “às 4 da tarde”, expõe a força do presente, tempo no qual está ancorada a narrativa jornalística, frente ao passado, por mais pesado e poderoso que seja (os quase 50 anos de regime fechado em Portugal). Do passado “salazarento” aparece, repetidas vezes a noção autoritária de que o povo português não estaria preparado para a liberdade, descostumado da participação na vida política e que precisaria ser “educado”, como afirmou OESP, ignorando a vida política que se deu na clandestinidade, no exílio, na prisão, na emigração, nos fronts e mesmo na vida cotidiana. Álvaro Guerra lembra, no República de 27 de abril, que “A batalha pela liberdade começou no dia em que o fascismo usurpou o poder. Não podemos esquecer aqueles que, durante a longa noite de cinco décadas, combateram pela libertação com armas desiguais”432. A narrativa da Revolução foi voltada para o futuro, fomentada especialmente pelo programa do MFA, na restauração da liberdade e da democracia. A leitura dos jornais no momento da ruptura institucional em Portugal a 25 de abril de 1974 deu a ver um presente encharcado de futuro, não no sentido de uma simples projeção, mas de um compromisso. Tudo mudou porque a narrativa mudou.

432 GUERRA, Álvaro. Os caminhos da liberdade. República, Lisboa, 27 abr. 1974, p. 3.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: NARRATIVAS DO VIVIDO E DO IMAGINÁRIO EM RUPTURAS INSTITUCIONAIS

Finalizamos nosso percurso comparativo com a síntese das análises das narrativas sobre os eventos de ruptura institucional estudados nesta tese. Nesse sentido, procuramos responder às nossas perguntas de pesquisa: De que forma, afinal, a imprensa hegemônica tratou esses acontecimentos midiáticos e como podemos compreender as expressões do imaginário nessas narrativas do vivido que tomam a realidade como referente? Retomamos aqui nossos referenciais teórico-metodológicos para explicitar os caminhos percorridos para cercar nosso objeto de pesquisa – ele mesmo uma produção revestida de imaginário – de todos os elementos possíveis para que ele mesmo se exprimisse. De acordo com as narrativas do vivido e do imaginário (SILVA, 2010; 2006), o primeiro passo para o des(en)cobrimento é o desvendamento, ou seja: o pesquisador deve “tirar a venda” e mudar as lentes que usa para olhar o objeto. Nesse sentido, optamos por uma abordagem que encara a narrativa jornalística como uma tecnologia do imaginário, ou seja: uma forma de conhecimento do presente fundada na modernidade, baseada em práticas profissionais específicas que preconizam a isenção, a objetividade e a neutralidade e que são marcas da mitologia de uma atividade que busca narrar e seduzir seu leitor, cotidianamente, com o extraordinário. De acordo com Silva (2006), “O imaginário é uma educação existencial dos sentidos e da percepção” (p.30), “uma rede etérea e movediça de sensações partilhadas concreta ou virtualmente” (p. 9). A narrativa jornalística é, assim, impregnada desses sentidos movediços e na cobertura dos eventos estudados nesta tese – as extraordinárias rupturas institucionais de 1964 no Brasil e 1974 em Portugal – manifestam-se sistemas de pensamento, significados partilhados, macroestruturas de compreensão das relações entre o passado e o futuro:

As narrativas do vivido contam o social que se conta por meio de suas práticas e fabulações. Tomam os imperativos categóricos de uma época como barômetros das pressões atmosféricas dominantes e medem a vibração existente com base nos parâmetros das expressões contingentes (SILVA, 2006, pp. 80-81).

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Nesse percurso, buscamos, no Capítulo 1, realizar um levantamento bibliográfico sobre as relações entre as imprensa brasileira e portuguesa e as rupturas institucionais ocorridas nesses países – o Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil e a Revolução de 25 de Abril de 1974 em Portugal. No primeiro caso, vimos que, apesar das narrativas das empresas de comunicação e dos próprios jornalistas tentarem minimizar, justificar ou negar, a absoluta maioria dos diários da imprensa hegemônica no Brasil em 1964 foi favorável à deposição do presidente João Goulart através de um Golpe Civil-Militar. Apresentamos, ainda, as trajetórias de OESP e JB em pormenor. Em Portugal, vimos que a imprensa vivia sob censura prévia (mais tarde chamada exame prévio) e que a política interna era, até a Revolução, um tema controverso nas redações. Excessivamente vigiada, a editoria impunha aos profissionais sérias restrições ao trabalho e resumia-se, muitas vezes, à simples repetição de comunicados oficiais e a uma protocolar cobertura de cerimônias controladas e encenadas pelo regime. Essa situação fazia com que jornalistas da área fossem (realmente) ou confundidos com colaboradores do regime salazarista. Como mencionamos na introdução desta tese, no 25 de Abril, “todos os jornais acordaram revolucionários”, e a liberdade de expressão foi uma das manifestações mais festejadas entre as mudanças políticas em curso em Portugal. Vimos, ainda, os perfis de DN, matutino que inaugura a modernização da imprensa portuguesa em fins do século XIX e República, vespertino com tradição de oposição ao salazarismo. No Capítulo 2, explicitamos nossos referenciais teórico-metodológicos, buscando, de acordo com as narrativas do vivido e no imaginário (SILVA, 2010), elementos que nos ajudassem a recobrir nosso objeto de pesquisa a fim de resultar em um desvelamento. Para tanto, realizamos uma reflexão acerca da categoria acontecimento como articuladora entre a Comunicação e a História, tendo como referências principais Nora (1979) e Sodré (2009). Na aproximação entre esses campos, estudamos, baseados em Detienne (2004), o método comparativo como forma de acesso à consciência história, especialmente através da dimensão da mudança presente na narrativa jornalística analisada. Nossa abordagem foi direcionada, ainda, pela Análise Crítica da Narrativa voltada ao jornalismo, tal como proposta por Motta (2004;

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2005; 2013). Os Capítulos 3 e 4 compreendem a análise propriamente dita. Iniciamos pelo Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil, analisando, primeiramente, a imprensa local e, depois, a imprensa portuguesa. Da mesma forma, o Capítulo 4, dedicado à Revolução de 25 de Abril de 1974, inicia com a análise da imprensa portuguesa e, em seguida, passamos à imprensa brasileira. De acordo com nosso referencial teórico-metodológico, estabelecemos, a partir do exercício comparativo, cinco categorias de análise que guiaram nossa pesquisa. São elas: a composição da intriga, as personagens, as escolhas lexicais, as repercussões midiáticas e as expressões das relações com o tempo. Em termos de recomposição da intriga, percebemos que ambas as situações de ruptura institucional analisadas apresentam uma sequência-tipo clássica da teoria narrativa, a saber: degradação-reparação-melhoramento (BREMOND, 1971). No Brasil de 1964, a situação do governo Goulart torna-se insustentável, passando por um processo de degradação que, como vimos no Capítulo 1, contou com o engajamento da imprensa para sua consolidação. No caso de Portugal em 1974, os jornais locais passavam por censura prévia e, assim, o processo de degradação do regime não foi midiatizado como no Brasil, apesar da leitura dos jornais brasileiros ter nos ajudado a identificar os sinais de esgotamento do modelo salazarista, principalmente através da repercussão da publicação do livro Portugal e o Futuro, de António de Spínola. Assim, pudemos perceber que ambos os eventos de ruptura estudados aqui foram compreendidos como “inevitáveis” pela grande imprensa, entendimento sintetizado pela manchete do República sobre os acontecimentos no Brasil em 1964: “Deu-se o inevitável?” – perguntou o jornal na capa da edição de 1º de abril daquele ano. No caso da imprensa brasileira em 1964, a questão da adesão ou tomada de posição dos jornais a favor do golpe, para além dos espaços que se configuram como eminentemente opinativos – cuja análise não faz restar dúvida sobre a posição favorável à queda de Goulart, inclusive por meio da força – reside principalmente nas metanarrativas ou pano ético ou moral projetado pelas notícias (MOTTA, 2013). Nesse sentido, chamamos atenção

289 para três aspectos metanarrativos que são indicativos da tomada de posição da imprensa brasileira analisada nesta tese: apagamento do confronto, definição da narração/protagonismo e evocação dos valores da legalidade e da “normalidade”. Em ambos os casos analisados, os processos de degradação dos governos no poder foram marcados, dialeticamente, tanto por atos de fala quanto por ações militares. Compreendendo o discurso como evento da linguagem, no caso do Brasil em 1964 é emblemática, no plano discursivo, a fala de João Goulart na sede do Automóvel Clube, considerada “a gota d’água” que desencadeou o golpe. De acordo com as narrativas jornalísticas analisadas, a exposição do presidente foi considerada virulenta, reforçando o imaginário de um posicionamento político considerado “radical”, “autoritário” e, sobretudo, de “influência comunista”. Em Portugal em 1974, a publicação de Portugal e o Futuro também pode ser considerada um evento da linguagem que movimentou as engrenagens da narrativa política nesse país. Na interpretação da carta aberta publicada no República, o impacto do livro não decorreu apenas da proposta de solução para a questão colonial portuguesa em si – de acordo com a declaração do capitão Salgueiro Maia ao República, o MFA havia chegado às mesmas conclusões do general –, mas especialmente pelo narrador insólito: Spínola era o Comandante em Chefe das Forças Armadas portuguesas, depositário da confiança de Salazar e de Marcelo Caetano, ou seja, um homem gestado pelo próprio regime. Não cabe aqui a análise dos textos em si do discurso de Goulart ou do livro de Spínola, mas é importante registrar que esses dois atos de fala entrelaçam espaço de experiência e horizonte de expectativa (KOSELLECK, 2006, p. 313): “é a tensão entre experiência e expectativa que, de uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo surgir o tempo histórico”. No caso de Goulart, a reafirmação de seu plano de reformas o colocou, de acordo com a imprensa analisada, definitivamente no campo da ilegalidade e da influência comunista, tornando o golpe “inevitável’. O livro de Spínola articulou, do seio da ditadura, e através de uma fala autorizada, uma alternativa política frente à ampla degradação do regime causada, principalmente, pela guerra na África. Essas falas autorizadas

290 tiveram forte impacto nos imaginários locais, irrigando, cada uma à sua maneira, a bacia semântica do cenário político e provocando reações à esquerda e à direita: “Todo imaginário é uma imaginação do real” (SILVA, 2006, p. 51). No Brasil, a imprensa, como tecnologia do imaginário, canaliza a solução aos problemas políticos e econômicos do País para a saída de Goulart, efetivada, no campo da ação, através do levante militar a partir de Minas Gerais. “A transformação imaginal requer uma potência criativa capaz de emitir choques com intensidade suficiente para pôr em ebulição a rede (imaginário) acionada” (SILVA, 2006, p. 100). Em uma situação de ruptura mediada pelas tecnologias do imaginário, a solução dos conflitos é também mediada e repousa no sucesso da configuração das narrativas do vivido e do imaginário. Em termos contextuais, ambos os acontecimentos foram enquadrados, cada um à sua maneira, em relação à Guerra Fria. No caso do Brasil, vimos, especialmente nas coberturas de OESP no Brasil e DN em Portugal uma visão sobre a América Latina – após o triunfo da Revolução Cubana, em 1959 e a crise dos mísseis, em 1962 – como território central nas disputas entre EUA e URSS. O imaginário predominante neste tipo de narrativa era de uma clara divisão entre “o mundo livre” e o “comunismo”, em um dualismo simplificador que reunia, em ambos os grupos, as mais diversas orientações políticas, ideológicas e econômicas, incluindo, no segundo grupo, o trabalhismo de João Goulart. No Brasil, a solução militar parecia mais aceitável, revelando um ponto de vista pejorativo: mais uma “quartelada” latino-americana. No caso de Portugal, já em 1974, o foco da Guerra Fria estava no Oriente Médio e na crise do petróleo. Em termos conjunturais, a narrativa jornalística dá mais destaque à questão do desgaste do modelo colonial português e seus desdobramentos em relação à Comunidade Econômica Europeia e à situação dos regimes segregacionistas da Rodésia e da África do Sul. Em cada um dos episódios de ruptura institucional analisados nesta tese, destacamos, na recomposição da intriga, três episódios. No Brasil: 1) a revolta a partir de Minas e a adesão da oficialidade a esse movimento rebelde; 2) o anúncio da queda de Goulart por parte de Carlos Lacerda em cadeira de rádio e TV no final da tarde de 1º de abril, somada ao silenciamento das

291 emissoras da “Cadeia da Legalidade”, estopim da reação das ruas na zona Sul do Rio de Janeiro e no centro de São Paulo e marcos midiáticos do triunfo do Golpe Civil-Militar; e 3) o impasse (nem sempre assim compreendido) da posse de Mazzilli sem que Goulart houvesse renunciado ou deixado o País. Em Portugal, os episódios são: 1) a publicação do livro de Spínola; 2) o levante das Forças Armadas, ensaiado em 15 de março nas Caldas da Rainha e efetuado de forma completa, finalmente, a 25 de abril de 1974; e 3) O sítio e a rendição de Marcelo Caetano no Quartel do Carmo, símbolo da queda definitiva do regime e da aderência popular ao programa do MFA. Nesse sentido, vemos, em ambos os casos, que as manifestações populares articulam, junto com as ações militares, a coesão nas narrativas midiáticas estudadas. Esses momentos específicos de derrubadas do poder instituído mostram como as narrativas jornalísticas analisadas relacionaram-se com os impasses e as disputas características de situações de ruptura institucional. No caso do Brasil, a dimensão do confronto, em termos de guerra civil, é menos explorada na imprensa local do que na portuguesa. De acordo com nossa análise, esse fato pode ser explicado de duas formas principais: primeiro, pela adesão da imprensa brasileira à narrativa dos insurrectos – recorrendo, inclusive, à dimensão “nós versus eles” (VAN DIJK, 2005) – e também pela inadmissão da legitimidade do governo Goulart como força política naquele momento. Nas rupturas analisadas nesta tese, observamos uma dicotomia: no Brasil, Goulart é rechaçado por insistir na mudança, especialmente através das reformas de base. Em Portugal, o imobilismo do regime salazarista é uma das causas principais de sua queda. No momento de ruptura, porém, a situação se inverte: a deposição de Goulart decorre, nos campos da ação e da enunciação, de um falso abandono, de uma inação. No caso de Portugal, ocorre o sítio ao quartel do Carmo e Marcelo Caetano é efetivamente derrubado pelo Movimento das Forças Armadas, fazendo com que o golpe militar seja definido e consolidado na ação militar: lembramos que o JB, ao interpretar a queda de Goulart em texto editorial, afirma que a situação está definida, mas não consolidada433, faltando apenas uma justificativa legal para a tomada do poder pelos militares, sem importar que esta fosse construída a posteriori. As lacunas

433 SITUAÇÃO definida mas ainda não consolidada. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 2 abr. 1964, p. 2.

292 na consolidação do golpe de 1964 no Brasil no campo da ação civil e militar fizeram com que a conclusão narrativa dessa situação de ruptura institucional tenha repousado ainda mais nas mãos das narrativas acionadas pelas tecnologias no imaginário. Vimos que, na narrativa jornalística analisada, essa conclusão se fez, inclusive, pela via contrária à natureza dessa atividade: através do reforço da normalidade. Em relação às personagens, vimos que a atribuição do protagonismo é um indicativo importante das expressões do imaginário na narrativa jornalística. Em ambos os casos de ruptura institucional, as Forças Armadas desempenharam o papel de agentes de restauração do equilíbrio. Sua intervenção, no Brasil, do ponto de vista do exterior, é considerada mais natural (as “quarteladas”); na Europa, provoca surpresa, principalmente pela horizontalidade do MFA e por seus objetivos democráticos, expressos através de um programa, logo nos primeiros momentos do 25 de Abril. Em Portugal, o general António de Spínola assume o protagonismo, principalmente porque aparece como uma figura capaz de contemporizar, ao menos naquele momento, as aspirações populares e do MFA com a garantia de alguma estabilidade, conquistada, ironicamente, através de sua atuação dentro do regime ora deposto. No caso do Brasil em 1964, há uma lacuna na projeção de um líder protagonista, já que o foco estava na eliminação do antagonista, o presidente Goulart. A reação popular é presente em ambas as narrativas. No Brasil, ocorre a criminalização das lutas sociais e a comemoração popular na Zona Sul do Rio é o marco midiático da derrocada de Goulart. Em Portugal, a população toma as ruas e adere ao movimento dos militares, protagonizando, ao lado do MFA e de Spínola, a icônica rendição de Caetano no Quartel do Carmo. Sobre o léxico empregado para tratar dos eventos de ruptura institucional, compreendemos que essa dimensão da narrativa auxilia na compreensão do posicionamento das forças em jogo na disputa pelo poder. O uso da palavra “golpe” ou das expressões “golpe de Estado” e “golpe militar” – que são corretas para referir ambos os casos analisados – é comedido. Na imprensa brasileira em 1964, a palavra “golpe” não foi incorporada pelo narrador-veículo, aparecendo apenas na voz de terceiros, como em citações de

293 falas de grupos políticos defensores do governo Goulart ou na emblemática sugestão do Washington Star para a solução da crise brasileira: “um bom e efetivo golpe de Estado”434. Destacamos que os jornais considerados mais conservadores de nosso recorte (OESP no Brasil e DN em Portugal) usam a expressão “golpe militar” para tratar dos eventos fora suas fronteiras: a 1º de abril de 1964, o DN afirma: “Golpe militar no Brasil: as tropas federais do estado de Minas revoltaram-se contra João Goulart”. Em 26 de abril de 1974, é a vez de OESP: “Golpe militar derruba o governo português”. Essa constatação nos conduz a outra categoria analisada nesta tese, as repercussões midiáticas, na qual estudamos os reflexos dos acontecimentos no âmbito midiático, seja pelas interferências diretas (como nos casos de ataques a redações ou das performances midiáticas de Carlos Lacerda) ou por meio da incorporação das narrativas de outros meios de comunicação na imprensa analisada em nosso recorte, seja como citação ou como fonte de informação. Tanto no Brasil quanto em Portugal ocorreram casos de ataques a redações de jornais no decorrer dos episódios de ruptura institucional analisados. Os alvos foram veículos ligados aos governos derrubados: no Brasil, o Última Hora, em Portugal, A Época. A ocupação de estações de rádio é também emblemática em ambos os casos. No Brasil, a interrupção da transmissão das rádios Nacional e Mayrink Veiga foram marcantes da derrocada do governo Goulart. Em Portugal, a ação militar começa justamente através da senha transmitida pela frequência do Rádio Clube Português e, ao longo do 25 de abril, com a ocupação de outras estações. Os meios de comunicação transformam-se em fonte de informação. Vimos, em ambos os casos analisados, a articulação de uma grande rede de citações entre as imprensas nacionais e estrangeiras. Várias páginas foram dedicadas à repercussão internacional dos eventos de ruptura institucional. Observamos também que a escolha do tipo de jornal e dos trechos selecionados para compor esse recorte revelam intrigas preferenciais. Entre o nosso recorte, o jornal que menos se ocupou da repercussão internacional foi o República, que se mostrou totalmente imerso na intriga local.

434 “WASHINGTON Star” sugere golpe dos militares no Brasil, “à velha maneira’. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1964, p. 4.

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O olhar externo foi também composto através dos relatos de correspondentes e das notícias sobre as repercussões em outros países. Nos casos de rupturas institucionais, o reconhecimento internacional é um tema de extrema relevância. No caso do Brasil, por exemplo, o imediato reconhecimento pelo governo dos Estados Unidos foi essencial para a consolidação do golpe. Ao mesmo tempo, a relação com as fontes internacionais revelou interpretações dissonantes da intriga, como no caso da “mal-informada” imprensa europeia que aparece no relato do correspondente de OESP Gilles Lapouge ou nas hesitações das imprensas e dos governos frente à incógnita da Revolução portuguesa. As narrativas jornalísticas analisadas apresentaram-se como “ordenadoras do acontecimento”, tomando emprestada a expressão de Nora (1979, p. 181), articulando passado, presente e futuro. Vimos que a imprensa se serviu das generalizações de uma concepção de História tomada como lição ou destino para construir o acontecimento-intriga. Isso fica claro, no caso do Brasil, na composição da intriga através da concepção dualista e simplificadora de separação entre “comunismo” e “mundo livre” e na caracterização do governo Goulart como “comunista” ou, ainda, na interpretação de que sua derrubada significaria o fim definitivo da era Vargas. Em Portugal, o que ocorre é a derrubada de uma ditadura e não de um presidente eleito e, sendo assim, a generalização do passado é mais assertiva, inclusive em termos personalistas: trata-se do fim do salazarismo. As marcas do passado são ressignificadas na narrativa do presente, como no caso da reedição do aviso de censura na capa do República de 25 de abril: “Este jornal não foi visado por qualquer comissão de censura”. De acordo com Motta (2013) é também através das projeções para o futuro que o jornalismo manifesta a subjetivação em sua narrativa. Nesse sentido, há uma significativa diferença entre os eventos de Brasil e Portugal. No caso do primeiro, foi a imprensa quem assumiu a responsabilidade da narrativa sobre o futuro, operando como uma tecnologia do imaginário e projetando na queda de Goulart a “restauração da democracia”, o fim do “caos”, ou seja, a estabilização, o equilíbrio e o melhoramento. Do alto da mitologia de administradora da verdade social (SODRÉ, 2009), a imprensa

295 analisada em nosso recorte julgou e condenou o presidente, catalisou a ação militar e projetou os desdobramentos da intriga, incluindo uma imediata “operação-limpeza” na cena política. Em Portugal, a Revolução partiu de uma nova ideia, de uma nova solução para os problemas daquele País, a qual tinha como premissa a abertura ao diálogo político. Genuinamente horizontal, o MFA se baseou em um comprometimento imediato e futuro com a democracia, manifesto através de seu Programa, conquistando imediatamente o apoio popular. A ruptura institucional significou, em Portugal, a abertura ao diálogo, ficando patente desde os primeiros momentos que o Programa do MFA era incompleto, mas que era aberto à prática democrática. A figura de Spínola, por exemplo, apesar de festejada pela imprensa, estava longe de representar uma unanimidade entre as forças revolucionárias. A imprensa analisada, em sua tendência autoritária, questiona a capacidade do povo português de exercer a democracia a partir da Revolução, esquecendo que foi esse mesmo povo que, apesar da prisão, do exílio, da guerra, da imigração ou da pobreza, construiu uma alternativa ao salazarismo em seu País. As narrativas jornalísticas de ruptura institucional analisadas nesta tese convergem na questão do reforço da noção de normalidade. Ambas as narrativas estudadas se encerram com o tranquilizador retorno à “normalidade”, como se o jornalismo, saturado do extraordinário das rupturas institucionais, precisasse recalibrar suas bases de “normalidade” para seguir operando sobre o imaginário. Entre os elementos indicativos dessa “normalidade” está o reforço de um imaginário de pacifismo natural nas sociedades brasileira e portuguesa. As intervenções militares, tanto no Brasil quanto em Portugal, são, cada uma à sua maneira, celebradas como pacíficas: “blitzkrieg sem disparar um só tiro”, na fala do General Luís Carlos Guedes sobre o golpe de 1964, e o incidente isolado, em Portugal, na sede da polícia política. Em ambos os casos, vemos que as narrativas jornalísticas analisadas não se aprofundam no tema da violência. No Brasil, desde os primeiros momentos do golpe são noticiadas prisões arbitrárias e mortes de civis, incluindo crianças e estudantes, mas sem qualquer destaque ou protesto no noticiário. Em Portugal, a violência da guerra colonial, afastada nos territórios africanos, não é explorada, e a realidade de soldados e da população nesses locais resta desconhecida.

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Coberta pelo manto da atualidade, a narrativa jornalística encobre em seu discurso uma História “pré-fabricada” que atua, nos casos das rupturas institucionais, como legitimadora da mudança e conformadora da “normalidade” ao mesmo tempo em que fundamenta seu discurso no desvio, no extraordinário cotidiano. A expressão “cobertura” relacionada à atividade jornalística é adequada às lentes do imaginário que adotamos nesta tese: “A cobertura jornalística é um dispositivo de recobrimento que deve resultar num desvelamento” (SILVA, 2010, p.14). O jornalismo provoca um conhecimento do mundo através de suas técnicas, interpelando os fatos por meio de sua espetacularização, configurando, assim, uma tecnologia do imaginário. “Os fatos só existem como narrativas, entre as quais a jornalística” (SILVA, 2006, p. 107). Retomando nossas reflexões a respeito do jornalismo e sua inserção na consciência histórica, concebemos, nesta tese, esta atividade como um espaço de crítica característico da modernidade capitalista no qual a sociedade presta contas a si mesma a respeito de seu presente ao produzir conhecimento sobre o mundo da vida por meio da provocação dos fatos da atualidade através de técnicas profissionais específicas (tecnologias do imaginário) e de uma concepção narrativa espetacular da noção de acontecimento. Nesse sentido, compreendemos que é importante, nas considerações finais desta tese, olhar para o presente a partir de onde construímos nossa própria narrativa enquanto pesquisadores. Os 40 anos do 25 de Abril foram comemorados em Portugal. Tivemos oportunidade, proporcionada pela bolsa de doutorado sanduíche, de estar em Lisboa nesta data, em 2014. Dos jornais de nosso recorte, sobreviveu o Diário de Notícias, que passou por um longo e “quente” processo revolucionário que incluiu, como vimos, sua nacionalização logo após a Revolução e posterior privatização no começo dos anos 1990. A edição de 25 de abril de 2014 foi dedicada à efeméride, destacando “40 anos de evolução” (grifo nosso) e oferecendo ao leitor, junto com o impresso, um cravo vermelho. O jornal convidou 25 pessoas a entrevistar outras 25, sobre temas como o Sistema Político, os Direitos das Mulheres, Saúde, Educação, Ciência, Sexualidade, Lusofonia, reunindo, através das vozes desses convidados, balanços e

297 projeções para o futuro a partir da ótica da Revolução. Na página 2, dedicada ao editorial, o jornal relembra que teve duas tiragens naquele 25 de abril. Em legenda à reprodução das imagens das capas, afirma: “A primeira edição do dia 25 de abril de 1974 foi fechada antes da notícia do golpe. E a manchete era ‘O milagre de Angola’, sobre as contas da então colônia em guerra”. Sem mencionar o significado dessa primeira edição e seu passado de submissão ao regime salazarista, o DN foca na narrativa libertadora: “Nesse dia memorável de 1974, uma segunda edição deu logo conta do ‘Movimento Militar’ que mudou o regime. Hoje, passados 40 anos, o jornal revisita essa data libertadora, numa edição que se pretende histórica [...]”. A relação do 25 de Abril com a atualidade é a tônica do editorial assinado pelo então diretor do DN, João Marcelino, uma vez que Portugal passava por uma forte crise econômica – da qual ainda luta para se recuperar – que levou o País a sofrer intervenção do Fundo Monetário Internacional em 2011. O texto destaca que “De politicamente isolado, socialmente subdesenvolvido, sem infraestruturas rodoviárias, com indicadores terríveis na saúde e na mortalidade infantil, Portugal partiu nesse dia mágico para uma realidade que é incomparável”435. Considera o 25 de Abril uma “inevitabilidade da História”, mas reconhece o esforço daqueles que o empreenderam e resgata o espírito coletivo daquele movimento, afirmando que os problemas do presente “só o trabalho e o empenhamento coletivo podem resolver”. Vemos, assim, que o narrador-veículo, apesar de reconhecer os avanços da Revolução, constrói sua narrativa tomando a História como lição e realiza uma conveniente analogia entre os esforços coletivos do 25 de Abril e as amargas medidas às quais os portugueses foram obrigados a se submeter, especialmente a partir de 2011, por conta da calamidade financeira e da intervenção da troika. Cinquenta anos depois do Golpe Civil-Militar de 1964, alguns jornais que viveram aquele momento político no Brasil seguem em atividade, como é o caso, em nosso recorte, de O Estado de S. Paulo. O jornal, apesar de admitir o apoio ao golpe no histórico publicado em seu site, utiliza como título “Oposição

435 MARCELINO, João. Sobre uma ‘culpa’ que Abril não tem. Diário de Notícias, Lisboa, 25 de abril de 2014, p. 2.

298 aos militares”, narrativa que quer fazer prevalecer, baseado na censura instalada em dezembro de 1968, com o AI-5:

1964 OPOSIÇÃO AOS MILITARES O Estado apoia o movimento militar que depôs o presidente João Goulart, ao constatar que ele já não tinha autoridade para governar. Defendeu uma intervenção militar transitória. Porém, ao perceber que os radicais de extrema direita aumentavam sua influência e queriam a perpetuação dos militares no poder, o jornal retira seu apoio e passa a fazer oposição.436

Na edição dominical de 30 de março de 2014, OESP publicou um suplemento de 20 páginas chamado, simplesmente, 1964. Assim como o DN, “terceiriza” grande parte de seu conteúdo para outros narradores, como os ex- presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso, o jornalista Flavio Tavares, o historiador Marco Antonio Villa e o filósofo José Arthur Giannotti. Lembrando as figuras de domínio de voz na narrativa jornalística propostas por Motta (2013), reconsideramos aqui a figura do primeiro narrador: o narrador-veículo, extradiegético, que se encontra fora da história (história com “h” minúsculo, em seu sentido específico, já que jamais poderia inscrever- se fora da História). A definição desse posicionamento faz parte do imaginário da técnica jornalística e ajuda a compor a face institucional do jornalismo como agente social inscrito na duração. Nesse sentido, o OESP produz, no cinquentenário do golpe, uma (re)cobertura de sua própria atuação no evento. A leitura do jornal em relação ao acontecimento-intriga do golpe de 1964, 50 anos depois, é uma simples retomada da narrativa descrita nesta tese, envernizada por uma perspectiva “histórica”. Contudo, no editorial de 31 de março de 2014, o jornal dá pistas que instigam ainda mais a curiosidade do pesquisador das narrativas do vivido e do imaginário, ao afirmar que o “movimento civil-militar” sofreu “um desvio do curso original imaginado, em especial, pelas lideranças civis”437 (grifo nosso). Seria um sutil mea culpa por superfaturamento imaginal? A narrativa cede à provocação. Sigamos provocando-a.

436 HISTÓRIA do Grupo Estado nos anos 1960 [on-line]. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2014. 437 MEIO século depois. O Estado de São Paulo. São Paulo, 31 de março de 2014, p. A3.

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APÊNDICE A

Teses e dissertações publicadas entre 2007 e 2012 disponíveis na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) com as palavras-chave “imprensa” e “ditadura militar” no resumo, organizadas por ordem alfabética de título. Levantamento realizado em junho/2013.

Diss. ou Título Tese? Ano Instituição Local Área A ditadura militar e a grande imprensa: os editoriais do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã entre 1964 e 1968 D 2012 USP São Paulo História Carlos Castello Branco: jornalismo político e oposição liberal à ditadura militar no Brasil (1964-1985) D 2012 PUCRJ Rio de Janeiro Ciências Sociais Cotidiano e política T 2007 USP São Paulo História Doutrina e legislação: os bastidores da política dos militares no Brasil (1964-1985) D 2009 USP São Paulo História Fotojornalismo e regime militar: a cobertura fotojornalística de temas polêmicos em dois jornais do Paraná (1968) D 2012 UEL Londrina Comunicação Guerrilha de pincéis: humor gráfico no jornal O Pasquim como resistência política e cultural à ditadura militar (1969-1970) D 2010 UFC Fortaleza Comunicação Humor e resistência: as possibilidades políticas do humor nas charges do jornal O Pasquim D 2012 UEL Londrina Comunicação Isto É: os discursos em torno da lenta redemocratização brasileira (1976-1981) D 2007 UFGD Dourados História Maria Quitéria: o Movimento Feminino pela Anistia e sua imprensa (1975-1979) D 2008 PUCSP São Paulo História O jornal O Estado de S. Paulo e a revista Veja após o AI-5: análise semiótica do discurso jornalístico de resistência D 2007 USP São Paulo Letras O jornalismo nos limites da liberdade: um estudo da cobertura da imprensa sobre os casos dos religiosos acusados de praticar atividades subversivas durante o regime militar D 2007 UNB Brasília Comunicação O papel político da imprensa batista: O Batista Ciências da Paulistano e os governos de Jânio a Médici D 2009 PUCSP São Paulo Religião O terror renegado: uma reflexão sobre os episódios de retratação pública protagonizados por integrantes de organizações de combate à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975) D 2008 UFRGS Porto Alegre História Operação Condor e o sequestro dos uruguaios nas ruas de um porto não muito alegre D 2012 UFRGS Porto Alegre História Os editoriais da Folha de São Paulo: evidências de uma solução bonapartista para a crise (1963- 1964) D 2007 PUCSP São Paulo História Política e imprensa: análise dos editoriais do jornal "O Estado de S. Paulo" nos primeiros anos após o golpe militar de 1964 D 2012 UEL Londrina Ciências Sociais Rompendo os vínculos, os caminhos do divórcio no Brasil: 1951-1977 T 2010 UFG Goiânia História

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ANEXO – JORNAIS DIGITALIZADOS

Dentre os jornais analisados em nosso recorte, os brasileiros Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo estão disponíveis online em acervos digitalizados. No caso do Jornal do Brasil, as edições analisadas nesta tese estão disponíveis online, publica e gratuitamente, através do Google News. O Estado de São Paulo possui um acervo online, acessível aos assinantes. Os jornais portugueses Diário de Notícias e República foram consultados e fotografados pela autora desta tese, nos acervos da Biblioteca Pública de Braga e da Biblioteca Pública do Porto, entre os meses de fevereiro e agosto de 2014, durante estágio doutoral sanduíche realizado em Portugal. Apresentamos, no CD anexo, a íntegra das edições consultadas (com exceção do JB, acessível online), as quais, de acordo com nosso recorte, correspondem, em 1964, aos dias 31 de março e 1, 2 e 3 de abril; e, em 1974, aos dias 25, 26, 27 e 28 de abril.

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